Igreja Luterana - nº 1 - 2002 ÍNDICE IGREJA LUTERANA VOLUME 61 - JUNHO 2002 - NÚMERO 1 Editoriais In Memoriam. .................................................................................. Artigos Como se Forma um Teólogo: Oratio, Meditatio, Tentatio John W. Kleinig .............................................................................. Sentido e Conteúdo na Proclamação Cristã: Subsídios para uma Reflexão a partir da Leitura em Lutero no Capítulo 1º do Evangelho de João Paulo P. Weirich ............................................................................. A Tarefa do Homem de Fé ...E o Levou a Jesus Vilson Scholz .................................................................................. Auxílios Homiléticos ................................................................... Devoções ....................................................................................... Recensão Cristologia do Novo Testamento. Por Oscar Cullmann Gerson L. Linden ........................................................................... 1 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 2 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 IN MEMORIAM REV. PROF. ARNALDO JOÃO SCHMIDT Foi no Domingo da Páscoa, 31 de março! Enquanto os cristãos da Igreja Evangélica Luterana do Brasil e os funcionários, alunos e professores do Seminário Concórdia celebravam com alegria e gratidão a ressurreição de Jesus Cristo, partia para a eternidade, na esperança de sua própria ressurreição, o Pastor e Professor Arnaldo João Schmidt. Da ressurreição de Jesus, tantas vezes por ele lembrada e anunciada, o Prof. Schmidt trouxe para si a esperança do seu próprio ressuscitar glorioso. Aqui, na igreja militante, Arnaldo João Schmidt serviu seu Senhor como pastor, na Comunidade Evangélica Luterana “Cristo”, de Schroeder, SC (1943-1950), Comunidade Ev. Luterana “Sião”, de Santo Ângelo, RS (19501961). Atuou também na Diretoria da Igreja, como Primeiro Vice-Presidente (1960-1962) e como presidente (1963-1965). Foi professor do Seminário Concórdia de Porto Alegre, RS (1962 - até tornar-se emérito), tendo sido seu Diretor, de 1972 a 1976. Nesta função o Prof. Schmidt procurou ampliar os horizontes do Seminário no cenário brasileiro, especialmente promovendo-o junto à Associação de Seminários Teológicos Evangélicos (ASTE), entidade da qual foi também vice-presidente. Prof. Arnaldo J. Schmidt integrou várias comissões dentro da igreja, destacando-se sua participação no Departamento de Missão e no Departamento de Educação Média e Superior. Seu interesse pela educação especial manifestou-se relevante na dedicação pela Escola Especial Concórdia, integrando por vários anos o Conselho Diretor e a Diretoria Executiva dessa instituição. O Prof. Arnaldo foi casado com Gertrudes Martha Rehfeldt Schmidt, que o precedeu na morte. Seu matrimônio foi abençoado com três filhas: Sônia, Marlene e Arlete. Agora, embora já na igreja triunfante, o Prof. Arnaldo consegue manter entre aqueles que o conheceram e tiveram o privilégio de tê-lo como pastor ou professor, uma admiração, respeito e carinho muito grandes, coisas que a distância não apaga. Tais sentimentos nasceram espontaneamente em grande número de membros da igreja, em alunos que passaram pelo Seminário Concórdia e naqueles agora pastores da IELB, também alunos que foram do Prof. Arnaldo. São sentimentos provocados pela maneira de ser e agir do saudoso Pastor e Mestre. 3 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 O Seminário Concórdia agradece ao Senhor pela bênção de ter tido o Pastor Schmidt como seu Professor e Diretor. Ao mesmo tempo, estende aos seus familiares a gratidão por terem alcançado a ele o apoio e carinho durante sua trajetória de servo de Cristo na Igreja e no Seminário. Sem dúvida que tais coisas em muito contribuíram para que fôssemos beneficiados pelo trabalho zeloso e pela amizade sempre presente daquele que, levado pelo Senhor no Domingo da Ressurreição, aguarda o cumprimento da palavra do apóstolo Paulo: Porque, assim como, em Adão, todos morrem, assim também todos serão vivificados em Cristo (1 Co 15.22). Prof. Paulo Moisés Nerbas Diretor do Seminário Concórdia 4 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 ARTIGOS COMO SE FORMA UM TEÓLOGO: ORATIO, MEDITATIO, TENTATIO John W. Kleinig * INTRODUÇÃO Como se forma um teólogo? Dificilmente nós, professores de teologia, poderemos ouvir pergunta mais desconcertante do que esta. Não importa o lugar donde viemos, o fato é que os membros de nossas igrejas estão cada vez mais críticos em relação ao sistema de treinamento teológico que tradicionalmente temos usado na Igreja Luterana. Conhecemos bem esse sistema, pois somos todos, de certa forma, produtos do mesmo. Os currículos diferem de uma igreja para a outra, mas o padrão básico é sempre o mesmo. As disciplinas acadêmicas das áreas de teologia bíblica, teologia histórica e teologia sistemática levam às disciplinas da área prática. Primeiramente cuidamos da teoria; depois é que vem a prática da teologia. Nós que lecionamos teologia podemos estar felizes com esse sistema de estudos, mas muitos membros de nossas igrejas não estão satisfeitos com ele e com os pastores que o mesmo produz. Vocês sabem o que eles dizem. Nossos formandos não sabem atender as necessidades espirituais das pessoas. Estão fora de sintonia com o mundo moderno e não conseguem se relacionar com ele de forma positiva. São teóricos sem noções de prática que não sabem lidar com gente de carne e osso e suas reais necessidades. Não sabem trabalhar com outros, em equipe. Pior, faltam-lhes habilidades básicas para liderar uma congregação, seja na área de administração ou organização, liderança ou comunicação, aconselhamento ou resolução de conflitos, evangelização ou expansão da igreja. Essas críticas se tornam mais insistentes em tempos difíceis, como os que hoje vivemos, quando o dinheiro é pouco e os recursos são limitados. Podemos nos dar o luxo de investir tanto dinheiro assim num sistema de * Dr. John Kleinig é professor no Luther Seminary, Adelaide, Austrália. Este artigo é resultado da conferência que foi apresentada na Conferência Mundial de Seminários Teológicos Luteranos, dia 5 de abril de 2001, em Canoas, RS. A tradução do inglês foi feita pelo Dr. Vilson Scholz e está sendo publicada com permissão do autor. 5 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 treinamento de pastores que não forma os pastores que realmente necessitamos? Será que, de fato, precisamos de pastores com formação acadêmica? Se os necessitamos, não deveríamos remodelar todo o currículo, fazendo-o girar em torno de teologia pastoral como a disciplina chave, ou algo assim? Seria inadequada a nossa maneira de fazer teologia neste contexto pós-modernista? Existe, sem dúvida, algum fundo de verdade nessas críticas, bem como algum valor nas contrapropostas apresentadas. Penso, no entanto, que o problema é bem mais agudo do que isto. Tanto nós quanto nossos críticos partimos do pressuposto de que somos nós, seres humanos, que produzimos teólogos. Segue daí que, se conseguirmos ajustar o sistema de treinamento, invariavelmente produziremos bons pastores. Agora, será que isto é de fato assim? Como se forma um teólogo? Todos sabemos que um sujeito muito bem treinado, que domina perfeitamente todos os assuntos da teologia e que tem todas as habilidades pastorais necessárias, pode vir a ser um pastor medíocre, e um mau teólogo. O inverso também é verdadeiro! Como se forma um pastor? Lutero foi daqueles professores de teologia que refletiu muito e longamente a respeito dessa questão de aprender teologia. Em diferentes ocasiões ele tratou do assunto, sob diferentes ângulos. Embora Lutero, para surpresa nossa, tenha reconhecido a importância das artes liberais como fundamento de uma boa educação teológica1, sabia também que mesmo o melhor currículo, lecionado pelos melhores teólogos, não poderia, por si só, produzir um bom pastor. Algo mais era necessário. Aprender teologia era uma questão de experiência e sabedoria derivada da experiência. Em linguagem contemporânea, o que forma um teólogo é a correta prática da espiritualidade evangélica na igreja, a prática da vita passiva2, a dimensão receptiva da fé.3 Em teologia, assim como na vida, não temos nada que não tenhamos recebido e continuamente recebemos (1 Co 4.7). Lutero desenvolveu esta percepção de diferentes formas. Por volta de 1520, numa preleção sobre o Salmo 5.11, afirmou, de modo um tanto quanto categórico, que um teólogo não é formado mediante “compreensão, leitura e especulação”, mas por meio do “viver, ou melhor, o morrer e ser conde- 1 Na WA TR 3, 312, 11-13, por exemplo, Lutero diz: “O que é que forma um teólogo? 1. A graça do Espírito; 2. Tentação; 3. Experiência; 4. Ocasião; 5. Aplicação à leitura; 6. Conhecimento das belas artes”. Lutero aqui emprega o termo “passiva” no seu sentido gramatical, como o ato de receber uma ação, e não num sentido físico, designando um estado de inércia ou inação. 3 O uso que Lutero faz desse termo bem como suas implicações foram investigadas por Christian Link, “Vita Passiva”, Evangelische Theologie 44 (1984): 315-351; Oswald Bayer, Theologie (Eerdmans: Guetersloher Verlagshaus: Guetersloh, 1994), 42-49; e, de modo mais abrangente, Reinhard Huetter, Suffering Divine Things. Theology as Church Practice ( Grand Rapids: Eerdmans, 1997). 2 6 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 nado” (WA 5, 163,28-29). Mais tarde, nas suas Conversas à Mesa (Tischreden) de 1532, Lutero acrescentou que, a exemplo do que acontece na medicina, a teologia é uma arte que se aprende apenas da experiência que se adquire ao longo da vida. Ele se considera pastor e afirma: Eu não aprendi a minha teologia toda de uma só vez, mas tive que buscá-la sempre de novo, indo cada vez mais fundo. Quem fez isso para mim foram as minhas tentações, pois ninguém consegue entender as Escrituras sem prática e tentações. Isto é o que falta aos entusiastas e às seitas. Eles não têm o crítico certo, o diabo, que é o melhor professor de teologia. Se não tivermos esse tipo de diabo, seremos apenas teólogos especulativos, que só ficam perambulando em seus próprios pensamentos e especulando com a própria razão se as coisas devem ser assim ou assado (TWA I, 147, 3-14). Aí está, dito de forma rude e ofensiva, como só Lutero sabia fazer: “o diabo é o melhor professor de teologia”. O diabo faz do pastor um verdadeiro professor de teologia na escola da vida, a universidade das pancadas. Não, isto não está totalmente correto e precisa ser corrigido. O diabo transforma estudantes de teologia em teólogos ao complicar a vida deles dentro da igreja. Portanto, treinamento em teologia envolve luta espiritual, a luta entre Cristo e Satanás dentro da igreja. Conflito na igreja, este é o contexto em que se aprende teologia. Em 1539, Lutero desenvolveu estes conceitos, com mais intensidade e vigor, no famoso Prefácio à Edição de Wittenberg de seus escritos em alemão (WA 50, 657-661; LW 34, 283-288). Neste prefácio Lutero delineia “o modo correto de estudar teologia”, um modo que ele tinha aprendido a partir de muita prática, “o modo que o santo rei Davi ensina no Salmo 119”. Apesar da linguagem empregada, Lutero não propõe, como se poderia esperar, um currículo teológico, ou, ao menos, um método para o estudo acadêmico da teologia. Ao contrário, Lutero descreve a prática pessoal da espiritualidade que ele tinha aprendido de cantar, recitar e orar o Saltério. Mas até isto pode ser mal entendido. Lutero não defende um método específico de meditação, mas esboça a efetiva dinâmica de formação espiritual para estudantes de teologia. Isto envolve a interação de três poderes: o Espírito Santo, a palavra de Deus, e Satanás. Lutero assevera que a interação dinâmica entre essas três forças é tão poderosa e eficaz que aqueles que se submetem a ela “poderiam (se necessário fosse) escrever livros tão bons quanto aqueles dos Pais e dos concílios” (LW 34,285). 7 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 Como Martin Nicol deixou claro, Lutero fez uma diferença entre sua prática pessoal de espiritualidade e a tradição de fundamentação espiritual que ele tinha vivenciado como monge.4 A tradição monástica seguia um antigo padrão de meditação e oração bem estruturado em termos de tempo. Seu alvo era a “contemplação”, a experiência de êxtase, bemaventurança, arrebatamento e iluminação mediante a união com o Senhor Jesus glorificado. Para atingir este alvo, o monge ascendia da terra ao céu, da humanidade de Jesus à sua divindade, em três etapas, como se fora por uma escada, a escada da devoção. A elevação começava com a leitura pessoal, em voz alta, de uma passagem das Escrituras, para despertar os afetos; prosseguia com oração intensa, e culminava com a meditação mental de realidades celestiais, enquanto se aguardava a experiência da contemplação, a infusão de graças divinas, a concessão de iluminação espiritual. Quatro termos eram usados para descrever esta prática de espiritualidade: leitura, meditação, oração, e contemplação. Em contraste com este método um tanto quanto manipulável, Lutero propôs um modelo evangélico de espiritualidade em termos de recepção, e não de autopromoção. Isto inclui três coisas: oração (oratio), meditação (meditatio), e tentação (tentatio).5 Estas três giram em torno de uma contínua e cuidadosa atenção à palavra de Deus. A ordem da lista é significativa, pois, ao contrário do modelo tradicional de devoção, esta forma de estudar teologia começa e termina aqui na terra. Os três termos descrevem a vida de fé como um ciclo que começa com oração pelo dom do Espírito Santo, concentra-se na recepção do Espírito Santo mediante a meditação da palavra de Deus, e redunda em ataque espiritual. Isto, por sua vez, leva a pessoa a mais oração e meditação mais intensa. Logo, Lutero não encarava a vida espiritual de forma ativa como um processo de autodesenvolvimento, mas em termos passivos como um processo de recepção da parte do Deus trino. Nele, pessoas auto-suficientes aprendem a ser mendigos na presença de Deus. Nesta conferência, quero valer-me do prefácio de Lutero à edição de Wittenberg para investigar um pouco mais a fundo o que ele tem a dizer sobre como se forma um teólogo. Penso que temos muito a aprender dele quanto à formação espiritual de pastores. O que ele nos propõe nesta área de estudo da teologia bem pode nos libertar da camisa de força que nos é 4 5 8 Martin Nicol, Meditation bei Luther (Vandenhoeck & Ruprecht, 1984), 19, 91. Minha compreensão destes termos e de seu significado deriva do estudo cuidadoso dos mesmos feito por Martin Nicol em Meditatio bei Luther (Vandenhoeck & Ruprecht, 1984), 91-101; Oswald Bayer em Theologie (Gueterslohe: Verlagshaus, 1994), 55-105, e Reinhard Huetter em Suffering Divine Things (Grand Rapids: Eerdmans, 1997), 72-76. Igreja Luterana - nº 1 - 2002 imposta por algumas antíteses pouco proveitosas e até, quem sabe, falsas. Dessas resulta a separação entre teologia pastoral e teologia acadêmica, teologia sistemática e teologia litúrgica, espiritualidade individual e culto comunitário, vivência espiritual subjetiva e revelação objetiva, bem como a separação entre a vida particular do pastor de sua função pública. Espero que o ensino de Lutero a respeito do estudo de teologia ajude a clarear qual é nosso papel como educadores na área da teologia. COMO SE FORMA UM TEÓLOGO a. Oração pelo dom do Espírito Santo Lutero assevera que o estudo de teologia tem a ver com o dom da vida eterna. Nenhum professor deste mundo pode nos ensinar a respeito disso, pois nenhum professor terreno pode nos dar vida eterna. Tampouco podemos alcançar a vida eterna para nós mesmos fazendo uso da razão para refletir sobre nossa experiência de Deus ou até mesmo para interpretar as Escrituras à luz de nossa experiência pessoal. Na verdade, estaremos cometendo suicídio espiritual, se tentarmos alcançar a vida eterna com Deus por meio de especulação racional e autodesenvolvimento espiritual. Quem se vale da razão e do intelecto para construir uma escada que o leve ao céu estará, ao contrário, e a exemplo de Lúcifer, precipitando a si mesmo e a outros no inferno. A verdade é que não precisamos subir ao céu por conta própria. O Deus Trino desceu à terra por nós. Deus se encarnou a nosso favor. Ele se fez acessível externamente em nossos sentidos. No ministério da palavra, ele se tornou concreto para nós, criaturas de carne e osso. As Escrituras Sagradas não apenas nos ensinam a respeito da vida eterna; elas de fato nos dão a vida eterna à medida que nos ensinam. Também temos ‘o verdadeiro mestre das Escrituras’, o Espírito Santo, que se vale das Escrituras para nos ensinar as coisas de Deus. Assim, Lutero recomenda ao estudante de teologia que desista de tentar elaborar um sistema teológico baseado na razão e na experiência humanas. Ao invés disso, ele deveria aprender teologia orando pelo dom do Espírito Santo como seu instrutor. Diz Lutero: Ajoelha-te em teu quarto e ora a Deus com verdadeira humildade e seriedade, para que, por meio de seu Filho amado, ele te dê seu Espírito Santo, para que te ilumine, guie, e dê entendimento. Duas coisas se destacam neste conselho de Lutero: a dinâmica trinitária desta oração pelo Espírito Santo, e o reiterado pedido pela dádiva do Espí9 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 rito Santo. Como mendigos que se ajoelham de mãos vazias perante nosso grande benfeitor, somos levados para dentro do Deus Trino e participamos de sua ação aqui no mundo. Seria muito fácil fazer uma aplicação errada dessas palavras de Lutero, a exemplo do que fazem alguns pietistas e carismáticos, e defender um método de exegese espiritual. O fato é que Lutero não está aqui desprezando a leitura atenta da Escritura, com análise gramatical e exegese literária, para propor a dependência da orientação mental direta do Espírito Santo. Lutero não diz que, por meio de oração e pela inspiração do Espírito Santo, o leitor recebe um entendimento especial do texto das Escrituras, isto é, seu verdadeiro sentido. Ao contrário, Lutero pressupõe que, por meio de sua palavra, o Pai nos dá seu Espírito Santo que ilumina e vivifica. Assim sendo, o estudante de teologia pode orar pela iluminação, orientação e compreensão que só o Espírito Santo pode dar por meio das Escrituras.6 Ele ora para que o Espírito Santo se valha das Escrituras para interpretar a ele, o intérprete, e sua experiência, de tal sorte que ele veja a si mesmo e a outros sob a ótica de Deus. Neste sentido ele confia na palavra de Deus como meio da graça, o canal do Espírito Santo. Fica claro que o estudo de teologia está baseado na oração pelo dom do Espírito Santo. O Espírito Santo faz com que pretensos mestres de teologia, gente que quer se autopromover no âmbito espiritual, se tornem humildes e vitalícios estudantes das Escrituras. Sem o Espírito e a capacitação que ele dá, ninguém sabe nada a respeito da vida eterna. Sem a iluminação do Espírito, o ensino das Escrituras fica sendo mera teoria sem nenhuma realidade. Um teólogo é formado por meio da súplica junto a Deus pela contínua dádiva do Espírito Santo por meio de Jesus e pela constante recepção do Espírito Santo. Em suma, o Espírito Santo forma o teólogo. E este é um projeto que dura a vida toda. Se Lutero está certo, então nós, professores de teologia, precisamos promover a obra do Espírito Santo e o papel da súplica pelo dom do Espírito Santo no estudo da teologia. Ninguém deveria ousar diminuir a importância da oração apenas por não ser ela um meio da graça, tampouco deveríamos descartar a súplica pelo dom do Espírito Santo como sendo uma aberração neopentecostal. A exemplo dos apóstolos em Atos 6.4, precisamos nos dedicar à oração e ao ministério da palavra, pois o estudo de teologia depende da contínua recepção do Espírito Santo por meio desses dois. 6 10 Ver Gunnar Wertelius, Oratio Continua (Lund: CWK Gleerup, 1970, para uma discussão do relacionamento entre a obra do Espírito Santo e a prática da oração, 285-298. Igreja Luterana - nº 1 - 2002 b. Meditação da Palavra escrita Lutero afirma que, no estudo de teologia, a oração pelo dom do Espírito Santo precisa vir acompanhada de contínua meditação das Escrituras.7 O motivo desta conexão é que ‘Deus não lhe dará o seu Espírito sem a palavra externa’. As Escrituras são a palavra inspirada de Deus. O mesmo Deus que as inspirou com seu Espírito vivificador se vale delas para nos inspirar e potencializar com seu Espírito. A palavra de Deus é o meio da graça através do qual Deus Pai concede seu Espírito Santo por meio de seu amado Filho. Portanto, o Espírito Santo é recebido por meio da meditação da palavra. O Espírito vem a nós por meio da palavra para que ele, o Espírito, possa fazer sua obra em nós por meio da palavra. Sem a palavra, não se tem o Espírito. Do mesmo modo, sem oração, não se tem o Espírito. Ao falar da “palavra externa”8, Lutero critica dois outros tipos de meditação que, na prática, negam a encarnação. Por um lado, ele critica o método de meditação que tinha aprendido como monge. Este se valia das Escrituras como uma espécie de trampolim para a oração do coração e a apropriação mental ou visionária de realidades celestiais. Por outro, Lutero igualmente se mostra crítico em relação à prática entusiasta de meditação na palavra interior do Espírito Santo, falada diretamente aos corações do povo de Deus. Em contraste com esses dois métodos de aprender teologia, Lutero defende a meditação na “palavra externa”. É a palavra concreta, falada por lábios humanos, escrita com mãos humanas, e ouvida com ouvidos humanos. A exemplo da luz do sol, a palavra está fora de nós, é dirigida a nós por um pastor, escrita num livro, encenada no culto divino.9 Assim, uma vez que o foco da meditação é a palavra externa, o que está envolvido é basicamente extroversão espiritual e não introversão espiritual. É um assunto que envolve o coração, mas não apenas o coração. O acesso ao coração é de fora para dentro, através dos ouvidos. Na meditação, ouvimos interiormente o que nos é falado exteriormente. Esta noção da palavra de Deus como o meio físico para a concessão do Espírito Santo trouxe duas profundas mudanças na forma como Lutero praticava a meditação em sua vida pessoal. Em primeiro lugar, como monge ele tinha aprendido a ver a meditação como um ato mental, um estado em que se é marcado por uma reflexão interior, silenciosa. Agora ele entendeu que meditação cristã era antes de tudo uma atividade verbal. A 7 Ver John W. Kleinig, “The Kindled Heart. Luther on Meditation”, Lutheran Theological Journal 20/2&3 (1986) 142-154. Lutero emprega a expressão ‘a palavra concreta’ (das leiblich Wort) como sinônimo de palavra externa. Oswald Bayer explora o significado dessas expressões em Leibliches Wort (Lund: J. C. B. Mohr, 1992), 57-72. 9 O estudo de Norman Nagel, “Externum Verbum: Testing Augustana 5 on the Doctrine of the Holy Ministry”, Lutheran Theological Journal 30/3 (1996): 101-110, examina a íntima conexão entre a palavra externa e o ministério da palavra. 8 11 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 pessoa que medita fala a palavra de Deus para si mesma e a ouve com atenção, de todo o coração, “para descobrir o que o Espírito Santo quer dizer nela”. Nisto Lutero foi influenciado por seu estudo dos Salmos em hebraico, ao invés do latim.10 Ele descobriu que todas as palavras hebraicas que, nos Salmos, falam da prática da meditação tinham a ver com diferentes formas de vocalização e subvocalização, que iam de falar a murmurar, conversar a suspirar, cantar a entoar, balbuciar a gemer. Portanto, aquele que medita ouve a palavra de Deus com atenção ao ser esta falada pessoalmente a ele. Ele se concentra exclusivamente na palavra. Fala essa palavra para si mesmo sempre de novo. Lê e relê a palavra. Compara o que ela diz com o que é dito em outras partes de Bíblia. Ele a rumina, assim como a vaca rumina seu alimento. Ele a esfrega, a exemplo de uma erva aromática que libera sua fragrância e seus poderes terapêuticos ao ser amassada. Ele se concentra nela, física, mental e emocionalmente, para que a mesma chegue a seu coração, seu interior, o cerne de sua existência. Ali ele recebe o que Deus diz a ele e lhe dá em sua palavra. Em segundo lugar, ao ensinar sobre meditação, Lutero deriva a vida devocional particular do estudante do envolvimento que este tem no culto público. Diz Lutero: Assim, percebes como Davi constantemente se orgulha no Salmo 119, dizendo que, de dia e de noite e sempre, ele não falaria, comporia, diria, cantaria, ouviria e leria nada que não fosse a palavra e os mandamentos de Deus. Pois Deus não te dará o seu Espírito sem a palavra externa. Portanto, deixa que isso te oriente, porque não é por nada que ele ordenou que a palavra fosse escrita, pregada, lida, ouvida, cantada e falada externamente. Lutero não vê a prática da meditação como uma atividade mental, interna, e sim como uma encenação ritual, externa. Em si, este método foi inspirado pela liturgia e derivado da encenação da palavra de Deus em público, no culto divino. Deus ordena à igreja que pregue, leia, ouça, cante e fale sua palavra, para que assim ele possa transmitir e dar o seu Espírito Santo a seu povo. Esta proclamação externa e esta encenação da palavra de Deus determina como o estudante de teologia medita.11 Do mesmo 10 11 12 Ver Siegfried Raeder, Grammatica Theologica (Tuebingen: J. C. B. Mohr, 1977), 262-268. Enquanto Oswald Bayer, na obra Theologie (Guetersloher Verlagshaus, 1994), 88-92, destaca o caráter público da meditação e de sua prática em Lutero, Reinhard Huetter, em Suffering Divine Things (Grand Rapids: Eerdmans, 1997), 73, corretamente enfatiza sua conexão com práticas eclesiásticas tradicionais. Ambos reconhecem que a prática da meditação em Lutero estava intimamente relacionada com o cantar e orar dos salmos na escola, na igreja, e no mosteiro. Igreja Luterana - nº 1 - 2002 modo como as Escrituras são lidas no culto divino, aquele que medita lê essas Escrituras para si mesmo em voz alta, ao meditar sobre um trecho delas. Assim como os salmos são cantados no culto, ele os canta em particular. Assim como a palavra de Deus é pregada no culto, ele a prega para si mesmo. Assim como a congregação ouve a palavra de Deus falada no culto, ele a ouve endereçada a si próprio de forma bem pessoal. Portanto, Lutero defende a prática de uma meditação litúrgica da palavra de Deus, ou seja, o exercício de uma piedade litúrgica. Penso que tudo isso tem importantes implicações para a maneira como aprendemos teologia em nossos seminários. Toda a vida de um seminário deveria girar em torno do culto diário, o centro e alvo da vida receptiva da fé. Tanto professores quanto alunos precisam ser discípulos da palavra de Deus quando esta é falada e encenada no culto. Como é possível um seminário luterano onde o currículo não deriva do culto divino e leva alunos e professores de volta a ele? Como podemos ser modelos e ensinar a nossos alunos a arte da meditação a não ser no culto corporativo? Com certeza eles não se tornarão bons pregadores da palavra de Deus a menos que primeiro tenham se tornado ouvintes dela em atitude de meditação. O fruto da meditação, como Lutero reconheceu (LW 14,296, 302-303), é a pregação e o ensino da palavra de Deus. c. Tentação da parte de Satanás Lutero afirma que o correto estudo da teologia culmina na experiência. Tanto ele quanto seus mestres concordavam nisto. Agora, discordavam quanto ao que experimentavam, e como. A tradição monástica de meditação entendia que a prática adequada da meditação levava à experiência da contemplação, isto é, a experiência de união com o Senhor Jesus glorificado. Em contrapartida, Lutero ensinava que o estudo receptivo da Escritura em oração e meditação levava à experiência da palavra de Deus, isto é, a experiência de sua eficácia, sua criatividade, e sua produtividade. Por estranho que possa parecer, é na tentação que se encontra e experimenta de forma bem nítida o poder da palavra de Deus, o poder do Espírito Santo operante em e através da palavra.12 Assim diz Lutero: Em terceiro lugar, existe a tentação, ‘Anfechtung’. Este é o teste que te ensina, não apenas a conhecer e entender, mas também a experimentar quão justa e verdadeira, quão doce e amável, quão poderosa e consoladora é a palavra de Deus, sabedoria que excede toda sabedoria. 12 Confira Andrew Pfeiffer, “The Place of Tentatio in the Formation of Church Servants”, Lutheran Theological Journal 30/3 (1996): 111-119, e Steven A. Hein, “Tentatio”, Lutheran Theological Review 10 (1997-98): 29-47. 13 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 A experiência que Lutero descreve difere radicalmente daquilo que nós normalmente chamaríamos de experiência espiritual. É a experiência do impacto da palavra de Deus sobre nós, seu efeito em nós. Experimentamos o poder da palavra de Deus. Mesmo que esta experiência comece na consciência, ela afeta todas as partes de nosso ser e permeia a pessoa em seu todo, mental, emocional e fisicamente. A palavra cheia do Espírito nos coloca em sintonia com Deus o Pai ao conformar-nos ao seu Filho amado. Não somos nós que a internalizamos e assimilamos a nosso modo de ser. Ao contrário, é ela que nos assimila e torna piedosos. Não somos nós que nos valemos da palavra para nos tornarmos algo; é a palavra que nos faz teólogos. Na tentação, o estudante de teologia experimenta pessoalmente a justiça e a verdade da palavra de Deus em todo o seu ser, e não apenas em seu intelecto. Ele tem experiência da doçura e beleza da palavra de Deus com todo o seu ser, e não apenas com suas emoções. Ele experimenta o poder e a força da palavra de Deus com todo o seu ser, e não apenas com seu corpo. A tentação é, portanto, o teste para avaliar qualquer teólogo; ela revela o que, sem ela, não se vê e não se conhece. Assim como o penhorista faz um teste para detectar a presença e pureza do ouro numa moeda ou jóia, também a tentação testa e prova a realidade da espiritualidade de alguém. Ao falar da tentação no prefácio da edição de Wittenberg, Lutero emprega a palavra num sentido especial. Ele não se refere aos convites que o diabo nos faz a que pequemos, nem mesmo ao fato de o diabo condenar o pecador. A palavra alemã que Lutero usa, ‘Anfechtung’, mostra que está envolvido algum tipo de ataque à pessoa. Lutero deixa claro que isto se passa no âmbito público. Envolve antagonismo e oposição pública àqueles que são pastores ou estão se preparando para sê-lo. Trata-se de um ataque ao ministério da palavra. O diabo não ataca o ofício do ministério em si, pois este pode estar a seu serviço, se atuar sem a palavra de Deus e o Espírito Santo. Ele ataca o instrumento através do qual o ofício do ministério recebe poder espiritual, a saber, a atuação do pastor em fé na palavra de Deus e no poder do Espírito Santo. Isto o diabo não pode permitir de jeito nenhum, pois será seu fim. Enquanto um pastor ou um estudante de teologia atua baseado em seu próprio poder, com seu próprio intelecto e idéias humanas, o diabo o deixa em paz. Mas tão logo ele medita na palavra de Deus e depende do poder do Espírito Santo, o diabo o ataca, promovendo falta de compreensão, contradição, oposição, e perseguição. Ele ataca através dos inimigos do evan14 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 gelho na igreja e no mundo. Deste modo tenta impedir a ação da palavra de Deus no estudante de teologia. Assim sendo, tão logo a palavra de Deus é plantada no coração dele o diabo procura tirá-la de lá, para que o teólogo não possa atuar pelo poder do Espírito Santo. As muitas lamentações nos Salmos indicam que esta situação é bastante comum. Mostram como o ministério da palavra suscita inimizade e oposição. O ministério provoca a ira do inimigo. Mas paradoxalmente esses ataques são contraproducentes. Lutero explica: Pois tão logo a palavra de Deus cresce e se espalha através de ti, o diabo te persegue. Ele faz de ti um verdadeiro mestre (de teologia). Por meio de seus ataques (tentações) ele te ensina a buscar e amar a palavra de Deus. Assim, o ataque que o diabo lança contra o estudante de teologia ajuda a fortalecer a fé deste, pois o impulsiona a voltar à palavra de Deus como o único fundamento para seu trabalho na igreja. Diante do ataque do diabo, ele não pode depender de seus próprios recursos. Ele não pode depender da confirmação de sua teologia por parte do mundo e nem mesmo por parte da igreja. Sua própria fraqueza espiritual e sua falta de sabedoria levam-no a depender do poder do Espírito Santo e da sabedoria da palavra de Deus, que é ‘sabedoria que excede toda sabedoria’. Por meio da tentação o estudante de teologia se torna teólogo; ele aprende a teologia da cruz; para ser mais exato, a espiritualidade da cruz.13 Ele não experimenta a glória da união com seu Senhor glorificado, mas conhece a dor da união com o Cristo crucificado. Ele carrega a cruz juntamente com seu Senhor, sofrendo com ele na igreja. Se atentarmos no que Lutero diz a respeito do papel do diabo na formação espiritual dos teólogos, compreenderemos que nossos seminários são campos de batalha espiritual, um lugar de luta, e não um oásis espiritual onde se encontra refúgio da tentação. Também poderemos ajudar nossos alunos a entender por que eles e suas famílias sofrem um ataque tão cerrado em certos momentos ao longo do programa de estudos. Poderemos até considerar esses ataques bem-vindos, pois mostram que Deus de fato está atuando entre nós, fazendo de nós e de nossos alunos verdadeiros teólogos. 13 Ver Gene Edward Veith, Jr., The Spirituality of Cross (St. Louis: Concordia, 1999). 