Baixar artigo completo - Revista FÓRUM PATRIMÔNIO

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ARQUITETURA E PRESERVAÇÃO NA CONSTRUÇÃO DE
DISCURSOS SOBRE A CIDADE DO RIO DE JANEIRO
CHAVES, LUDMILA OLIVEIRA
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Departamento de História da Arte.
Grupo de Pesquisa sobre Política e Território - GEOPPOL
Avenida de Santa Cruz, 543. Realengo/Rio de Janeiro. CEP: 21710-231
[email protected]
RESUMO
Considerando a trajetória arquitetônica da cidade do Rio de Janeiro e a apropriação dessas
formas arquitetônicas pelo campo da patrimonialização, questiona-se: De que forma as ações
preservacionistas sobre os estilos arquitetônicos contribui para a produção de discursos acerca
da cidade do Rio de Janeiro? Qual história pretende-se contar a partir das construções que
preenchem a sua paisagem urbana? Como bens arquitetônicos modernista participam da
construção de uma memória material da/para a cidade? Como estes embasam os discursos
sobre a paisagem urbana do Rio de Janeiro? A partir da consolidação da arquitetura
modernista no Rio de Janeiro e a notável inter-relação entre o empenho político do estado em
desenvolver um projeto de construção de uma identidade nacional e os propósitos ideológicos
e estéticos dos arquitetos modernistas na consolidação do patrimônio nacional, o presente
artigo tem como propósito compreender de que modo os intelectuais modernistas promoveram
discursos que reproduzissem as estratégias políticas do estado e como a arquitetura moderna
foi inserida ao campo da patrimonialização.
Palavras-chave: Arquitetura moderna; política; paisagem e patrimônio.
1. INTRODUÇÃO:
Ao final da década de 30, a unidade nacional torna-se questão primordial para o
regime do Estado Novo tornando-se necessário a elaboração de mecanismo que
reafirmassem a nacionalidade do país, com o objetivo de promover a unificação do
povo brasileiro, anteriormente fragmentado pelo regime oligárquico. Esse contexto de
consolidação das raízes brasileiras com o intuito de promover a integração nacional
encontrava-se respaldo nas aspirações de Getúlio Vargas na construção de um estado
nacional centralizador que procurava unir o povo mediante uma homogeneização
cultural que, caracterizada por símbolos e valores, tradições e mitos de origem, reais
ou inventados – porém, comum a todos –, deveriam fomentar a ordem e união da
sociedade brasileira, a fim de comandar a transformação e modernização da nação.
Visando, portanto, consolidar a passagem da sociedade brasileira de uma estrutura
predominantemente rural para uma estrutura urbana, de uma economia agrária para
uma industrializada e de uma sociedade semicolonial para uma sociedade moderna,
Vargas dedicou amplo esforço político em direção a uma maior interdependência e
integração mais completa entre as regiões e os grupos sociais a partir do investimento
em políticas culturais junto aos principais órgãos estatais, a fim de se construir uma
identidade nacional capaz de redefinir o sentimento de pertença a uma comunidade e,
ao fazê-lo, transformar toda a arcaica estrutura social, política e econômica do país.
Assim, mediante o uso extenso da propaganda, a consolidação de propostas de
proteção à esfera social da educação e da cultura (expansão do ensino e promoção de
manifestações culturais populares) e na elaboração de políticas de constituição do
patrimônio histórico e cultural do Brasil – uma vez que os símbolos são relevantes
para afirmação e identificação de um povo enquanto nação – Vargas, cria as
condições de legitimação de sua política de integração nacional, com objetivo de que
uma vez crendo que todos os indivíduos eram, em sua essência “brasileiros”,
suavizaria a individualidade humana à individualidade coletiva da nação. Assim, a
partir dos investimentos na cultura e na criação de símbolos, garantia-se a coesão
nacional de modo que o indivíduo se enquadraria na condição de cidadão brasileiro e
deveria lutar pelo fortalecimento de sua nação como um todo, eliminando a
fragmentação gerada pelo federalismo, seus péssimos quadros sociais e seus baixos
índices econômicos.
Conforme o novo sistema político se instaurava, as condições para amplas reformas
políticas e administrativas que marcam essa nova fase de revitalização da estrutura
governamental durante o Estado Novo (1937-1945) eram asseguradas. Propostas que
ao prever a criação e proteção das esferas sociais da saúde, educação, artes,
administração e trabalho, fariam com que o Estado passa-se a ser apresentado como
o emissário legítimo dos interesses do povo, assumindo a função de organizador da
vida social e política.
É, pois, neste momento que, segundo Velloso, laços de união entre elite intelectual e
política assumem novas configurações, estreitando-se, uma vez que estes tendem a
identificar na matriz autoritária de pensamento do Estado Novo a figura de um Estado
com o poder máximo de organização social. Descrentes na capacidade da mudança
da sociedade civil e atribuindo-se o papel de guia na condução do processo de
modernização do país, desde a década de 20, elites de intelectuais das mais diversas
correntes encontraram na nova administração de Vargas a possibilidade de atuarem
nos rumos políticos do país, quer sejam os que assumissem a função de doutrinários
do regime.
Atuando no interior de órgãos, fundações ou instituições estatais, seja na política, no
jurídico, no econômico ou até mesmo no cultural, estes intelectuais utilizam-se de seu
prestigio social - compreendidos como a consciência iluminada da nação –, para
“educar” a coletividade de acordo com os ideias doutrinários do regime, respaldando-o
e até amenizando as intensões de carácter mais autoritário. É neste momento que, a
partir da institucionalização da cultura, com o advento do Estado Novo, ocorre à
criação do SPHAN, marco decisivo do processo de institucionalização de uma política
voltada para o patrimônio cultural brasileiro, cujo propósito era reforçar a atitude de
organização da memória nacional, capaz de redefinir o sentimento de pertença a uma
comunidade e, ao fazê-lo, transformar toda a arcaica estrutura social, política e
econômica do país.
Posto isto, considerando a dominância dos intelectuais e arquitetos modernista na
criação e consolidação do SPHAN e a inter-relação entre o empenho político do
estado e os propósitos estéticos dos arquitetos modernistas, o presente artigo procura
identificar quais discursos retóricos foram utilizados para justificar o estilo arquitetônico
modernista como símbolo de uma cidade moderna em detrimento de outros estilos
arquitetônicos contemporâneos ao modernista. Para tanto, em um primeiro momento,
buscou-se resgatar as lutas de representação travadas entre divergentes agentes
situados historicamente no universo desta discussão, a fim de apresentar ao leitor as
bases do pensamento dos modernistas e os por quês de sua consolidação no interior
da máquina estatal.
Em seguida, mediante o levantamento e mapeamento dos bens nomeados ao título de
patrimônio, entre as décadas de 1937-1967, pretendeu-se, brevemente, determinar
quais estilos arquitetônicos compõem o patrimônio material brasileiro e quais as
justificativas que os legitimariam, para em então compreender de que forma estes
discursos atuariam sobre a cidade do Rio de Janeiro, sobretudo, os que dizem
respeito ao processo de patrimonialização dos bens materiais, selecionados para
simbolizar, representar e salvaguardar a história do Rio de Janeiro moderno.
2. OS INTELECTUAIS E A QUESTÃO DO PATRIMÔNIO NOS
ANOS 30: TRADICIONAIS E MODERNOS;
No que se refere à consolidação das políticas e práticas de preservação do patrimônio
nacional nos anos 30 e a participação de uma elite de intelectuais nos embates
culturais que tomariam corpo no mesmo ano, Cavalcanti (2006) destaca que, quanto à
preservação dos elementos que deveriam construir a tradição da cultura brasileira,
verifica-se, a presença de duas importantes tendências concorrentes aos modernos
que visavam ora, a primazia da condução pelo estudo do passado nacional, ora à
gerência federal do patrimônio.
A primeira tendência, segundo o autor esteve contido no grupo de arquitetos tidos
neocoloniais, que ao redor de José Marianno Filho competiram, essencialmente, com
os modernos pela primazia da condução oficial da renovação arquitetônica nacional
como pelo estudo do passado nacional.
Contemporâneos aos debates culturais da década de 20 nos quais, grupos de
diversas vertentes ideológicas buscavam o retorno às tradições da nação, estes
seriam os primeiros a proporem a mesma solução para o campo da arquitetura, ao
exaltar a valorização das raízes coloniais do Brasil na arquitetura e nas artes,
criticando o academicismo da arte brasileira, os padrões arquitetônicos pautados pelos
estilos europeus e o desconhecimento e mesmo desvalorização da tradição
construtiva da colônia. Antecipando os modernistas, buscavam uma arquitetura que
não fosse mera cópia dos estilos europeus, mas sim, nacional.
“copiar por copiar, é melhor copiar o que é nosso”.
Marianno,
José
F.
apud
PINHEIRO,
Maria
Lúcia
B.
Neocolonial, modernismo e Preservação do Patrimônio no
debate cultural dos anos 1920. São Paulo: Edusp, 2011.
Neste contexto, o movimento neocolonial representa a primeira reação a partir do
século XX que ansiavam pela busca, através das formas construtivas tradicionais, uma
arquitetura que pudesse ser definida como genuinamente autóctone, refutando,
portanto, as estéticas cosmopolitas, universalistas e europeizantes vigentes na
arquitetura, e de modo geral nas artes. Tal discurso já poderia ser identificado nas
conferências e discursos proferidos por Ricardo Severo, fundador do movimento
neocolonial, que, posteriormente, ganharia força através de José Marianno Filho.