15 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 CONCLUSÃO A vida de fé é a vita passiva, a vida receptiva, onde não somos nós que nos tornamos algo, mas Deus nos molda e desenvolve. Isto também se aplica a pastores. Nós, professores de teologia, não formamos teólogos; isto é obra de Deus. Ele os forma, chamando-os para serem ministros da palavra, assim como chamou os apóstolos. Ele os treina em sua igreja por meio daquilo que ele faz com eles ou por meio do que eles sofrem na igreja. Deus forma teólogos por meio do dom do Espírito Santo, do poder de sua palavra, e da oposição do diabo. Se isto de certo modo facilita a nossa vida de professores de teologia, por outro lado também torna as coisas muito mais complicadas, pois nunca seremos capazes de desenvolver um sistema de treinamento infalível para a produção de bons pastores. No entanto, é isto que se espera de nós. E é muito fácil querer corresponder a tal expectativa. O melhor que podemos fazer é organizar um currículo que condiz com a dinâmica de formação espiritual instituída por Deus, fomentar uma comunidade que promova sua operacionalização, e servir de modelo em como continuar a aprender vivendo a vida receptiva da fé. Que podemos fazer para promover a vida receptiva entre estudantes de teologia? Apresento sete breves propostas, à guisa de conclusão. 1. Todo o currículo da educação teológica precisa girar em torno do culto da comunidade. Isto precisa estar no centro de tudo que é feito no seminário, pois no culto a palavra de Deus que concede o Espírito Santo é proclamada e encenada ao ser lida e cantada, pregada e orada, falada e confessada. No culto deveríamos cantar e orar todos os Salmos, pois é o manual de espiritualidade cristã inspirado por Deus no qual o próprio Deus nos ensina a orar, meditar e resistir ao inimigo. 2. Seria aconselhável começar todas as nossas aulas com uma leitura da palavra de Deus e oração pelo dom do Espírito Santo. 3. Precisamos ser diligentes em nossa própria vida espiritual e ajudar os alunos a desenvolver o hábito de devoções diárias, com ênfase na meditação da palavra de Deus, oração e vigilância espiritual. 4. Uma disciplina sobre espiritualidade luterana como a vida receptiva de fé poderia fazer parte do currículo. A ênfase aqui deveria recair, não sobre a teoria, mas sobre a experiência concreta e a prática pessoal. Um curso desses deveria abordar a conexão entre a piedade pessoal e o culto público, a prática da oração, meditação evangélica da palavra de Deus, envolvimento em luta espiritual, e o papel do Espírito Santo na vida de fé. 16 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 5. O estudo de teologia precisa ser visto como parte da luta entre Cristo e Satanás na igreja. Quanto melhor nosso desempenho como estudantes da palavra de Deus, maior será a oposição. E isto não é mau, desde que encaremos os conflitos em nossa comunidade e na vida de nossos estudantes numa perspectiva espiritual, como ataques do diabo e não simplesmente como problemas pessoais, doutrinários ou psicológicos. 6. A mesma ênfase que se dá ao desenvolvimento acadêmico deveria ser dada à fundamentação espiritual dos alunos. Isto se dá por meio de seu envolvimento na comunidade e sua aceitação de autoridade, a participação no culto público e a interação dos alunos entre si, nosso cuidado pastoral deles e o cuidado pastoral que eles têm um pelo outro, nossa provisão de liderança espiritual14 e a prática de auto-avaliação espiritual da parte deles, nossa prontidão em pedir desculpas e a disposição deles em perdoar. 7. Todo o currículo deve estar centrado no uso da palavra de Deus no culto, na vida e no ministério como o meio pelo qual o Espírito Santo atua. Pois, como diz Lutero, “Deus não nos dará ... seu Espírito sem a palavra externa”. Sem a palavra de Deus ninguém nunca poderia aprender teologia. É assim que se forma um teólogo. ANEXO PREFÁCIO À EDIÇÃO DE WITTENBERG MARTINHO LUTERO Mais do que isso, quero mostrar-te o modo correto de estudar teologia, pois eu mesmo o pus em prática ... Este é o modo que o santo rei Davi ... ensina no Salmo 119. Nele encontrarás três princípios, detalhadamente explicados ao longo de todo o Salmo. São estes: oração (oratio), meditação (meditatio), tentação (tentatio). Primeiramente, precisas entender que as Escrituras Sagradas são aquele tipo de livro que transforma a sabedoria de todos os outros livros em loucura, porque nenhum deles pode ensinar a respeito da vida eterna, a não 14 Ver a discussão sobre liderança espiritual em Eugene H. Peterson, Working the Angles (Grand Rapids: Eerdmans, 1987), 103-131. 17 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 ser somente as Escrituras. Assim, deverias imediatamente perder as esperanças em relação a tua própria razão e entendimento. Com estes, não alcançarás a vida eterna. Ao contrário, com uma arrogância dessas, tu, a exemplo de Lúcifer, precipitarás a ti mesmo, e a outros junto contigo, do céu ao abismo do inferno. Em vez disso, ajoelha-te em teu quarto e ora a Deus com verdadeira humildade e sinceridade, para que, por meio de seu Filho amado, ele te dê seu Espírito Santo, para que te ilumine, guie, e dê entendimento. Podes notar como Davi continua a orar no Salmo 119: “Ensina-me, Senhor, instrui-me, guia-me, mostra-me”, e assim por diante. Embora conhecesse muito bem o texto do Pentateuco e de muitos outros livros; por mais que ouvisse e lesse os mesmos diariamente, Davi queria ter também para si o verdadeiro professor (mestre) das Escrituras, para que não lidasse com elas a partir de seu próprio entendimento e se tornasse seu próprio professor (mestre). Isso produz agitadores espirituais que imaginam que as Escrituras estão sujeitas a eles e são facilmente compreendidas com o próprio entendimento que eles têm, sem o Espírito Santo e a oração, como se faz com as lendas de Markolf ou as fábulas de Esopo. Em segundo lugar, precisas meditar, não apenas com o coração, mas também externamente, sempre de novo trabalhando e esfregando, lendo e relendo a palavra falada e o texto escrito na Bíblia, diligentemente prestando atenção e refletindo no que o Espírito Santo está dizendo nela. Cuida para não perder o interesse e pensar que, se leste, ouviste e falaste essa palavra uma ou duas vezes, isto basta para que a entendas perfeitamente. Desse jeito nunca te tornarás um bom teólogo, mas serás como uma fruta imatura que cai da árvore antes mesmo de ter amadurecido pela metade. Assim, percebes como Davi constantemente se orgulha no Salmo 119, dizendo que, de dia e de noite e sempre, ele não falaria, comporia, diria, cantaria, ouviria e leria nada que não fosse a palavra e os mandamentos de Deus. Pois Deus não te dará seu Espírito sem a palavra externa. Portanto, deixa que isso te oriente, porque não é por nada que ele ordenou que a palavra fosse escrita, pregada, lida, ouvida, cantada e falada, e isso externamente. Em terceiro lugar, existe a tentação (tentatio), ‘Anfechtung’. Este é o teste que te ensina não apenas a conhecer e entender, mas também a experimentar quão justa e verdadeira, quão doce a amável, quão poderosa e consoladora é a palavra de Deus, sabedoria que excede toda sabedoria. Assim vês como, no Salmo 119, Davi a toda hora lamenta a respeito de 18 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 todos os diferentes inimigos, príncipes arrogantes e tiranos, e acima de tudo a respeito dos falsos espíritos e bandos que ele tem que enfrentar precisamente porque ele está meditando, isto é, porque ele se ocupa, como dissemos, com a palavra de Deus de muitas maneiras diferentes. Porque tão logo a palavra de Deus cresce e se espalha através de ti, o diabo te persegue. Ele faz de ti um verdadeiro doutor (em teologia); por meio de suas tentações, ele te ensina a buscar e amar a palavra de Deus.15 BIBLIOGRAFIA BAYER, Oswald. Leibliches Wort. Reformation und Neuzeit im Konflict. J.C.B. Mohr: Tuebingen, 1992. BAYER, Oswald. Theologie. Guetersloh: Guetersloher Verlagshaus, 1994. HUETTER, Reinhard. Suffering Divine Things. Theology as Church Practice. Grand Rapids: Eerdamans, 1997. HEIN, Steven A. “Tentatio”, Lutheran Theological Review 10 (199798), 22-27. KLEINIG, John W. “The Kindled Heart. Luther on Meditation”, Lutheran Theological Journal 20 (1986), 142-154. LINK, Christian. “Vita Passiva. Rechtfertigung als Lebensvorgang”, Evangelische Theologie 44 (1984), 315-357. NAGEL, Norman. “Externum Verbum: Testing Augustana 5 on the Doctrine of the Ministry”, Lutheran Theological Journal 30 (1996), 101-110. NICOL, Martin. Meditatio bei Luther. Goettingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1984. PETERSON, Eugene H. Working the Angles. The Shape of Pastoral Integrity. Grand Rapids: Eerdmans, 1987. PFEIFFER, Andrew K. “The Place of Tentatio in the Formation of Church Servants”, Lutheran Theological Journal 30 (1996), 111-119. RAEDER, Siegfried. Grammatica Theologia. Tuebingen: J. C. B. Mohr, 1977. VEITH Jr., Gene Elmer. The Spirituality of the Cross. The Way of the First Evangelicals. St. Louis: Concordia, 1999. WERTELIUS, Gunnar. Oratio Continua. Das Verhaeltnis zwischen Glaube und Gebet in der Theologie Martin Luthers. Lund: CWK Gleerup, 1970. 15 Tradução revisada por John W. Kleinig, baseada em LW 34, 285-287 19 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 A TAREFA DO HOMEM DE FÉ: ... E O LEVOU A JESUS REFLEXÕES A PARTIR DE 1 PEDRO Vilson Scholz* INTRODUÇÃO Um dossiê de testemunhos “E o levou a Jesus” (Jo 1.42) é o lema deste congresso *. Um lema tirado daquele Evangelho que, apesar da simplicidade da linguagem, é o mais profundo de todos. Em razão disso, pode ser estudado e descrito de várias maneiras. Uma destas, e que nos interessa no momento, é a descrição de João como um dossiê de testemunhos, tanto contra quanto a favor de Jesus Cristo. O objetivo deste dossiê é que o leitor e ouvinte aceite os testemunhos a favor de Jesus e creia que ele é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenha vida (Jo 20.31). A primeira testemunha é um homem enviado por Deus (1.6) cujo nome era João. Este veio para testemunhar da luz (1.6-8), daquele que tem a primazia (1.15), daquele que batiza com o Espírito Santo (1.32-33), daquele que é o Filho de Deus (1.34). João testemunhou para André (1.40), apontando para o Cordeiro de Deus (1.36). André testemunhou a seu irmão, Simão Pedro, e o levou a Jesus (1.41-42). Outros testemunham ao longo do Evangelho de João: a mulher samaritana (4.39), o Pai (5.32,37), as obras de Jesus (5.36), e as Escrituras (5.39). O próprio Jesus testemunha (8.14). E para o futuro havia a promessa de que o Espírito da verdade testemunharia de Jesus (15.26) e que também os apóstolos testemunhariam (15.27). O apóstolo João dá testemunho no relato que chamamos de Evangelho de João (19.35; 20.31). E Pedro, que dizer de Pedro? Também ele testemunha, como personagem do Evangelho de João. Afirma que Jesus é o * 20 Dr. Vilson Scholz é Professor de Teologia Exegética no Seminário Concórdia e na Universidade Luterana do Brasil. No Seminário exerce também as funções de coordenador de Registro. Este artigo, com devidas adaptações, resulta de palestra proferida no 150 Congresso de Leigos Luteranos do Brasil em Termas do Gravatal, em 24 de agosto de 2001. Igreja Luterana - nº 1 - 2002 Santo de Deus (6.68). Mas a nuvem negra da traição se aproxima em João 13.36-38: Pedro é avisado. A negação se confirma em João 18. No entanto, existe restauração e, no final, Pedro confessa: “Senhor, tu sabes todas as coisas, tu sabes que eu te amo” (21.17). Não termina aí o testemunho de Pedro. Além do testemunho dele em Atos, sem falar do tropeço em Gl 2, Pedro testemunha em suas cartas, no Novo Testamento, em especial a primeira delas. Ele mesmo declara, em 1 Pe 5.12: “Quero animá-los e dar o meu testemunho de que as bênçãos que vocês têm recebido são uma prova verdadeira da graça de Deus. Continuem firmes, pois, nessa graça” (Nova Tradução na Linguagem de Hoje - NTLH). É assim que chegamos a 1 Pedro, que é o testemunho de Pedro. Levado a Jesus por seu irmão André, Pedro testifica da genuína graça de Deus. Ele nos leva a Jesus. Vale a pena examinar seu testemunho. O TESTEMUNHO DE SIMÃO PEDRO A Primeira Epístola de Pedro 1 Pedro é um daqueles textos do Novo Testamento que Martinho Lutero colocou entre os mais nobres e importantes de toda a Bíblia. Afinal, o mandato do sacerdócio real, para não dizer do laicato, emana desta carta (1 Pe 2.9). No entanto, em tempos recentes, a carta recebeu pouca atenção em círculos acadêmicos. Alguém chegou a caracterizá-la como um “filho adotivo” do Novo Testamento. Mas vale a pena estudar esta carta! Conhecida como a “carta da esperança” (ver 1 Pe 1.3,21; 3.15), 1 Pedro é, antes, a “carta da graça”. O termo “graça” aparece oito vezes: 1 Pe 1.2 (“graça e paz vos sejam multiplicadas”); 1.10 (“profetizaram acerca da graça a vós destinada”); 1.13 (“esperai ... na graça que vos está sendo trazida na revelação”); 3.7 (“herdeiros da mesma graça da vida”); 4.10 (“despenseiros da multiforme graça de Deus”); 5.5 (“aos humildes [Deus] concede a sua graça”); 5.10 (“o Deus de toda graça ... vos há de aperfeiçoar”); 5.12 (“testificando, de novo, que esta é a genuína graça de Deus”). Mas, afora isso, a carta como um todo é uma exposição da graça de Deus. 1 Pedro é uma carta encíclica enviada a igrejas de cinco províncias do Império Romano (1 Pe 1.1), na região onde hoje fica a Turquia. É um texto breve: 105 versículos, três páginas na NTLH. Mas é um texto profundo. Isto já pode ser visto num simples cálculo matemático: no original grego, a carta tem 1675 palavras (o que é pouco), mas o número de termos chega a 547 (o que é muito)! A riqueza do texto é evidenciada pelo grande número de vocábulos diferentes que aparecem. Há pouca redundância ou repeti21 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 ção. (Cada palavra, incluindo as mais comuns, aparece em média apenas três vezes!) 1 Pedro é um resumo da fé e da vida cristã. Seria possível dar-lhe o seguinte título: “Como ser cristão num mundo não-cristão”. Outra possibilidade: “Não ser do mundo, mesmo estando no mundo”. A carta apresenta um interessante entrelaçado de doutrina (Deus, e o que ele faz por nós) e ética (como vivemos). A ética está profundamente enraizada na doutrina, tanto que aparece lado a lado com a doutrina. (Em outras cartas, Efésios, por exemplo, existe uma seqüência “doutrina - ética”.) Tema de destaque é “fazer o bem”, uma noção que aparece em 1 Pedro tantas vezes quanto aparece em todos os outros livros do NT juntos. A palavra “igreja” não aparece em 1 Pedro. Mas ele tem muito a dizer sobre ela. A linguagem é comunitária do começo ao fim. (Pedro usa a segunda pessoa do singular apenas quando exemplifica ou especifica algo, como em 1 Pe 4.11,16. Tal quebra do padrão não deixa de ser enfática.) Os cristãos aos quais Pedro se dirige são pessoas “contristadas por várias provações” (1.6). São injuriados ou insultados por serem cristãos (4.14-16). Em meio a isso, Pedro, contra as expectativas, recomenda mais santidade, não menos. De acordo com Pedro, a igreja tem um propósito missionário. Ele tem em vista pagãos na sociedade (2.12), descrentes em casa (3.1-2), e também perseguidores (3.15-16). Pedro não advoga uma cristianização da sociedade. Também não defende uma saída do mundo, pois isto seria negar o senso de missão da igreja. São Pedro conhece e leva a sério três esferas, ou ordens, ou âmbitos, em que os cristãos vivem: a ordem familiar, a ordem econômica, e a ordem estatal. É nesses contextos que os cristãos dão seu testemunho e levam pessoas a Jesus, assim como ele foi levado por seu irmão André. No entanto, antes de tratar disso, convém examinar um pouco mais de perto o que Pedro tem a dizer de nossa identidade. Só então daremos atenção à nossa agenda: para com Deus, na igreja, na família, nas relações econômicas e na ordem estado, em geral. NOSSA IDENTIDADE, SEGUNDO 1 PEDRO Quem somos, afinal? É uma pergunta que os cristãos do tempo de Pedro devem ter feito. É uma pergunta que hoje ainda temos de responder. 22 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 Isto porque a crise da igreja é, em grande parte, crise de identidade. Não é assim que muitos se vêem apenas como “clientes” da igreja e não como igreja propriamente? Outros, em especial os leigos, são tentados a pensar que são eles os que “sustentam” a igreja, esquecendo-se que eles são a igreja. Pedro nos ajuda a reafirmarmos nossa identidade. O apóstolo Pedro quer que seus leitores entendam quem eles são diante de Deus, para que possam ser o que são no meio da sociedade em que vivem. Ele nos descreve de diferentes maneiras, algumas um pouco estranhas a nossos ouvidos, mas todas muito significativas. 1. Estrangeiros de passagem. Dois textos falam disso: 1 Pe 1.1 (“Pedro ... aos eleitos que são forasteiros”) e 1 Pe 2.11 (“como peregrinos e forasteiros que sois”). Esta noção de ser peregrino e estrangeiro de passagem vem do Antigo Testamento. Lá o povo foi, por muito tempo, peregrino no deserto. Era algo bem concreto. No caso dos leitores de Pedro, também é algo concreto, só que num outro sentido. Não quer dizer que se trata de gente que não tem onde morar, mas de pessoas que, embora cidadãos deste mundo, sabem que sua pátria não é aqui (ver Fp 3.20). Como gente que faz parte do Reino de Deus, somos uma colônia do céu em território estrangeiro. Somos estrangeiros de passagem por este mundo. 2. Eleitos. Pedro fala disso bem no início da carta (1.2): “eleitos, segundo a presciência de Deus Pai”. Não há povo de Deus por acaso. Somos o seu povo porque ele nos escolheu segundo o seu propósito. Não por sermos especiais, mas porque ele nos ama. E o amor de Deus nos torna especiais. Escolhidos também para um propósito? Com certeza, mas isto vem mais tarde (ver 1 Pe 2.9). 3. Pedras vivas, templo, sacerdócio santo. O grande texto aqui é 1 Pe 2.5: “como pedras que vivem, sois edificados casa espiritual (“templo espiritual”, segundo a NTLH) para serdes sacerdócio santo (“dedicado a Deus”), a fim de oferecerdes sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por intermédio de Jesus Cristo”. Aqui Pedro junta, por assim dizer, duas metáforas: a do templo, feito de pedras vivas, e a do sacerdócio, que atua dentro dele. Somos pedras vivas que Deus usa na construção de um templo espiritual. Somos pedras vivas porque nos achegamos à pedra que vive, Cristo (1 Pe 2.4). Somos também sacerdócio santo, um grupo de sacerdotes dedicado a Deus. Somos um grupo de sacerdotes que pertence ao Rei (2.9). O sacerdote é um mediador, alguém que representa outros junto a Deus. Na igreja a rigor não existem sacerdotes, porque a igreja como um todo é sacerdotal. Esta foi e 23 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 continua sendo a grande descoberta da Reforma. A igreja é sacerdotal antes de tudo em relação ao mundo, assim como o antigo Israel foi um reino de sacerdotes num mundo que no seu todo pertence a Deus (Êx 19.5-6). 4. Raça eleita, nação santa, povo de Deus. Este é um dos grandes textos de 1 Pedro: “Vós, porém, sois raça eleita, ....nação santa (“nação completamente dedicada a Deus”), povo de propriedade exclusiva de Deus (“povo que pertence a ele”) (1 Pe 2.9). Este texto nos é tão familiar que nem nos damos conta que “raça eleita”, “nação santa” e “povo de propriedade exclusiva” são epítetos aplicados, no Antigo Testamento, a Israel (Is 43.20; Êx 19.6; Dt 7.6). Temos agora um novo Israel, um novo povo de Deus. Novo em Cristo, mas tão povo quanto o antigo Israel. 5. Família de Deus, irmandade. A igreja é, no seu todo, família de Deus. Não é tanto a família que é igreja, mas a igreja é descrita como família. Deus é o Pai. Ele é o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo (1.3), mas é nosso Pai também (1.17). Ele nos deu novo nascimento, mediante a ressurreição de Jesus (1.3). Agora existe uma irmandade (2.17, “os irmãos”; 5.9). (Aliás, em todo o NT o termo “irmandade” aparece apenas nestas duas passagens de 1 Pedro.) O que caracteriza a irmandade é o amor fraternal (1.22; 3.8). 6. “Ninho” do Espírito. Esta designação é derivada de 1 Pe 4.14: “Sobre vós repousa o Espírito da glória e de Deus”. Ou, como diz a NTLH, “o glorioso Espírito de Deus veio sobre vocês”. O Espírito repousou sobre o Messias (Is 11.2) e agora repousa sobre o povo do Messias. Fomos ungidos com o Espírito no batismo e agora somos morada de Deus. 7. Cristãos. O termo “cristão” aparece três vezes no Novo Testamento: At 11.26; 26.28; 1 Pe 4.16. Ao que tudo indica, foram pessoas de fora da igreja, e não os próprios cristãos, que começaram a usar essa palavra. (O mesmo aconteceu com “luterano”.) “Esses são aqueles que seguem a Cristo, são cristãos ...” Era usado em tom de deboche, assim como hoje muitas vezes se fala dos “crentes” e “evangélicos”. Chamar alguém de “cristão” era uma tentativa de ferir alguém, de fazê-lo sofrer. Ser cristão era o suficiente para alguém ser submetido a sofrimento. (O irônico é que, depois disso, já houve tempos em que pessoas sofreram por não serem cristãos ...) Pedro diz: “Se sofrer como cristão, não se envergonhe disso; antes, glorifique a Deus com esse nome” (4.16). Sou cristão. Este nome é uma honra. NOSSA AGENDA: PARA COM DEUS Agenda diz respeito a nossa atitude ou ação. Inicialmente veremos nossa agenda para com Deus. Depois, nossa agenda na igreja, na família, e no mundo em geral. 24 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 1. Amor. Em 1 Pe 1. 8 diz: “... Jesus Cristo; a quem, não havendo visto, amais; no qual, não vendo agora, mas crendo, exultais com alegria indizível e cheia de glória ...” É a única vez que Pedro fala do amor a Deus, neste caso do amor a Jesus. Quem não lembra o famoso “Simão, filho de João, tu me amas?” (Jo 21) Pedro tinha visto Jesus Cristo. Os cristãos aos quais se dirige, não. Mesmo assim eles o amam, e Pedro faz questão de sublinhar este fato. E o amor aparece em primeiro lugar, antes mesmo de mencionar a fé, que leva a exultação, agora, e salvação, no final. 2. Temor. Duas vezes Pedro menciona o temor a Deus: “Portai-vos com temor durante o tempo da vossa peregrinação” (1.17) e “temei a Deus” (2.17). Em 1.17, o contexto deixa claro que se trata de temor diante de Deus, o juiz imparcial. A pergunta que fica é se este temor é temor mesmo (uma atitude ou emoção) ou apenas respeito (no sentido de honra dada a um superior). Interessante é que a NTLH prefere “respeito” no primeiro caso (“durante o resto da vida de vocês aqui na terra tenham respeito a ele”), e opta por temor em 1 Pe 2.17 (“temam a Deus”). Nossa tendência é suavizar esse “temor”, também na explicação que Lutero dá aos mandamentos (“Devemos temer e amar a Deus ...”). Falamos em temor filial. De fato, em Cristo temos acesso ao Pai e, como consta numa liturgia antiga, “ousamos dizer: “Pai nosso”. Por trás deste “Pai nosso” pode estar o “Abbá”, que alguém já sugeriu fosse traduzido por “Paizinho”. Se isto parece afetivo demais, imagine o que dirá um muçulmano, para quem a forma como os cristãos se dirigem a Deus é familiar demais ou até desrespeitosa. Independentemente do que pensam aqueles que não conhecem o evangelho, fica a reflexão se não deveríamos tentar recuperar um pouco o senso de temor ou medo diante de Deus. Em outras palavras: Será que esse abrandamento do temor não é uma forma de dizer que não levamos Deus a sério? Será que levamos a sério a realidade do juízo? Estudiosos de Lutero em todo caso afirmam que, quando o Reformador escreve “temer e amar a Deus”, na explicação dos mandamentos, aquele “temer” deve ser tomado no sentido de “ter medo”. Esse temor, quem o cria em nós é o próprio Deus, através de sua lei. 3. Fome espiritual. Em relação a Deus, esta é nossa agenda fundamental. Pedro escreve: “Desejai ardentemente, como crianças (“criancinhas”) recém-nascidas, o genuíno (“puro”) leite espiritual, para que, por ele, vos seja dado crescimento para salvação” (2.2). Já houve quem lesse este texto como indicação de que Pedro estava se dirigindo a cristãos recém-batizados, concluindo que 1 Pedro era uma espécie de sermão batismal. Isto é pouco provável. As crianças ou criancinhas, como prefere a NTLH, apenas entram como comparativo. Desejar o 25 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 leite espiritual da palavra de Deus deve ser algo tão intenso quanto uma criancinha reclamar o leite materno. Por outro lado, espichando um pouco a metáfora das criancinhas, é oportuno perguntar como se chega à maturidade espiritual. Talvez seja ousado dizê-lo, mas não se chega lá se não se estiver todo dia no começo do processo, reclamando o leite espiritual, a exemplo de crianças recém-nascidas. Um Lutero que medita e ora o Catecismo é um belo exemplo disso. 4. Sacrifícios espirituais. Como grupo de sacerdotes dedicado a Deus, nossa missão é oferecer “sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por intermédio de Jesus Cristo” (2.5). Trata-se de sacrifícios agradáveis a Deus em Cristo. Integram, por assim dizer, o ofício sacerdotal de Jesus. São espirituais, não porque lhes falte o aspecto concreto ou material, mas porque são parte da era do Espírito Santo: são fruto da ação do Espírito. Não são mais bois e ovelhas queimadas sobre um altar em Jerusalém, mas são, entre outros, sacrifícios de louvor pela confissão do nome de Jesus (Hb 13.15) e sacrifícios de intercessão e ação de graças (1 Tm 2.1-4). 5. Serviço. O texto aqui é 1 Pe 2.16: “Como livres que sois, não usando, todavia, a liberdade por pretexto da malícia (“para encobrir o mal”), mas vivendo como servos de Deus”. Livres, mas ao mesmo tempo servos: este é o paradoxo da vida cristã. São Paulo diz o mesmo em Romanos 6 (ver os versículos 18 e 22). Servos de Deus. Não seria melhor, “escravos de Deus” (NTLH)? Aqui parece que temos dificuldade com ambas as opções. Se “servos” parece muito brando ou honroso demais, “escravos” parece muito duro ou desrespeitoso. O que somos, afinal? Verdade é que, à luz de nossa história de escravatura, nas Américas, o termo “escravo” traz consigo um sentido de “pessoa que pertence a alguém e lhe presta serviços forçados pelo resto da vida”, que não está necessariamente associado ao termo grego doulos. Um doulos também pertencia a alguém e prestava serviços, mas esta não era uma situação irreversível. Um em cada três moradores do Império Romano era um “liberto”, isto é, alguém que tinha sido “escravo”. Havia pessoas que voluntariamente assumiam essa condição de doulos. Isto serve para mostrar que “servo” é também um título de honra. Nas parábolas de Jesus, as pessoas que trabalham com e para um rei são os seus “servos” (douloi). No Antigo Testamento, há vários “servos” de Deus. O próprio Israel é servo de Deus. Jesus é o Servo do Senhor. Nós somos servos de Deus: a ele pertencemos, a ele servimos. É uma honra ser servo de Deus. NOSSA AGENDA: NA IGREJA 1. Amor cristão mútuo, intenso e sincero. Três textos merecem des26 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 taque: “amai os irmãos (na fé)” (1 Pe 2.17); “tendo em vista o amor fraternal não fingido, amai-vos, de coração, uns aos outros ardentemente (com todas as forças)” (1.22); “acima de tudo ... tende amor intenso uns para com os outros, porque o amor cobre multidão de pecados” (4.8). Pedro recomenda o amor. O amor é a receita para uma igreja que tem problemas, muito mais do que para uma igreja que supostamente vai bem. O melhor exemplo disso é 1 Co 13, o grande salmo do amor no Novo Testamento. Seria de esperar que aparecesse talvez na carta aos Filipenses, mas está mesmo numa das cartas dirigidas à problemática igreja de Corinto. Se Pedro fala em amor, isto não quer dizer que aquelas igrejas às quais se dirige tivessem os mesmos problemas que a igreja de Corinto. Se Pedro lembra o amor, isto se deve ao fato de ser ele um remédio para todas as horas. Por sermos justos e pecadores ao mesmo tempo, nenhuma igreja é melhor que a dos coríntios. Também a nós não faltam problemas. Nunca faltam atritos dentro da igreja, em parte, talvez, porque nosso alvo é equivocado. Voltamos nossas “armas” contra nós mesmos, quando o campo de ação é lá fora. É claro, quem causa o problema, assim pensamos, equivocadamente, são sempre os outros. Se é verdade que o amor cobre multidão de pecados, pensamos que isto se aplica aos nossos pecados, não aos dos outros. Na igreja, no convívio dos irmãos da fé (sim, porque é fácil amar o irmão distante), o amor, que é paciente, que não anda em ciúmes, que tudo sofre, tudo suporta, nunca sai de moda. 2. Concórdia, compaixão, amizade, humildade. O texto base é 1 Pe 3. 8-9: “Sede todos de igual ânimo (“tenham o mesmo modo de pensar e de sentir”), compadecidos, fraternalmente amigos, misericordiosos, humildes, não pagando mal por mal”. Todas estas atitudes e ações, que são fruto da fé, são uma outra maneira de expressar o amor. Cada qual merece destaque. De momento, no entanto, queremos sublinhar apenas uma, que nos é tão conhecida: a concórdia. A rigor, o termo “concórdia” não aparece no texto. Pedro fala em “ser de igual ânimo”. Expressa isto, no original grego, com uma só palavra, que, diga-se de passagem, aparece apenas aqui em todo o Novo Testamento: homóphrones (“tendo o mesmo pensamento”). É um tema que aparece, em linguagem cognata, em outros lugares do Novo Testamento (ver Rm 15.5; 2 Co 13.11; Fp 2.2; 4.2). Não significa, assim nos parece, que todos pensem e sintam exatamente as mesmas coisas (o que seria impossível), mas que haja 27 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 uma mesma mentalidade, um mesmo modo de pensar. Em outras palavras, harmonia ou, então, concórdia. Não necessariamente um uníssono, mas com certeza um acorde harmônico. Em Cristo, a igreja é una. Esta unidade é um dom. O que falta, muitas vezes, é concórdia. Formas diferentes de pensar, doutrinas diversas, e outras coisas constantemente ameaçam a concórdia. Por isso, vale o lembrete: Sede todos de igual ânimo! Concórdia! 3. Serviço em palavra e ação. O texto é 1 Pe 4.10-11: “Servi uns aos outros, cada um conforme o dom que recebeu, como bons despenseiros (“administradores”) da multiforme graça de Deus (“dos diferentes dons que receberam de Deus”). Se alguém fala, fale de acordo com os oráculos de Deus (“quem prega, pregue a palavra de Deus”); se alguém serve, faça-o na força que Deus supre (“sirva com a força que Deus dá”), para que, em todas as coisas, seja Deus glorificado, por meio de Jesus Cristo...” Os dons de Deus são diferentes, porque sua graça, como diz Pedro, é “multiforme”. Isto significa que ela é variada ou tem diferentes formas. Pedro exemplifica com o dom da palavra e o dom do serviço, sem ser necessariamente exaustivo. Quem prega, que pregue a palavra de Deus. Quem serve, que sirva com a força que Deus dá. Fica implícito que não deve parar de servir, pois Deus há de suprir forças. Cada qual é despenseiro, mordomo, administrador dos dons que recebeu. E os dons foram recebidos para serviço. As palavras de 1 Pe 4.10-11 são um princípio operacional de grande importância para a igreja cristã. Aplica-se à igreja local (que é, ao mesmo tempo, a una sancta, pois, na medida que tem as marcas da igreja — palavra e sacramentos — nada lhe falta como igreja) e vale também, com certeza, para o trabalho de várias congregações num nível paroquial, distrital e sinodal. É possível que nem todas as congregações de uma área geográfica tenham uma representação de todos os dons. O mesmo vale para a igreja em âmbito nacional. Uma congregação precisa da outra e o serviço é mútuo. Congregações, paróquias ou distritos que se isolam, impedem que esse princípio operacional do serviço mútuo seja colocado em prática. Quem se fecha em si mesmo, tanto impede a saída dos dons da multiforme graça de Deus para o serviço a outros quanto impede que os dons que outros receberam possam ser colocados a serviço em seu meio. Deus quer promover e de fato promove entre nós uma boa administração dos dons. Exemplo disso são os dons do ministério, ou seja, pessoas que se preparam para o ministério. Há congregações ou distritos que raramente são agraciados com um dom neste sentido. Já outras congregações 28 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 têm sido agraciadas com tantas vocações que, se quisessem reter todos esses dons, teriam, quem sabe, mais de 20 ou 30 pastores! Louvemos a Deus pelos dons de sua multiforme graça! NOSSA AGENDA: NA FAMÍLIA A agenda na família se resume à atuação de esposas e maridos, ou seja, não há, em 1 Pedro, uma palavra dirigida aos filhos e aos pais. E a agenda de esposas e maridos aparece no contexto da assim-chamada “tábua dos deveres domésticos” (que ainda hoje é conhecida pelo termo técnico Haustafel, que foi cunhado por Lutero) ou “regra do lar”. Em 1 Pedro, essa “tábua dos deveres” começa com uma palavra dirigida a todos, em 2.17: “Tratai todos com honra, amai os irmãos, temei a Deus, honrai o rei”. A partir daí, há uma palavra específica para os servos (2.18-25), as mulheres (3.1-6), os maridos (3.7), e uma conclusão em 3.8: “Finalmente, sede todos de igual ânimo ...” Não se tem em vista, aqui, “relações de escolha” como, por exemplo, a amizade (ou seja, não há uma palavra dirigida aos amigos), mas apenas “estruturas” ou “instituições da sociedade”, também conhecidas como “ordens de preservação” do mundo. Queremos destacar o que é dito às esposas, e o que é dito aos maridos. 