Para o engenheiro português, uma arquitetura nacional genuína começara a se formar
a partir da adaptação dos modelos construtivos lusitanos no território brasileiro. A
arquitetura lusa teria ganhado feições de brasilidade a partir da arquitetura das
missões jesuíticas no século XVII, alcançando seu ápice plástico ou artístico em
meados do século XVIII, e tendo nas figuras de Aleijadinho e Mestre Valentim e nas
cidades de Ouro Preto e Rio de Janeiro os seus mais grandiosos representantes.
Contudo, a tradição arquitetônica brasileira teria sido interrompida no início do século
XIX com a vinda da Missão Francesa ao Brasil e a fundação da Escola de Belas Artes
no Rio de Janeiro, em 1816, (que instituíra o ensino e produção da arquitetura
neoclássica), permanecendo esquecida até o início do século XX. De acordo com
Severo, até os primórdios do século XX, não teria existido uma arquitetura que
buscasse representar a brasilidade, estando, portanto, a produção arquitetônica
nacional atrelada apenas às vogas universais, como o neoclassicismo, o neogótico, o
art nouveau e outras formas de ecletismo. Mediante esta condição, Severo afirmava
que, os modelos cosmopolitas de arquitetura, que vigoravam então, deveriam ser
retirados de cena e a verdadeira arquitetura brasileira – a arquitetura colonial/ lusobrasileira –, ser reposta em seu lugar.
Assim, tendo como matriz de seu partido arquitetônico a arquitetura colonial, pouco
conhecida e estudada, na época, por ser considerada destituída de valor e distante
das concepções estéticas da época, Ricardo Severo, bem como José Marianno Filho e
seus seguidores empreenderam esforços para inventariar e catalogar as produções
arquitetônicas do período colonial. Exemplo disso são os patrocínios as viagens
exploratórias de pintores e arquitetos para o estado de Minas Gerais com o objetivo de
criar um acervo de imagens detalhadas sobre a arquitetura colonial. O livro
Documentário Arquitetônico relativo à antiga construção civil no Brasil, com desenhos
e plantas da arquitetura civil e religiosa de várias regiões do Brasil, foi resultados
destas viagens.
Logo, estando o movimento neocolonial encarregado de expressar uma estética
autêntica, este tratou de consolidar o primeiro esforço de mapeamento e síntese da
memória histórica e do patrimônio artístico nacional. E no que diz respeito à
consolidação do campo patrimonial, estes proporiam a criação de um Museu de Arte
Retrospectiva, destinado ao culto da arte tradicional com o programa de:
“... reconstruir pacientemente através de documentos arquitetônicos
das épocas respectivas as grandes etapas da arquitetura, da pintura e
da escultura brasileira, caracterizada pelas três grandes fases de sua
evolução artística: a colonial, desde a colonização até D. João VI; as
fases seguintes de transição do primeiro e segundo império, com o
estudo paralelo da arquitetura interior (mobiliário e artes menores)
correspondente a cada um desses períodos.”
MARIANNO, José F, apud CAVALCANTI, Lauro. Moderno e Brasileiro: a
história de uma nova linguagem na arquitetura (1930-1960). Rio de Janeiro.
Jorge Zahar, 2006. p. 99.
Sugerindo ainda a criação da Inspetoria de Monumentos Públicos para “amparar o
patrimônio artístico da nação”, defendendo a desapropriação por utilidade pública dos
“grandes edifícios característicos da arquitetura civil e religiosa que nos chegaram do
passado.”.
Contudo, o engajamento dos neocoloniais na defesa do patrimônio nacional teria
pouca adesão ao corpo político do Estado, uma vez que atrelado às concepções
políticas
da
direita
integralista
brasileira,
de
inspiração
tradicionalista,
ultraconservadora, baseada na Doutrina Social da Igreja Católica, teorizada por
Charles Maurras (Silveira, 2002).
A outra principal tendência concorrente aos modernos situava-se na Inspetoria de
Monumentos Nacionais do Museu Histórico Nacional, dirigido por Gustavo Barroso.
Esse, responsável por administrar o conhecimento da história da pátria e o culto de
nossas tradições no então MHN, teria, após 12 anos de funcionamento, sua estrutura
ampliada, a partir do decreto-lei nº 24.735 de 12 de julho de 1934 que, sancionado
pelo então ministro da Educação Washington Pires devido a influências do próprio
Barroso, reformulou o Museu Histórico Nacional, modificou o Curso de Museus e
instituiu a Inspetoria de Monumentos Nacionais.