1. Esposas: submissão, conduta, beleza interior. “Mulheres, sede vós, igualmente, submissas a vosso próprio marido, para que, se ele ainda não obedece à palavra (“se ele não crê na mensagem de Deus”), seja ganho (“levado a crer”), sem palavra alguma, por meio do procedimento de sua esposa, ao observar o vosso honesto comportamento cheio de temor. Não seja o adorno da esposa o que é exterior, como frisado de cabelos (“penteados exagerados”), adereços de ouro, aparato de vestuário (“jóias ou vestidos caros”); seja, porém, o homem interior do coração, unido ao incorruptível trajo de um espírito manso e tranqüilo, que é de grande valor diante de Deus”. (3.1-4) Muito se poderia dizer a partir deste texto, mas como este é um congresso de leigos, embora tenhamos aqui bom número de servas também, quero limitar-me a apenas algumas observações. Antes de tudo, uma palavra a respeito de submissão. É um tema que muitos evitam, por ser considerado herança dos tempos patriarcais que já se foram! Mas é um tema que está aí, bem à nossa frente, no texto. Não podemos ignorá-lo. Para quem pensa que o Novo Testamento simplesmente reflete o patriarcalismo daquele tempo, onde as mulheres não tinham voz nem vez, 29 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 lamento dizer que não é bem este o quadro que os historiadores da época nos pintam. O próprio Novo Testamento permite um quadro diferente. Não é assim que hoje as mulheres se emanciparam e que, naquele tempo, o mundo era só dos homens. Naquele tempo também havia mulheres, e mulheres. As mulheres gregas tendiam a ser mais apagadas ou confinadas ao lar; as mulheres romanas, por outro, eram ativas na sociedade. Exemplo disso é Lídia (At 16), que morava ou, ao menos, estava em Filipos, uma colônia romana. Era uma empresária! Além disso, as palavras de Jesus em Mc 10.12 têm em vista o contexto romano: a mulher é vista repudiando seu marido! E que dizer da submissão? Nosso problema é que ouvimos a palavra “submissão” a partir do prefixo “sub”, que imediatamente lembra, por assim dizer, um pé colocado sobre o pescoço de alguém (neste caso, a mulher). No original grego, onde o verbo é hypotássein, a ênfase está no radical tássein (“ordenar-se”), presente em palavras como taxionomia e outras. O que Deus quer quando fala em “subordinação” é simplesmente que as pessoas adaptem-se às instituições existentes, sem querer criar uma nova. Se isto não soa convincente, pois acaba de qualquer forma, como se diz, “sobrando para as mulheres”, é bom lembrar que o mesmo verbo é usado para falar de Cristo, na passagem de 1 Co 15.28. No maior dia da história, o dia final, Cristo se sujeitará, isto é, subordinará ao Pai, para que Deus seja tudo em todos. Uma segunda palavra a respeito do testemunho silencioso. Tudo indica que havia mais mulheres nas igrejas a que Pedro se dirige, ao menos muitas mulheres cujos maridos não eram cristãos. Pedro as estimula a dar um testemunho silencioso de sua fé. Por que isto? Porque pouco ou de nada adianta falar muito, se as atitudes falam tão alto que os outros não conseguem ouvir o que estamos dizendo! Como alguém observou, este “sem palavra alguma” não significa que seja “sem a Palavra”. Mais um comentário, desta vez a respeito da questão dos enfeites (v.3). É preciso notar o contexto em que isto é dito. Está no mesmo contexto do “ganhar o marido sem palavra alguma”. Parece que Pedro está dizendo: Também os enfeites e as jóias não vão dar conta do recado, se não houver “honesto comportamento cheio de temor” (v.2). O versículo 4 confirma isto ao apontar para a beleza interior, que é de grande valor diante de Deus e, por certo, também aos olhos do marido. Afinal, beleza exterior é algo relativo e passageiro. 2. Maridos: discernimento e respeito. “Maridos, vós, igualmente, vivei a vida comum do lar (“a vida em comum com a esposa”), com 30 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 discernimento; e, tendo consideração para com a vossa mulher como parte mais frágil (“o sexo mais fraco”), tratai-a com dignidade (“deve ser tratada com respeito”), porque sois, juntamente, herdeiros da mesma graça de vida (“a esposa também vai receber, junto com você, o dom da vida, que é dado por Deus”), para que não se interrompam as vossas orações”. (3.7) Pedro se dirige aos maridos, e subentende-se que sejam cristãos. Não fala de direitos; ao contrário, pede discernimento e consideração. Fala da mulher como “parte mais frágil”, mais fraca, ou, “o sexo mais fraco” (NTLH). Também isto provoca reações de toda ordem. Fala-se do “sexo frágil”, ao que uma canção gravada por Erasmo Carlos responde, dizendo tratar-se de uma “mentira absurda”. Acontece que o texto não diz bem isso. Fala em parte “mais frágil” ou sexo “mais fraco”. Ora, este é um fato biológico, comprovado, por exemplo, em todas as modalidades esportivas. Além disto, o “mais frágil” dá a entender que também o sexo masculino é frágil. E é, de fato. Uma reportagem publicada na revista Veja, na semana do 15º Congresso Nacional da LLLB (22 de agosto de 2001), sob o título “Homens também choram”, dá conta que “o sexo masculino lidera as estatísticas mundiais de suicídio, de mortes violentas, de envolvimento com álcool. De cada quadro dependentes de drogas em todo o mundo, três são homens. Eles vivem, em média, dez anos menos que as mulheres. E também são mais acometidos por doenças cardiovasculares, crises de hipertensão, diabetes e obesidade”. (p. 118) Ter consideração pela mulher como parte mais frágil é outra forma de falar de amor (ver Ef 5.25). Pedro justifica esse respeito à esposa com o fato de tanto o esposo cristão quanto sua mulher serem, juntamente, herdeiros da mesma graça de vida. Isto lembra Gl 3.26-28. Se a gente leva em conta que, naquele tempo, em muitos lugares a mulher não era considerada herdeira, esta afirmação de que a mulher também é “herdeira da mesma graça de vida” deve ter calado fundo na alma daquela gente. Pedro tem ainda, ou, melhor, começou sua Haustafel com uma palavra dirigida aos servos (2.18-25). Estes eram, pelo que o termo grego oikétes dá a entender, escravos ou servos domésticos. Faziam parte da grande família, isto é, moravam e trabalhavam na casa de seu senhor. Já explicamos, acima, que ser escravo naquele tempo não era exatamente a mesma coisa que ser escravo nas Américas. Interessante nesta palavra aos servos é que o apóstolo prevê a possibilidade de alguém sofrer injustamente, por motivo de sua consciência para com Deus (v.19). Este é um eco da famosa clausula Petri ou o “princípio petrino” de At 5.29: Há momentos 31 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 em que obedecer a Deus é mais importante do que obedecer a homens, mesmo que isto custe sofrimento. Não há menção de senhores, aqui em 1 Pedro. Será que isto quer dizer que a igreja era feita só de escravos? Embora muitos pensem que o cristianismo era um movimento das classes pobres e que apenas “vingou” no Império Romano porque era a chance de ascensão social dos escravos, o Novo Testamento não permite esta leitura rasante ou superficial da situação. Aqui em 1 Pedro, no entanto, este parece ser o caso: Não há senhores, só escravos. Agora, é preciso ter cautela. Argumentar com o silêncio é perigoso. Afinal, o texto também não cita os filhos, o que não significa que a igreja só tinha pais ou gente adulta! NOSSA AGENDA: NO MUNDO EM QUE VIVEMOS Além de destacar a importância da santidade (1.14-14), do viver para a justiça (2.24), e da prática do bem (2.20; 3.13,17; 4.19), Pedro enfatiza o testemunho diante daqueles que não são cristãos. 1. Testemunho por atitude. O testemunho, como disse alguém certa vez, é como um avião que, para voar, precisa de duas asas. Existe o testemunho da vida, das atitudes, e também o testemunho em palavra. Do testemunho da vida Pedro trata ao longo de toda sua epístola (ver também 1 Pe 2.11-12). 2. Testemunho em palavra. Existe também o testemunho em palavra, e é para este que nos voltaremos agora. Pedro trata disso em 2.9: “a fim de proclamardes as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz”. Este “proclamar” com certeza envolve palavras. Mas a passagem que está mais diretamente relacionada com a evangelização é 1 Pe 3.14b-16: “Não vos amedronteis, portanto, com as suas ameaças, nem fiqueis alarmados (“preocupados”); antes, santificai a Cristo, como Senhor, em vosso coração, estando sempre preparados (“prontos”) para responder a todo aquele que vos pedir razão da esperança que há em vós (“que expliquem a esperança que vocês têm), fazendo-o, todavia, com mansidão e temor (“com educação e respeito”), com boa consciência (“consciência limpa”). O grande destaque deste texto, que se relaciona diretamente com o lema deste Congresso, “E o levou a Jesus”, é aquele “estando sempre preparados para responder a todo aquele que vos pedir razão da esperança que há em vós”. Em que sentido deveríamos entender este “estar preparado”? Seria apenas um estar disposto ou ter vontade de fazer algo? Certamente que não. Estar preparado subentende que se tenha tido preparação 32 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 para responder ou fazer uma defesa (o termo grego é apologia) da razão da esperança que se tem. Como aquele era um ambiente hostil, Pedro encoraja os cristãos: “Não vos amedronteis!” Neste ponto, cabem algumas reflexões sobre o “dar razão da esperança que há em nós”. Em primeiro lugar, é bom notar que esta palavra não se dirige direta ou exclusivamente aos pastores (estes só entram em cena no capítulo 5). Nossa tendência é olhar para os apóstolos de Jesus e pensar que foram grandes heróis solitários. Isto é um equívoco. Paulo tinha uma equipe de colaboradores. Pedro escreveu esta carta (1 Pedro) com a ajuda de Silas (5.12). Os grandes missionários da igreja antiga foram aqueles cristãos que nós hoje chamamos de leigos. Naquele tempo, como ainda hoje, há momentos em que o testemunho destes, em casa, no trabalho, etc., é bem mais eficaz do que o sermão do pastor na igreja. Talvez alguém pergunte: Por que nos é tão difícil testemunhar? É possível que tenhamos um problema de auto-imagem. Achamos que não somos o tipo de pessoa talhada para isso. Nos sentimos “verdes”, ainda não prontos para falar. É possível que tenhamos idéias errôneas a respeito dos outros. Nossa tendência é colocar as pessoas em categorias e generalizar. Talvez pensemos assim: “Todos aqueles que não fazem parte da igreja ou não freqüentam uma igreja já foram confrontados com o evangelho e o rejeitaram”. Outro preconceito: “Gente rica ou em posição de destaque tem menos chance de responder ao evangelho do que gente pobre e mal de vida”. Mais um: “Gente idosa está mais aberta ao evangelho do que pessoas recém-casadas”. Outro fator é o medo. Existe o medo de passar vergonha. Nossa tendência natural é fugir de situações em que somos rejeitados ou ridicularizados. Existe também o medo de perder a discussão e o medo de fracassar. O sucesso de grandes evangelistas, muitas vezes usado para nos entusiasmar, é o modelo que vira lei, pois nos acusa em nosso fracasso. Neste ponto é bom lembrar que não podemos assumir o papel de Deus (querendo provocar a conversão), nem a responsabilidade do outro (caso ele rejeite o evangelho). Se temos tido nossos fracassos, se negamos conhecer o Salvador, é bom lembrar que Pedro não foi diferente. Também ele teve altos e baixos. A grande comissão de Cristo (Mt 28.16-20) foi dada, não num contexto de fé heróica, mas num contexto onde “alguns tiveram suas dúvidas” (Mt 28.17). Como disse alguém, este pequeno detalhe ajuda a humanizar a grande comissão. Além disso, não se pode perder de vista a graça de Deus, que é para nós também. 33 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 Talvez nos perguntemos quanto ao conteúdo de nosso testemunho. Sem dúvida, é importante saber verbalizar a mensagem. Além disso, convém ater-se ao essencial, isto é, de fato dar razão da esperança que há em nós. Para falar do que cremos, não existe um só roteiro, perfeito e imutável. O roteiro do Credo, que confessamos no culto, é, talvez, o melhor que podemos usar. Para estarmos preparados, ou, então, melhor preparados, podemos nos treinar mutuamente. A congregação pode, neste sentido, ser a nossa escola. Temos ali um “ambiente protegido”, uma área fechada semelhante a um terreno baldio onde se aprende a dirigir um automóvel. Ali, através de estudos, dramatizações, etc. podemos nos preparar melhor para “dar razão da esperança que há em nós”. Tudo para que possamos viver à altura do lema “E o levou a Jesus!” 34 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 SENTIDO E CONTEÚDO NA PROCLAMAÇÃO CRISTÃ: SUBSÍDIOS PARA UMA REFLEXÃO A PARTIR DA LEITURA EM LUTERO NO 1º CAPÍTULO DO EVANGELHO DE JOÃO Paulo P. Weirich* INTRODUÇÃO 1. A palavra proclamada tem sido essencial à vida da igreja Não é possível imaginar a fé cristã, tal como aconteceu na história, sem o concurso da palavra proclamada. O anúncio da palavra é considerado entre o povo como o aspecto que dá conteúdo e caráter ao culto da igreja. Entretanto é também nesse aspecto da centralidade da palavra que a fé cristã parece ter sido mais vulnerável e atacada. As tentações de Jesus no deserto demonstram isso. Cada tentação, na verdade, implicava o pressuposto básico: Qual é o verdadeiro conteúdo ou sentido do que se diz? É verdade que a palavra tem mesmo um sentido claro e irreformável? O que se diz e se acredita é realmente fiel ao que foi dito? As palavras não poderiam significar algo mais do que isso que se supõe? A relação entre palavra e conteúdo pode ou não ser questionada? O que dá conteúdo ao texto bíblico? A constatação da dubiedade de sentido nas palavras foi realmente a questão central em qualquer debate diante da infiltração de desvios e heresias. Entre os luteranos, talvez seja possível apontar para a Fórmula de Concórdia como o testemunho mais vivo do debate sobre a possibilidade de uma palavra trazer em si sentido que seja real, verdadeiro e confiável. O século XX, de cujos pressupostos somos herdeiros, foi testemunha, talvez, do ataque mais contundente e radical na tentativa de afirmar que a palavra não é instrumento confiável para a transmissão e comunicação de conteúdos válidos. Entretanto, na virada do século XXI a igreja luterana insiste em dizer o contrário, isto é, a palavra não somente é instrumento válido como é o instrumento que Deus preparou para o anúncio da palavra de salvação até * Rev. Prof. Paulo P. Weirich, S.T.M., é professor de Teologia Prática no Seminário Concórdia e na Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). No Seminário, Prof. Paulo Weirich exerce também as funções de Coordenador de Pré-estágio. Este artigo é resultado da aula inaugural apresentada à comunidade acadêmica do Seminário em 26 de fevereiro de 2002. 35 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 a revelação final da palavra. A palavra que a igreja anuncia é a palavra que devolve ao ser humano o seu lugar na criação e o acompanha na direção da sua nova criação. Para tanto, a igreja depende da palavra. Lutero, que foi instrumento de Deus na preparação da caminhada da igreja nos últimos quase cinco séculos em direção à modernidade, ainda continua sendo o referencial para aquele que se apresenta como mensageiro ou candidato a mensageiro dessa palavra no relativismo da pósmodernidade. Ebeling inclusive define Lutero como um acontecimento lingüístico e se refere a ele como gênio lingüístico.1 Mais adiante afirma: “A obra de Lutero visava a palavra”.2 Esse estudo procura, a partir de uma breve leitura de Lutero na sua exposição do Evangelho de João, capítulo 1, alguns indicativos que demonstram a necessidade de uma permanente releitura em Lutero e também o estímulo de saber que a partir do seu labor teológico na palavra para uma permanente renovação na proclamação da Palavra. Ao mesmo tempo fica o desafio a que em momento nenhum a igreja e aqueles nela responsáveis, relaxem a vigilância e até luta para que seja instrumento fiel da proclamação que Deus tem para o mundo. A PERGUNTA PELO SENTIDO NA PALAVRA 2. A linguagem como veículo de conteúdo Em 1973, Joseph A. de Vito, publicou Language: Concepts and Processes, reunindo artigos de autores como Noam Chomski, Bertrand Russel, Hayakawa, George Orwell e outros, representativos de diversas áreas do conhecimento mas que em algum momento da sua trajetória fizeram a si próprios a mesma pergunta, uma pergunta que, para muitos, poderia parecer ociosa e supérflua. Para eles, entretanto, tornou-se um dos questionamentos essenciais na caminhada do ser humano em busca da auto-compreensão definitiva. A pergunta se desdobra: Qual a relação da linguagem com o pensar? Qual a função da linguagem na comunicação? Até que ponto podemos comunicar sentido naquilo que dizemos? Na virada para o século XX o mundo ocidental se questionava sobre se a humanidade realmente poderia encontrar sentido para a existência humana. As certezas de um certo cristianismo dependente dos ditames da autoridade eclesi- 1 2 Gerhard Ebeling, O Pensamento de Lutero (São Leopoldo: Sinodal, 1988), 20. Idem, p. 33. 36 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 ástica, a convicção implícita na filosofia de que o homem é a medida de si próprio e que a resposta de tudo era somente uma questão de tempo, a certeza de que a ciência e a razão humana trariam a cura e o novo caminho para o ser humano, essas e outras certezas semelhantes estavam sendo questionadas. A crescente intensidade da comunicação, se a princípio dá esperanças de apressar o advento de uma revelação final de libertação da sociedade humana, começava a ser questionada nas suas raízes pondo em dúvida o nascente pressuposto da modernidade de que a linguagem da ciência seria a linguagem última e definitiva. Os cristãos, por sua vez, que na virada para o século XX intensificaram o esforço missionário para a conversão dos que eram chamados de pagãos e até ignorantes, também começavam a questionar-se sobre as estratégias, o progresso e os pressupostos ocidentais que, vistos como sinal de soberania cristã sobre o mundo, entretanto começavam a esbarrar naquilo que se conhece como as barreiras transculturais em que muitos pressupostos vistos como óbvios e até bíblicos passaram a ser questionados. Em 1977, a Universidade de São Paulo publica um livro que reúne textos de Jean Ladriere, filósofo e lingüista francês, intitulado A Articulação do Sentido, ou como Ladriere preferiria tê-lo chamado: “Discurso Científico e Palavra da Fé”. O autor parte da pergunta fundamental: Como pode a linguagem significar? Que é, portanto, a significação? Até que ponto conteúdos podem ser realmente traduzidos em linguagem mutuamente compreensível? A linguagem da fé, vista por cristãos como a linguagem do significado absoluto é vista como “a formulação de uma ingênua representação da realidade”3 que necessita ser explicada ”no quadro de uma teoria científica adequada”.4 Em 1978, David Hasselgrave, teólogo e missionário protestante, enveredava por esse campo de pesquisa com a 1ª edição de Communicating Christ Cross Culturally. Após 15 tiragens, em 1991, este trabalho recebeu uma segunda edição ampliada. Este material foi traduzido no Brasil e publicado em três volumes em 1996. A presente leitura tanto se reporta à 1ª edição original como à 2ª edição em sua tradução brasileira. A questão do sentido no conteúdo da proclamação cristã entretanto não é novo. A linguagem é representativa de um sentido absoluto? Existe uma linguagem apropriada da fé? A fé e o divino podem ser expressos em linguagem humana ou naquilo que Lutero chama a linguagem da razão? Em 3 4 Jean Ladriere, A Articulação do Sentido (São Paulo: EDUSP, 1977), 6. Ibid. 37 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 que sentido a linguagem da fé depende do respaldo científico da lingüística ou linguagem científica para revelar conteúdos e fazer sentido? A fé cristã é fé proclamada para ser ouvida (Rm 10). “Bem-aventurados são os pés daquele que anuncia boas novas” (Is 52.7) é uma das palavras bíblicas que aponta para a nobreza e a sublimidade da função dos porta-vozes da palavra. Nas palavras conhecidas de Lutero, “o ofício mais nobre sobre a face da terra”. A porção rural brasileiro-germânica da Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB) já não é a comunidade fechada de códigos implícitos de alguns anos atrás. Anunciar a palavra hoje, em qualquer região do Brasil, modificou-se tremendamente. Qual o sentido da palavra família nas periferias das metrópoles, nas pequenas cidades e no interior? O que significa justificação pela fé, conceito tão caro para luteranos? Qual é a dimensão e quais são os limites da tarefa de anunciar a palavra de Deus que faz sentido para o ser humano agora? Se realmente a proclamação da palavra é a tarefa mais sublime e elevada sobre a terra, a ela também se agrega a dificuldade que identificamos. Essa dificuldade não pode ser sublinhada suficientemente. Entretanto, a perplexidade de quem vê as dificuldades como intransponíveis no estágio em que estamos e que leva muitos a questionar o sermão tradicional como forma de comunicação, estão mais nos pressupostos de quem não vê na linguagem da fé uma parceira na articulação do sentido. Esse breve ensaio se vale do tratamento dado por Lutero ao conceito Palavra de Deus especialmente na sua exposição do primeiro capítulo do evangelho de João, onde Lutero confronta a linguagem da razão e a linguagem da fé, denunciando os pressupostos e afirmando a sublimidade da tarefa do pregador da Palavra. 3. Palavra e conteúdo: a palavra é Deus. Jaroslav Pelikan, um dos editores das obras de Lutero em língua inglesa, Luther’s Works, acrescenta-lhe um volume do editor, que ele denominou Luther the Expositor. Em definindo a natureza desse volume, Pelikan justifica a necessidade desse trabalho ao dizer que as introduções a cada texto de Lutero na coleção, especialmente os textos de interpretação bíblica, estão limitados ao momento histórico do texto. Estas introduções históricas não esgotam a informação a que o leitor tem direito caso queira ler as obras de interpretação (bíblica) de Lutero de maneira inteligente.”5 5 PELIKAN, Jaroslav. Luther the Expositor. In: Luther´s Works: Companion Volume, Jaroslav Pelikan, ed.(Saint Louis: Concordia Publishing House, 1959), ix. Doravante Luther´s Works será abreviada por LW. As traduções, nesse ensaio, se não indicado de outra maneira, são traduções livres do autor a partir das obras citadas. 38 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 No capítulo 3 desse volume, Pelikan se debruça sobre a expressão Palavra de Deus para sublinhar o esforço interpretativo de Lutero. Pelikan, a partir de Lutero, propõe que a história da teologia é a história da manifestação pública de Deus através da pregação da palavra. Lutero é alguém que faz teologia quase contra a vontade porque vê no seu trabalho acadêmico a responsabilidade de levar a igreja a pregar a palavra com clareza e pureza.Todo o esforço teológico é validado enquanto esforço que visa clarificar essa manifestação pública: A História da teologia é, evidentemente, o aspecto mais em evidência da história do Cristianismo na qual a interpretação das Escrituras exerceu papel proeminente – especialmente se a história da teologia, como é de esperar, inclui a história da pregação cristã.6 Em O Pensamento de Lutero7 Ebeling afirma que a docência acadêmica ...intimamente ligada à pregação, foi o ponto de partida e o rumo da Reforma. Althaus abre o capítulo Die Heilige Schrift dizendo: A Palavra é, para Lutero, acima e além de tudo, palavra oral, isto é, a viva proclamação para a atualidade. Mas é palavra comprometida (gebunden) com a palavra apostólica. 8 Com essa nota de abertura, Pelikan procura mostrar como é difícil e ao mesmo tempo fascinante o esforço de classificar Lutero como teólogo. Será ele um sistemático? um exegeta? historiador? Um pregador circunstancial? De que escola? Todo esforço esbarra no próprio Lutero, que insiste em negar e impedir qualquer sucesso a quem se aventura nessa empreitada. Pelikan parece indicar em Lutero uma dimensão teológica que se recusa a ser limitada por um sistema ou sistematização que transformasse a revelação divina em axiomas que pudessem ser repetidos em todos os tempos. Lutero parece ter se deixado levar para além da tentativa comum a qualquer ser humano de cativar para si e dominar a revelação divina a partir da sua compreensão pessoal. A revelação de Deus foge ao controle de Lutero e Lutero não se ressente de ser dominado pela revelação. Lutero também não limita o ser humano. Ele contempla e segue o ser humano sem tentar reduzi-lo a um estereótipo teológico ou filosófico. O ser humano também está para além do domínio imediato de Lutero. Cada ser humano está em conexão imediata com Deus a partir da criação, conexão essa que é única e individual. Essa conexão entre Deus e o ser humano está na palavra. 6 Idem, p. 5. Gerhard Ebeling, O Pensamento de Lutero (São Leopoldo: Sinodal, 1986), 20 e 33. 8 Paul Althaus Die Theologie Martin Luther’s (Gütersloher Verlagshaus, 5. Auflage, 1980), 71 ss. 7 39 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 Werner Elert aponta para o fato de Lutero dizer que escrever livros a respeito da fé não é próprio. O evangelho é por si só um fenômeno da proclamação e essa, oral. Como, entretanto, escrever tornou-se necessário, muito se perdeu da proclamação original e nos questionamos sobre o seu sentido9. Por essa razão a revelação de Deus, a Palavra de Deus, é para Lutero mais do que um texto a ser dissecado. A Palavra é o próprio Deus em manifestação pessoal. A Palavra não é meramente uma opção de Deus diante da necessidade de comunicar-se, tal como nós optamos entre escrever ou falar, ou gesticular. Em sua explanação de João, Lutero diz: “Temos de compreender que a Palavra de Deus é totalmente diferente da minha ou da vossa palavra”.10 Mais adiante Lutero acrescenta que a Palavra estava em Deus mesmo antes da criação e esta palavra era Deus. Assim como as fortes emoções de um homem se traduzem em sons e são inseparáveis dessa mesma emoção, assim Deus estava grávido da Palavra A palavra da boca somente tem substância quando é a palavra do coração. Caso contrário ela não tem sentido.11 Lutero afirma: Deus, em sua majestade e natureza, está grávido de uma palavra ou assunto que ele tem consigo mesmo na sua essência divina e que reflete os pensamentos do seu coração. Isto é tão completo, excelente e perfeito como o próprio Deus. Ninguém, além de Deus mesmo, vê, ouve ou compreende esta conversação. Essa palavra, esta conversa do coração de Deus é o seu filho que Deus carregou no ‘seu seio ou coração’.12 Ao ver na Palavra o próprio Deus como gerado de Deus, como uma gravidez divina (sic), Lutero confere uma dimensão diferente à própria doutrina da Trindade.13 E assim faz da Bíblia algo mais do que um registro das idéias ou atos de Deus. A Bíblia, no seu conteúdo, está para além da linguagem que a ciência humana possa abarcar. Em conseqüência, a pregação do evangelho, ao trazer Deus para a realidade “escapa à compreensão humana”. Não podemos compreender o que se passa no coração de Deus.14 Quando Deus fala e se manifesta, rompendo o silêncio, a Palavra falada é o próprio Deus manifestando a sua natureza e o seu mais íntimo ser. A Palavra e 9 Werner Elert, The Structure Of Lutheranism (St. Louis: Concordia, 1962), 188. LW 22, 8. 11 Ibidem. 12 LW 22. 13 LW 22, 15. 14 LW 22, 8 e 9. 10 40 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 ação estão inseparáveis de Deus. A história estava em Deus antes de ser desencadeada pela Palavra. Os acontecimentos que a história registra são por isso o sinal e registro da presença de Deus como gerada e sendo gerada dele. O pecado não somente mudou o homem e o mundo. O pecado mudava por isso o próprio Deus, na medida em que alterava a sua palavra. A palavra era Deus. Razão porque Deus intervém. E a intervenção que se mostra na pergunta “Onde estás?” (Gn 1.9) é Deus presente revelando que a sua natureza não sofreu a mudança e também não pode ficar alheio ao que se passou. Ele permanece o mesmo. Esse “novo mundo” que Adão e Eva desencadearam ainda é o mundo que nasceu da Sua palavra, nasceu do Seu coração, numa extensão de Si próprio. Essa fidelidade de Deus ao seu mundo também é fidelidade a Si próprio, fidelidade essa manifestada no Verbo que vem ao mundo e nele revela quem é Deus e qual a sua relação com o mundo e com o Verbo gerado. Lutero afirma: “João mostra que havia em Deus um Discurso ou Palavra que ocupava Deus na sua totalidade, que era o próprio Deus, uma palavra tão grande quanto o próprio Deus. Realmente a palavra é o próprio Deus.”15 4. A Palavra é ação de Deus. Em Lutero Deus não é apático, ausente ou indiferente. Deus está permanentemente ocupado com pensamentos e palavra. E como estes são o próprio Deus, tudo que Deus pensa ou fala é conseqüente. O discurso de Deus não especula nem vagueia a esmo. Isto é contra a sua natureza. Sua palavra é, portanto, a sua ação, porque na palavra ele está e atua. A ação de Deus é desencadeada pela palavra, e somente essa desencadeia a ação criadora e, por isso, revela a sua natureza. E esta se manifesta no ato da encarnação da palavra. Tudo que Deus quis mostrar do seu íntimo, da conversa que mantinha intensa consigo mesmo desde a eternidade, o discurso eterno de Deus, a sua natureza própria, sua vida interior, está manifesto na sua palavra encarnada. Lutero resume dizendo: O que aprendemos até agora dos versículos de abertura da carta de S. João é que o evangelista definiu nosso querido Senhor e Salvador Jesus Cristo como a palavra do eterno Pai e, com ele, como verdadeiro Deus desde a eternidade. . . . Além disso, essa Palavra é também a luz e a Vida do homem. E desde o princípio essa palavra sempre falou pela boca dos patriarcas e profetas até o tempo de João Batista. Essa palavra não tem princípio nem fim.16 15 16 LW 22, 12, 13, 15 LW 22, 37 41 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 Dessa forma, a Escritura Sagrada é vista por Lutero sob dois aspectos. Ela é registro ou imagem fiel de Deus e, no dizer de Lutero, o próprio Deus e proclamação fiel a Deus. Não são os profetas que testificam de Cristo como se alguma coisa dependesse deles ou que fossem eles detentores de algo. A revelação não é revelação dos profetas. Inversamente, os profetas são os instrumentos que a revelação, a palavra de Deus, utiliza para estar presente pessoalmente no mundo e no seu povo. Ouvir profetas, portanto, significa não se deixar conduzir e levar por pessoas, porque no profeta e através do profeta fala Deus. Esse Deus é Palavra. Essa palavra é Cristo. Em Lutero esse conceito é fundamental para a pregação Quando se diz que Deus é o autor da Escritura, não se entenda autor como alguém que redige uma mensagem ou pinta um quadro. Tanto Cristo como a palavra são gerados por Deus e por isso ambos espelham fielmente Deus, como um filho reflete qualidades e atributos característicos do pai (Jo 16.15).17 Em um artigo intitulado Christus, der Herr der Schrift, Gottfried Hoffmann18 encontra em uma das edições do comentário de Lutero aos Gálatas aquilo que, no seu entender, era o pressuposto mais presente e representativo da teologia da palavra em Lutero. Lutero argumenta a partir da hipótese impossível. Mesmo que os adversários pudessem trazer argumentos irrefutáveis da Escritura Sagrada a favor da sua teologia das obras e que Lutero não mais tivesse argumentos da Escritura a contrapor, mesmo então ... escolho dar a honra somente a Cristo e crer nele em vez de ceder a todas as passagens bíblicas que eles pudessem alinhar contra a doutrina da fé para estabelecer a justificação pelas obras. Nesse caso deve-se responder-lhes simplesmente isto: Aqui está Cristo e lá estão os testemunhos da Escritura sobre leis e sobre as obras. Entretanto Cristo é Senhor sobre a Escritura e todas as obras, bem como ele é o Senhor sobre céus e terra, sobre o sábado, o templo, a justificação, a vida, a ira, pecado, morte e tudo o mais, e é disso que Paulo, seu apóstolo, prega, de que ele se tornou pecado e maldição por mim.19 Com isso Lutero não está contrapondo Cristo e Escritura, mas está mostrando sua coerência diante do fato de que a Escritura é a manifestação que Deus decidiu fazer de si próprio. A Escritura acaba sendo para Lutero dessa maneira o próprio Deus. Uma vez que aquilo de que Deus estava grávido 17 LW 22, 14, 19-20. Gottfried Hoffmann, “Christus, der Herr der Schrift” . Lutherische Theologie und Kirche, 12 (Dez. 1988): 122. 19 Ibidem. 18 42 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 desde a eternidade (para permanecermos na figura de Lutero) se manifestou por voz dos profetas, nada na Escritura pode ser visto sob outra luz e nada pode contradizer, ferir ou diminuir o sentido dessa manifestação. 5. Cristo é o sentido da ação de Deus Nenhuma passagem da Escritura pode ter luz própria. Somente Cristo é luz que ilumina e revela o sentido de cada parte da Escritura. O pressuposto, se queremos utilizar essa linguagem, é sempre Cristo, sua palavra e sua obra, seus próprios pressupostos e fins. Cristo, dessa maneira, é não somente o objeto da Escritura, mas também o seu autor, seu princípio e seu fim (Jo 5.39; Rm 10.4; Ap 22. 9-10,13). Por isso as Escrituras não podem se contradizer. Elas não são o resultado de muitos autores, mesmo que muitos a tenham escrito. Os textos não têm autoridade própria porque sua autoridade depende do seu autor. E o autor único é Deus numa dimensão que foge à razão natural: Deus gerou a palavra, a sua única palavra. Deus não tem outra palavra. Desta palavra parte e para ela converge toda a Escritura. Ter a fé em Cristo resulta em compreensão final da Escritura. Em Lutero, a fé abre o entendimento para o conteúdo da escritura permitindo ver o universo sob uma nova perspectiva. Nada além da fé pode compreender isso”.20 Como Deus não registrou de outra maneira a sua Palavra, a Escritura tem as qualidades, atributos e autoridade que lhe conferem o seu autor. Dessa maneira, para que Cristo não seja destruído, a unidade de toda a Escritura não pode ser ferida. Romper a Escritura, levando a contradizerse, ou admitir que ela não traz a unidade da pessoa de Cristo em alguma de suas partes, significa tirar dela a pessoa de Cristo, o próprio Deus, reduzindo-a a um texto qualquer. Lutero reconhece que o texto das Escrituras está sujeito à leitura que dele se faz. O texto, nesse sentido, é um servo, que depende da orientação que se lhe quer dar ou se lhe quer negar. Se sabemos que seu autor e fim é Cristo (Jo 5.39), essa intenção não é oculta mas sempre esteve claramente expressa, resta, então, concluir que as contradições e enganos a ela atribuídos estão dependentes dos pressupostos e enganos com que as pessoas dela se aproximam. Enquanto o ser humano se fecha para o sentido que a Escritura traz em si mesma, esta lhe permanece um livro fechado e cheio de contradições. Por essa razão Lutero vê a Escritura como um servo a serviço de Cristo, cuja autoridade está na relação direta de sua fideli20 LW 22, 8. 43 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 dade a Cristo. Quando então Lutero infere que é palavra de Deus aquilo que na Escritura promove Cristo, da mesma forma Lutero entende que nada na Escritura tem outra intenção a não ser promover Cristo, sua pessoa e sua obra com vistas à fé. Elert cita Lutero, argumentando sobre o objeto da fé nessa relação de transcendência: “A Palavra apreendo com o meu intelecto; mas a adesão a essa palavra é a obra do Espírito Santo.” 21 A PERGUNTA PELO CONTEÚDO DA PROCLAMAÇÃO DA IGREJA 6. A presença real de Deus na proclamação fiel da Sua Palavra Robert Kolb, em Confessing the Faith, lembra que em Erasmo já se percebia uma leitura da Escritura numa perspectiva descritiva, mais narrativa do que reveladora de Deus, permitindo ao intérprete manter-se em controle sobre o texto e protegendo-se da reação da fé. 22 Essa “domesticação acadêmica” do texto teve o contraponto dinâmico de Lutero, como se os filósofos gregos e os profetas do AT estivessem em batalha. Lutero não aceitava que a Palavra de Deus pudesse ser analisada e dissecada da mesma forma em que a razão pode analisar objetos da criação. Ele cria que a Palavra de Deus deve simplesmente ser proclamada. “A reação da fé é diferente da reação da razão.”23 Uma diferença fundamental entre um enfoque e outro está na proclamação. Herrmann Sasse abre o livro Sacra Scriptura com a declaração: “Os deuses são mudos, mas o Senhor fala. O Deus da Bíblia é o Deus que fala... Ninguém pode compreender a doutrina do falar de Deus se não estiver claro para ele que o falar é um marco que divide o único e verdadeiro Deus dos demais cuja adoração é condenada no Primeiro Mandamento.”24 Afirma também que a Igreja Luterana fez da doutrina da justificação a doutrina central da Escritura, não como uma teoria doutrinária, mas “ao contrário, toda a vida do antigo luteranismo, a mensagem da sua pregação e ensino, sua liturgia e sua hinódia clássica oferecem uma compreensão unificada dessa compreensão do evangelho” porque foi isto que Deus falou.25 A Escritura Sagrada adquire para o luteranismo essa dimensão de identificação com Deus na mensagem que ela proclama. Deus é inseparável 21 Elert, 84. Robert Kolb, Confessing the Faith (St. Louis: Concordia, 1991), 26. 23 Idem, p. 26-27. 24 Herrmann Sasse, Sacra Scriptura (Erlangen: Verlag der Ev. Luth. Mission, 1981), 11. 25 Ibidem. 22 44 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 da Escritura. A própria personalidade de Deus, a sua natureza, se fundem no texto sagrado, porque esse texto, no dizer de Lutero, é Deus. Será isso um exagero? Terá Lutero, no seu esforço de estabelecer a autoridade na igreja, ido longe demais na sua compreensão de autoridade bíblica? A ortodoxia luterana teve de lidar com essa postura luterana diante da Palavra, na medida em que alguns teólogos procuraram acomodar uma visão racional, mais Erasmiana, no dizer de Kolb,26 da revelação de Deus. Em The Theology of Post-Reformation Lutheranism, Robert Preus, quando aborda a questão da unidade da Palavra, cita Quenstedt: “O ato de escrever, tal como o ato de pregar, é incidental à Palavra de Deus e nada mais é do que um aspecto externo (patós) da Palavra, um modo auxiliar de proclamar e comunicar a Palavra, que não altera a essência da Palavra divina.”27 E Preus conclui: “A assim chamada palavra profética e a palavra que está em Deus jamais podem ser dissociadas ou separadas do logos upostatikos, o filho eterno através do qual Deus fala e age.”28 Para manter esse trabalho direcionado para os objetivos propostos inicialmente, e dado o espaço dessa apresentação, não será possível acompanhar os questionamentos que essa posição de Lutero levantou e nem as diferentes seqüências de pensamento que trouxe. Se por um lado repôs a Escritura como única fonte e norma de doutrina, por outro lado, no seu esforço de ver Cristo em toda a Escritura e em nome desse esforço, também teve liberdade de crítica em relação a textos e livros da Escritura que tinha em mãos. Sasse, por exemplo, aborda o questionamento se Lutero, com a sua abordagem crítica de passagens e livros da Escritura, talvez não mais tivesse espaço dentro da própria igreja luterana 50 anos mais tarde. 29 Entretanto, como Fagerberg observa, o esforço da ortodoxia em definir uma inspiração verbal, se por sua vez serviu para manter a revelação de Deus como centro do fazer teológico, também ofereceu o risco da anulação da revelação como palavra de Deus na proclamação.30 A crítica que a ortodoxia recebeu foi direcionada contra a posição anti-reformatória de identificar Bíblia e Palavra de Deus. Isso fica exemplificado no tratamento que é dado à expressão palavra 26 , Kolb, 26. Robert Preus, The Theology of Post Reformation Lutheranism, (St. Louis, Concordia, 1970), 268. Ao identificar essa relação Deus-Palavra, os luteranos da ortodoxia estão cientes de que essa identificação está em Cristo. Essa palavra é uma e única. Não se anula o fato de Deus ter mais para ser conhecido e de que Deus se comunica de outras formas. Mas a palavra que Deus dirige ao ser humano é Cristo, seja ela a palavra em Deus, ou a palavra no profeta, ou essa mesma palavra no coração de quem crê. Cf. Preus, 269. 29 Sasse, 319. 30 Holsten Fagerberg, A New Look at the Lutheran Confessions (St. Louis: Concordia), 30. 27 28 45 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 de Deus que, nas Confissões, é utilizada intercambiadamente para designar tanto a palavra escrita quanto a palavra proclamada. A ortodoxia luterana, ao se precaver de possíveis erros e ataques à revelação, talvez não se tenha dado conta da impossibilidade de encontrar e oferecer formulações definitivas da palavra que pudessem resistir ao tempo. Ou talvez foram leitores da ortodoxia que, reconhecendo nesse trabalho teológico um bem sucedido esforço de afirmação da palavra, talvez tenham tomado como definitivo esse esforço. A Apologia aponta para esse risco de o trabalho teológico parar no tempo e perder-se tanto da sua origem quanto da sua finalidade. 31 Nesse sentido também C.F.W. Walther afirma sob a 3ª Tese em suas palestras sobre a correta distinção de lei e evangelho: “Uma pessoa pode ter compreendido a doutrina pura e, mesmo assim, estar em situação irregular ante Deus”.32 Sob a 2ª Tese: “Apesar de alguém de fato poder afirmar ‘Meu sermão não continha nenhuma heresia’, é possível que todo o seu sermão tenha sido falso. ...Teólogo ortodoxo somente é aquele que, entre outros requisitos, sabe diferenciar corretamente lei e evangelho”.33 A revelação de Deus não é estática. Ela é encarnada, vital e dinâmica. Cada tempo e cada lugar requerem um testemunho, nesse sentido, novo, atual, encarnado. Teologia que pensa ter resolvido a tensão lei e evangelho, fica a dever à Palavra. Da mesma forma em que, cada teologia que pensa ter resolvido o mistério da revelação, fica a dever à Palavra. Porque a Palavra é Deus que fala a palavra da fé. 7. A palavra é a história de Deus agora O profeta de Deus tem sempre a mensagem de Deus para esse momento da história. Ele é a palavra de Deus agora. Quando Jesus em Nazaré termina a leitura, ele diz que isso se cumpriu agora. A história é a palavra de Deus para esse momento e nesse momento. Assim ele foi entendido. E assim, rejeitado. Essa é a dificuldade que acompanha a teologia luterana e que ao mesmo tempo a desafia ao permanente refazer teológico vital e encarnado. Lutero cresceu num mundo teológico em que de cada lado o agrediam teologias com a solução definitiva, a solução que acabava com a tensão e a dúvida, até a angústia que aguarda o pensar teológico. A dificuldade de enquadrar Lutero 31 Ap IV, 211. Ao comentar a discussão que teólogos ortodoxos mantiveram sobre os sinais vogais do Hebraico, Preus conclui: “Este é um dos capítulos estéreis da história da teologia”. Elert, 195 ss., parece ver na ênfase da ortodoxia posterior sobre a palavra externa o fator que desencadeou a crítica sobre o texto na sua fragilidade como fonte segura do conteúdo da pregação apostólica. 32 C. F. W. Walther, Lei e Evangelho, 2 ed., trad. Vilson Scholz (Porto Alegre: Concórdia, 1998), 27. 33 Idem, 23. 46 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 em uma teologia tem sido vista como resultado da dedicação de Lutero de apontar a presença viva de Cristo e nele Deus com o seu povo. Lutero vive para convencer todos da sua libertadora certeza de que Deus está com o seu povo. Como perceber isso? Na palavra de Cristo, a viva voz do Evangelho. Nesse sentido, os organizadores da Concórdia mantiveram coerência com Lutero identificando a palavra pregada com a palavra que desde a eternidade esteve em Deus e que a palavra escrita preserva e proclama como Palavra de Deus, fazendo com que tanto a palavra escrita quanto a palavra que está sendo proclamada sejam realmente a Palavra de Deus.34 À pergunta de como se pode traduzir conceitos tão vastos e abrangentes como a própria divindade de Cristo e todos os mistérios da fé cristã que insistem em fugir ao domínio da razão, os ortodoxos fizeram o esforço de mostrar a viabilidade de tal empreendimento. É possível escrever claramente a respeito de coisas obscuras, escrever de maneira humilde sobre coisas sublimes, escrever de maneira simples sobre assuntos difíceis e escrever publicamente de coisas ocultas. ...A tocar os mistérios temos de distinguir entre o que (a coisa em si) e o como (o modo). Leio na Escritura que Deus é um em três pessoas, leio que o filho de Deus foi concebido do Espírito Santo e nasceu da Virgem Maria. Ora, se uma pessoa não se contenta com isso e de maneira atrevida pesquisa o como e porque disso, não tem o direito de atribuir obscuridade à Escritura, mas terá todas as razões para condenar a sua própria insolência. 35 A focalização na coisa em si, o objeto do qual a Escritura trata, divide o território da razão e da fé. Somente dessa maneira pode a Escritura ser fonte e norma auto-reveladora. Quando a razão mergulha no como e no por que é necessário que se saiba que a própria Escritura afirma que a razão se confunde. Entretanto, enquanto a razão se concentrar no objeto da revelação, no seu sentido próprio e literal, “a Escritura é clara para qualquer pessoa, mesmo para o não regenerado. Um descrente é capaz de apropriar-se do sentido literal e histórico da Escritura.” 36 Uma vez que a Escritura é respeitada na sua autoridade própria, deixando para ela o direito de ser clara ou obscura conforme as suas próprias intenções, somente assim ela realiza a sua obra de ser a palavra de Deus e levar à fé nessa palavra, que é Cristo, o filho de Deus. 34 Fagerberg, 31. Preus, 313, citando Quenstedt. 36 Idem, 313. 35 47 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 Por essa razão a Bíblia, quando é lida ou proclamada, é uma entidade com caminhada autônoma, própria. Ela fala de maneira a ser a sua própria intérprete. Ela define e distingue o significado direto e o oculto, o histórico e o teológico, e cada uma das outras formas. Para Fagerberg o fato de as Confissões Luteranas não oferecerem uma doutrina sobre a inspiração deve ser acatado seriamente como uma decisão teológica.37 Talvez possamos identificar aí o cuidado de não estabelecer novamente uma autoridade externa sobre a Escritura, pois, até aí, cada vez que isso aconteceu, a Escritura foi limitada e obscurecida. Entenderam então e foi evidente que a Escritura tem autoridade própria que sempre tem em vista Cristo e não o que dele possam pensar pessoas, por melhor intencionadas que sejam. Os entusiastas se louvavam da sua fidelidade à Palavra. Entretanto, desprezavam a palavra externa da absolvição. Lutero identifica nessa atitude a atitude de quem despreza a própria revelação de Deus, o próprio Deus porque Deus está absolvendo. Ele é a Palavra. A igreja e o indivíduo estão na presença de Deus. Instituições e pessoas são instrumentos de Deus, que não substituem Deus. E nessas partes, que dizem respeito à palavra falada, externa, é preciso permanecer com firmeza nisso que Deus a ninguém dá o seu Espírito ou a graça a não ser por intermédio da palavra exterior precedente ou com ela.38 Ora, se a palavra é a ação de Deus, suas intenções, atos e objetivos, a palavra escrita é palavra instrumental para que o ser humano encontre Deus e diante dele se confronte com suas próprias ações. Por essa razão Lutero entende que a Escritura somente pode ser lida teologicamente. Na sua exegese a carta aos Gálatas, distingue entre o fazer moral, fruto da filosofia humana, e o fazer que ele define como teológico. Essa definição para Lutero está na própria natureza da revelação de Deus. Assim isso adquire um sentido totalmente novo. Certamente requer argumentação correta e boa vontade, mas num sentido teológico, não em um sentido moral, o que significa que pela palavra do Evangelho eu sei e creio que Deus enviou seu Filho ao mundo para nos redimir de pecado e morte.Nesse caso, fazer tem um sentido novo, desconhecido da razão, dos filósofos, legalistas e todos os homens, pois aqui se trata de sabedoria oculta no mistério. . . Estes são termos teológicos, não naturais, nem morais (1Co 2.7).39 37 Fagerberg, 30. AE VIII, 3 ss. 39 LW 26, 262. 38 48 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 Dessa revelação dinâmica de Deus (Rm 1.16) nasce a fé que abre a compreensão de Deus. Em Lutero isso é tão absoluto que a própria narrativa da criação é objeto de fé tão-somente. Uma vez que a fé o aceita, a razão pode elaborar a verdade revelada “Essas palavras do Espírito Santo, tiradas de Moisés no primeiro capítulo de Gênesis (1.3): ‘Haja luz’ são incompreensíveis a qualquer razão ou sabedoria humanas, independente da capacidade de compreensão.”40 Da mesma forma, ao tratar as parábolas, que até então eram vistas como ilustrações de uma moralidade geralmente aceita, “Lutero levou a sério a fórmula de introdução: ‘O reino de Deus é semelhante a...’ Ele as interpretou como descrições de como Deus age no seu reino.” 41 8. A dimensão divina da palavra proclamada Essa força dinâmica da palavra de Deus revelada na Escritura Sagrada levou posteriormente os luteranos a tentar sistematizar e tornar compreensível esse fenômeno, ao qual nem a Bíblia, nem as Confissões mostram interesse em definir quanto ao como. Mesmo que se diga que os teólogos da ortodoxia levaram esse esforço para além das intenções dessa mesma revelação, permanece o fato de que a revelação de Deus é inseparável da Escritura. E por isso mesmo a Escritura Sagrada mais quer ser do que o veículo. Mas permanece o veículo que Deus materializou. Isso nos traz de volta à questão da dinâmica da revelação. Se ela revela e revela com o objetivo de ser proclamada e proclamada para ser crida, ela deve ser vista, segundo autores como Schlink e então Fagerberg a partir dessa sua função. Mesmo não concordando com Schlink em todos as suas conclusões, entretanto a reflexão é posta por Fagerberg. Em Schlink, o peso da autoridade da Escritura e seu uso teológico pende para a sua função. A Bíblia, o texto, não é, por si só, um meio da graça, mas ela é um meio da graça somente em conexão com a sua proclamação. Com isso não se pode anular o fato de que fora da Escritura Deus não se revela salvador, ou na sua natureza própria. Enfatizase, entretanto, o compromisso teológico da proclamação como o verdadeiro fazer teológico, pois mesmo a palavra escrita é proclamação. Fagerberg se vale da argumentação de Schlink para abordar o aspecto mais dinâmico da revelação de Deus conforme percebido em Lutero e nas Confissões, quando esse afirma que a autoridade da Bíblia não está na palavra enquanto texto escrito mas na palavra falada, o evangelho, endereçado e pregado aos homens.42 Entretanto, a função não pode ser divorciada da palavra que lhe dá origem e confirmação: a palavra escrita.43 40 LW 22, 10. Pelikan, 60, 61. 42 Fagerberg, 30. 43 Idem, p. 31. 41 49 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 A proclamação tem esse caráter no entender da teologia luterana de ser ato divino. A Apologia44 afirma que a palavra da absolvição já não é nossa palavra, mas é a voz do evangelho. Na edição alemã: “a própria voz do Senhor Jesus Cristo, nosso Salvador”. Essa convicção levou Lutero a confrontar-se com a dimensão do que aí se afirma: “Se é verdade que não sou capaz de expressar completamente os pensamentos do meu coração, quantas mil vezes menos será possível a mim o compreender ou expressar a palavra ou a conversa que Deus tem no seu ser divino.45 A pesquisa lingüística moderna torna a questão mais aguda, talvez porque afirma para o nosso tempo o colapso da linguagem enquanto meio de comunicação mesmo que minimamente confiável. Se estamos convencidos da dificuldade de efetivamente transmitir conteúdos e fazermo-nos entendidos, quantas mil vezes maior é o desafio de compreender e transmitir o conteúdo do coração de Deus, sua Palavra, o próprio Cristo? O apóstolo Paulo, em uma de suas marcantes frases sobre a ação de Deus na pessoa, declara que “a fé vem pelo ouvir, e ouvir da Palavra de Deus”. A ênfase do argumento de Paulo não está tanto na forma em que Deus converte, mas no ato da proclamação, pelo qual Deus se faz presente neste momento da história.. Ainda no primeiro capítulo de João, Lutero reconhece essa realidade a partir da afirmação da divindade de Jesus. Decisivo é o fato de que essa Palavra é a palavra criadora de Deus. Não meramente uma criação na visão Tomista de Primeira Causa, mas de Deus que cria continuamente pela palavra. Ela, a palavra, é vida. Sem ela não há vida. Somente ela pode iluminar e dar sentido à vida. Essa palavra foi ouvida na voz dos profetas. Ela própria, encarnada, fez-se ouvir. E continuou sendo ouvida através dos apóstolos e agora é ouvida na voz daqueles que crêem no evangelho.46 Entretanto e citando Jesus (Jo 3.19) e o apóstolo Paulo em 2 Ts 2.10-11, Lutero lamenta que tanto pregadores, como a própria igreja, preferem andar numa luz própria e não na luz que é a palavra, a mesma, a própria que fala desde a criação. Em Lutero a fidelidade à palavra está para além de uma discussão acadêmica em estilo “erasmiano” de busca da verdade que engenho humano reconhece. Diante da Palavra, Lutero está na presença viva do Senhor Jesus Cristo. Ele fala. A palavra é a palavra que continua criadora na proclamação. Por essa razão, todo encontro com a Escritura é um encontro com a luz que cria e mantém a vida, a única vida que se pode ter. 44 Ap XII, 2. LW 22, 11. 46 LW 22, 34-35. 45 50 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 A presença real de Cristo não está, em Lutero, circunscrita ao Sacramento. Em Lutero, onde está a Palavra, aí está o próprio Senhor. O modo como Deus está presente ficou evidenciado pela encarnação. Ele está tão presente como esteve então junto dos seus discípulos. A sua pessoa e palavra acalmaram o mar, curaram doentes, alimentaram o povo e despertaram fé. Sua presença é real e viva. A teologia luterana sempre manteve clareza quanto à diferença entre palavra humana e divina. Fala-se em palavra de Deus indireta. Entretanto, em Lutero, a palavra humana recebe a encarnação da palavra divina, assim como no pão se oculta o corpo e na carne se oculta Deus. A palavra, que é Deus, está oculta na palavra que hoje anuncia e proclama a palavra de Deus. Essa identificação torna tanto mais sério o compromisso de fé e fidelidade à palavra revelada. Até que ponto em nosso fazer teológico nos damos conta desse compromisso, desafio ou até dificuldade? Com que espírito nos aproximamos do encontro diário com a Palavra enquanto objeto de nosso estudo? O estudo teológico começa pela fé na palavra como a própria palavra de Deus. Se isso poderia parecer ingenuamente óbvio, não o foi para Lutero. A presença da graça de Deus em Cristo, ligada intimamente ao sola Scriptura e sola fide foram o fundamento que Lutero identificou para seu fazer teológico. Pois quando a palavra humana, o saber do ser humano, encontram a Palavra, renova-se permanentemente a tentação de reduzir o divino ao humano. 9. A linguagem da razão e a linguagem da fé Aí a pergunta é: O que é comunicável na comunicação humana? Podemos ilustrar esse tema com a experiência narrada por um pastor. Diz ele que durante anos esforçou-se em realizar cultos e sermões significativos voltados para a família por ocasião do Dia das Mães e do Dia dos Pais. Questionou-se, entretanto, certo domingo sobre a sua prática quando uma senhora, ao final do culto, disse:”Pastor, acho que não virei mais ao culto nesses dias festivos da família. O senhor, quando fala, tem em mente e transmite que a família que Deus aprova é aquela que tem papai, mamãe e filhos. Nunca o senhor considerou a minha família como família da qual Deus se agrada ou cuida.” O pastor nunca se dera conta de que ao promover a família como objeto do amor de Deus, ao mesmo tempo deixava entendido para aquela mulher de que ela, sendo separada e com filhos, pertencia a uma categoria não contemplada na palavra de Deus. Bertrand Russel diz que a linguagem pode ser usada para expressar emoções ou para influenciar o comportamento de outros. Ela não pode ser 51 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 limitada como mero instrumento de afirmação de fatos ou meio de passar informações. Quando constatamos que um certo conjunto de circunstâncias causa uma certa emoção, e certo tipo de emoção causa um certo tipo de ruído, e que certo tipo de ruído permite a um observador ter informação sobre o sentimento e as circunstâncias ligadas a esse sentimento, sabemos que o ruído é mais do que simples ruído. É comunicação. Linguagem, por isso, é meio de externar e publicar nossa experiência pessoal.47 Esse compartilhar experiência, se por um lado permite a aproximação, também acaba por denunciar a distância que separa as pessoas. E Russel conclui: “A linguagem, apesar de ser um instrumento útil e mesmo indispensável, é um instrumento perigoso, pois sugere um caráter definitivo, esclarecedor e de quase permanência nos objetos que a física parece mostrar que não possuem”.48 Diante disso, resta ao filósofo a tarefa de buscar a verdade não como o faz a mente matemática que constrói o belo a partir de resultados previstos. Esta tentação de elaborar a partir de certezas previstas deve ceder lugar à busca muito limitada da verdade. Ashley Montague defendeu a teoria de que as palavras que usamos servem como condicionadores que influenciam os nossos pensamentos, sentimentos e comportamento. Parte do princípio de que o significado da palavra está na ação que ela produz.49 William Moulton lembra que, em geral, as pessoas partem do pressuposto de que a linguagem compõe-se essencialmente de dois ingredientes: som e significado. Entretanto som e significado não são a linguagem, mas manifestações do que chamamos linguagem. Isoladamente pouco significam. O sentido está na correlação entre ambos e isso não obedece necessariamente ao mesmo padrão para diferentes pessoas e épocas. O significado de algo depende completamente do som que lhe é agregado e vice-versa.50 Noam Chomsky é taxativo em dizer que existe no ser humano uma estrutura de compreensão e produção de linguagem que é comum a todas as línguas e inata ao ser humano. Entretanto, essa absoluta variedade de resultados não permite ao estudioso encontrar essa estrutura que determina os universais lingüísticos.51 A ciência lingüística hoje parece concordar com o pressuposto de Lutero 47 Apud Joseph A. de Vito, ed. , Language – Concepts and Processes (New Jersey: Prentie Hall, 1973), 40 ss. Idem, p. 45. 49 Apud Joseph A. de Vito, 146. 50 Apud Joseph A. de Vito, 112 ss. 51 Apud Joseph A. de Vito, 108. 48 52 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 de que a linguagem humana é incapaz como instrumento para dar sentido à existência humana. A razão como instrumento do fazer teológico se sobrepusera à fé. A razão, como controlador externo da Escritura, capturara um sentido que julgava suficiente e definitivo para a Escritura. Para Lutero, qualquer certeza que não partisse da fé, e esta submetida à revelação de Deus, era vista como ameaça à palavra. “Eck acreditava que era inconcebível que alguma passagem da Escritura pudesse contradizer a fé católica. Por isso, cada passagem, em certo sentido, seria sempre uma ilustração da fé católica, que era uma interpretação a priori da Bíblia”.52 Lutero permanentemente se impôs a qualquer tentativa de fugir ao sentido da palavra como ação permanente de Deus. Lutero se antecipa no tempo ao entender que o sentido da palavra está no efeito que ela produz. A ênfase de Walther em Lei e Evangelho também é a ênfase que liga o sentido ao efeito. O sentido em si nada é sem o efeito produzido que a ele adere tanto em Lei quanto em Evangelho.53 E a ligação entre o efeito e seu significado também para Lutero estava no som, a palavra, que é fiel à revelação, o evangelho, que desperta pensamento, sentimento e ação. A correlação está estabelecida na Escritura. CONCLUSÃO 10. A palavra é palavra encarnada na linguagem Razão porque o ministério da palavra em Lutero e nas confissões é um ministério do som, ministério da palavra oral,54 falada com clareza e pureza, fiel à função e efeito que ela pressupõe: comunicar salvação salvando, o que ultrapassa o conhecimento natural, humano e somente pode ser assumido pela fé. Essa fidelidade, portanto, se manifesta na proclamação da palavra quando o sentido que está no texto se torna, por sua vez, sentido para quem fala e para quem ouve. A pergunta: ‘O que significa esse texto’ sempre é feita no presente, pressupondo pelo menos uma pessoa com quem o texto/Cristo fala agora. Cristo, entretanto, não procura meramente informar alguém. Ele é salvação que busca ser proclamada agora. A linguagem da fé é a linguagem da revelação. Esta está oculta e encarnada (enverbada) na linguagem da razão. Com a diferença de que a linguagem da razão é serva absoluta da linguagem da fé, como o crente é servo 52 Pelikan, 113. Walther, 27, 33, 37, 55, 93. 54 Pelikan, 65. 53 53 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 de Cristo, o Senhor. Uma vez feita essa inversão de postura, que exige permanente esmurrar a carne, na linguagem do apóstolo Paulo, todos os resultados da melhor pesquisa lingüística e recursos da comunicação são divinizados para a melhor proclamação da palavra que é Deus Para Lutero essa é única e derradeira proteção contra toda a inteligência e esperteza argumentativa dos adversários e toda a autoridade daqueles que racionalizam para obterem controle pessoal, externo sobre a revelação de Deus, anulando assim a palavra, esvaziando-a do seu conteúdo e sentido próprios da sua dinamicidade e atualidade. 54 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 AUXÍLIOS HOMILÉTICOS PRIMEIRO DOMINGO APÓS PENTECOSTES Deuteronômio 4.32-34, 39-40 26 de maio de 2002 CONTEXTO O livro de Deuteronômio é como um testamento de Deus para o seu povo, pronunciado pelo servo Moisés. Através de uma série de discursos (sermões), Moisés, o grande líder, exorta-o a permanecer fiel ao Deus que se revelou graciosamente ao povo que era totalmente escravo. O texto em destaque para este domingo está inserido no primeiro grande discurso (1.1-4.43) e é a parte final deste discurso. Por isso, como conclusão retoma aspectos importantes do discurso, encerrando com o mais puro evangelho vindo da parte de Deus. Sugiro a leitura deste discurso para acompanhar a conclusio de Moisés. Outro aspecto importante a lembrar, especialmente quando enfatizamos a ação da igreja durante o período do Pentecostes, é de partirmos da ação da Trindade de Deus em nosso favor, como base para qualquer ação e reação como seu povo. Nada melhor para nossa vida de cristãos do que de percebermos Deus agindo em e através de nós. TEXTO E NOTAÇÕES HOMILÉTICAS Vv. 32-34 - “Para que eu lhe pertença e viva submisso a ele em seu reino” são as palavras chaves de Lutero para o seu catecismo. Também, podemos aplicá-las a esta passagem bíblica. Assim como nós olhamos para um momento crucial na história da nossa salvação, a obra de Cristo vicária, tão bem resumida por Lutero no segundo artigo do Credo, Moisés faz o povo de Israel olhar para o êxodo de Israel do Egito. O interessante em nosso texto é que Moisés faz a presente geração olhar para um passado anterior e recente. O êxodo proporcionou libertação, mas aquela geração que saiu não poderia viver plenamente sua liberdade; ela teve o deserto pela frente e esta “peneira”, infelizmente pela incredulidade do próprio povo, fez com que poucos que saíram do Egito pudessem realmente entrar na Terra Prometida. Moisés foi um dos que não aproveitou. Observando um passado anteri55 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 or, “desde a criação” como diz Moisés, nada se viu tão gracioso em relação ao homem: a mão poderosa de Deus e seu braço estendido sempre trazem lei e condenação e agora “provas, sinais, milagres e peleja” são o mais puro evangelho para o povo de Israel. Ao observarmos como a mão poderosa de Deus e seu braço estendido agiram quando da saída do Egito, percebemos lei para os egípcios e evangelho para os israelitas. Vv. 39-40 - Nós cremos e confessamos na ação trinitária de Deus em nosso favor. O Credo é o centro de nossa fé e vida. Nesta passagem precisamos observar que a universalidade de Deus passa pelo reconhecimento de fé de sua obra em nosso favor. A proposta de Lutero na explicação do Primeiro Mandamento nos remete diretamente ao Deus do Credo e não a qualquer Deus; e esta identificação requer, além do temer e amar, fé e confiança como Lutero explica no Primeiro Mandamento. No v.40 temos algo semelhante ao que Lutero faz no Quarto Mandamento – o mandamento com promessa. Na relação pai-filho, há promessa para quem vive sob a direção do pai: vida longa está relacionada diretamente ao cumprimento da vontade do pai. Enquanto no cumprir do Quarto Mandamento a nossa vida longa restringe-se a esta vida, em nosso texto Moisés nos diz que teremos vida para sempre. Que caminhada temos pela frente como cristãos que crêem no Deus Triúno? Qual nosso futuro? Assim como Moisés está diante de um povo prestes a entrar na Terra Prometida, assim, como pregadores, estamos diante de um povo que precisa caminhar para um novo céu e nova terra providos por Deus, mas que ainda está a caminho. Lembramos que Moisés não entrou na Terra Prometida; ele foi enterrado na terra de Moabe – o final de Deuteronômio nos diz isto. Mas, Moisés esteve ao lado de Elias no Monte da Transfiguração e isto nos sugere a glória de Deus. Moisés já está lá; estejamos conscientes de que as promessas de Deus não falham pois ele agiu com seu braço estendido em nosso favor para vivermos para ele eternamente. TEMA HOMILÉTICO A proposta é de explorar o que Lutero nos diz no Credo: “Para que eu lhe pertença e viva submisso a ele em seu reino”. Isto nos remete à justificação e santificação, tema apropriado, penso eu, para este culto, pois a mensagem do Pentecostes nada mais é do que a ação do Espírito de Deus que creiamos em Cristo como Salvador e, a partir daí, sejamos submissos à vontade do Pai em seu reino aqui e eternamente. Clóvis Jair Prunzel São Leopoldo, RS 56 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 SEGUNDO DOMINGO APÓS PENTECOSTES Deuteronômio 11. 18-21, 26-28 2 de junho de 2002 LEITURA DO TEXTO E ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Após relembrar sua oração (Dt 3.23-29) pedindo a Deus o direito de entrar na terra de Canaã (vale lembrar que Moisés havia perdido esse direito pela sua própria desobediência), Moisés inicia (cap.4.1ss) seus discursos e exortações ao povo para a obediência. Esses discursos seguem ao longo de todos os capítulos até o nosso texto, com o guia do povo de Israel chamando para a obediência e alertando contra a infidelidade. No capítulo 11, nos primeiros sete versículos, continua com sua exortação à obediência e, a partir do versículo oitavo, começa a mostrar os benefícios dessa obediência. Nos versículos da presente perícope, o texto chega a um gran finale, enfatizando como essa obediência poderia ser buscada, ou seja, colocando a palavra de Deus, todo o ensinamento do próprio Javé, via Moisés, em primeiro lugar. Moisés enfatiza para que estas palavras sejam colocadas no coração, na alma, e atadas na mão, de tal forma que não sejam esquecidas (v. 18). (Séculos após, o profeta Isaías nos consola dizendo que Deus havia de escrever, gravar, nosso nome em sua mão, para jamais esquecer-se dele e, conseqüentemente, de seu servo). Na cultura popular brasileira, talvez até retirada deste texto, temos a idéia de amarrar um cordão no dedo para não se esquecer de um recado, ou algo importante que se tem a fazer. A palavra deveria ser ensinada aos filhos a todo o momento, sentado em casa, andando pelo caminho (v.19). Isso nos faz lembrar que a palavra de Deus não deve ser deixada para ser ensinada na igreja, na escola dominical, ou na instrução de confirmandos. Essa é a função de cada pai/responsável ao longo da vida. Lutero bem lembra no Catecismo Menor que o pai de família deveria ensinar a doutrina cristã para sua casa, toda a casa, inclusive aos servos. 