Com a sua criação, novas incumbências foram previstas para o Museu. Este passaria
a ter como função, além das atividades museológicas, a inspeção de monumentos
nacionais e do comércio de objetos artísticos, como fixado em parágrafo único do
próprio decreto:
“Para os fins de inspeção organizará um catálogo de
edifício de assinalado valor e interesse artístico-histórico
existente no país, propondo ao governo Federal os que se
devam declarar, em decreto, Monumentos Nacionais; entrará
em entendimento com os governos dos Estados, no sentido de
se uniformizar a legislação sobre a proteção e conservação dos
Monumentos Nacionais, guarda e fiscalização dos objetos
histórico-artísticos, de maneira a caber aos Estados os encargos
desse serviço nos respectivos territórios”.
CAVALCANTI, L. Preocupações do Belo. Rio de Janeiro: Taurus
Editora, 1995, p. 138.
Considerada a primeira instituição pública voltada para a proteção do patrimônio
cultural brasileiro, dentre as normas de funcionamento previa-se até a proibição da
demolição, de reforma ou de transformação sem permissão e de fiscalização do órgão
responsável, dos imóveis classificado. Características que de certa forma, fazem com
que alguns estudiosos a considere como o primeiro passo, ainda tímido, para o que se
consolidaria como o IPHAN. No entanto, seria um exagero considerar a criação do
SPHAN, em 1937, uma mera ampliação de quadros e atribuições da Inspetoria de
Monumentos, uma vez que ao comparar as noções de patrimônio, nacionalidade e do
universo a preservado distinguem do projeto de Mário de Andrade e modernistas.
Conforme observado nos trabalhos de Cavalcanti (2006) e Chuva (2009), essa
incompatibilidade de olhares e perspectivas sobre os monumentos nacionais deve-se,
sobretudo a postura ideológica assumida por ambas as frentes de proteção ao
patrimônio nacional. Enquanto os modernistas assumiam uma postura de vanguarda
na busca da identidade nacional, a partir da valorização estética do patrimônio
histórico e artístico, Barroso fazia parte de uma ala mais conservadora, que se
apegava aos vestígios do passado como forma de cultuar os homens ilustres e os
grandes feitos da nação. Para Barroso, a tradição seria a “alma da pátria”, e devido a
isso tratava de assegurar sua manutenção, dando ao passado seu merecido valor,
pois como afirma, o passado:
“(...) é a essência das coisas humanas. É o saber
acumulado, é a experiência ganha, é o caminho feito, é o que há
de
verdadeiramente
conquistado.
O
presente
escapa
à
relatividade do nosso conhecimento. Ainda bem não é e já deixa
de ser. E o futuro resulta dos materiais que nós e todos os
outros reuniram. O desprezo do passado seria mais do que
ingratidão, porque seria inconsciência.” BARROSO, G. “A
Cidade Sagrada”. In: Anais do Museu Histórico Nacional, vol. V,
1944, p. 10.
Assim, sem possuir um corpo específico de ideias e práticas específicas com relação à
questão patrimonial, a atuação da Inspetoria manteve-se atrelada à tentativa de
preservação do que Barroso compreenderia por patrimônio nacional. Em uma breve
análise dos anais do Museu Histórico Nacional é possível observar que o ideal que
pautaria o universo dos bens a serem preservados pela IMN era sustentado pelas
mesmas noções de tradição e patrimônio nacional associada a uma nostalgia do
passado imperial, defendidas por Gustavo Barroso enquanto diretor do Museu
Histórico Nacional. Características que, segundo Campofiorito, se distanciaria bastante
das concepções patrimoniais de Mário de Andrade e dos modernistas:
“Vê-se logo que o nacionalismo é outro. Escolhendo-se, entre tantos,
um volume referente a 1942, dos Anais do Museu Histórico Nacional,
basta percorrer os títulos: A heráldica dos Vice-Reis, A louça
blasonada (dos Barões, Condes, Marqueses etc.) no Museu, o culto da
Virgem Maria na numismática, e daí por diante... A sua fundação em
1922 teria respondido a um artigo de Gustavo Barroso, empossado
como primeiro (e quase vitalício) diretor que rezava: “O Brasil precisa
de um museu onde se guardem objetos gloriosos”... – espadas,
canhões, lanças.” O mesmo autor, no mesmo volume, considera como
uma das tarefas de nossas forças armadas “destruir focos de
fanatismo e desordem”. Em comparação, já se vê o quanto o Sphan
era aberto e progressista”
CAMPOFIORITO, Italo, apud CAVALCANTI, Lauro. Moderno e
Brasileiro: a história de uma nova linguagem na arquitetura (19301960). Rio de Janeiro. Jorge Zahar, 2006. p. 99.