57 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 Moisés continua exortando para que a palavra esteja presente no cotidiano da vida do povo, escrito nos umbrais e nas próprias portas (v. 20), locais, naturalmente, de destaque do dia-a-dia, por onde haveriam de passar a cada momento. A conseqüência da observância da palavra seria a longevidade, as bênçãos sobre toda a descendência (v 21). O Senhor o havia jurado e estava pronto para cumprir seu juramento. Assim como Deus havia colocado a árvore do conhecimento do bem e do mal no jardim e exortado a Adão e Eva que não a comessem, bênção e maldição estavam diante do povo de Israel neste momento (v. 26). O desafio estava lançado e a recompensa, bênção pela obediência, estava posta, bem como maldição pela desobediência (vv. 26-27). Se Adão e Eva haviam desobedecido e Deus mesmo assim enviou seu Filho, mesmo na desobediência, também havia a possibilidade do perdão. Contudo, por que deixar passar a bênção? TEMA A presença cotidiana da palavra de Deus é o princípio de toda sorte de bênção. Agenor Berger Resplendor, MG 58 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 TERCEIRO DOMINGO APÓS PENTECOSTES Oséias 5.15 - 6.6 9 de junho de 2002 CONTEXTO HISTÓRICO Amós, aquele que era pastor de ovelhas em Tecoa, anunciou a mensagem do Senhor a Israel pelo ano 750 AC. Depois veio Oséias. E, na seqüência, aconteceu a conquista de Samaria, pelos assírios, em 721 AC. Oséias, pois, realiza seu serviço numa época em que Israel já havia sido advertido quanto ao seu desvio dos caminhos do Senhor, mas continuava insistindo em neles permanecer; e mais, procurava, até, iludir-se com atos de piedade, por meio dos quais o Senhor pudesse ser levado a querer-lhes bem. Os capítulos 1 a 5 demonstram a infidelidade do povo e as acusações de Deus, chamando-os ao arrependimento. O versículo de 5.15 faz uma ponte que continua em 6. EXEGESE DO TEXTO V.15 – “Irei e voltarei para o meu lugar, até que se reconheçam culpados e busquem a minha face; estando eles angustiados, cedo me buscarão ...” O Senhor, aplicada a correção, assume postura de observador – observador em expectativa. A esperança é de que tenham aprendido a lição e voltem a buscá-lo. O Senhor está sempre “no seu lugar”, lugar de amor, santidade e justiça. Quando os faltosos se arrependerem e desejarem retornar à presença do Senhor, o caminho estará aberto. Com Israel a predominância foi que nos períodos de prosperidade, especialmente sob o governo de Salomão e Jeroboão II, o povo depositava sua confiança em seus próprios recursos, seguia após deuses estranhos e afastava-se do Senhor. Vv. 1-3 – “Vinde e tornemos para o Senhor, ... que rega a terra.” Após muito sofrimento, sem receber qualquer socorro dos deuses estranhos, Israel se lembra do Senhor Javé. O profeta representa os pensamentos e as palavras dos próprios israelitas no seu desespero. As alianças políticas não alimentam mais qualquer esperança; agora desejam o so59 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 corro do Senhor, seu Deus. “Vinde e tornemos” – expressa que a decisão de voltar precisava partir do próprio povo; uma decisão de desapegar-se de tudo o mais, para apegar-se unicamente ao Senhor. Nos vv. 1 e 2, porém, revela-se a falta de verdadeiro arrependimento; a idéia ainda é que Deus pode ser comprado facilmente; Deus deve estar de braços abertos, aguardando-os. “Ele nos sarará”, “nos levantará, e viveremos diante dele” são expressões que indicam a superficialidade do sentimento religioso do povo. Quando o reconhecimento de que era necessário conhecer melhor ao Senhor surge, já é tarde demais; de nada adianta citar belos conceitos e grandes doutrinas teológicas se não se entende seu significado e não se pretende viver de acordo com eles. Vv. 4-5 – “Que te farei ... sairão como a luz.” A nuvem da manhã (neblina) e o orvalho da madrugada são elementos de passagem rápida; a eles é assemelhado o amor deste povo. Diante desta instabilidade, o Senhor vai agir, vai abater (cortar) por meio dos profetas – é anúncio do julgamento de Israel por causa de sua apostasia. V. 6 – “Pois misericórdia quero, e não sacrifício; e o conhecimento de Deus, mais do que holocaustos.” Pois eu quero Dsh - é o termo traduzido como “misericórdia”, significando algo como amor firme, fiel, constante. É palavra que tem íntima relação com a revelação de Deus em suas providências na história de Israel, acentuando o amor fiel do Senhor. Assim como Oséias, também outros profetas concordam quanto à influência negativa dos sistemas de sacrifícios na vida religiosa de Israel (Am 5.21-24; Is 1.11, 14-17; Mq 6.6-8; Jr 7.21-22). A mera manutenção dos rituais de sacrifícios era entendida como suficiente para que o agrado de Deus os acompanhasse. Sacrifícios e holocaustos não são em si práticas detestáveis; quando, porém, estão desacompanhados do exercício de misericórdia e do conhecimento de Deus, tornam-se objeto de rejeição por parte do Senhor. Também Jesus, em seu ensino a respeito da religião do amor na vida, oposto ao formalismo dos fariseus, cita a passagem de Oséias (Mt 9.13). APLICAÇÕES HOMILÉTICAS 1 - Quando a pessoa se afasta dos caminhos do Senhor, ele a busca, por meio de eventos, sinais (chamadas que precisam ser percebidas), e aguarda “no seu lugar”, na expectativa de que ocorra arrependimento sincero e volta. 2 - Idéias piedosas não são a mesma coisa que arrependimento verdadeiro; podem enganar as pessoas, mas jamais enganam o Senhor. 3 - A busca pelo conhecimento do Senhor precisa acontecer enquanto há tempo. 4 - Usar de misericórdia e conhecer o Senhor são quesitos primeiros para a vida cristã; sacrifícios e holocaustos são conseqüências. 60 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 ALGUMAS IDÉIAS HOMILÉTICAS Introdução O contexto histórico que hospeda a perícope. - A teimosia de Israel em não atender à voz do Senhor por intermédio dos profetas. - Diante do aperto, a volta superficial (erramos, mas não somos tão maus assim...). - A postura reta, justa e insubornável do Senhor (castigo para o transgressor impenitente). - O desejo do Senhor: compartilhamento do amor e vivência por caminhos retos e úteis aos semelhantes. Conclusão Diante da conscientização de nossos desvios e omissões, o recurso só pode ser encontrado na misericórdia, no amor e perdão de nosso Deus, por meio de arrependimento sincero. Nelson Lautert Curitiba, PR 61 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 QUARTO DOMINGO APÓS PENTECOSTES Êxodo 19.2-8a 16 de junho de 2002 Estamos no início da segunda metade do ano eclesiástico, também chamada de semestre da igreja; a ênfase está no crescimento espiritual do povo de Deus. A cor litúrgica verde expressa essa verdade. A leitura do Antigo Testamento para o quarto domingo após Pentecostes vem do segundo livro de Moisés, chamado Êxodo. Quanto ao contexto litúrgico e o relacionamento desta leitura com as outras leituras podemos observar o seguinte: O Salmo do dia, Salmo 100, fala no versículo 3 que o Senhor é Deus e nós somos o seu povo, e nos chama para servir o Senhor com alegria (v.2). A leitura da Epístola, Romanos 5.6-11, faz parte da lectio continua desta carta do apóstolo Paulo, que começou no segundo domingo após Pentecostes (3.21) e se estende até o décimo sétimo domingo após Pentecostes (14.9). Não há relacionamento direto com o Antigo Testamento, mas convém ressaltar a reconciliação através de Cristo, que forma a base para alguém pertencer ao povo de Deus. O Evangelho de Mateus, 9.35-10.8, também faz parte de uma lectio continua, e de fato determina o caráter e o tema dos domingos após Pentecostes. O Antigo Testamento foi escolhido em função do Evangelho. Ouvimos a respeito da escolha e do envio dos discípulos de Jesus. Quanto ao contexto histórico, somos trazidos aos tempos em que o povo de Israel tinha sido recentemente libertado da escravidão no Egito. Com sua poderosa mão o Senhor Deus libertou o seu povo e o leva para a terra prometida. Mas não antes de renovar a sua aliança com o povo. No versículo anterior ao nosso texto somos informados que era no terceiro mês da saída dos filhos de Israel da terra do Egito. Sob a liderança do seu servo escolhido, Moisés, Deus tinha feito o povo passar de forma milagrosa o Mar Vermelho, da mesma forma transformou águas amargas em boas para beber em Mara, deu ao povo o maná e codornizes, fez sair água da rocha em Refidim, deu a vitória ao seu povo na luta contra os amalequitas. Após o encontro de Moisés com o seu sogro Jetro, o povo chega ao Sinai. 62 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 V.2 – “deserto do Sinai” – Lugar que fica na península do Sinai. O marco principal sem dúvida é o monte Sinai, também identificado com o monte Horebe (cf. entre outros Êx 33.6, Dt. 1.2, 1Rs 8.9, At 7.30-34). Lugar da teofania, Deus se revela gracioso com o seu povo e renova a aliança anteriormente feita com Abraão, Isaque e Jacó. V.3 – Vemos no texto um ciclo: Deus fala com Moisés (v.3), Moisés fala com o povo (v.7), o povo responde e fala com ou para Deus (v.8). V.4 – O Senhor lembra a Moisés o que fez pelo seu povo. Usando a ilustração da águia ele lembra o êxodo e ao mesmo tempo a eleição e adoção do seu povo. Deus salva o seu povo e o leva a ele (“vos cheguei a mim”). Vv.5,6 – Uma aliança envolve duas partes. Renovação da aliança significa não somente a ação de Deus, mas também em ouvir a voz de Deus e guardar a aliança por parte do povo. Aí sim, o povo é realmente povo de Deus. Toda a terra e tudo o que nela há é de Deus, mas o seu povo escolhido será uma propriedade peculiar dele. E mais ainda: também um reino de sacerdotes e uma nação santa. Nos vem à mente a explicação do segundo artigo no Catecismo Menor: “... me resgatou e salvou de todos os pecados, da morte e do poder do diabo ... para que eu lhe pertença e viva submisso a ele, em seu reino, e o sirva ...”. Também as palavras do Salmo 100 e da primeira carta de Pedro 2.9 cabem perfeitamente aqui. Menção particular para “nação santa”. No original lemos goi qadosh, sendo goyim normalmente usado para os povos gentios. Mas agora o povo se torna propriedade de Deus e, portanto, se torna uma nação santa. O mesmo acontece com as pessoas que são levadas à fé em Cristo. Sendo o povo de Deus, em outras palavras a igreja, um reino de sacerdotes, significa que a igreja não está aí para reinar sobre outras pessoas, mas para servi-las, levando-lhes o Evangelho da salvação em Cristo Jesus. Vv.7,8 – O ciclo continua e se completa: Moisés fala ao povo as palavras do Senhor, o povo responde positivamente às palavras. Tudo fará o que o Senhor falou. Essa também deve ser a resposta de cada cristão em sua vida. Ouvir a voz, a palavra, de Deus, guardar a sua aliança, que Deus fez com cada cristão no batismo, ser um sacerdote do reino vivendo uma fé ativa no amor, testemunhando a ação de Deus em sua vida. Vemos que assim no Sinai Deus executa mais um passo no seu plano para a salvação do mundo, que se concretizará com a nova aliança pelo sangue de Cristo. No sermão podemos mostrar o que Deus fez para nos tornar os seus filhos. Tanto a explicação do segundo como do terceiro Artigo se aplicam 63 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 aqui. Após isto, o que significa pertencer ao povo de Deus? O lema da IELB: Missão de Deus – Desafio da Igreja pode ser maravilhosamente aplicado aqui. Apesar de que melhor seria dizer “tarefa” da igreja, em vez de “desafio” da igreja. DISPOSIÇÕES: O povo de Deus 1. Deus chama o seu povo (justificação) 2. santifica o seu povo (santificação) 3. envia o seu povo (missão) A igreja é propriedade peculiar de Deus 1. Deus leva o seu povo sob asas de águia (graça, salvação) 2. A obra de Cristo pela ação do Espírito Santo faz a igreja santa e peculiar 3. Deus dá o privilégio de trabalharmos como sacerdotes em seu reino, fazendo a sua missão. Gijsbertus van Hattem Antuérpia, Bélgica 64 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 QUINTO DOMINGO APÓS PENTECOSTES Jeremias 20.7-13 23 de junho de 2002 CONTEXTO Jeremias relutou em aceitar o chamado profético, mas aceitou-o diante da promessa de Javé: Não temas diante deles, porque eu sou contigo para te livrar (1.8). Sua pregação, no entanto, começa pela denúncia do pecado de Judá e o castigo inevitável. Já no final do capítulo 11 ele descobre planos para eliminá-lo, e queixa-se perante Deus. Mas após a cruel e humilhante punição imposta por Pasur (20.1-6), diretor do templo, Jeremias desabafa. É provável que os vv. 14-18 antecedam 7-13, caso tenham sido proferidos em seqüência. Após amaldiçoar o seu nascimento, Jeremias protesta contra Javé, até recobrar a confiança na justiça de Deus e conclamar a comunidade ao louvor. A partir de então, Jeremias passaria a nomear os culpados: os reis de Judá, os falsos pastores e profetas; o cativeiro viria através de Nabucodonosor. TEXTO tP’a,w” hw”hy> ynIt;yTiPi (v.7) – htp expressa idéia mais forte do que a tradução de Almeida deixa transparecer. Antes cauteloso (15:18), Jeremias agora desabafa sem meias palavras: Tu me enganaste, Javé, e enganado fui! Javé prometera e não cumprira. Jeremias protesta por causa dos sofrimentos a que se encontra sujeito em virtude da mensagem que lhe cabe proclamar, especialmente o relatado nos vv. 1-6. Como Jó, Jeremias define Javé como o seu inimigo (“foste mais forte e prevaleceste”), a causa da sua perseguição. Embora soe ofensivo e mesmo como blasfêmia, trata-se do grito de desespero de quem se entregou de corpo e alma à proclamação profética e depara-se com orgulho e ódio ao invés de arrependimento. O próprio Lutero teria dito: Às vezes é preciso acordar a Deus com palavras deste tipo. Doutra forma Ele não ouve. Este é um caso em que Jeremias está realmente murmurando. Cristo falou assim: “até quando estarei convosco?” (Mc 9.19). Moisés chegou ao ponto de 65 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 lançar as chaves aos pés de Deus quando perguntou: “Concebi eu, porventura, todo este povo?” (Nm 11.12). Não pode ser de outra forma. É irritante quando se tem a melhor das intenções mas as coisas não saem bem. Isto é certamente murmúrio. Eu faço o mesmo, e não consigo me livrar da idéia de que eu jamais deveria ter iniciado (a pregação da Palavra?). Assim, só os teólogos especulativos é que condenam essa impaciência e recomendam paciência. Se eles colocarem os pés no chão, eles se darão conta disso. (Luther’s Works 54:30-1) q[‘z>a, (v.8) – q[z, usado quase como termo técnico para o clamor do oprimido (cf. Êx 2.23; Jz 6.6-7; Sl 107.13,19; Jn 1.5; Hc 1.2 etc.), indica que Jeremias não se refere ao conteúdo da sua pregação, mas à sua própria angústia. Sugere, no entanto, que Israel deveria juntamente com ele clamar por misericórdia, ao invés de permanecer surdo e perseguir os profetas que anunciam o juízo merecido, cf. os Salmos 44 e 79, onde o par slq/ /hprx é igualmente usado (44.13; 79.4), provavelmente já durante o exílio. tr,[,Bo vaeK. yBilib. (v.9) – Apesar de sua situação, o profeta não pode calar. A palavra de Deus não é menos poderosa no Antigo Testamento: Jeremias testemunha o mesmo poder que os discípulos de Emaús, Pedro, João e Paulo experimentaram (Lc 24.32-33; At 4.20; 2Co 5.14; cf. ainda Am 3.8). Os verdadeiros mensageiros da Palavra de Deus são impulsionados pelo Espírito, não por sua própria decisão. E não se abatem pela surdez ou perseguição dos seus opositores. bybiS’mi rAgm’ ~yBir; tB;DI yTi[.m;v’ yKi (v.10) – Exatamente a mesma frase ocorre no Sl 31 (v.13), que bem poderia ter Jeremias como autor. A expressão “terror por todos os lados,” é – à exceção da passagem acima – exclusiva e típica de Jeremias (6.25; 46.5; 49.29). Aparentemente, os muitos que repetem a frase parecem acusar Jeremias de rogar pragas contra a nação, identificando seu uso freqüente, mas especialmente em 20.3, como a causa do perigo que o crescente poderio Babilônio representa. Vê-se que, já naquela época, atacar alguém do status de Pasur implicava ser rotulado como conspirador. Note-se que a crítica de Jeremias é dirigida contra os próprios guardiões do templo (7.4-11). Como seria Jeremias recebido na IELB? Em minha congregação? #yrI[‘ rABgIK. ytiAa hw”hyw: (v.11) – O vav adversativo rompe com o lamento e subitamente apresenta um Jeremias confiante, liberto da angústia. Agora ele afirma que Javé não o esquecera, nem era seu real inimigo. Pelo contrário, Javé está ao seu lado como um guerreiro valente cuja mera presença 66 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 já inspira terror (#yr[, que em 15.21 descreve os inimigos de Jeremias) nos adversários. A mão invisível de Javé não deixa de revelar a sua graça ao profeta, e mesmo que o curto período em que o profeta se vê desamparado exerce sobre ele um efeito devastador, ela é suficiente para erguê-lo da vergonha para a glória, do lamento para o louvor. O castigo aos perversos, ao contrário, dura para sempre (~l’A[ tM;liK.) e não é esquecido. Esta transformação conduz o profeta ao ápice da passagem: ao invés do lamento, o canto; ao invés da maldição ao dia do seu nascimento, o louvor ao Deus que livra o pobre das mãos dos perversos (v.13). PROPOSTA HOMILÉTICA I. Deus nos chama a testemunhar II. O mundo e nosso velho homem rejeitam este testemunho III. Mas Deus está conosco Ele fará a sua palavra arder nos corações Ele nos erguerá da aflição para o júbilo Gerson L. Flor Windsor, ON, Canadá 67 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 SEXTO DOMINGO APÓS PENTECOSTES Jeremias 28.5-9 30 de junho de 2002 CONTEXTO LITÚRGICO/HISTÓRICO Israel já estava no cativeiro da Babilônia. Um profeta, Hananias, pregava que logo o povo voltaria do cativeiro e traria os objetos do templo que haviam sido levados junto por ocasião da invasão dos babilônios. Outro profeta, Jeremias, dizia em sua pregação que o povo ficaria sete décadas, 70 anos, e só depois voltaria. Estava sozinho. Era contestado. Odiado, também. Afinal, quem teria razão? Tratava-se de saber: quem estava falando a verdade? Jeremias propõe uma prova. Valeria ela ainda hoje? Qual era a prova? O texto é atual. O Seminário Concórdia está formando pregadores há quase 100 anos. Pregação é sempre prato do dia. Afinal, pregamos ou vamos ouvir a pregação todas as semanas. E há muitos pregadores. E nem todos dizem a mesma coisa. E igrejas e pregadores estão surgindo em muitas esquinas. Há uma verdadeira indústria. E mais: quem tem razão? Quais são os pregadores que falam a verdade? Jeremias ou Hananias? Que prova podemos sugerir para vermos a verdade? Antes de olhar o texto propriamente dito, olhemos as outras leituras do dia: O Salmo - é 119.153-160. O resumo do salmo é fidelidade à Palavra de Deus. A 2ª leitura é Rm 6.1-11. O resumo é: pela fé em Jesus somos filhos de Deus. A 3ª leitura é Mt 10.34-42. O resumo desta leitura é: a Palavra de Deus divide a humanidade em 68 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 crentes e descrentes. Por isso, Jesus divide. Une todos os que crêem n’Ele e separa todos os que não crêem n’Ele. O TEXTO Vv. 5,6 – Hananias, o profeta, tinha dito: “... Deus me disse ... quebrei o jugo do rei de Babilônia ... dentro de dois anos trarei de volta todos os exilados e também os objetos sagrados...” (vv. 2-4). Jeremias disse: Que bom seria se assim fosse! Humanamente falando: Que bom seria isso! É como hoje falam os pregadores curandeiros e milagreiros. Que bom seria se tudo isso se cumprisse! Não haveria mais hospitais, nem cemitérios, nem ... Há pregadores que pregam o que o povo quer ouvir. Vv. 7,8 – Jeremias tem outra mensagem. Ela aponta para aquilo que os profetas de Deus tinham sempre dito. Eles tinham dito duas coisas: a) Deus usaria Babilônia e seu rei Nabucodonosor como instrumento nas suas mãos. Mesmo sendo rei e país idólatras, Deus os usaria. Ele é Senhor. Depois, sim, viria também a ruína desta e de outras nações ímpias. b) Israel seria levado cativo para Babilônia. A causa: seu pecado e a falta de arrependimento (Jr 21.12; Jr 22.8,). O exílio: 70 anos. Conseqüentemente, se isto o que Jeremias pregava era verdadeiro, então a pregação de Hananias era mentira (v. 15). Não existem duas pregações diferentes certas. Deus é um só. V. 9 – A prova – quem é o profeta verdadeiro e qual mensagem verdadeira. Jeremias propõe no versículo 9 como saber se a mensagem do profeta é de Deus: se ela se cumprir. No nosso texto: a prova seria a volta do cativeiro e a paz. E em vez de volta e paz, continuava o cativeiro do povo. Logo, a mensagem de Jeremias era a verdadeira. Qual a prova hoje? Toda a Bíblia e toda a pregação verdadeira tem seu centro em Jesus. Se esta não for a pregação, tudo é falso e confuso. Mas, qual a prova? 69 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 a) Estamos com a verdade se ensinamos e pregamos o que a Bíblia diz e exposto nas Confissões a respeito de Jesus Cristo no 2º Artigo do Credo Apostólico. Ou, como diz o apóstolo João em 1 Jo 4.1-6: “ ... Nisto reconheceis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus e todo o espírito que não confessa a Jesus não procede de Deus; pelo contrário, este é o espírito do anticristo...” b) Estamos com a verdade quando vemos a fé como resultado da pregação – Rm 10.17 – “.. a fé vem pela pregação e a pregação pela palavra de Cristo”. c) Estamos com a verdade quando cremos que os feitos poderosos de Deus se confirmam na vida dos crentes – 2 Co 13.3. ILUSTRAÇÃO Certo pastor, recém chegado à sua paróquia, fez uma enquete. Propôs que cada membro, à saída do culto, pudesse dizer sobre que assunto gostaria de receber uma mensagem. À saída, muitos expressaram seu gosto. Uns queriam uma mensagem sobre divórcio; outros, sobre pena de morte; uns, sobre casamento e muitos outros temas. Por fim chegou um senhor idoso. Chegou-se ao ouvido do pastor e também queria dizer seu gosto. Ele disse ao pastor: “Fale-nos sempre de Jesus”. Este acertou na mosca o que deve ser nossa pregação. Os jovens de hoje diriam: A resposta deste velhinho “matou a pau.” Alinhavando tema e partes, podemos sugerir: PREGA A PALAVRA: 1 – quer seja oportuno, quer não; 2 – mas que fale de Jesus. Benjamim Jandt Cachoeira do Sul, RS 70 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 SÉTIMO DOMINGO APÓS PENTECOSTES Zacarias 9.9-12 7 de julho de 2002 LEITURAS BÍBLICAS DO DIA Sl 119.137-144: A palavra de Deus é reta (v.137), pura (v.140), a própria verdade (v.142) e o meu prazer (v.143), diz o salmista, mostrando seu desejo sincero de viver na sabedoria de Deus e sua preocupação com os que rejeitam o SENHOR. O SENHOR em sua Justiça ama o seu povo e o quer auxiliar e fortalecer. Rm 7.15-25a: O apóstolo reconhece: a) que a lei é boa (v.16); b) a incapacidade humana para cumprir a lei (vv.15,18); c) o peso da condenação (v.24b); d) a necessidade de salvação (v.24a); e e) a solução está em Jesus (v. 25a). Mt 11.25-30: Jesus agradece a Deus por ter revelado a salvação não através da sabedoria humana, o que poderia levar as pessoas a se gloriarem, mas na humildade dos que confiam e se refugiam na graça de Deus (cf. Ef 2.8-9). Jesus convida os cansados e sobrecarregados a buscarem nele o alívio, pois ele é o único que pode dar descanso à nossa alma. CONTEXTO HISTÓRICO Zacarias estava entre os israelitas que voltaram para Jerusalém do cativeiro da Babilônia. Os temas de suas mensagens, anunciadas entre 520 e 518 a.C., são uma série de visões em que Deus iria preservar o que restou do seu povo, contra todas as nações poderosas que queriam a sua destruição. Os povos gentios seriam destruídos enquanto Israel suportará todas as provações, pois trata-se do povo através do qual Deus enviaria o Messias. Suas mensagens tratam da reconstrução de Jerusalém e do templo, do perdão dos pecados do povo e aspectos da vinda do Messias. Os capítulos 9 a 14 são uma coleção de mensagens a respeito do Messias e do juízo final. Na presente perícope o profeta anuncia a vinda do Senhor da Igreja, o Salvador Prometido. A profecia se cumpriu, segundo Mt 21.5 e Jo 12.15, com a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém. 71 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 A profecia de Zacarias, numa forma mais abrangente, atinge a Igreja do NT. As portas do inferno não irão prevalecer contra ela (Mt 16.18 e Ef 6.1113). Cumpre-se o que diz o salmista: “o anjo do SENHOR acampa-se ao redor dos que o temem, e os livra” (Sl 34.7 e Zc 9.8). Nem as sangrentas perseguições do império romano, nem os falsos ensinamentos e dificuldades puderam destruir a Igreja, pois o SENHOR permanece a cuidar dela. TEXTO E COMENTÁRIOS V. 9 – “Sião” e “Jerusalém” são símbolos que representam o povo de Deus, que aguardava ansioso pela vinda de um Libertador, que agora se aproxima segundo a visão de Zacarias. O “Rei”, descendente de Davi (conquistador do monte Sião e de Jerusalém), virá para cuidar do seu povo, conforme expressam as palavras “eis aí te vem o teu Rei” (cf. Is 9.6). Nenhum súdito, de qualquer país ou época, pode ser tão beneficiado pelo governante como os cristãos o são da parte de Jesus. Ele é “justo” e “salvador”. Não apenas agirá corretamente em todas as ocasiões, pois Pilatos não achou nele crime algum (Jo 18.38), nem alguém o pôde convencer de algum pecado (Jo 8.46), como iria promover a justiça de Deus tornando justos os pecadores, em lugar dos quais ele iria se sacrificar (Jo 1.29; 2Co 5.21; Gl 3.13) a fim de que se pudesse proclamar o evangelho, a boa notícia. Através da qual os pecadores estão absolvidos da culpa de seus pecados (Is 53.11; Lc 24.47). Por tudo isso Sião, a Igreja, pode “alegrar-se muito”, “exultar”, regojizarse, gritar de alegria, pois o nosso Rei lutou e venceu por nós. Jesus veio fisicamente de maneira “humilde”, mas espiritualmente é vencedor sobre todos os poderes que possam ameaçar a Igreja. V. 10 – O profeta fala agora do domínio do Messias. “Efraim” e “Jerusalém” estavam sempre separados e em pé de guerra (1Rs 12.16-20; 14.30; 15.7), mas estariam unidos quando o Messias chegasse (Os 1.11). Ele não teria necessidade de carros de guerra, de cavalos, de armas, nem para defesa, nem para ataque (Zc 4.6), pois ele “anunciará”, isto é, ele iria dominar com a sua palavra (Jo 8.47,51; 18.37). Não anunciará condenação, porém “paz” (Mq 5.5; Lc 2.14) e isto não apenas para Israel, mas também para toda a humanidade: “Ele anunciará paz às nações”. A sua arma é a Palavra, o evangelho. Ainda que esta seja loucura e escândalo para os descrentes (1Co 1.23), ela é espírito e vida (Jo 6.63) e poder para salvação (Rm 1.16). Por meio da Palavra o seu 72 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 reino, a Igreja, se estenderá “de mar a mar, e desde o Eufrates até às extremidades da terra”, isto é, a todo o mundo. É o que acontece com a Igreja em nossos dias. Em toda parte há cristãos, pois o evangelho é anunciado em todo o mundo. Vv.11,12 – Ao estender o seu domínio sobre toda a terra, o Messias não deixará de manter a aliança que fez com Israel no Sinai (Êx 19.5,6), ratificada com sangue (Êx 24.5-8) que prefigura o sangue purificador de Jesus (Hb 9.14-26; 1 Jo 1.7). O sangue que Jesus iria derramar foi o motivo pelo qual Deus preservou e libertou o seu povo “da cova em que não havia água”, a prisão na qual o pecado e Satanás os mantinham. O cativeiro babilônico havia sido para o povo uma cova assim. Foi o castigo pela apostasia (Jr 25.1-11). Desta cova haviam sido libertados. Agora estavam para caírem na cova do desapontamento, do desencorajamento e da incredulidade. Deus assegura pelo profeta que ele está pronto para libertá-los desta cova também. Tão-somente deveriam voltar-se para Deus, “voltai à fortaleza, ó presos de esperança”. “Também hoje vos anuncio”. Ainda que a situação pareça ser muito difícil, como era na ocasião em que Zacarias se dirigiu à Judá, Deus declara que tudo lhes seria restituído em dobro. As dificuldades deles não iriam durar para sempre (1Co 10.13; 2Co 1.3-10; 4.8-18). Há um futuro glorioso que aguarda o povo de Deus. Deus prometeu restituição “em dobro” (Is 40.2; 61.7). A referência é feita à herança em dobro que cabia ao primogênito em relação aos demais irmãos (Dt 21.17; cf. Hb 12.22,23). SUGESTÃO DE TEMA E PROPOSTA HOMILÉTICA O POVO DE DEUS PODE SE ALEGRAR pois: I. Deus nos traz para junto de si II. Deus está conosco e sabe da nossa situação III. Ele é Justo e Salvador IV. Traz a verdadeira paz V. Promete um futuro glorioso Elvio Bender Capitão Leônidas Marques, PR 73 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 OITAVO DOMINGO APÓS PENTECOSTES Isaías 55.10,11 14 de julho de 2002 O DOMINGO NO ANO ECLESIÁSTICO A partir de modificações propostas por igrejas da América do Norte, congregações luteranas da América do Sul e Austrália adotam a nomenclatura de domingos após Pentecostes para todos os domingos que sucedem a celebração da vinda do Espírito Santo sobre os apóstolos reunidos em Jerusalém. Como é do conhecimento geral, as igrejas luteranas da Europa prosseguem denominando esses domingos de após Trindade. O domingo que contemplamos hoje leva conseqüentemente o nome de 8º Domingo após Pentecostes e 7º Domingo após Trindade, nas Américas e Europa respectivamente. Diga-se de passagem que tal nomenclatura restringe-se às Igrejas Luteranas, uma vez que a Igreja Católica Romana chama esse domingo de “Tempo Comum”. A cor litúrgica verde adotada para essa época do ano eclesiástico bem indica a característica desses domingos que se sucedem, sem que maiores celebrações chamem nossa atenção. Há um crescimento que se assemelha ao crescimento das plantas, lento e até invisível aos olhos, mas constante. A igreja avança no tempo, os fiéis são alimentados pela palavra de Deus e os sacramentos. Quem há de estar no culto quando a palavra de Deus for pregada nesse 14 de julho de 2002? Um domingo comum, igual a tantos outros, que trará à igreja um público diferente daquele que costuma estar nos cultos em dias especiais como Natal, Sexta-Feira Santa, Páscoa. Certamente aqueles que habitualmente vêm aos cultos. Talvez, dado o período de férias escolares, algum visitante a acompanhar familiares ou amigos. Ao pregador cabe anunciar a palavra de Deus, Lei e Evangelho. Palavra que é poderosa para gerar vida porquanto meio pelo qual o Espírito Santo cria a fé e a alimenta, como também o faz através dos Santos Sacramentos. O TEXTO Porque, assim como descem a chuva e a neve dos céus e para lá 74 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 não tornam, sem que primeiro reguem a terra, e a fecundem, e a façam brotar, para dar semente ao semeador e pão ao que come, assim será a palavra que sair da minha boca: não voltará para mim vazia, mas fará o que me apraz e prosperará naquilo para que a designei. Isaías tem intimidade com a palavra e com o Senhor que a revela. Seus ouvintes não são muito diferentes dos ouvintes de hoje: pecadores perdidos os quais só podem ser salvos se a graça divina lhes for oferecida. Os versículos objeto de nossa atenção apresentam o contraste: o desalento do coração humano e o poder de criação da palavra de Deus. Somente Deus cria. Pelo poder de Sua Palavra Ele o faz. POSSIBILIDADES HOMILÉTICAS A Palavra é a presença de Deus entre os homens! 1 - Cristo é o Verbo, nEle Deus se faz compreensível. 2 - Ele (o Verbo) se manifesta continuamente nos meios da graça (Palavra e Sacramento). 3 - O poder transformador da palavra de Deus na vida das pessoas (hoje e sempre); no Universo novo a ser revelado. Gilvan L. C. de Azevedo Windsor, ON, Canadá 75 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 NONO DOMINGO APÓS PENTECOSTES Isaías 44. 6-8 21 de julho de 2002 CONTEXTO Estamos vivendo agora o período pós-Pentecoste. Um bom período para a Igreja refletir sobre o seu crescimento e desenvolvimento. Tratar da expansão , da divulgação de uma mensagem clara são itens imperiosos para que ela não permaneça confinada às paredes dos templos, mas saia, supere barreiras e “não volte vazia”. Os capítulos 44 e 45 de Isaías são uma previsão da volta de Israel do cativeiro, sob Ciro, com ênfase especial sobre o poder exclusivo de Deus de predizer o futuro. Ciro, rei da Pérsia, reinou em 539-530 a. C., consentiu que os israelitas voltassem para Jerusalém e expediu um decreto autorizando a reedificação do templo. Isaías profetizou cerca de 150 anos antes de Ciro. Todavia, chama-o pelo nome e prediz que ele reconstruirá o templo o qual, nos dias de Isaías, ainda não tinha caído. O ponto a destacar no texto é a superioridade de Deus sobre os ídolos. Sua capacidade de predizer o futuro, profetizar, enfatizam a sua condição de Deus soberano. Isaías ridiculariza os ídolos e seus adoradores, pois tais ídolos são produtos da imaginação humana: não falam, não vêem, não ouvem! Mas, “o nosso Deus”, diz Isaías, não só pode fazer o que os homens fazem, como é capaz (poder) de fazer coisas que os homens não podem executar. Isaías convida os povos para uma conferência de deuses; questiona se alguma nação tem em sua literatura predições de fatos que aconteceram depois. Há uma identificação bem clara de quem é o nosso Deus, o que ele é capaz de fazer em contraposição aos ídolos e falsos deuses cuja existência deve-se exclusivamente à imaginação do homem e à tradição humana. Este Deus formou e escolheu uma nação para si. E, mesmo em flagrante desobediência e rebeldia, ainda era a nação de Deus. Deus não abandona o seu povo. Não deixa de investir nele, apesar de constante afastamento e rejeição. Continuamente procura dar demonstrações de seu poder para que todo o mundo veja que somente Ele é Deus. 76 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 É preciso salientar que um elemento muito importante na aliança de Deus com seu povo é a obediência. Deus a espera, a deseja de seu povo. Um dos maiores pecados do povo é justamente abandonar o seu Deus e Senhor, que se identifica como Rei e Salvador, e trocá-lo por outros. Ele se apresenta como “primeiro e último” para determinar a amplitude de seu poder e confirmar a condição de “Todo-Poderoso”. Este Deus pode anunciar juízo iminente ao povo rebelde. Há uma clara determinação de Deus para reafirmar a unicidade deste Deus. Ele é único, soberano, não existe outro igual. APLICAÇÕES HOMILÉTICAS O povo, distante de sua terra natal, vivendo o exílio na Babilônia, está muito abatido. Deus então leva a todos eles uma palavra de esperança. Deus prometeu libertação ao povo. Quer que o povo confie nesta palavra. Por isso apresentou-se como Senhor. Este Deus garante que não existem outros deuses, por isso ele mesmo se apresenta “como único Senhor e Deus”. Sem dúvida, conhecendo o histórico rebelde de seu povo, Deus procura demonstrar-lhes, num contexto maior, que a multidão dos deuses, feiticeiros e encantadores da Babilônia não teriam nenhuma chance contra os exércitos de Ciro. Reitera-se mais uma vez o poder único de Deus, de vaticinar e de dirigir o curso da história. De um lado, Deus protege o seu povo e depois desafia os deuses das nações a mostrarem capacidade de predizer o futuro. Tão clara são as visões do profeta Isaías que ele fala do futuro como se já estivesse no passado, o que é também uma característica da visão profética. COMENTÁRIOS HOMILÉTICOS O pregador poderá escrever uma mensagem ou estudo enfocando a esperança do povo de Deus. Pois o povo de Deus necessitou muito de esperança. Vivendo longe de sua terra natal, com saudades do templo e das cerimônias e do contato com as coisas sagradas do templo, o povo é incentivado a esperar. Deus prometeu libertação ao povo e queria que o povo realmente confiasse nas suas promessas, pois ele é o primeiro e o último. Além dele não existe outra divindade, outro deus que possa estar credenciado a prometer e garantir a execução da promessa. SUGESTÃO DE TEMA E PARTES Tema: Deus é a esperança do seu povo I. Mostrando-nos que ele é Rei e Salvador II. Garantindo-nos que não existe outro igual a ele. Walter José Mormello Esteio, RS 77 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 DÉCIMO DOMINGO APÓS PENTECOSTES 1 Reis 3.5-15 28 de julho de 2002 CONTEXTO O texto nos situa nas páginas áureas e gloriosas da história de Israel, o reinado de Davi que passa a Salomão, o anúncio da nova fase, o reinado de paz em Israel. Davi, morrendo, lega suas palavra de pai ao filho e sucessor (2.2-9). Salomão, por assim dizer numa aliança política, casa-se com a filha do Faraó do Egito, e está diante de sua tarefa de líder nacional. Logo após o acontecimento relatado na perícope, vê-se confrontado a questões sociais e religiosas em seu reinado e a decisões importantes a serem tomadas, desde a disputa de prostitutas pela sua prole até o estabelecimento de alianças internacionais (3.16-28;5.1ss) e a centralização do culto no novo templo. Responsabilidades pedem capacidade. Capacidade pressupõe prudência (2.9). Prudência implica não só ações certas (2.9) mas coração compreensivo (3.9). Coração compreensivo é antes de mais nada um coração que ouve (2.3;3.16-22). TEXTO - CONSIDERAÇÕES GERAIS A expressão nir’ah não significa que Deus apareceu a Salomão em alguma forma corporal, mas que revelou-se a ele, que o inspirou, que lhe falou de alguma forma específica de sonho. Podemos entendê-lo como Salomão recebendo comunicações divinas, pensamentos divinos num sonho. Salomão fundamentou seu pedido na certeza de que Deus o atenderia para ajudá-lo em seu reinado, assim como fora misericordioso para com seu pai Davi. O pedido de Salomão revela sua prudência: se na vida comum somos chamados a tomar muitas decisões, a julgar, a fazer escolhas, quanto mais na função política de dirigir uma sociedade ou nação. O coração compreensivo é antes de mais nada um coração que ouve. Saber ouvir é uma virtude, requisito para uma ação sábia. Julgar bem pressupõe ouvir bem. A natureza humana caracteriza-se pela precipitação e interesses particulares, egocêntricos, de onde saem ações e decisões erradas e conflitos e injustiça. A oração de Salomão é o modelo de uma oração de fé e confiança: não 78 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 pensa primeiramente em si, mas no seu serviço a outrem. Não fundamenta o seu futuro fazer e o sucesso na sua capacidade, mas pede esta do alto. Testemunha de uma fé confiante na bondade e graça de Deus. Deus se lhe revela à noite porque ele o procurou e adorou durante o dia. O amor e a adoração a Deus não permanecem vazios nem ficam sem resposta. Deus atende, e acima da conta, o pedido de Salomão. REFLEXÕES HOMILÉTICAS Há, na cultura alemã, uma história antiga sobre desejos atendidos: “O pescador e sua mulher” (Der Fischer und seine Frau) (que as crianças gostavam de ouvir em LP nos anos 70, como o abaixo-assinado também). Um pescador salva a vida de um peixe barbada, que se revela ser um peixe mágico. O famoso e repetido grito do pescador à beira do mar, para chamar o peixe, que lhe promete atender os desejos, era a fórmula mágica: “Manntje, Manntje, Timpe Te, Barbada no mar, minha mulher Ilsebill não quer como eu quero” (“Manntje, Manntje, Timpe Te, Butje Butje in der See, meine Frau die Ilsebill will nicht so wie ich wohl will”). Na história vemos tanto questões conjugais como questões de excessos, de constante insatisfação: Primeiro, a mulher deseja, com a ajuda da barbada, sair de sua casa miserável de pescador e ter uma casa melhor. Depois não se contenta mais: sempre resmungando, deseja um castelo. Quando o tem - sempre com a intercessão do cada vez mais desesperado, mas inativo marido junto ao peixe -, quer tornar-se rainha. Depois, imperatriz. O peixe sempre lhe dando estas coisas “de barbada”. Quando ela enfim pede para tornar-se Deus e poder decidir sobre o sol, a barbada os leva ambos de volta à sua pobre casinha de pescador, e desaparece para sempre no mar. A lição é evidente: desejos e ambições irrefreados não ajudam, mas podem destruir até aquilo que teria sido possível. Aqui no texto também temos uma história de desejos a serem atendidos. Um homem sucede ao outro em altíssima função. O segundo olha com gratidão para as conquistas do primeiro. Mas está preocupado com a responsabilidade que o espera. Prudente (2.9), Salomão não confia excessivamente em si: olha para o alto, adora o criador e está atento àquele que é maior do que nossos desejos e capacidades (3.3-4). À noite, Deus o inspira num sonho, e lhe proporciona um desejo ilimitado: imaginem o que “amigos” e “assessores” lhe teriam sugerido! Mas eles não sabem, Deus fala a sós com Salomão, num pedido, numa troca: atende meu pedido, e faz o teu pedido, porque quero ouvir-te. Deus entra numa troca do ouvir e ser atendido: o pedido de Deus foi atendido, ele atenderá o pedido de Salomão. Deus não é um Deus imóvel, inacessível, mas é um Deus-conosco, um Deus que entra em relação conosco. E ele procura não uma pessoa imóvel e estagnada, mas alguém que reage a Deus, como Salomão: ele honra a Deus e lhe pede. Pedir e ser atendido, é assim que funciona com Deus. No Novo Testamento o pedido de Deus foi demo79 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 cratizado: a todos Jesus pede: pedi, e dar-se-vos-á. E o novo rei pede um coração sábio, que ouve. Ele sabe que só se enxerga bem com um bom coração. O coração alimenta-se do ouvir e se exerce no distinguir e julgar. Alimenta-se do ouvir a palavra de Deus, nas suas orientações e valiosas promessas. E exerce-se no julgar e distinguir. O coração distingue entre o bem e o mal, entre o que destrói e o que preserva a vida. Um coração que ouve funciona como um aviso precoce, uma mente forte e crítica, que tem a coragem de, se necessário, dizer não em tempo, e de dizer sim quando é preciso avançar com coragem. Deus gosta do pedido de Salomão. Ele fica feliz. Um Deus feliz gosta de atender pedidos. E por sua vez faz o rei feliz: promete-lhe um coração sábio. E com ele, muitas outras bênçãos materiais. Aqui fica claro que não se trata de substituir a competência pela piedade. Não rezar ao invés de trabalhar e agir. Mas trabalhar e agir corajosamente pedindo que Deus nos assista em nosso fazer e nos dê coração compreensivo. Eis do que se trata. Um coração que ouve, um coração sábio não é uma virtude nossa, é uma dádiva que se pede de Deus. Ao pescador e à sua mulher faltaram corações que ouvem para tornar-se sábios. Nós nos predispomos a pedidos de Deus quando o honramos e o adoramos, como Salomão. Felizes somos, porque Deus quer nos fazer pedidos: deixemo-lo feliz, pedindo também um coração que ouve, que é sábio e compreensivo. E poderemos cumprir com as tarefas de nossa vida para o bem dos nossos semelhantes, e conhecer bênçãos e felicidade. ESTRUTURAS HOMILÉTICAS Opção I: Disposição: Quando nossa oração agrada a Deus? 1) Quando oramos no sentimento de nossa pequenez e fraqueza, e na confiança em sua misericórdia e suas promessas. 2) Quando antes de mais nada pedimos dons e bênçãos espirituais (Mt 6.33;Ef 1.3;Tg 1.5). (mas veja também Pv 3, 16-35 quanto a bens materiais). Opção II: Tema: A verdadeira sabedoria que deveríamos pedir a Deus (Tg 1.5) não consiste em grandes conhecimentos, mas na compreensão do que é bom e mau (Jó 28.28; Tg 3.17; Ef 5.17), e é fruto da renovação de nossa mente (Rm 12.2). Pensamento importante, para finalizar: o que acontece neste texto, Jesus nos oferece no sermão do monte e no Pai Nosso (Mt 7.7-12; 6.9-13). Manfred Zeuch Canoas, RS 80 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 DÉCIMO PRIMEIRO DOMINGO APÓS PENTECOSTES Isaías 55. 1-5 4 de agosto de 2002 CONTEXTO Pela vivacidade do seu estilo, este convite tem sido comparado com os gritos dos vendedores de água e outros vendedores, tão comuns no Oriente Próximo. Este texto está entre os conceituados como um vibrante discurso de consolo, dirigido aos israelitas exilados nas distantes terras da Babilônia. A esperança de em breve retornar à Pátria é o anúncio com que o Senhor, pela palavra do profeta, põe alegria no coração dos desterrados. Ciro, o rei persa, foi o instrumento escolhido por Deus para levar a cabo a libertação e a repatriação do povo, descritas com palavras que, às vezes, lembram o êxodo do Egito. Este texto contém uma vibrante exortação para aceitar por fé a salvação oferecida. É um dos maiores convites das Escrituras. ESBOÇO a. Os participantes – é apenas para os que têm sede. b. O produto – leite e vinho à vontade. c. O preço – é de graça. d. A promessa – esta bebida gratuita salva a alma. e. A súplica – os pecadores são solicitados a buscar o Senhor agora, antes que seja tarde. TEXTO V. 1 – O Senhor está falando. A exortação começa de forma metafórica. Uma figura familiar no dia-a-dia em Jerusalém é o vendedor de água, que carrega um pote nas costas e oferece em voz alta o seu suprimento à venda. O apelo para vir e comprar; ao mesmo tempo torna-se claro que de fato a intenção é outra. O que fala aqui não é comerciante que oferece sua mercadoria mediante pagamento; pelo contrário, Ele convida as pessoas para um banquete de salvação, que pode ser obtido por nada. Tudo o que é necessário é que as pessoas venham e tomem o que o Senhor lhes oferece. 81 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 É interessante que o profeta não dirigiu as palavras ao povo de Israel como era costume, mas a indivíduos: “vós que tendes sede, e que não tendes dinheiro”. Aqui o que interessa é a decisão pessoal, ninguém é excluído, visto que o convite aos que têm sede também pode despertar em outras pessoas o desejo de vir. Quando o autor usa as palavras “Vós que não tendes dinheiro”, ele está descrevendo a miséria total em relação aos convidados. Transpondo essas palavras para a obra redentora de Cristo, entenderemos o que Deus está preparando, e concluiu na morte vicária de Cristo para nós, povo de Israel. Nós que somos miseráveis, sem dinheiro, sem condições para nos achegarmos até Deus, sendo totalmente dependentes da obra de Cristo. O que Deus quer de nós imperfeitos é penitência, arrependimento, humilhação (cf. Lc 18.9-14). V.2 – O convite se torna mais urgente quando o profeta aponta para a pobreza da vida sem a salvação oferecida pelo Senhor. A nossa vida é uma bola girando no desperdício, em gastar dinheiro naquilo que não é pão, e naquilo que não satisfaz. Essa expressão deve ser entendida figuradamente, referindo a uma ilusão de suposta satisfação que opõese aos prazeres reais oferecidos pelo Senhor. Tudo o que se ganha com o suor, o trabalho é incapaz de satisfazer o coração em relação ao que Deus oferece gratuitamente. O profeta está nos dando uma aula de mordomia do tempo, dos bens, e ressaltando o 3º mandamento. Temos o momento de trabalho para o sustento do lar, do lazer; mas também devemos reservar tempo necessário para saciar a fome e sede da vida espiritual, que aliás, é gratuita. A 2ª parte do v. 2 “Ouvi-me atentamente” e “comei o que é bom” , no hebraico podemos lê-la da seguinte maneira: “Se me ouvirdes, então comereis o que é bom”. Essa pessoa insensata (surdo para Deus) podia viver muito melhor nesse mundo em relação aos sacrifícios próprios que o mundo exige. Ele apresenta o simples ato de escutar à voz do Senhor a chamar; e logo receber aquilo que não é pão, mas que é bom para comer, ou seja, uma experiência de verdadeira satisfação da alma. Isto é expresso de maneira ainda mais vigorosa ao se dizer que sua alma se deliciará com finos manjares, sendo a gordura considerada como manjar especial pelos orientais, portanto uma figura da experiência da maior alegria. Vv. 3, 4 – O convite para ouvir o Senhor e vir a Ele e, conseqüentemente, para as bênçãos da redenção que Ele oferece é repetido aqui, acrescentada a promessa de que então a sua alma ou pessoa viverá. Esta 82 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 vida, no seu plano mais alto pode ser experimentada apenas na obediência da fé. A salvação oferecida é descrita em linguagem clara como uma aliança perpétua, uma aliança que Ele dará, que é descrita inteiramente como uma dádiva e graça de Deus, complementada em detalhes como “fiéis misericórdias prometidas a Davi”. Esta profecia se refere à promessa de que o Messias sairia da casa de Davi, sendo completamente cumprida com a vinda de Cristo, o príncipe que Ele deu por testemunho, prova, e governador dos povos. V. 5 – Como fecho dessa perícope, o profeta mostra nesse v. as bênçãos que obterão nEle e através dEle: “Eis que chamarás a uma nação que não conheces”. Podemos contrapor esse v. com o lema vigente na IELB: “Missão de Deus, desafio da Igreja”. O governo do Messias expresso no v. 4 é que esse chamado é um convite aos gentios para que entrem em comunhão com o povo de Deus, os cristãos, e assim gozem das bênçãos preparadas para o povo que teme ao Senhor, e ao que Ele foi preparar aos que nEle confiam e guardam os seus mandamentos (cf. Jo 14.2,3). O mesmo convite que Deus faz ao povo através do profeta é feito a nós, povo de Deus. Somos chamados e convidados a cada dia para o banquete, sem dinheiro e sem preço. Nós, que somos conhecedores das bênçãos de Deus e da obra vicária de Cristo, temos o desafio de fazer esse convite a todos, sem distinção de raça, nível cultural e social, pois todos carecem da graça de Deus, e a recompensa será extraordinária: a vida eterna. SUGESTÃO DE TEMA Vinde e fartem-se: a) Com o alimento que Deus nos oferece (palavra e sacramentos) b) É inteiramente gratuito. c) A recompensa é inevitável. Donário Borchardt Amambaí, MS 83 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 DÉCIMO SEGUNDO DOMINGO APÓS PENTECOSTES 1 Reis 19. 9-18 11 de agosto de 2002 TEXTO E CONSIDERAÇÕES HOMILÉTICAS “Que fazes aqui, Elias?” Deus encontra o seu profeta com medo, decepcionado, recluso, acuado, “revoltado”, desanimado e escondido numa caverna. Elias poderia tomar tal atitude extrema? Ele possuía razão para fugir e abandonar a sua missão? Havia ele esquecido rapidamente a parceria divina em sua vida? Quantos milagres foram realizados em nome de Deus por seu intermédio! Em nome de Deus ele anunciara a seca, fez reviver pessoas, amparara moribundos, enfrentara e dizimara inimigos, experimentara o poder e a inseparável assistência divina. Em tudo o que fizera fora um vencedor. Por que então a fuga e o refúgio numa caverna? Elias viveu uma contradição, em que a vitória lhe trouxe um sabor amargo de derrota. Elias, na verdade, estava decepcionado com a rebeldia e incredulidade do povo. Ele não conseguia relacionar o seu compromisso com Deus e a reação negativa do povo. O povo, juntamente com os seus líderes, não reagiu positivamente à ação de Deus. Deus, diante da rebeldia, aplicava corretivos extremos como a morte, mas não houve arrependimento. Além da rebeldia, a sua vida estava correndo perigo novamente. Os seus e os inimigos de Deus eram muitos. Elias cansou. Ele deu um basta. Não queria ser mais o carrasco de um povo rebelde e surdo ao chamado de Deus. Encontrou a saída. Atravessou o deserto, encontrou a caverna para refugiar-se. Ali não veria mais pessoas. Desconheceria os problemas, não envolveria o povo com o juízo divino e resguardaria a sua vida. “Que fazes aqui, Elias?” É a voz de Deus. Talvez a caverna, para o stress de Elias, era uma boa saída. Mas não para Deus. E a intervenção divina revela o grande amor e a solidariedade que Deus possui para com os seus profetas. Deus foi atrás de Elias. Apesar da revelada fragilidade do seu profeta, Ele o chama de volta. Deus toca fundo na alma de Elias e permite que despeje as suas queixas e decepções. Que paciência possui o Deus de Elias. Conhecendo bem a sua alma, Deus permite que ele coloque 84 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 para fora tudo o que está armazenado. Com essa atitude, Deus revelou que “perde tempo” para correr atrás de seus filhos e ouvir as suas lamúrias. Muito nos consola a paciência e a atenção dedicada de Deus a Elias. Como Deus é maravilhoso. E o seu amor excede, quando reintegra o profeta na sua missão. Apesar da fuga, do medo, do “stress” e do momento negativo de Elias, Deus renovou com ele a parceria de sua obra. Elias ignorava, mas Deus desejava sua participação. Pois Deus precisava salvar mais sete mil pessoas que eram fiéis a Ele. E Elias recebe a missão definitiva e ainda mais nobre: ungir reis e o profeta Eliseu e confirmar o seu Reino perante o seu povo. Diante deste Deus de amor, Elias não se recusa servi-lo. Elias reconsidera os seus planos, enfrenta novamente o deserto e se dispõe a cumprir a vontade do SENHOR. Elias, grande profeta, também revelou fraqueza e dificuldades para encarar a sua missão. Mas a grandeza do profeta reside justamente na revelação de sua fraqueza, sujeitando-se à interventora promessa divina. Elias não se opôs à missão de Deus, apesar de ter vacilado. Apesar de seus questionamentos e dúvidas, ele se submeteu à ordem divina e realizou a obra. Elias aprendeu que não pode olhar para os frutos imediatos, pois a ação é divina e é Ele quem monitora a sua obra. O fato de Elias ter se refugiado na caverna aponta para uma prática comum: buscar o deserto para fugir da missão e omitir-se na caverna da inatividade. Cabe-nos analisar, para que identifiquemos como fugimos para o deserto e nos refugiamos em nossas cavernas. Ou somos isentos desta prática? Quando nos recusamos a participar de um programa ou trabalho no reino de Deus, devido a fracassos e decepções anteriores, por acaso não estamos imitando Elias? Quando recusamos a convocação da igreja para desempenharmos uma função, não estamos deixando desassistidos os sete mil que Deus deseja atender e fortalecer para o Seu reino? Como é grande o amor de Deus! Compreensivo e restaurador com aqueles que fraquejam. Protetor e vigilante de todos os seus filhos. Este é o Deus de Elias. Este é o nosso Deus. Este é o Deus que assiste, fortalece, renova o seis servo atemorizado e envia um Elias comprometido e zeloso. Este é o nosso Deus, que não deixa um Elias sozinho na caverna, bem como vigia os seus sete mil fiéis que precisam da sua assistência através do profeta. Portanto, podemos ter a certeza, diante de problemas e desafios, podemos confiar que Deus estará sempre diante da nossa caverna confirmando o seu amor. Refugiar no seu amor é melhor do que refugiar-se numa caverna escura e isolada do deserto. 85 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 PROPOSTA HOMILÉTICA No refúgio do fracasso, Deus compartilha o seu amor 1. Restaurando o seu servo 2. Confiando-lhe a Sua missão. Danilo V. Fach Canoas, RS 86 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 DÉCIMO TERCEIRO DOMINGO APÓS PENTECOSTES Isaías 56. 1,6-8 18 de agosto de 2002 LEITURAS DO DIA O Salmo 67 é conhecido como o Salmo Missionário. Aqueles a quem Deus se revelou, se tornou conhecido, são agora, embaixadores – têm uma missão – tornar este Deus conhecido (vv. 1,2,6,7). No v.2, o salmista pede que Deus capacite o seu povo para espalhar a boa notícia da salvação entre todas as nações. O povo escolhido de Deus (Igreja) deve ter como missão (objetivo) levar “Cristo para todos”, para que, assim como faz o povo de Deus, todos os povos da terra venham à presença do Todo-Poderoso para adorá-lo. O texto de Rm 11. 13-15, 29-32 aponta para a universalidade da graça de Deus (v.32). Por causa do pecado, por natureza, todos são cegos, mortos e inimigos de Deus. Mas Deus, por sua imensa graça, contemplou a todos com sua misericórdia. Deus graciosamente alcançou e alcançará a todos pelo Evangelho – palavra e sacramentos. O Santo Evangelho do dia mostra, claramente, que Cristo veio para salvar todos. Josué havia expulsado os cananeus da terra prometida. Este povo concentrou-se e se desenvolveu na terra de Tiro. Agora, Jesus leva a este mesmo povo a esperança de uma terra melhor – a pátria celeste – e Jesus é o Caminho – para todos. CONTEXTO Isaías foi um dos maiores profetas, não só pela extensão do seu livro, mas pela riqueza do conteúdo de sua proclamação. Ele é conhecido como o “Evangelista do Antigo Testamento”, visto que apresenta a mais completa e clara exposição do Evangelho de Jesus Cristo que se pode encontrar em qualquer parte do Antigo Testamento. O livro de Isaías serve de compêndio das grandes doutrinas da época pré-cristã. O Novo Testamento diz que Isaías “viu a revelação da Natureza Divina de Jesus e falou a respeito Dele” (Jo 12.41 – NTLH). 87 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 Isaías, filho de Amoz, membro de uma respeitada família de Jerusalém, viveu entre os anos 742 e 687 antes de Cristo. Recebeu de Deus a ordem de pregar, sem qualquer transigência, uma mensagem de advertência e denúncia contra o seu povo, por causa da vida ímpia e idólatra. Convocou toda a nação para fazer uma reforma completa e entregar-se a um verdadeiro arrependimento. Isaías foi odiado e perseguido pelo rei Acaz, mas foi respeitado pelo rei Ezequias (716-698 a.C.) que, apesar de considerá-lo, desconsiderou suas advertências contra a aliança com o Egito. “Uma tradição talmúdica, aceita como autêntica por muitos primitivos pais da Igreja, declara que ele resistiu aos decretos idolátricos de Manassés, pelo que foi preso, prensado entre duas pranchas de madeira e “serrado ao meio”, sofrendo assim morte penosíssima e horrível. Pensa-se que a isto se refere Hb 11.37.” (Manual Bíblico – H. H. Halley – página 256) O TEXTO O capítulo 54 de Isaías fala da bênção sobre Israel; o capítulo 55 enfatiza a graça a todos os pecadores que confiam em Deus. Para ratificar esta verdade, o capítulo 56. 1. 6-8 confirma a inclusão dos gentios na bem-aventurança de Israel (não como nação, mas como o seu povo, na totalidade). V.1 – O capítulo 56 inicia com as sempre importantes palavras: “Assim diz o Senhor”. O Senhor Deus instrui, ensina – o Senhor relembra o que o seu povo esqueceu: a sua lei, a sua santa vontade. Quando o Senhor fala, ninguém mais tem uma palavra melhor, ninguém tem proposta melhor, ninguém tem Salvação, pois ele é o único SENHOR. Quando o Senhor diz, ele cumpre. A mensagem deste versículo pode ser comparada à de João Batista em Mc 1.15. O Senhor diz que vem – ele cumpre o que promete. Estar pronto, preparado, é a ordem. Vv.6,7 – Estes vv. falam do destino (sorte) dos estrangeiros. O v.6 descreve o seu relacionamento com o Senhor, enquanto o v.7 fala das promessas que lhe são asseguradas. V.6: “....e chegam ao Senhor para o servirem”.... A palavra original para este “servirem” denota um servir voluntário, serviço honroso, não um serviço simples, uma obra qualquer, feita por um escravo. O Senhor é a causa de os estrangeiros chegarem até a sua presença, para servirem... para amarem... para serem servos (esta ascendência não pode ser ignorada). Isto caracteriza um apegar-se (pertencer) ao Senhor – sincero e de coração (Salmo 24. 3-4). Estes Deus receberá (fará com que cheguem e sejam recebi88 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 dos) no seu santo monte – no seu templo, sua casa de oração. Ali Deus estará no meio deles (Êx 20.24 e 29.42ss) e todos serão família de Deus (Ef 2.19). A base destas promessas está na oração proferida por Salomão, na dedicação do templo, em 1 Reis 8.41-43. Parece que os judeus do N.T. haviam esquecido da universalidade do amor e da graça de Deus. Haviam se esquecido de Dt 4.6-8, 32-35. O templo de Salomão havia sido construído também para os estrangeiros. Ali todos tinham acesso à graça de Deus. Na verdade, Israel foi chamado para ser o Servo de Deus e pregar aos gentios a salvação de Deus (43.21), até o momento em que a parede que separava Israel e os gentios seria derrubada (Ef 2.14) e a diferença entre eles deixaria de existir (Rm 3.9-12; Ef 2 e Mc 11.17). V.8 – Assim diz o Senhor Deus... São palavras introdutórias, justamente para mostrar a grandeza da promessa que segue: “Congregarei os dispersos de Israel: ainda congregarei outros.....” A força do reunir, congregar, está no Senhor. Ele ajuntará, reunirá o Israel disperso. Ele também ainda quer reunir, juntar aos filhos de Israel que estão dispersos outros que “não são deste curral” (Jo 10.16). Para mostrar o quanto Deus quer que “todos sejam salvos” (Jo. 3.16) ...AINDA vai em busca dos... OUTROS. PROPOSTA HOMILÉTICA Tema: O Senhor quer todos os povos I – Ele criou – todos II – Ele enviou o Salvador – para todos III – Ele quer reunir – todos. Wilmar Meister São Leopoldo, RS 89 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 DÉCIMO QUARTO DOMINGO APÓS PENTECOSTES Êxodo 6.2-8 25 de agosto de 2002 CONTEXTO O nome divino Senhor (JAVÉ) já era conhecido antes de Moisés. Já há referência na Escritura a esse nome bem no princípio (Gênesis 2.4;4.26). Segundo os melhores comentaristas, essa passagem de Êxodo 6.2 se refere ao momento em que Deus estabeleceu o nome SENHOR, com o qual manteria, dali para frente, o seu relacionamento especial com Israel. Trata-se de resposta confortadora ao grito de desespero e ansiedade de Moisés no confronto com o faraó egípcio nas tratativas com respeito à libertação do povo de Israel da escravidão. O registro está em Êxodo 5.22,23: “Ó Senhor, por que afligiste este povo? Por que me enviaste? Pois, desde que me apresentei a Faraó, para falar-lhe em teu nome, ele tem maltratado este povo; e tu, de nenhuma sorte, livraste o teu povo”. Alguns exegetas consideram esse texto bíblico como um segundo relato do primeiro chamado de Moisés, um reforço. Sem dúvida, pode ser também entendido como uma nova motivação e uma confirmação do primeiro chamado, num momento em que Moisés parecia estar desanimado com seu visível fracasso. TEXTO Vv. 2-4 – É, sem dúvida, uma solene e definitiva declaração: “Eu sou o SENHOR”. Para os patriarcas, o Senhor não se revelou na sua capacidade específica como Jeová, embora o nome Senhor não fosse desconhecido para eles. Agora, Deus queria dar uma evidência atual, uma prova definitiva de si mesmo de que cumpriria plenamente suas promessas, pondo em efeito e abrangendo as condições do pacto messiânico, pelo menos, na forma que o tipificasse e caracterizasse. “...como o Deus Todo-Poderoso...” não quer apontar um nome de Deus, mas quer descrevê-lo como o “Deus que é poderoso”. 90 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 “... mas pelo meu nome, o Senhor...” Esta afirmação, a princípio, parece ser um tanto incompreensível. Parece ser certo que o nome era conhecido, mas o significado não. Jeová (SENHOR) é o nome próprio, nome pessoal de Deus, significando o que vive, o que tem existência própria, e nesta conexão, o Deus da Redenção, o Deus da Aliança. Não é somente o Deus que criou o universo e o sustenta, o Deus que criou o homem e lhe dá proteção e pão, mas o Deus que entra em contato pessoal com a criatura caída, perdida e quer salvá-la. Neste dimensão, Jeová (O SENHOR) não tinha sido conhecido pelos antigos patriarcas. O Senhor agora se manifesta como se manifestaria século depois entre os mesmos judeus, humanizando-se em Cristo para poder, de maneira completa, resgatar, salvar o ser humano. Esta aliança foi feita com Abraão, Isaque e Jacó como suas histórias mostram abundantemente, enquanto permaneciam como estrangeiros na Terra Prometida. Porém, o tempo de 04 gerações a que Deus se referiu a Abraão (Gênesis 15.16) estava se completando e sua palavra precisava agora ser cumprida. V. 5 – “... e me lembrei da minha aliança”. Daqui para frente, todos os atos redentores de Deus serão apresentados como “lembranças” desse compromisso obrigatório que Deus estabeleceu livremente. Lembrar não significa que Deus tenha esquecido Sua aliança. “Lembrarse da aliança” é agir de maneira tal que os homens possam ver e perceber o cumprimento das promessas. V. 6 – “... resgatarei com braços estendidos...”, sugere um relacionamento pessoal, íntimo, entre Redentor e redimido. V.7– “Tornar-vos-ei por meu povo...” uma das mais lindas declarações, conseqüência da aliança. “... que vos tiro de debaixo das cargas do Egito”. Este é o começo do grande credo da fé israelita e aparece de forma mais distinta na introdução aos 10 mandamentos ( Êxodo 20.2). À medida que crescia a experiência de Israel com Deus, novos “artigos” eram acrescentados ao credo, mas esse “artigo fundamental” permaneceu o mesmo em toda a história da nação. V. 8 – Assim o Senhor deixava estabelecida Sua tríplice promessa: 1) libertar o povo da escravidão do Egito; 2) adotar formalmente o povo de Israel como SEU povo; 3) e levá-los, conduzi-los para dentro de Canaã, a terra prometida. As91 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 sim, o Senhor conforta seus filhos e filhas em meio às suas aflições com a promessa de perpétua libertação, por meio da Sua aliança, que permaneceu viva em seus corações. PROPOSTA HOMILÉTICA O SENHOR “se lembra” sempre da Sua Aliança: 1) o fez maravilhosamente com o povo de Israel, livrando-os e adotandoos como seu povo; 2) o faz maravilhosamente conosco, livrando-nos, por Cristo, dos “escravizadores” e da escravidão eterna; 3) fará maravilhosamente conosco, adotando-nos, perpetuamente, como seu povo, levando-nos para dentro de nossa verdadeira pátria, a pátria celestial. Norberto Ernesto Heine São Leopoldo, RS 92 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 DÉCIMO QUINTO DOMINGO APÓS PENTECOSTES Jeremias 15. 15-21 1 de setembro de 2002 Há muitos paralelos entre a época de Jeremias e o nosso tempo, entre o seu chamado e o chamado de cada cristão, entre a sua dor e o nosso desafio de não só permanecer fiéis ao nosso Salvador, mas também anunciar claramente a sua mensagem à nossa geração. Para entender a mensagem desta perícope, é preciso passear pelo seu contexto e desenterrar as suas raízes, numa tentativa de entender o que Deus está dizendo nela a esta geração. CONTEXTO O próprio livro de Jeremias contém algumas coordenadas importantes para traçar o seu mapa. De 1.1-3, (1) sabe-se que nasceu de uma família sacerdotal e que, portanto, desde criança tinha intimidade com as escrituras e conhecia bem as dificuldades do seu povo para ajustar-se à vontade de Deus – “este povo é de coração rebelde e contumaz” (5.23). (2) Sabe-se que nasceu em Anatote (moderna Anata), povoado levítico a uns 5 km a Nordeste de Jerusalém, e que durante o seu ministério viu o trono de Jerusalém ser ocupado pelos reis Josias, Jeoaquim e Zedequias, até os dias em que os babilônios vareram o reino de Judá para as margens dos rios da Babilônia (Faça uma leitura rápida desses governos em 2 Rs e 2 Cr para obter mais informações contextuais, especialmente porque Jeremias é mais temático do que cronológico. (3) Sabe-se que Jeremias foi chamado durante o governo de Josias. Se Jeremias nasceu, como estima-se, aproximadamente em 650 a.C., o décimo-terceiro ano de Josias corresponde aproximadamente a 625 a.C. Portanto, era jovem (1.6, “não passo de uma criança”), talvez em idade de casar. O Senhor não lhe dá opção. Chama-o expressamente para ser profeta. Proíbe que se case (16.2). O privilégio de anunciar a palavra de Deus será muitas vezes obscurecido pela crescente solidão, pelo isolamento e pela oposição que sofrerá por causa do anúncio da mensagem. Longe atrás estão os dias de Isaías, Amós e os grandes profetas do século VII a.C. Pela mesma atitude de insensibilidade à mensagem, de 93 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 infidelidade e rebelião a Deus, Samaria, coração do reino do Norte, foi despedaçada pelos Assírios. Deus, em sua misericórdia, não quer que Judá tenha o mesmo destino. A primeira divisão do livro (cap. 2-25) contém a pregação profética dos primeiros 20 anos de ministério de Jeremias, dirigida ao povo de Judá e Jerusalém. A leitura dos primeiros capítulos compõe o clipe que estabelece o perfil: imagens de um povo que não tem mais jeito. “Tornaram às maldades de seus primeiros pais, que recusaram ouvir as minhas palavras; andaram eles atrás de outros deuses para os servir” (11.10). “Tenho visto as tuas abominações sobre os outeiros e no campo, a saber, os teus adultérios, os teus rinchos e a luxúria da tua prostituição. Ai de ti, Jerusalém! Até quando ainda não te purificarás?” (13.27). TRANSIÇÃO Dentro deste contexto, o texto. É fácil perceber seus dois momentos: o momento de desabafo do profeta (15.15-18) e o momento de puxão de orelha e consolo de Deus (15.19-21). Este texto, bem como 11.18-20,2123; 17.12-18; 18.18-23; e 20.10-13, é classificado como “Poema de Lamento”, onde a humanidade do profeta se manifesta num momento de crise e onde Deus traz uma resposta ao conflito. TEXTO O texto parece refletir um momento do ministério de Jeremias posterior à reforma de Josias e anterior à deportação final, talvez durante o reinado de Jeoaquim. O lamento começa com um pedido de vingança contra os inimigos. No v. 15, Jeremias diz: Tu, ó Senhor, o sabes. Um dos sentidos do verbo hebraico é: “Tu estás consciente do que está acontecendo”. É uma frase familiar para expressar inocência e protesto ao mesmo tempo. Lembra-te de mim. O verbo não significa mera lembrança passiva, mas seu sentido implica o seguinte: Jeremias pede que Deus lembre da sua fidelidade e dedicação e, em base a estas ações do passado, atue em seu favor no presente. Ampara-me significa literalmente “visita-me”, com a implicação de que Deus deveria entrar em ação a seu favor, impedindo que os seus inimigos continuassem maltratando-o. O vinga-me não vem simplesmente de um pedido de favor pessoal. O sofrimento do profeta é gerado por atitudes que são contra um servo de Deus e, portanto, contra Deus mesmo. É Deus mesmo quem está sendo desafiado. Há um certo atrevimento nas palavras do profeta, que seguem esta lógica: “Olha, Senhor, dá um jeito nesta gente, porque eles não só estão me incomodando, mas estão impedindo que eu faça o trabalho que me pediste. Por conseguinte, faça com que parem com isto.” Não me deixes ser arrebatado, por causa da tua longanimidade, isto é, “não sejas tão paciente com os meus inimigos que eles tenham tempo de destruir-me”. 