Tratava-se de uma visão antiquaria reacionária a qual se operacionalizava o “culto da
saudade” (ABREU, 1996) a favor tanto da conservação dos monumentos, como
igrejas, pontes, edifícios, chafarizes – sobretudo na cidade de Ouro Preto, valorizada
desde 1933 como monumento nacional – como de objetos artísticos, que teriam seu
valor assegurado tanto pela antiguidade, quanto pelo seu valor histórico.
Muito embora, a ideologia e as ações de proteção do patrimônio nacional da IMN
estivessem atreladas à visão pessoal de Barroso, não há dúvida sobre a eficiência das
obras que se realizaram. No entanto, as disputas que se travavam no campo do
patrimônio para a construção de uma memória nacional tendiam a valorizar outra
perspectiva. O que movia Gustavo Barroso, a sensibilidade antiquária, o culto da
saudade e a defesa da tradição não eram os critérios valorizados, naquele momento,
para justificar a defesa e a preservação do patrimônio histórico e artístico nacional. Era
necessário um projeto mais global, inclusivo da complexa realidade étnica-cultural
brasileira que não privilegiasse tanto aspectos morais e patrióticos.
3. O DISCURSO VENCEDOR: MODERNISTAS E O SPHAN
Logo, para compreender os reais motivos que levaram à predominância dos
intelectuais modernistas no interior do Sphan, é fundamental olharmos para a década
de 20 e entender como determinados intelectuais modernistas passariam a lidar com
os temas da tradição e identidade nacional como forma de alcançar a modernidade
e participar do concerto internacional das nações civilizadas sem que a produção
cultural brasileira perdesse a sua autenticidade. Deste modo faço minhas as
proposições de Fonseca (2009), ao considera-se que a influência do modernismo na
vida cultural do Brasil e sua consequência política só pode ser certamente avaliada a
partir da relação de oposição que este tinha com o contexto cultural vigente.
Deste modo, vale a pena destacar o carácter de ruptura que o movimento adquire,
desde a década de 20, ao pensar a arte em geral como um campo autônomo. Ao
contrário do que ocorria nos séculos anteriores, onde a arte encontrava-se
subordinada a determinações de interesses externos ao seu campo específico,
fazendo com que perdessem sem potencial crítico, os modernos defendiam a
autonomia da arte, de modo a garantir a sua função social própria: construir, no nível
da elaboração estética, uma representação crítica do real.
É nesse sentido que o modernismo brasileiro surge como um movimento de ruptura
com uma tradição que a proclamação da República não alterou. Conforme sugere
Fonseca (2009), os modernistas brasileiros ao se alinharem a modernidade a partir de
sua concepção de autonomia da arte não romperam apenas com uma tradição
estética; romperam com toda uma tradição cultural profundamente enraizada não só
entre produtores e consumidores de arte, como em toda a sociedade.
Contudo, se num primeiro momento, modernistas concentraram suas forças no ideal
de renovação das linguagens artísticas visando o rompimento para com a
intelectualidade do século XIX e a ascendência do academicismo na arte, procurando
acertar o compasso com uma história que, propositalmente, nos deixava para trás
(BRITO, 1983), após 1924, o movimento modernista passa por uma reformulação.
Mediante o contado com as vanguardas europeias, os modernistas brasileiros
passariam a perceber que a tão almejada modernização da expressão artística,
entendida como ruptura radical com o passado, só tinha ocorrido em país onde havia
uma tradição nacional internalizada. Em países de formação mais recente, como o
Brasil, cuja tradição ainda estava por construir, a adesão imediata ao novo
descaracterizaria a produção artística no que ela teria de particular, perdendo assim
também o seu valor universal, enquanto arte. Deste modo, sem que o ideal
universalista fosse posto de lado, o modernismo brasileiro passaria a interessar-se
pelos problemas que dizem respeito à identidade e à determinação de uma entidade
nacional como forma de se diferenciar de outras culturas.
Assim, em consequência a esta relação de oposição a uma tradição cultural até então
vigente, quanto ao seu desejo de ingressarem no “concerto das nações civilizadas, os
modernistas brasileiros buscariam reelaborar o passado e construir uma tradição
brasileira a partir de uma postura liberta de uma visão “patriótica-sentimental” herdada
do século XIX (FONSECA, 2009). Assumindo o papel de arqueólogos, vários
estudiosos da época se deixam inspirar pela descoberta de um passado brasileiro,
marcado por nosso período colonial, resguardado no patrimônio mineiro, assim como
pelo anseio de produzir uma arte representativa daquele momento e destituída da
retórica dos estilos anteriores que procuravam reviver o passado. Era a tentativa de
produzir uma face moderna tradicional para o país e, nesse sentido, “uma arte nova
deveria acompanhar os esforços de industrialização, sem deixar de incorporar
tradições e aspectos culturais específicos”.