94 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 No v. 16, Jeremias continua desenvolvendo o tema do seu sofrimento injusto, pois é inocente, e do seu clamor por justiça. Achadas as tuas palavras, logo as comi; as tuas palavras me foram gozo e alegria… Provavelmente há aqui uma volta ao momento do seu chamado (1.9), à alegria e satisfação ao deixar a palavra do Senhor tornar-se parte integral da sua vida. Ler também Ez 2.8-3.3 (Onde ordena-se ao ‘filho do homem’ que coma o rolo de um livro: “Eu o comi, e na boca me era doce como o mel”), Ap 10.9-11, e Dt 8.3. O tema da inocência do profeta volta no v. 17, ao fundamentá-la com sua forma de vida. Roda dos que se alegram, segundo Kähler (459) “é o círculo das pessoas de posição na comunidade que compartilham de uma decisão comum, que discutem os negócios e as fofocas, que tomam as decisões e que levam adiante as tradições.” No v. 16, a palavra do Senhor é fonte de gozo e alegria. No entanto, o profeta está excluído da alegria do v. 17, porque provém de escarnecimento, de zombaria, da qual o próprio profeta é objeto (20.7). (Ler Sl 1.1). Oprimido por tua mão – esta é a forma como o profeta vive a sua presente situação. Aqui aparece o conflito – Jeremias sente o peso da sua missão. Ele não pode cumprir o seu ministério profético e ser apenas um entre os seus pares. A sua tarefa o separa dos demais (leia 16.1-17), há urgência no cumprimento da mesma, e ele sente-se pressionado pelo Senhor, tendo que superar suas resistências internas (leia também Is 8.1; Ez 1.3; 3.14, 11; 8.1). A lamentação chega ao seu auge no v. 18. O profeta tira a roupa e expõe a sua alma. É um momento de desabafo que só pode ser entendido a partir da extrema dedicação e fidelidade do profeta. Toda a sua humanidade fica exposta. Segundo Baumgartner (49), dor e ferida – símbolos de sofrimento físico – são aqui usados metaforicamente para expressar angústia mental, a ruptura da sua alma criada pela dicotomia entre a compulsão divina e o desejo humano. Será Deus um ilusório ribeiro, como águas que enganam? Em 2.13, Deus identifica-se como “o manancial de águas vivas.” Jeremias é provocativo. Está levantando a hipótese de ser Deus o que ele não pode ser por definição e essência – justamente o contrário do que Deus mesmo afirma ser. Será Deus como um riacho que só corre na estação de chuva? Será Deus mera ilusão? As últimas palavras do profeta já não expressam sua indignação contra o povo endurecido, mas contra Deus mesmo. São palavras de rebelião e de crise com o próprio Senhor que o chamou. Os vv.19-21 expressam o momento de puxão de orelha e consolo de Deus. A resposta de Deus é surpreendente. O próprio profeta precisa ser 95 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 chamado ao arrependimento, à mudança de atitude. “Deixe de lado esta atitude de autopiedade”. No v. 19 Deus não promete nada além de que, se houver arrependimento, o profeta talvez possa continuar a exercer o seu ofício profético. Com toda a tribulação implicada, seu ofício ainda é um privilégio. É preciso trilhar o caminho da cruz para que se possa chegar à glória. Jeremias precisa purificar-se da sua amargura – que quase fechou a sua boca, que quase o fez perder de vista a sua missão, que quase abalou a sua confiança naquele que o enviou. Não é o profeta quem precisa contemporizar com o povo, mas é o povo quem deve ser transformado pela mensagem do profeta. A mensagem dos vv. 20-21 é puro evangelho, é promessa. Aqui há um segundo chamado, que repete a promessa e o conteúdo do primeiro (ler 1.5-10). “Seja qual for a situação que tenhas que enfrentar, eu estarei lá”. A promessa de Deus é a garantia de Jeremias. Ele agora sabe que a jornada do profeta implica abrir mão de muitas alegrias terrenas, e que mesmo no sofrimento e dor, o Senhor não o abandonará, mas renovará as suas forças. APLICAÇÕES HOMILÉTICAS 1. A leitura dos outros textos para o 15° dom. após Pentecostes (Sl 119.105112; Rm 12.1-8; Mt 16.21-26) imediatamente revelarão o tema comum a todos: Amor à palavra de Deus; a consagração de todo o nosso ser ao Senhor; a presença do sofrimento na trajetória dos servos de Deus, que não deve obscurecer o seu alvo ou enfraquecer o seu testemunho. 2. Jeremias tornou-se presa de um duplo conflito: 1.Com o povo, por causa da mensagem de julgamento que pregava. 2. Com Deus, porque achava injusto ter que sofrer por causa do anúncio da sua mensagem. Teve que ser chamado ao arrependimento e à fé; ao abandono da autocompaixão e à certeza da presença de Deus, apesar da rejeição social e do sofrimento. 3. Como pastores, líderes ou sacerdotes reais (o que inclui cada cristão), somos permanentemente expostos ao mesmo conflito e tentação. Somos chamados, empregando uma metáfora conhecida, a ser luz do mundo. É a luz da fé o que torna possível iluminar o caminho para vida abundante aqui e na eternidade. Se nossa luz brilhar, as trevas, que sopram forte, não sobreviverão. Ser luz gera oposição, reações negativas e sofrimento. No entanto, é preciso lembrar sempre que o preço vale a pena e que nosso Pai Celeste sempre estará lá para trazer conforto e renovar forças. E se Jesus tivesse cedido à tentação? (Mt 16.23.) Se não lidarmos com o conflito, ele vai enfraquecer nossa vontade, nosso testemunho e, finalmente, nossa fé. Vida consagrada implica aceitar o sofrimento como parte de nossa realidade, mas também implica saber que Jesus está conosco cada dia até o final. 96 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 PROPOSTA HOMILÉTICA SUCINTA 1 - O conflito de Jeremias – conflito de cada cristão 1.1 - A tentação de fechar nossa boca e não anunciar lei e evangelho plenamente – por medo das suas conseqüências. 1.2 - A tentação de culpar a Deus pelo que sai errado ou de não querer ser diferente. 2 - Chamado ao arrependimento 2.1 - Retornando a Deus. 2.2 - Aprendendo a confiar nas suas promessas. Cláudio Flor Londres, Inglaterra 97 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 DÉCIMO SEXTO DOMINGO APÓS PENTECOSTES Ezequiel 33.7-9 8 de setembro de 2001 CONTEXTO Ezequiel, primeiramente sacerdote em Jerusalém, foi levado ao exílio para a Babilônia junto à primeira leva de deportados em 597 a. C. No 5º ano de sua deportação ele foi chamado para ser profeta, exercendo esse papel por um pouco mais de 20 anos junto aos judeus que viviam no exílio. Neste seu papel, como atalaia, ele exorta seus companheiros de sofrimento no exílio, os adverte e consola. Recebe visões a respeito de Judá e Jerusalém distantes, contra quem inicialmente dirige suas ameaças, alertando o povo exilado contra a expectativa de um retorno à pátria, visto Deus ter amaldiçoado Jerusalém por causa dos pecados do povo e da idolatria que imperava no templo em Jerusalém (2 Cr 36.16). Em 586 a. C., no 11º ano de exílio do profeta, Jerusalém foi tomada pelas tropas de Nabucodonosor e o templo reduzido a ruínas. Nesta primeira etapa, que se divide em duas partes: profecias antes da tomada de Jerusalém contra o povo idólatra, e profecias sobre o juízo de Deus contra as nações, o profeta prega lei, a dura lei, ameaçadora e corretiva. Suas pregações, nesta fase, são um misto de ameaças, invectivas, cânticos de lamentação e cânticos fúnebres. Têm o propósito de humilhar o povo exilado, seu auditório, e levá-lo ao arrependimento. Ezequiel tinha liberdade de exercer seu ofício profético no estrangeiro. À sua casa acorriam os anciãos do povo para o ouvir, ouvir por curiosidade, ouvir segundo sentiam coceira nos ouvidos, mas não davam ouvidos às suas mensagens, não queriam ouvir o que precisavam ouvir. Ele lhes era como atalaia, eles, contudo, se negavam a atender o toque de seus alarmes. Na segunda etapa, que engloba a terceira parte de suas profecias, a partir do capítulo 33, iniciam suas profecias de restauração e livramento do povo depois da tomada de Jerusalém. São mensagens emitidas após a queda de Jerusalém. O povo santificado seria restituído à sua pátria e os inimigos seriam duramente punidos. Em vez de um povo humilhado e puni98 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 do, depois de restaurado, profetizado pela restauração do templo e das águas que corriam do templo para a banda do oriente, o que simboliza a igreja em seus atos de culto a Jeová e de testemunho ao mundo, o povo de Jerusalém seria uma bênção para o mundo. Com sentido cristológico ou cristocêntrico aparece o termo “pastor”, um novo profeta, o servo de Deus, Davi. Davi é o grande patriarca e pai ancestral do Filho do homem, Jesus Cristo. Nele, no filho de Davi, é verdadeiramente restaurada a Jerusalém, o povo santificado a Deus. TEXTO Como texto de apenas 3 vv, digno de nota é a palavra central “atalaia”, vigia, pregador, mensageiro de Deus, a quem o povo deve ouvir para a sua restauração espiritual. É uma repetição de 3.17-19, com a diferença de que em 33.7-9 é seguido o convite à conversão e à doutrina da responsabilidade pessoal, vv. 12-19. Ezequiel, como profeta, é uma espécie de avisador de Deus a um povo a quem ele foi enviado. O inimigo a ser percebido e denunciado eram os pecados do povo, também agora no exílio, a funesta idolatria, ainda não renunciada. A terrível responsabilidade de um atalaia em época de guerra sobre os muros da cidade, não lhe sendo permitido dormir jamais enquanto está no posto, a ela, com seriedade semelhante, é comparada a função do profeta naquela crítica conjetura que a nação, o povo de Deus, atravessava. Não deve ter sido fácil, apesar da liberdade de profetizar, a Ezequiel denunciar os pecados do povo, especialmente o da idolatria, por cuja causa e culpa Judá e a capital Jerusalém tinham sido entregues por Deus na mão dos inimigos em 597 a.C., e que o templo seria, e foi, contra a expectativa do povo, jogado abaixo. Na mente do povo esta “cumplicidade” de Deus com os inimigos, permitindo que o seu ícone idolatrado, que era o templo, fosse debulhado, seria um baque catastrófico em sua crença religiosa. E de fato foi. O próprio Ezequiel, ao receber a notícia, através de boatos, de que os caldeus tinham mesmo derrubado e queimado o templo, o levou ao pânico e ele emudeceu, até que Deus, numa nova visão, o comissionou a falar novamente ao povo (24.25-27). A tarefa básica de Ezequiel é, então, tentar cortar o “cordão umbilical” que amarrava a crença do povo no templo. Deveria anunciar e convencer o povo que a “fé” em “paredes e construções”, repetida pelos próprios apóstolos de Cristo (Mc 13.1), quando desvirtuada pela segurança em coisas, objetos e mesmo monumentos, desviam a fé verdadeira no Deus Jeová 99 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 que quer ser adorado em espírito e em verdade, com um coração arrependido e fiel nas promessas divinas; que a “fé” em Deus por serem filhos de Abraão não garante absolutamente nada a ninguém. Mas os judeus pensavam que sim, e esta foi a grande “tranqueira” a impedir que os judeus percebessem e reconhecessem seus pecados. O profeta é chamado por Deus de “filho do homem”, revestido da natureza mortal e pecaminosa, tal como o seu próprio povo. Mesmo exercendo função especial, sendo “boca” de Deus, tal como Daniel (Dn 3.17), Ezequiel não poderia procurar se sobrepor aos demais do povo, lembrar-se sempre de sua pecaminosidade. Embora tenha sido distinto por Deus para a função de profeta, jamais poderia se igualar ao profetizado Filho do homem, Jesus Cristo, a quem aponta em suas promessas de restauração: O fim último da lei e dos profetas é Cristo. PROPOSTA HOMILÉTICA Um profeta de Deus a) Chamado por Deus: através de sonhos, visões, comissionamentos - Moisés na sarça (Êx 3) - Samuel pela voz noturna (1 Sm 3) - Elias pela palavra direta de Deus (1 Rs 17) - Ezequiel, chamado já sendo sacerdote, por visões à beira do rio (1.1-3) - Um profeta sempre diz “assim diz o Senhor”, e não “assim digo eu” - A IELB chama e ordena pastores e demais ministros: voz indireta de Deus: nos seus 100 anos é atalaia divino: pregando, administrando os sacramentos, visitando, confortando, fazendo o bem - Autodenominar-se ministro de Deus: cuidado = porta aberta para muita heresia: muitos dos “profetas” de hoje são “lobos roubadores”, que pularam o muro e estão enganando em nome de Deus b) Sua mensagem - Deve ser anúncio da aproximação do “inimigo” – pecado que está sempre à porta - Condena a idolatria – todo o pecado é idolatria: pregação da lei para que “belas e grandes construções” (templo para os judeus, boas obras, religiosidade popular e cheia de superstições, etc) sejam postos por terra e assim Deus seja buscado - Dificuldades inerentes ao exercício da função: diz uma lenda judaica que Ezequiel foi morto por ordem de um príncipe caldeu por condenar os pecados do príncipe. - Pode ser e é rejeitada: muita gente ouve o que quer ouvir, não o que deve ouvir. 100 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 - Há os que ouvem o profeta (Palavra) e voltam à Jerusalém celestial (igreja), confiando em Cristo e se santificando, adorando a Deus em espírito e em verdade. Estes são igreja. - Reconstrução do reino de Deus, do povo santificado: função fundamental e última da vocação de profetas - Sejamos gratos a Deus pela construção do reino de Deus entre nós pela voz dos profetas. Heldo E. Bredow Curitiba, PR 101 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 DÉCIMO SÉTIMO DOMINGO APÓS PENTECOSTES Gênesis 50. 12-21 15 de setembro de 2002 LEITURAS DO DIA - Salmo 103.1-13 – Este salmo mostra o Deus Eterno na sua graça em perdoar. A confiança na misericórdia deste Deus, que perdoa e que sara, não deixa dúvidas de sua bondade. Deus é paciente, bondoso e amoroso. Esta é a atitude de Deus em favor da criatura, e Davi louva a Deus, porque ele perdoa todas as iniqüidades e redime da maldade. - Romanos 14.5-9 – Paulo coloca o resultado da ação de Deus na vida de seus filhos. Se o peso da lei massacra, somos perdoados e restabelecidos, não pela nossa justiça, mas pela graça perdoadora de Deus. Esta graça é que cria o referencial de vida em relação ao irmão mais fraco. Porque Cristo morreu e ressuscitou por nós, fomos libertados, e é esta liberdade que nos leva para uma relação de amor e perdão para com os irmãos, com paciência, em suas fraquezas. - Mateus 18.21-35 – As palavras de Jesus sobre viver em comunhão cristã terminam com a parábola do evangelho do dia – viver no perdão. Pedro levanta uma pergunta sobre os limites do perdão – onde parar? Jesus traz resposta típica contra o legalismo casuístico dos judeus – “Setenta vezes sete” não sugere lista de 490 perdões, mas a alegria de viver no perdão. Se apenas e tão-somente esperamos receber perdão, e não queremos viver no perdão, a vida em comunhão cristã sempre sucumbirá. É fácil pedir para nós mesmos o perdão de Deus; difícil é estender este perdão para os outros. A comunhão cristã só tem subsistência quando vive no perdão total de seu Senhor que deu sua vida pela cristandade. Não só receber e possuir o perdão, mas viver. CONTEXTO O problema começa com a venda de José para o Egito. O sentimento de culpa e apreensão deve ter permanecido no coração de seus irmãos. A vida da família de Jacó não foi fácil e agradável após o episódio. José, em terra estranha, também passou por muitas privações. Junto com as privações o sentimento de abandono e solidão. Superou todos eles, sempre fiel ao seu Deus. 102 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 Os irmãos movidos pela fome vão em busca de alimento no Egito. Há o encontro e reencontro. São reconhecidos por José. São perdoados porque José vê a mão de Deus em todos os caminhos de sua vida. Jacó é trazido para junto de seu filho e a família está novamente reunida. O elo de amor Jacó e José, pai e filho - traz para todos os outros irmãos a segurança necessária de não vingança. Jacó morre e a segurança, tão importante, no íntimo dos irmãos desaparece. Não conhecem a reação de José. O texto está registrado logo após a morte de Jacó. A sobrevivência de toda a família depende de José. A culpa pelo que haviam feito, há muitos anos, vem à tona. José pode tomar uma atitude legal diante de seus irmãos, mas, o que se passa no seu íntimo? Diante deste questionamento somos levados ao tema central deste Domingo – “perdão pelo mal que nos é causado e paciência com os que são fracos”. TEXTO V. 15 – “Vendo... que...” – no sentido de ser visível, saber, observar, ter conhecimento. - “pai” – Como comandante – objeto de honra, obediência e amor. Este pai constitui, controla, guia. A falta deste pai trouxe aos irmãos de José o temor e a preocupação. José poderia agora agir de acordo com o que eles lhe haviam feito no passado. - “perseguir” – guardar rancor com animosidade. - “retribuir” – retornar, trazer de volta. Pensamento normal dentro das reações e padrões humanos. O que “aqui se faz, aqui se paga” era regra comum para muitos. O conhecimento desta lei eles perceberam, mas o poder do perdão era preciso dizer-lhes pelas ações da vida de José. Vv. 16-18 – Fundamentam seu pedido de perdão na memória do pai. É verídica a mensagem, ou não? Não há registro. Pode ter sido invenção, não sabemos. Primeiro são enviados mensageiros, depois vão pessoalmente. Reconhecem seu erro, buscam o perdão. Vv. 19-21 – A resposta que José dá aos seus irmãos é sua grandeza, sua humildade e exemplo: 1 - sabia seu lugar e não se colocou no lugar de Deus para julgar; 2 - reconheceu o mal que tinham feito contra ele, mas reconheceu que Deus transformou este mal em bem para preservação do povo; 3 - tranqüilizou seus irmãos não se vingando, mas consolando-os, sustentando-os. 103 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 A atitude de José em perdoar e sustentar seus irmãos demonstra a fé que precisa mover cada cristão, que sabe perdoar e dar nova oportunidade de vida de acordo com o amor de Deus. PROPOSTA HOMILÉTICA Tema: Deus cuida dos que perdoam e os retribui quando: I – deixam nas mãos de Deus o julgar os erros dos outros; II – pagam o mal com o perdão; III – agem na prática deste perdão com afeto e amor. Egon Eidam Dourados, MS 104 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 DÉCIMO OITAVO DOMINGO APÓS PENTECOSTES Isaías 55. 6-9 22 de setembro de 2002 CONTEXTO No que se refere ao contexto litúrgico, é digno de nota o ponto de contato entre a leitura do Antigo Testamento e aquela do Evangelho do dia Mateus 20.1-16 - a parábola dos trabalhadores na vinha. Se, por um lado, a parábola acentua a graça de Deus, que chama o pecador para o seu reino (assim como Is 55.6,7), por outro lado, o texto de Mateus exemplifica bem (“São maus os teus olhos porque eu sou bom? Assim, os últimos serão primeiros e os primeiros serão últimos”) o que Deus anuncia através do profeta - “os meus pensamentos não são os vossos pensamentos”. O Salmo do dia, Sl 27.1-9, também acentua a necessidade de voltar-se para Deus, como fonte de toda a graça; o tema de buscar a Deus também ali está presente. No contexto literário, é importante notar que o texto em estudo é conseqüência do que é anunciado no famoso texto sobre o Servo (Is 52.13-53.12). O capítulo 54 mostra a misericórdia e a fidelidade de Deus para com seu povo, a quem Ele - o esposo fiel - não abandonará. No início do capítulo 55, temos o convite de Deus para que o seu povo participe do grande banquete da graça. Algumas expressões se salientam: “Ouvi-me atentamente ... ouvi, e a vossa alma viverá ....convosco farei uma aliança perpétua ...”. Deus se apresenta como o gracioso doador da salvação. O texto em estudo mostra o que isto implica para aqueles que ouvem estas palavras. TEXTO Onde colocar a ênfase nas palavras do versículo 6? Pode-se tender a enfatizar o “enquanto”, para dizer que chegará a hora em que Deus não poderá ser buscado, nem invocado. Daí a urgência no buscar a Deus. Por mais que tal idéia tenha seus méritos, não é a maior ênfase do texto. Esta se encontra nos verbos: buscai - Ele pode ser achado; clamai (invocai) - Ele está perto. Os verbos que se referem a Deus (pode ser achado, está perto) deixam claro que é de Deus a iniciativa de vir até Seu povo e chamá-lo ao 105 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 arrependimento. E a ação das pessoas (buscar, invocar) só é possível porque Deus se coloca diante do Seu povo “perto” (a palavra é usada tanto para proximidade física, como para denotar um relacionamento pessoal e amoroso). O texto seria usado de maneira equivocada se fosse considerado como uma declaração de que a pessoa deva tomar a iniciativa. Deus já tomou a iniciativa - Ele se coloca onde pode ser achado; Ele está perto. Mas onde é isto? Em sua aliança (v. 3), que se manifesta em Sua palavra (v. 11). A ação de buscar/invocar só é possível porque se refere ao povo de Deus, o povo da aliança, que foi chamado por Deus para ser Seu povo amado e ao qual Deus continua se manifestando de maneira graciosa. “Perverso”, “iníquo” (v. 7) - é a estes que Deus se reporta e busca, em Sua graça. Eles não conseguem chegar a Deus, por suas forças e decisão. O “convertei-vos” (Almeida RA) é uma referência ao chamado ao arrependimento, tanto no sentido de deixar o modo ímpio de viver, como, principalmente, retornar para o Deus de quem recebera a aliança. A que se refere a afirmação de que os pensamentos e caminhos de Deus são mais elevados que os do homem (visto que a afirmação inicia com um “porque”)? Até certo ponto, o próprio texto responde a questão, de maneira simples. O v. 7. se refere aos “pensamentos” e “caminho” dos ímpios. É preciso que o pecador deixe os pensamentos e caminho de incredulidade, visto que Deus pensa e age diferente. No entanto, pode-se notar ainda outro contraste entre os pensamentos e caminhos de Deus e aqueles das pessoas. Aí o texto do Evangelho do dia ajuda na reflexão. Em sua graça e misericórdia, Deus manifesta um caminho e pensamento que parecem loucura para o homem natural (cf. 1 Co 1.18ss). Em uma sociedade do “recebe-pelo-que-merece” e do “aqui se faz e aqui se paga”, o pensamento e caminho de Deus através de Seu Filho é, sim, novidade. Note-se que o v. 10 também inicia com um “porque”, mostrando a conexão que há em todo o texto. Deus anuncia o resultado da sua palavra (v. 11), que produz vida e alegria em seu povo (vv. 12,13). Assim, o “mais alto” característico dos pensamentos e caminhos de Deus não é apenas um contraste entre pecaminosidade humana e santidade divina. O contraste é ainda mais profundo, entre a justiça de obras que caracteriza toda busca humana e a justiça atribuída por Deus ao pecador, por graça, por causa de Cristo, mediante a fé. O Evangelho é a grande surpresa de Deus para o 106 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 mundo e também para o seu povo. Dois textos que também tratam do mesmo assunto podem ser conferidos em Is 65.1-7 e Jr 29.11-14. APLICAÇÕES HOMILÉTICAS - Vivemos em um tempo de oportunidade, o tempo da graça. Vale aqui o ditado popular: “Enquanto há vida, há esperança”; mas tal esperança não é a popular, mas a que vem do chamado gracioso de Deus no Evangelho. - Deus tem critérios estranhos para agir conosco. Ao pecador, Ele se coloca perto e de modo que possa ser achado; mas ao Seu Filho santo e amado, Ele se colocou longe (“por que me desamparaste?” Mt 27.46). É o caminho da cruz, dolorosa cruz para o Servo de Deus (Is 53), mas graciosa cruz, para o pecador. - Também os cristãos têm dificuldade de viver do Evangelho. É mais fácil e cômodo (e bem mais natural) viver pela lei. É um desafio para nossa vida diária deixar Deus ser Deus, reconhecendo-o como gracioso, tanto para nós, como para aqueles que consideramos perversos. PROPOSTA HOMILÉTICA Tema: Os pensamentos e caminhos de Deus - mais altos que os nossos. - Por quê? Gerson Luis Linden São Leopoldo, RS 107 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 DÉCIMO NONO DOMINGO APÓS PENTECOSTES Ezequiel 18.1-4, 25-32 29 de setembro de 2002 INTRODUÇÃO Não é segredo que o texto de Ezequiel 18 foi escolhido em função do evangelho do domingo, que é a parábola dos dois filhos (Mt 21.28-32). Trata-se de uma parábola que, até certo ponto, é paralela a Lc 15.11-32 (o “filho pródigo”). Tanto Mt 21 quanto Lc 15 apresentam um pai e seus dois filhos, com destaque para o tema do arrependimento, que, no caso da parábola do filho pródigo (Lc 15), é mais descrito do que mencionado. De igual modo, Ez 18 destaca o arrependimento, ou a conversão. O termo aparece umas cinco vezes, o que estabelece o vínculo com Mt 21. TEXTO Ez 18 é um capítulo famoso na Bíblia. Notável é o provérbio ou ditado das uvas verdes e dos dentes embotados (v.2), que tem paralelo em Jr 31.29. Aliás, Ezequiel gosta de provérbios populares (o termo é lv’M’, traduzido, em outros contextos, por “parábola”). Ele tem outro provérbio em 12.22: “Prolongue-se o tempo, e não se cumpra a profecia”. Igualmente famoso é o v.4: “A alma que pecar, essa morrerá”. Lido fora do contexto, antecipa Rm 6.23. Só que no contexto a ênfase é a seguinte: A alma que pecar, essa (e não outra em lugar dela) morrerá. Em outras palavras, a responsabilidade não pode ser transferida. Como um todo, Ez 18 trata do justo juízo de Deus. O povo se vale de um provérbio para caracterizar os desígnios de Deus (v.2), insinuando que os filhos estão pagando os pecados dos pais. A referência é ao exílio babilônico, pois, ao tempo de Ezequiel, o povo está no exílio. Deus responde, jurando pela sua própria vida, que esse provérbio não será mais repetido em Israel. Surpreende uma resposta aparentemente tão branda. Como se não bastasse, Deus passa a argumentar com o povo. Mostra que cada um é responsável por seus atos. Entramos na discussão na altura do v.25. O povo questiona os cami108 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 nhos de Deus. Nada de provérbios (v.2) desta vez, mas ainda é a mesma choradeira. “O caminho do Senhor não é direito”. “Deus é injusto”. A resposta é, outra vez, bastante branda. Quando seria de esperar um “quem és tu, ó homem, para discutires com Deus?!” (Rm 9.20), o Senhor responde (v.25), em forma de pergunta, se tortuosos não são os caminhos do povo?! E novamente Deus passa a argumentar. Introduz o tema da conversão (vv.26-28). Reitera a pergunta pela retidão dos caminhos da casa de Israel (v.29). O que seria um “caminho tortuoso”, neste contexto? Caminho tortuoso é jogar a culpa em Deus, especialmente quando há uma situação difícil (naquele tempo, o exílio). Situação análoga foi apresentada a Jesus em Lucas 13, com a notícia do massacre promovido por Pilatos, ao que Jesus acrescenta o desastre da torre no bairro de Siloé. E a resposta aqui, em Lc 13, é idêntica àquela em Ez 18: “Se não vos arrependerdes, todos igualmente perecereis”. Traduzido: Mais do que tentar entender ou saber de quem é a culpa, é preciso tirar uma lição para a própria vida. E esta lição passa pelo arrependimento. Na continuação (Ez 18.30), Deus mostra que a responsabilidade é individual. Cada qual é responsável por seus atos. “Eu vos julgarei, a cada um segundo os seus caminhos”. O bom nisso tudo é que, se os filhos, hoje, no exílio, não estão pagando pelos crimes dos pais, cometidos no passado, na terra de Israel, o caminho de volta está aberto a todos e cada um. E a conversão passa a ser um tema marcante da perícope. O verbo “converter-se” (bwv, shub) aparece cinco vezes em Ez 18.25-32. (Por trás do “desviando-se”, no v.26, está o mesmo verbo hebraico.) Este verbo ocupa o 12º lugar na lista dos mais freqüentes do AT, com mais de 1050 ocorrências. Em Ezequiel, ocorre 62 vezes, sendo superado apenas por Jeremias (111 vezes), Salmos (71 vezes), e Gênesis (68 vezes). O sentido literal é “voltar”, implicando um movimento físico. Em contextos teológicos, onde se tem em vista a aliança, tem um sentido metafórico: “voltar” como “conversão”, “volta a Deus”. Na Bíblia, o arrependimento, visto da perspectiva do homem, é descrito de diferentes formas. Pode ser um “inclinar o coração ao Senhor” (Js 24.23), “circuncidar-se para o Senhor” (Jr 4.4), “lavar o coração da malícia” (Jr 4.14), “arar o campo de pousio”, isto é, arar a terra que ficou improdutiva por algum tempo (Os 10.12). Todas essas descrições de arrependimento poderiam ser resumidas, com grande perda de plasticidade, é claro, pelo verbo bwv, shub. 109 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 Em Ez 18 a conversão é apresentada, ainda, como um “desviar-se das transgressões” (v.30), “lançar de si as transgressões” (v.31), e, como ponto alto, “criar em si um coração novo e um espírito novo” (v.31). Tudo isto soa bastante antropocêntrico, como se a conversão dependesse de nós. Por isso é importante repetir que se trata de descrições a partir de uma perspectiva humana. E para que não fique nenhuma dúvida quanto a quem, de fato, é o “cirurgião” neste caso, é preciso recorrer a Ez 36.26, onde Deus diz: “Dar-vos-ei coração novo e porei dentro de vós espírito novo; tirarei de vós o coração de pedra e vos darei coração de carne”. Ez 18 parece, de fato, colocar todo o peso sobre os nossos ombros. O justo que se desvia da justiça, morre por causa da iniqüidade (v.26). O perverso que se converte, conserva a vida (v.27). O texto parece ter pouco ou quase nada a respeito da graça e do amor de Deus. No entanto, uma janela se abre no v. 32: “Porque não tenho prazer na morte de ninguém, diz o Senhor Deus”. Deus não é apenas um juiz que, embora imparcial e justo, proclama um frio veredicto de culpado ou inocente. Ele é o Criador que não tem prazer na morte de ninguém (ver Ez 18.23;33.11). Ao contrário, ele quer conduzir à vida (cf. 1 Tm 2.4-6). APLICAÇÃO Existe a tendência, especialmente em tempos de crise, de dizer que a culpa é dos outros (assim como os filhos de Israel, no exílio, achavam que estavam pagando a conta dos pais). Outras opções são culpar Deus, ou, então, perguntar o que Deus tem em vista com tal acontecimento, quando não se tenta justificar os atos de Deus (teodicéia). Difícil é fazer um mea culpa. Diante disso, sempre é oportuno direcionar nossos olhos para nossos próprios caminhos tortuosos. Sempre é tempo de pregar arrependimento, especialmente o arrependimento da fé, como o evangelho do dia (Mt 21.32) deixa claro. Assim, em qualquer período do ano, também no pós-Pentecostes, cabe bem esse tema. Porque arrependimento e fé são tema de cada dia. Até conta-se a história de um rabino que ensinava a seus discípulos a necessidade de fazer penitência um dia antes da morte. Diante da perplexidade dos discípulos, que responderam ser impossível saber o dia da morte, o rabino retrucou: Tanto mais necessário se faz que cada um se arrependa hoje! Na base do arrependimento estão a ira e o amor de Deus. Antes de tudo, sua ira precisa ser levada a sério. Romanos 1-3 deixa isto bem claro. Por outro, ninguém deveria ter medo de ser achado pecador na presença de um Deus que declara não ter prazer na morte de ninguém. E este é o 110 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 Deus que chegou a ponto de não poupar o seu próprio Filho para que tivéssemos vida. Na pregação, sugere-se explorar imagens bíblicas de conversão e arrependimento. “Criai em vós coração novo e espírito novo” poderia ser o tema. Com tal ênfase, uma sugestão é colocar a pregação no início do culto (seguindo uma sugestão de Lutero), seguida de confissão e absolvição e – por que não? – a celebração da Ceia. Ou, então, organizar o culto de tal forma que, neste dia, culmine com confissão e absolvição, seguida de celebração da Ceia. Por que não realizar neste dia, por mais que seja dia de São Miguel e todos os Anjos, um Dia de Súplica e Oração. Neste caso, sugere-se tomar o Salmo (Sl 6) e a Epístola (1 Jo 1.5-2.2) previstos para um Dia de Súplica e Oração (ver Palavra e Oração, p. 188), juntamente com a leitura do AT (Ez 18) e o Evangelho do 19º Domingo após Pentecostes (Mt 21.28-32). Outra opção é substituir o Evangelho do domingo pelo Evangelho do Dia de Súplica e Oração (Lc 15.11-32) que, como vimos, é paralelo a Mt 21. Vilson Scholz São Leopoldo, RS 111 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 VIGÉSIMO DOMINGO APÓS PENTECOSTES Isaías 5. 1-7 6 de outubro de 2002 LEITURAS DO DIA Sl 118.19-24. O título deste Salmo é: “A alegria dos justos pelo Salvador” ou “Agradecimento pela vitória”. Aí se destaca o júbilo espiritual de um povo. O salmista incentiva ao regozijo e à alegria no v. 24, certamente pensando naquele que foi rejeitado, mas que veio a ser a principal pedra, angular, segundo profecia a respeito do Salvador Jesus. Fp. 3.12-21. Paulo faz uma advertência contra o perfeccionismo. Ele mostra que pela fé os crentes já alcançaram a plena aceitação de Deus. Mas como continuamos sendo pecadores, neste mundo ninguém alcança a perfeição. Mesmo estando plenamente confiantes acerca da nossa salvação, devemos evitar o orgulho e a presunção que podem inibir o nosso contínuo crescimento na graça. Com o auxílio de Deus, crescer na santificação. Mt 21.33-43. Deus espera bons e abundantes frutos do seu povo, por causa do seu grande amor demonstrado, mas muitas vezes só recebe o que não é bom, injustiças e ingratidão. Citando o texto do Sl 118. 22,23, Jesus mostra que a rejeição ao Salvador traz castigo e condenação. CONTEXTO No cap. 4, vv.2-6 Isaías enfatiza a esperança de tempos futuros. Mesmo castigando Jerusalém, Deus purificou o seu povo, reservando-o e separando-o para a sua glória. Um pouco difícil é a interpretação do v. 4 : “quando o Senhor lavar a imundícia das filhas de Sião.” É possível que Isaías quisesse levá-las a perceber que já não podiam esconder suas responsabilidades por trás dos respectivos maridos ou governantes. A culpa do sangue a ser banida de Jerusalém talvez se refira aos sacrifícios insinceros (1.15), aos homicídios (1.21) ou mesmo aos sacrifícios de crianças (57.5) - atos que contavam com a participação das mulheres. 112 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 V.5 –“pavilhão”. Possivelmente é um sentido figurado: a promessa da proteção geral de Deus nos dias que se seguiram às aflições de Israel. TEXTO Do cap. 4 para o cap. 5 há uma mudança repentina de tema. Da esperança de tempos futuros, Isaías passa para a realidade dolorosa do momento imediato. Nessa mudança poética, as emoções de Deus são ressaltadas de modo impressionante, sobretudo seus sentimentos de dor e anseio. Apesar de todo o cuidado e amor dispensado ao seu povo, esperando que produzisse bons frutos, ele produziu frutos maus. Os primeiros dois versículos formam um pequeno cântico de amor que revela o prazer que Deus tem em seu povo escolhido, e, no fim, mostra a ingratidão daquele povo para com o Senhor (confira a parábola dos lavradores maus - Mt 21.33-43). V.1 - Israel como vinha (Sl 80.8; Jr 2.21) V.2 - Proteção divina (2 Cr 16. 