Esta singularidade do modernismo brasileiro residente na ação concomitante e
dialética deste grupo de intelectuais no desejo de construção utópica de um passado,
sem ser necessariamente ultraconservador, e de um futuro para a arte e para o próprio
país seriam apropriadas pelo Estado, configurando representações da nação brasileira
com o intuito de alcançar o ingresso na modernidade. Trata-se, portanto, de uma
conjuntura histórica ímpar a qual, o discurso político e os interesses de uma sociedade
civil convergem para o mesmo fim.
Capitaneado, inicialmente, pelo então ministro da Educação e grande partidário da
ação do Estado relativa à consolidação de um patrimônio nacional, Gustavo
Capanema; e, posteriormente, por Rodrigo Melo Franco de Andrade, estes intelectuais
modernistas, das mais variadas correntes, encontrariam ambiente favorável no interior
do Sphan para o início as práticas de preservação cultural que, atreladas aos anseios
estatais de criar dispositivos de integração de estratos de uma população contida no
território delimitado como nacional, fariam com que fossem reconhecidos marcos
referenciais os quais, na qualidade de bens simbólicos, conferiram materialidade às
representações da nação.
4. MATERIALIZANDO A NAÇÃO
Sem dúvida, as práticas de preservação do patrimônio cultural fazem parte de um
amplo processo de construção da nação. Historicamente, o conceito de patrimônio
histórico está atrelado ao nascimento da nação moderna e da necessidade de
construção de uma identidade nacional. A partir da identificação dos bens
representativos da nação é possível dar materialidade e unidade à história nacional; a
partir do momento em que são identificados como símbolos da nação, os bens
patrimoniais justificam sua existência, atribuindo um valor a sua história.
Este processo de legitimação da nação através do patrimônio histórico passou a ser
utilizado pelas nações modernas no ocidente como uma forma de validar a sua
existência. Não só como forma de validar a sua existência, em âmbito internacional,
como, no caso brasileiro, tais práticas também atuaram sobre regiões dispersas, ao
catalisar diferentes estratos sociais em torno da concepção de unidade nacional
advinda das ações empreendidos pelo grupo de modernistas do Sphan. Tamanha
integração nacional só tornou-se possível mediante a criação de sentimentos de
pertencimento a uma comunidade nacional imaginada através da permanência, no
tempo e no espaço, de objetos monumentalizados, essências, segundo Cecília
Londres, para a manutenção de uma identidade coletiva.
Contudo, a escolha daquilo que deveria ser considerado como patrimônio da nação
seria delimitado segundo as concepções dos intelectuais aparelhados no Sphan,
sobretudo, os arquitetos modernistas – como Lúcio Costa.
Conforme observa Márcia Chuva, as concepções que compunham a consolidação do
patrimônio material buscavam como características constituintes da nacionalidade a
sua
“racionalidade”,
“simplicidade”
e
“pureza”,
identificada
pelos
arquitetos
aparelhados no Sphan como qualificativos da “boa arquitetura” de qualquer época, e
particularmente presentes na do período colonial.
Fundamentando essa ideia, Lúcio Costa teve a oportunidade de expressar, em 1939,
alguns dos critérios básicos que norteiam a ação seletiva do Sphan, em carta pessoal
ao diretor do órgão, motivada por questões surgidas a respeito de construções novas
na cidade de Ouro Preto, tombada em 1938. Nessa carta, define a obra de arte por
critérios de “beleza e verdade”, pela pureza de linhas e equilíbrio; sem compromisso
com estilos, mas baseada em técnicas atualizadas, para resolver problemas de
construção da melhor forma possível, no momento de sua produção. Segundo ele, o
patrimônio histórico e artístico nacional era constituído de obras de arte, desde que
contento aqueles atributos:
Ora, o projeto de ONS [Oscar Niemeyer Soares] tem pelo menos duas
coisas em comum com elas: beleza e verdade. Composto de maneira
clara, direta, sem compromissos [...]. De excepcional pureza de linhas,
e de muito equilíbrio plástico, é, na verdade, uma obra de arte, e como
tal, não deverá estranhar a vizinhança de outras obras de arte, embora
diferentes, porque a boa arquitetura de um determinado período vai
sempre bem com a de qualquer período anterior – o que não combina
com coisa nenhuma é a falta de arquitetura.
Costa, Lúcio. Apud Motta, 1987, p. 109
Desta forma, verifica-se que a equipe de arquitetos do Sphan conceitualizavam o
patrimônio histórico e artístico nacional como obra de arte arquitetônica, cuja essência
estaria na “qualidade construtiva” encontrada especialmente na arquitetura produzida
até o começo do século XIX, sem imitações ou “compromissos” com estilos
estrangeiros. A obra de arte era essencialmente descompromissada: sua qualidade
estava no engenho de o construtor fazer o melhor e o mais belo possível, dentro das
condições tecnológicas vigentes.
Transferidos estes conceitos para as práticas patrimoniais, a arquitetura colonial que,
ao ser implementada em solo nacional ganharia indícios de originalidade artística ao
receberem influências do meio, técnica e mão-de-obra disponível, seria eleita como
mito de origem da nação brasileira; seguida da arquitetura modernista como sucessor
desta linha evolutiva da “boa arquitetura”. No entanto, no que se refere às produções
arquitetônicas entre o fim do século XIX e o início do século XX, o ecletismo seria
preterido, considerado um hiato nessa linha evolutiva, por apresentar-se como um
estilo importado e não mais autenticamente nacional. Do mesmo modo que o
neocolonial, que buscava produzir o efeito de “antigo” através de técnicas artificiais,
seria considerado “artificioso” por Lúcio Costa.
Por meio do poder investido em seus intelectuais na ação de proteção ao patrimônio
histórico e artístico nacional – selecionando e garantindo a permanência, no tempo e
no espaço de objetos monumentalizados, O Sphan, desta forma, acabaria por forja as
características que comporiam a paisagem nacional.
5. A ARQUITETURA E A CONSTRUÇÃO DE DISCURSOS
SOBRE A CIDADE DO RIO DE JANEIRO;
Contudo, tal característica pode, também, ser evidenciada em uma escala local. A
partir do levantamento e mapeamento dos bens civis nomeados ao título de patrimônio
nacional, entre as décadas de 1938 a 1970, observa-se que, sua paisagem foi,
majoritariamente, construída pelos bens de arquitetura colonial, ou melhor, arquitetura
tradicional – onde se enquadrariam o legado material do período colonial e jesuítico –
seguido do estilo neoclássico, representante do período imperial e das influências
artísticas francesas, com a vinda da missão artística de Joachim Lebreton; e da
arquitetura moderna, que foi introduzida no Brasil em 1928, e já em 1948 teve seu
exemplar tombado – o prédio do MEC (1948).
Quanto, ao estilo eclético, a ovelha negra da arquitetura brasileira aos olhos dos
arquitetos modernistas, apesar de sua importância histórica como estilo característico
da Primeira República, só foram então tombados três imóveis.1
1
São eles: O palácio do catete, atual Museu da República, tombado em conjunto com o seu jardim e o
Museu do Folclore Edson Carneiro, no ano de 1938, e por isto, considerado de acordo com o mapa
“arquitetura mista”; A casa de Benjamin Constant, atual Museu Benjamin Constant, tombado em 1958 e a
casa à Rua do Russel, tombada no final da década de 1960.
Apesar da paridade quantitativa entre os bens modernos e os ecléticos, observou-se
que a inscrição dos bens modernos no Livro de Belas Artes, demonstrava
preocupação dos modernistas em valorizar o programa estético moderno e,
consequentemente, consolidar a arquitetura moderna enquanto símbolo da memória
nacional.
Conforme informado pelos dossiês, a motivação do tombamento partia dos discursos
já mobilizados no Iphan em favor da proteção de bens imóveis de épocas mais
pregressas, que era a importância do “salvamento” de algo excepcional em sério risco
de desaparecimento. O risco de se perder algo genuíno, original, atribuído como
patrimônio nacional, mobilizava os intelectuais do Iphan. E, esse sentimento heroico
de guardar algo sem proteção e profundamente ameaçado é, portanto, comum aos
processos de salvaguarda de obras do colonial e do movimento moderno. Se as mais
antigas já estavam “quase” sem salvação (sendo alvo de obras de restauração de
volta ao estado presumivelmente autêntico), deveria se evitar que as obras de arte
produzidas na contemporaneidade tivessem o mesmo destino.
Assim, Ministério da Educação e Saúde cujo tombamento atribuía valor superior ao
milagre da arquitetura moderna brasileira, uma vez que o edifício fora o marco
fundante daquilo que Lucio Costa afirmou como a verdadeira arquitetura nacional
genuína, na medida em que promoveu a adaptação das experiências internacionais de
Le Corbusier às expressões nacionais, reconhecida internacionalmente; a Estação de
hidroaviões, projetada por Atílio Correia e o Parque do Flamengo, de autoria de
Affonso Eduardo Reidy – foram guiados por essa mesma lógica nostálgica de perda.
Figura 1: Edifício MES.
Fonte: IPHAN
Figura
2:
Estação
de
hidroaviões. Fonte:: IPHAN
Figura 3: Parque do
Flamengo. Fonte: IPHAN
No que se refere à Estação de Atílio Correia, o segundo da série de proteções ao
patrimônio moderno carioca, foi observado que o pedido de proteção partira de Lúcio
Costa diante da ameaça de demolição do edifício para a construção do elevado da
perimetral, que se iniciava naquele ponto, numa das pontas do Aterro do Flamengo,
contornando toda a orla marítima do centro do Rio de Janeiro, passando junto ao porto
e terminando na Avenida Brasil. Perante a notícia da descaracterização ou mutilação
da Estação de Hidros que, já estava desativada desde a década de 1950, o Instituto
de Arquitetos do Brasil mobilizou-se para impedir o ato, propondo-se, inclusive, de
utilizar o edifício como sede.
Como defesa, recorriam aos aspectos históricos do edifício. Fruto de um concurso
público (na mesma época do concurso para o Terminal de Passageiros do Santos
Dumont de autoria dos Irmãos Roberto), vencido pela equipe de Attílio Correia Lima
com a colaboração de Renato Soeiro, Jorge Ferreira, Renato Mesquita e Tomás
Estrela, fora construído entre 1937 e 1938, entre os primeiros edifícios públicos em
que se utilizou a linguagem do movimento moderno, como a estrutura livre de concreto
armado, grandes panos de vidro, pilotis e marquises em balanço. Sempre buscando
demostrar que este exemplar era a prova evidente de que, repentinamente, algo havia
mudado na arquitetura nacional e, logo, a sua manutenção física, a partir da
contundente atuação do Iphan, significava a possibilidade de perpetuação material da
arquitetura moderna brasileira que a esta altura, em meados dos anos 50, já estava
consolidada.
Quanto à proposta de tombamento do Parque do Flamengo, verificou-se que esta
partiu do Governador do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, articulada por Lota
Macedo Soares, responsável pelas suas obras. A intenção de proteção ao Aterro fora
motivada por temor que a “ganância” da especulação imobiliária ou a incompreensão
de gestões futuras o destruíssem. Entram em cena novos fatores que acompanharão
o campo da gestão de bens culturais até o presente: o poderio econômico e a
especulação imobiliária que se faziam sentir nos anos 60, quando o fenômeno da
urbanização crescente era realidade com a transformação do país.
Embora, o pedido recaísse sobre a paisagem construída, devido a argumentos da
possível destruição de grande área livre conquistada ao mar destinada ao lazer da
população, baseando-se na luta ideológica travada à época sobre o projeto para o
aterro – pois, se intencionava a ocupara toda a área com autopistas, não deixando
espaço para o parque. Verificou-se que, o conselheiro Paulo Santos, procurou
intensificou em seu parecer o nível da obra artística em questão ao exaltar as
concepções urbanística de Affonso Reidy, as quais valorizavam as ideias de cidade
funcional e o espaço público enquanto espaço educativo das massas e Roberto Burle
Marx com sua qualidade artística e técnica de seus projetos, apresentando um caráter
estético
inovador,
frente
às
concepções
paisagísticas
tradicionais
que
se
apresentavam na cidade até a década de 20.
6. CONCLUSÃO:
Verificou-se que, com o advento do Estado Novo, temos a institucionalização da
cultura, período em que as instituições governamentais voltam-se à criação de
políticas exclusivas para a área. Conforme já exposto, a criação do Sphan marca o
processo de institucionalização de uma política voltada para o patrimônio cultural
brasileiro, tendo por base o ideário de construção de uma identidade e cultura
nacional, fruto das reflexões, iniciada nos anos 20 do século passado, pelos
intelectuais modernistas.
Contudo, ao contrário do que imaginam aqueles que creem no poder centralizador do
Estado Novo, observou-se que estes intelectuais gozariam de certa autoridade e
autonomia. Uma vez institucionalizados, utilizavam o dispositivo do patrimônio
estruturando-o discursivamente em torno de enunciados de nacionalidade que, por
sua vez legitimaram a seleção do que deveria permanecer visível – apontando o que
constituí o ser brasileiro – e, ao mesmo tempo o que deveria ser ocultado.
Passado válido, passado não válido. Atendendo as necessidades estatais,
preocupando-se com identificação de aspectos tradicionais genuínos da cultura
brasileira e a sua consolidação enquanto imagem do passado no imaginário da nação,
criando, portanto, a materialização do ideal de brasilidade, através do legado
arquitetônico tradicional, ao mesmo tempo em que ao consolidarem seus princípios
arquitetônicos a partir dos conceitos da “boa arquitetura” estes contribuíram para
reafirmar suas convicções arquitetônicas e consolidar o programa arquitetônico
moderno como arquitetura autentica e herdeira da tradição nacional, e, portanto, digna
de preservação enquanto símbolo nacional.
Toda esta postulação é ratificada a partir da patrimonialização da arquitetura moderna.
Conforme observado, verifica-se que, os modernistas, valendo-se das armas do
campo da patrimonialização, celebrariam a vitória das grandes obras da arquitetura
moderna, duplamente: tanto por vias da edificação, quanto pela inscrição destes no
campo da constituição da memória nacional.
REFERÊNCIAS
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