9a) O cuidado de Deus para com seu povo. Proteção contra perigos. Frutificação (Mt 3.8). Cristãos produzem frutos em qualquer idade (Sl 92.14 Fruto do pecado (Dt 32.32; Os 10.13). “Abriu um lagar”. Na Palestina e no Líbano, os lagares geralmente eram abertos na rocha, em dois níveis: o superior - mais largo e mais raso, no qual as uvas eram pisadas (Is. 63.3), e o inferior - mais estreito e mais fundo para receber o líquido da parte superior, por intermédio de uma goteira. Através do AT vemos sempre de novo o cuidado e a atenção de Deus ao seu povo, pensando no seu bem-estar. A promessa de Deus se renova sempre de novo, isto é, nas bênçãos que derramaria sobre o povo se ouvisse a sua voz e seguisse seus conselhos e orientação (cf Is 48.18). Apesar do apelo e das promessas do Senhor ao seu povo, este mostrava-se rebelde e desobedecia, afastando-se do seu Deus. Os vv.5 e 6 são bastante fortes, em que Deus ameaça castigar o povo por não produzir frutos bons, mas “uvas bravas”. A chuva é essencial para o crescimento da semente e do fruto. As nuvens, feitas para chover, recebem ordens de não fazê-lo; o próprio Deus, com quem está a chave da chuva, deu ordens, ordenou que retivessem totalmente suas chuvas refrescantes. Hoje nós somos o povo escolhido de Deus. Somos a vinha do Senhor. 113 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 Ele espera que produzamos bons frutos. Mas também nós somos pecadores. Merecemos castigo. Não produzimos os frutos que ele espera de nós. Arrependendo-nos, ele se mostra gracioso e misericordioso. Concede perdão por causa de Cristo. Promete a salvação e nos dá certeza dela. Conhecendo a graça de Deus, tendo certeza da salvação, ele também nos anima e incentiva a produzirmos abundantes e bons frutos. Isto inclui o testemunho e o empenho de levar “Cristo para todos”. É o desafio da igreja. Lutero (Dr. Martin-Luthers Sammthliche Schriften, Vol.VI) diz o seguinte sobre o texto de Isaías: A “vinha” é o povo de Israel, o qual Deus “cercou” com a sua lei. As “vides escolhidas” são os juízes e reis, como Josué e Davi. A torre é a Palavra do Senhor, que Deus concedeu para o exercício e a preservação da fé. O “lagar” é o afogar do velho homem, do qual Rm 12.1 fala. “Uvas bravas” são pecados cometidos e que se manifestam de diferentes maneiras, naquele tempo também na morte de profetas e depois do próprio Cristo. SUGESTÃO DE TEMA Que tipos de frutos produz a vinha do Senhor (o povo de Deus)? 1 - Pela tendência natural são frutos maus. 2 - Com auxílio e a bênção do Senhor são frutos bons. Fermino Bündchen Cruz Alta, RS 114 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 VIGÉSIMO PRIMEIRO DOMINGO APÓS PENTECOSTES Isaías 25. 6-9 13 de outubro de 2002 ASPECTOS INTRODUTÓRIOS A ênfase desta perícope está no cântico, no banquete, na festa. Os vv.6-9 são empregados de forma bem adequada na leitura do AT para a Páscoa (cf. Trienal B), ou seja, a festa da ressurreição de nosso SENHOR. Os cap. 24 - 27 de Isaías formam o que comumente se denomina de “Apocalipse isaiano” visto que seu foco centraliza-se no triunfo de Deus sobre o anti-reino, representado no contexto pela cidade tirana. O cap. 25 antecipa a derrota dessa cidade, ocasião em que o Reino é estabelecido para sempre. A derrota da cidade motiva o cântico de louvor em 25.1-5 e 9. Este cântico reflete as ações de graças pela fidelidade divina em cuidar do Seu povo e livrá-lo de forças humanamente imbatíveis. TEXTO “Neste monte... todos os povos”, no v. 6, combina particularidade com universalidade. O monte, evidentemente, é Sião. Já no AT aplica-se a todos os habitantes da “cidade santa”; no NT, como em nossa liturgia e hinos, o termo é uma referência à igreja. Todos os que vêm à festa são convidados do SENHOR (cf. o evangelho do Dia, Mt 22.1-10). É o próprio rei quem convida. No Antigo Oriente Próximo a festa normalmente ocorria por ocasião da festa de coroação do rei (cf. 1Rs 1.25). Nessa ocasião o rei presenteava os convidados com honra, e até bens e favores. Este parece ser o pano de fundo deste texto. “Banquete de cousas gordurosas” - para um povo que não vê necessidade em se preocupar com o colesterol, as partes gordurosas da carne eram as melhores partes (Sl 36.8; 63.6). Nos sacrifícios, estas partes eram queimadas ao SENHOR, exclusivas Dele (Lv 3.3; 4.8-9). Mas aqui Deus está presenteando Seu povo com o que Lhe é exclusivo. “Vinhos velhos” (~yrmv - de rmv -) é o vinho que permaneceu guardado, decantado para tornar-se claro e puro: é o melhor vinho (cf. Jr 48.11; Sf 1.12). Vv. 7 e 8 mostram que o povo vem para o grande banquete com o véu sobre 115 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 suas faces. Conectando-se este v. com o v. 8, vê-se que a referência provavelmente é ao véu ou mortalha da morte. Antes que os seres humanos possam desfrutar a alegria da festa de Deus, algo deve ser feito com relação à maldição universal, que cobre e entristece toda a humanidade. E esta ação apenas Deus pode assumir. Tanto no v. 7 quanto no v. 8, o verbo é [lb, que significa “engolir”, “tragar”. O verbo em outros lugares é usado como equivalente a fazer desaparecer, tomando para si mesmo. Após a expulsão edênica, a morte traga a tudo e a todos e não pode ser tragada por ninguém das criaturas. Convive-se com a morte a todo momento e em todos os lugares. Deus, entretanto, é o único que pode tragar a Morte (no texto com artigo, personificada), no monte Sião. Que outra relação há senão com a morte e ressurreição de Cristo, a razão última pela qual se pode celebrar a festa? Nele a Morte foi tragada para sempre e para todos os povos da terra (Rm 6.14; 1Co 15.12-57; 1Ts 4.14; Ap 1.17, 18; 21.4). Esta é a última libertação. Podemos ser libertados da escassez e opressão, mas até que sejamos libertados da morte as demais libertações são “café pequeno” porque a Morte sempre ainda vence (Is 40.8). “Deus enxugará as lágrimas” é uma figura que demonstra carinho e consolo paternos à criança em aflição. Deus tirará a tristeza associada à inevitabilidade da morte. “E tirará o opróbrio do seu povo” é o resultado da vitória de Deus sobre a morte e o Seu oferecimento da celebração da vida. O pecado (natureza, inclinação, disposição) do povo trouxe vexame aos olhos das nações. Mas, naquele dia, ao tornarem para o monte Sião, toda a vergonha, decepção, fracasso terão sido apagados das vistas dele e de todos os povos. O v. 9 fala em esperança e salvação. “Esperar” (hwq) é um termo teologicamente importante no AT, especialmente no Saltério). Homileticamente, o pastor deve lembrar que no vernáculo “esperar” nem sempre envolve certeza; no contexto bíblico, entretanto, “esperança” é sinônimo de “certeza”. Cristãos também se lamentam, choram e se entristecem na presença da morte, mas não como os que “não têm esperança” (1Ts 4.13). A proximidade do final do ano eclesiástico lembra a “esperança” da segunda vinda do Noivo na consumação dos séculos (Ap 21.4). Nesse ínterim, a Morte continua a “ceifar” vidas, mas com seus dias contados. Entretanto, o povo de Deus, a “cidade santa” continua cada domingo a celebrar a festa do “dia do Senhor” (Ap. 1.10) e a “exultar e alegrar-se na sua salvação” porque vive na esperança e no aguardo Daquele que na história e na promessa é “o nosso Deus” (v. 9). SUGESTÕES HOMILÉTICAS 1. O texto aborda a questão da universalidade-particularidade-universali116 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 dade. Todos os povos estão envoltos com a “coberta” e o “véu” da morte. Sião, onde se materializa a salvação, é o único lugar onde todos podem buscar guarida. 2. A morte, ao adentrar o universo da humanidade, mostra-se uma vencedora imbatível. Mas a morte, esse monstro que traga a tudo e a todos, será tragada pelo “Monstro Maior” - o SENHOR dos Exércitos - que a faz desaparecer engolindo-a na sepultura de Cristo que se abre, se fecha e novamente se abre para trazer a vida e vida em abundância. 3. Liturgicamente, o uso de “véu” pode ser associado à Santa Ceia antes de os elementos serem descobertos para a sua distribuição. Uma vez esclarecido seu valor e consagrados, os elementos sacramentais concedem o benefício da vida e a salvação. 4. Apenas a ação divina interferindo no processo “natural” da morte e destruindo, aniquilando seu poder, desperta a esperança (certeza) da participação de todos os que aceitam o convite no grande banquete escatológico. SUGESTÃO DE TEMA Deus nos faz participantes do Seu divino banquete. Acir Raymann São Leopoldo, RS 117 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 VIGÉSIMO SEGUNDO DOMINGO APÓS PENTECOSTES Isaías 45. 1-7 20 de outubro de 2002 CONTEXTO O texto se insere mais ou menos na metade do ciclo profético dos capítulos 40-48, que contêm nove profecias, sendo a do nosso texto a sexta, em que o profeta profetiza que Ciro, o rei da Pérsia, será o ungido do Senhor para libertar o povo de Judá do cativeiro babilônico. A profecia toda se resume nos seguintes termos: “O Senhor fez de Ciro o irresistível vencedor dos príncipes e conquistadores da Babilônia por amor de seu servo Jacó, para que todo o mundo saiba que ele somente é Deus.” TEXTO V. 1 – Ciro naturalmente não foi ungido exteriormente, num ritual de consagração, em que se derramava óleo na cabeça dos israelitas que foram consagrados para seus cargos, como, por exemplo, os reis, sacerdotes e profetas. Mas Ciro, de um modo especial, recebeu poder do Senhor, que o tomou pela mão direita para vencer todos os obstáculos que se lhe antepunham nas suas conquistas gloriosas. Descingir os lombos dos reis é o mesmo que tirar-lhes o poder, enquanto cingir os lombos significava o contrário: armar-se ou preparar-se para o trabalho (cf. Jr 1.17; Jó 40.7). As portas que se lhe abriram para não se fechar mais é uma alusão às numerosas conquistas que realizou. V. 2 – No entanto, Ciro nada poderia fazer sem o auxílio de Deus, que iria adiante dele. Endireitar os caminhos tortuosos é uma expressão semelhante à de Is 40.3,4 e parece referir-se especialmente à extensão do reino messiânico, que as conquistas de Ciro iriam favorecer. Quebrar as portas de bronze e despedaçar as trancas de ferro podem ser uma alusão especial às 100 portas de bronze que guarneciam a cidade da Babilônia e que, humanamente falando, a faziam inexpugnável, problema que Ciro contornou, desviando o rio Eufrates de seu curso normal. V. 3 – Os antigos falam muito a respeito dos tesouros que Ciro conquistou, principalmente com a conquista da Lídia e da Babilônia, calculados em mais de 120 milhões de libras esterlinas. Eram tesouros escondidos e 118 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 encobertos em câmaras subterrâneas que contribuíram para a eliminação dos babilônios (cf. Jr 51.39; Dn 5.1) e depois para o enfraquecimento moral dos próprios persas. Os objetivos das conquistas de Ciro, no entanto, tinham um fim tríplice, o primeiro mencionado neste versículo e os outros dois nos vv. 4 e 6: 1) que o próprio Ciro conheça a Javé e saiba que ele é o Deus verdadeiro; 2) que Israel seja libertada por ele; 3) que todas as nações saibam que Javé é o único Deus. A conjunção final ![ml (para que) encabeça cada uma dessas três orações, indicando uma finalidade, objetivo ou propósito. V. 4 – O v. 4 indica a segunda finalidade ou propósito do chamamento de Ciro, que aconteceu por amor do servo de Deus, Jacó ou Israel. Pelo seu chamado Deus intencionou libertar os judeus do cativeiro babilônico e reconduzi-los a Sião, onde deveriam reedificar a cidade de Jerusalém e o templo, permanecendo como nação até a chegada de Siló, o Salvador das gentes, Jesus (Gn 49.10), que edificaria um reino para sempre (2 Sm 7.13). Deus chamou a Ciro pelo nome, isto é, o encara direta e pessoalmente. O vocábulo empregado para o nome é ~v, no original, que indica seu nome principal. Além de mencionar seu nome principal, Deus também lhe pôs o sobrenome (hnk), um epíteto ou nome de honra adicional. Em Is 44.28, Deus o chama de meu pastor e em 45.1 de seu ungido. A frase: ainda que não me conheces é repetida no v. 5 e soa como um estribilho. Deus chamou a Ciro pelo seu nome, ainda que este não o conhecesse. Chamar a Ciro pelo nome era a maior honra que lhe poderia acontecer. Somos informados que Ciro dava grande importância a conhecer as pessoas pelo nome e que ele sabia o nome de todos os seus soldados. Deus o chamara pelo nome muito antes de seu nascimento como o fez também com algumas personalidades bíblicas (cf. Jr 1.5; Rm 9.11). Não sabemos se Ciro se converteu. De acordo com uma inscrição arqueológica no Museu Britânico, ele era politeísta. Segundo as Escrituras, sabemos que ele reconheceu ter sido chamado pelo Deus de Israel para a tarefa de libertar os judeus e reconstruir o templo (cf. 2 Cr 36.22,23; Ed 1.14). Mas com isto ainda não é confirmada a sua conversão. Veja os exemplos de Balaão, Faraó, Acabe e outros. Mas, de qualquer maneira, não deixou de ser um instrumento de Deus para conduzir os destinos da História Universal de acordo com a sua vontade. V. 5 – Para Senhor, no original, Deus usa seu nome próprio Javé (hwhyy), no sentido de Êx 3.14: EU SOU O QUE SOU. Ele é o Senhor absoluto e 119 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 além dele não há outro Deus, frase que é mais uma vez repetida no v. 6. Essa menção de sua unicidade e singularidade reforça a frase seguinte: “Eu te cingirei”, oposta à frase do v. 1: descingir os lombos dos reis. Só o único Deus verdadeiro poderia cingir a Ciro, isto é, armá-lo a fim de desarmar muitos reis poderosos. Já vimos acima, no v. 4, que, de acordo com informações de passagens bíblicas, Ciro reconheceu ser instrumento chamado pelo Deus verdadeiro de Israel para a sua tarefa libertadora do povo dos judeus. O mesmo também é atestado por Josefo em sua obra Antigüidades, XI, 2: “Quando Ciro leu isso (Is 44.28) e admirou o poder divino, foi imbuído de um sério desejo e ambição para cumprir o que estava escrito.” V. 6 – O terceiro objetivo das conquistas e feitos de Ciro era que todas as nações do mundo, desde o oriente ao ocidente, reconhecessem que, além de Javé, não havia outro Deus. Assim o propósito final, nas palavras de J. Ridderbos, vai além da redenção de Israel. Esse propósito é desvendar a grandeza do Senhor diante das nações, a fim de que elas possam reconhecêlo como Deus (J. Ridderbos, Isaías, Edições Vida Nova, 1990, p. 374). Segundo Walter Roehrs, Deus, ao mesmo tempo que despertou a Ciro para libertar Israel da servidão física, armou o palco para o qual estava conduzindo os acontecimentos do mundo. Era seu propósito criar um Israel espiritual, uma comunhão dos santos, da qual participariam nações incorporadas no império persa. O Criador dos céus e da terra não deixaria fugir das suas mãos a direção da História para deixar o mundo mergulhado num caos de confusão (Walter R. Roehrs, Concordia Self-Study Commentary, CPH, 1979, p. 475). E Augusto Pieper conclui: “Ciro pertence às grandes personalidades da História Universal, através das quais Deus realiza algo especial para a consumação do grande segredo que é Cristo e sua comunidade. Ele não pertence à mesma galeria de um Moisés, Samuel, Davi, Isaías, Paulo, Agostinho, Lutero. Ele não é um espiritualmente grande. Mas ele é um dos grandes que deveria dar à marcha dos acontecimentos exteriores do mundo uma especial mudança para a concretização do plano divino da redenção. Sem Ciro, nenhuma libertação de Israel da Babilônia, nenhuma continuidade do povo judeu até Cristo, nenhum Cristo” ( Augusto Pieper, Jesaias II, Nortwestern Publishing House, 1919, pp. 221-222). A vinda dos magos a Belém, em Mateus 2, é uma prova dessa mudança histórica. V. 7 – Esse versículo nos lembra que Deus é o autor de todas as coisas. Ele é o autor da luz e das trevas, da paz e do mal. À primeira vista choca a frase: e crio o mal. O contexto, porém, indica que a frase não quer dizer que Deus deu origem ao mal, mas que ele, como um Deus justo, traz o mal sobre 120 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 os homens e nações por sua má conduta. Assim a vara, nas mãos da Assíria, era o instrumento do furor de Deus (Is 10.5). Deus está pessoalmente atrás de toda a desgraça, como também move toda folha nas árvores e as batidas de nosso coração. Esta noção da presença de Deus em todos os grandes e pequenos atos da vida dos homens o deísmo e o naturalismo quase que extinguiram no mundo ocidental e até no meio da cristandade. Para Lutero esta realidade era muito viva. Ele vê a ação imediata de Deus nos acontecimentos mais insignifcantes de sua vida. Confira seu sermão contra o turco. A Escritura está repleta desta visão. Confira o livro de Jó, especialmente os cc. 40 e 41, os Salmos 104 e 139; Rm 11.36; Am 3.6 etc. É preciso lembrar e frisar esta realidade muito mais em nossos sermões. PROPOSTA HOMILÉTICA Se enfocarmos o texto do ponto de vista da marcha dos acontecimentos do mundo, poderíamos estabelecer o seguinte tema com suas partes: Deus sempre manteve o mundo sob controle no passado e no presente 1. No tempo de Ciro controlou os acontecimentos da História a fim de estabelecer o reino do futuro Messias. 2. Em nosso tempo mantém o controle dos acontecimentos do mundo para consumar o seu reino eterno. Se quisermos dar ao texto um enfoque mais pessoal, poderíamos formular tema e partes assim: Deus chama a todos os seus filhos pelo nome 1. A Ciro chamou pelo nome a fim de realizar grandes feitos para o bem de seu reino no Antigo Testamento. 2. A nós também ainda hoje chama pelo nome a fim de realizarmos seus desígnios para o bem de sua igreja em o Novo Testamento. Paulo F. Flor Dois Irmãos, RS 121 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 VIGÉSIMO TERCEIRO DOMINGO APÓS PENTECOSTES Levítico 19.1-2, 15-18 27 de outubro de 2002 CONTEXTO O texto encontra-se dentro do capítulo conhecido como o “sermão da montanha do Antigo Testamento”. Concentra-se na santidade de comportamento para com Deus e o próximo. Prescreve atitudes que buscam atingir um propósito muito claro, comum a todas, ou seja, cumprir o santo sereis, porque eu, o Senhor, vosso Deus, sou santo (v.2). A nossa atenção de imediato é despertada para o modo de cumprir o “santo sereis”. O texto não aponta para um caminho de separação do mundo, de reclusão em lugares restritos para a prática de uma santidade por afastamento de tudo e de todos. Não é o que retiramos do texto. A perícope indica um outro caminho, pondo o filho de Deus em contato diário e constante com o seu próximo. Os filhos do povo de Deus são chamados a ser santos no convívio com os seus semelhantes. Olhado dessa forma, o texto ganha novo sabor. Em vez de engoli-lo pura e simplesmente como uma lei indigesta que exige algo em si impossível para seres pecadores, passamos a perceber nele um tempero muito especial. Por que não chamá-lo de tempero do sal? A santidade de vida não se restringe somente a uma questão no sentido vertical, entre o homem e Deus. Não, ela também se espalha no sentido horizontal. Nesse sentido ela favorece homens e mulheres a partir de atitudes coerentes com a vontade divina por parte daqueles que foram chamados para serem do povo de Deus. Homens e mulheres, também amados pelo Senhor, serão beneficiados por ações muito bem temperadas, pois a “receita” foi dada por Deus. Por detrás de tais ações há um duplo objetivo a ser atingido: que as criaturas humanas sejam valorizadas e amadas como tais, pois assim o quer o Criador delas; que o testemunho deixado pelos filhos de Deus através do agir deles aponte para o Senhor, a fim de que ele se torne conhecido, seja buscado por muitos e aceito na vida daqueles que antes, ou não o conheciam, ou não reconheciam nele a fonte de todas as bênçãos. A busca da prática da santidade nessa perspectiva dá ânimo diferente para nossa vida, pois nos coloca a oportunidade de servir de instrumentos pelos quais o amor de 122 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 Deus chega graciosamente na vida de criaturas que, por criação, são irmãos nossos. TEXTO Vv. 1 e 2 - As palavras são dirigidas a toda a congregação dos filhos de Israel. Estão, portanto, identificados os destinatários. São os que compõem o povo de Deus. Ouvir como povo de Deus as palavras do Senhor tem um significado muito especial. Israel não escolheu ser povo de Deus. Foi o Senhor quem os elegeu. Foi tão-somente um ato gracioso de Deus. Quem se dirigia à congregação naquele momento era o Deus gracioso. Não se tratava de um tirano a ditar leis e prescrever obrigações. Se assim fosse, o que viria a ser dito poderia receber uma reação de repulsa. Não era o caso, pois provinha da boca de quem se mostrara incompreensivelmente gracioso para com aquela raça. Unicamente por graça era o SENHOR, vosso Deus. Poderá vir algo desagradável para alguém da parte de quem se revelou gracioso? De forma alguma! Santos sereis determina a característica principal da vida do povo da aliança do santo Deus. Aparece como um alvo na direção do qual o povo deve procurar seguir. Santidade de vida entende-se da seguinte maneira: consagração a Deus e a conseqüente separação de tudo aquilo que provoca desonra do santo nome do Senhor. Era necessário isso, visto que Israel havia sido escolhido para ser luzeiro em meio às trevas, a fim de que outros povos vissem o Senhor e passassem também a honrar o seu santo nome. A lembrança da santidade a ser buscada mostra-se presente repetidamente nos versículos do capítulo 19, pois em vários deles aparece: Eu sou o Senhor, vosso Deus. Parece-nos que Deus se mostra preocupado em lembrar sempre de novo para os filhos de Israel que eles são o povo da aliança, justificando com isso a razão para requerer deles um procedimento de consagração. Temos diante de nós um texto de lei? Evidentemente que sim! Há que se notar, todavia, que a vontade do Senhor é colocada diante de quem o conheceu como Deus gracioso. Só o povo de Deus (fruto da ação graciosa), poderá se sentir motivado corretamente a buscar a santidade de vida. Não procurará ser santo para buscar a aprovação do Senhor a fim de se tornar povo dele. Não; porque já é povo dele e dá graças por isso, buscará honrar e servir o Senhor em santidade, em consagração, em renúncia daquilo que ofende o Senhor, pois não existe outra maneira de viver para honra e glória de Deus. V. 15 - deste, até o versículo 18, final da perícope, encontramos recomendações quanto à maneira de exercitar a santidade no trato com o próxi123 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 mo. No Israel antigo, se alguém era conduzido a julgamento, os juízes eram os anciãos do local. Naquele contexto, possíveis animosidades internas da localidade poderiam comprometer a justiça nos julgamentos. Por isso, a lembrança para o uso de justiça diante do próximo, não importando quem fosse. Uma piedade não justificada para com o pobre, bem como um favorecimento sem fundamento para com o grande, não espelharia a justiça de Deus, o que ocultaria a vontade do Senhor dos olhos daqueles que tivessem conhecimento do fato. V. 16 - Este versículo especifica um procedimento que visa a proteger a integridade do próximo, tanto moral quanto física. Neste versículo aparece a lembrança: Eu sou o Senhor. O povo de Israel conheceu muito intimamente que o Senhor ama as suas criaturas. Logo, os do Senhor não terão outra coisa diferente a fazer do que pôr em prática aquilo que já receberam de Deus: seu amor. O mexeriqueiro, o caluniador, não procede em amor. Sua atitude é agressão ao próximo, mesmo que esteja muito à distância dele. Ora, a agressão ao ser humano contraria os propósitos Daquele que o criou. Por isso, nem a agressão por meio da língua, em forma de calúnia, nem através de outro recurso, que põe em risco a vida de alguém, encontram aprovação por parte do santo Senhor. V. 17 - Parece haver aqui, no início do versículo, uma recomendação que conduz a uma atitude franca para com o próximo. Em lugar de armazenar ódio contra o irmão, atitude que provocará um afastamento cada vez maior entre ambos, além de levar ao sofrimento, pois o ódio não traz felicidade, o versículo indica o caminho da aproximação em vez da separação. Aproximar-se para repreender ... assim é a receita. Fácil de aplicá-la? De forma alguma, e bem sabemos por que razão não é fácil. Onde buscar forças para pôr em prática aquilo que não é fácil? Resposta: na identidade de cada um. As palavras do Senhor não estão sendo ditas para qualquer um, porém para aqueles que são seus filhos, povo da aliança. Como filho de Deus, quem é do povo da aliança age na confiança de que o caminho indicado pelo Senhor sempre é o melhor, embora não pareça fácil. Nesta confiança também está presente a certeza de que o Senhor irá capacitar para a tarefa proposta. A repreensão tem como alvo a recuperação do irmão e não sua condenação. É, portanto, também uma demonstração de amor. A parte final do versículo apresenta dificuldades para se obter claramente seu significado. “... e, por causa dele, não levarás sobre ti pecado” pode nos levar a pensar que a repreensão ao irmão por seu pecado nos livrará de compartilhar a sua culpa. Isso nos faz pensar em Ez 33.8,9. É provável, portanto, que as palavras se dirijam contra a omissão culposa. 124 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 V. 18 - A vingança e a ira serão substituídas por um dos dois grandes mandamentos: mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Novamente aparece o Eu sou o Senhor, lembrando da identidade do povo da aliança. O amor ao próximo não é uma possibilidade remota de se concretizar. Não, o povo de Deus pode amar, está capacitado para amar pelo próprio Senhor. O mandamento, portanto, não é uma ordem para buscar algo impossível. É antes uma palavra para viver uma realidade, pois do amor de Deus brota o poder para amar uns aos outros. APLICAÇÕES HOMILÉTICAS 1. Palavra de lei. Esta se volta contra um procedimento incorreto para com o próximo. Tal modo de agir causa problemas. São problemas não apenas no relacionamento com o próximo, mas, especialmente, com Deus, porque fere criaturas que o Senhor ama com o mesmo amor que dedica para nós. Em vez de sermos instrumentos de Deus para beneficiar o semelhante, opomo-nos a tanto com nossas atitudes destrutivas. Toda a influência que poderíamos e deveríamos ter como luz e sal na presença de outras criaturas, não acontece. Conseqüentemente, não haverá testemunho do amor de Deus e nem glorificação do seu nome. 2. Palavra de evangelho. O grande evangelho está presente na lembrança da aliança de Deus com o povo. A causa para a aliança foi tãosomente a graça divina. A mesma graça manifestou-se abundantemente na nossa vida. Em Cristo, principalmente, vemos como Deus age com as criaturas. Por nós, ele, Cristo, intercede para garantir perdão para nossos pecados contra o próximo. Para nós, ele, Cristo, age, capacitando-nos para viver o que somos pela fé nele: povo da aliança, tal como o Israel antigo. PROPOSTAS DE TEMAS a) O sermão pode explorar um tema que aborde o relacionamento com o próximo que nasce da nossa identidade. Quem somos? Somos do Senhor; somos povo da aliança. Pelo Senhor e com o Senhor vivamos aquilo que somos. b) Lembrança e sugestão. 27 de outubro assinala mais um aniversário do Seminário Concórdia de São Leopoldo. Completa 99 anos. Por que não incluir menção à data, como, por exemplo, uma obra graciosa de Deus para fazer chegar às pessoas a palavra que chama e atrai para dentro da aliança com o Senhor? Paulo Moisés Nerbas São Leopoldo, RS 125 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 VIGÉSIMO QUARTO DOMINGO APÓS PENTECOSTES Amós 5.18-24 3 de novembro de 2002 CONTEXTO O contexto histórico de Amós é paradoxal, estranho, chocante e merece atenção especial para que a perícope de 5.18-24 possa ser bem entendida. A pessoa do profeta Amós, a mensagem do Livro de Amós e a dramática situação religiosa, política, econômica e social de Israel apontam para momentos e atitudes que causam profunda perplexidade. Antes de elaborar o sermão, é preciso ler todo o Livro de Amós. O PROFETA Há uma série de peculiaridades em Amós, muito diferentes dos outros profetas do AT. Vejamos. Seu nome significa “aquele que suporta o jugo” ou “aquele que levanta e carrega fardos”. O jugo ou o fardo é Israel em sua impiedade. Nasceu em Tecoa, 16 Km de Jerusalém, no reino de Judá, bem no Sul, mas foi chamado e enviado para o reino de Israel, bem no Norte do país. Não é descendente de sacerdotes ou profetas (não era filho de pastor) nem exercia o ministério sacerdotal ou profético quando foi convocado pelo Senhor. Suas afirmações mostram que era um “líder leigo” em Judá, que conhecia a palavra de Deus. Veio do interior. Era colono ou agricultor ou chacreiro ou fazendeiro, um pastor de ovelhas e bois, e plantador de figos silvestres (7.14). Profetizou no século VIII a.C., época em que Roma era fundada. Na Bíblia, seu nome só aparece aqui no Livro de Amós. É classificado entre os “12 profetas menores” – pela brevidade do livro em relação “aos maiores” (Isaías, Jeremias, etc.). É também chamado de “o grande profeta menor” – pela profundidade e propriedade de sua mensagem num momento histórico do povo de Deus. Querendo pregar sobre a mensagem do Livro de Amós, é preciso falar-se também sobre a pessoa do profeta Amós. 1 - O povo – O profeta dirige seu discurso a um auditório hostil, um público rebelde, um povo de Deus obstinado e hipócrita. E era uma época de grande progresso, prosperidade e riqueza – Israel crescia materialmente e fazia novas conquistas militares. Mas o povo vivia em idolatrias e hipocrisia, em 126 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 luxúria e imoralidade, em falsidade e corrupção, em injustiça, suborno e massacre social – em pobreza espiritual. Eles viviam num grande engano: acreditavam que sua riqueza material fosse bênção de Deus e que, assim, podiam abusar de todos os bens e viver em extravagância e corrupção. A grande tarefa de Amós era transmitir a mensagem que mostrava Deus estar descontente e insatisfeito com esta terrível situação do “povo escolhido”. Amós deveria tirar a máscara de todos, promovendo uma “campanha” de limpeza e purificação espiritual e social em Israel e Judá. 2 - A mensagem – A longanimidade e a paciência de Deus com seu povo estavam se esgotando. Era preciso repreender e punir, a não ser que houvesse uma mudança radical e total. Deus, de fato, oferece uma segunda chance de arrependimento e retorno, enviando Amós como seu profeta, pregador e arauto. E Amós vai e prega. O Livro de Amós, na verdade, é um grande e veemente discurso sobre o arrependimento e juízo de Deus. O tema central é o chamado ao retorno e à mudança de vida. É julgamento e castigo. É restabelecer a aliança ou o protocolo que Deus havia feito. É pregação de lei! E Amós aponta, após o desmascaramento, o que Deus quer, isto é, uma vida regenerada e nova. Por isso as duas palavras: juízo e justiça ou justiça e honestidade (v.24). Detalhe importante: Amós sempre repete: “Assim diz o Senhor”! TEXTO Com este quadro colorido do contexto de Amós, apenas alguns destaques específicos da perícope. 1 - Ai – É uma exclamação que aponta para a importância e a gravidade do que será dito. Exprime um sentimento de preocupação, de espanto, de tristeza e de perplexidade. Também pode ser um gemido de dor, de desastre, de juízo, de julgamento. Ainda pode ser um recurso retórico para chamar a atenção do ouvinte/leitor, com o propósito de retorno, de mudança, de melhoramento. Jesus usou muito a exclamação: “Ai de vós...”. Amós repete o “ai de vós”, visando ao arrependimento e à salvação do “povo escolhido”. 2 - O Dia do Senhor – A expressão “dia do Senhor”, com algumas variantes, é muito comum no AT e NT. Amós é, provavelmente, o livro profético mais antigo e ele, assim, seria o primeiro profeta a usar “Dia do Senhor” no AT. Há diversas interpretações sobre seu significado. A mais aceita é a que interpreta o “Dia do Senhor” com o que a Bíblia também chama de “Grande Dia”, “O Dia”, “Dia do Juízo, “Naquele Dia”, “Dia da Vinda”, “Consumação dos Séculos”, “Juízo Final”. Seria o dia da consumação deste mundo, dia da ressurreição, do juízo final, e do rompimento dos “novos céus e nova terra”. Conferir Is 2.12-22; 127 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 13.6-10; Jr 46.10; Ez 7.19; Jl 1.15-20; 2.1-11; Zc 14.1; 2 Pe 3.10; Mt 24.3; 24.36. Israel interpretava, erroneamente, o “Dia do Senhor” como um dia de vitória total de Israel e destruição total das nações dos gentios e pecadores – aqui e agora, em seu favor. Amós faz a correção, mostrando que este “Dia do Senhor” será o dia do juízo, de julgamento, de castigo, de tristeza, de trevas e de escuridão – e não de luz, de triunfo, de libertação e vitória geral de Israel. Por isso, antes da vinda do “Dia do Senhor”, o chamamento ao retorno e mudança espiritual. 3 - Desprezo – Deus, na verdade, não é contra nem condena as festas, as alegrias, os cânticos, os sacrifícios, as ofertas do povo de Deus. Pelo contrário, tais eventos, momentos e manifestações são valorizadas e desejadas pelo Senhor nosso Deus. Há centenas de textos bíblicos que falam sobre o assunto. Logo, Amós diz que Deus aborrece, despreza, afasta, odeia, detesta a formalidade, a aparência, o abuso, a hipocrisia do povo nestas celebrações e eventos. Amós não deixa “pedra sobre pedra” (vv.21-23). Deus perdeu o prazer, a alegria, a vibração com a religiosidade falsa de seu povo. Era tudo da boca para fora, só aparência, só faz de conta. Por isso o “Senhor estava cheio” de seu povo. É oportuno traçar um paralelo entre as “festas de Israel” e as “festas da IELB” – e então refletir! APLICAÇÕES HOMILÉTICAS Como auxílios para a mensagem de púlpito, alguns lembretes. 1 - Texto - Embora o Livro de Amós seja um grande discurso de chamamento, de pregação da lei e de arrependimento, é possível sublinhar algumas afirmações muito edificantes ao longo do livro. Exemplos: - “Assim diz o Senhor” - “O Senhor não fará coisa alguma, sem primeiro revelar o seu segredo aos seus servos, os profetas” “Apregoai ofertas voluntárias, publicai-as” - “Prepara-te, ó Israel, para te encontrares com o teu Deus” - “Buscai o Senhor, e vivei” - “Aborrecei o mal e amai o bem” - “O Senhor me tirou de após o gado” - “Mudarei a sorte do meu povo Israel”. 2 - Perícope – Algumas idéias e sugestões que poderiam ser exploradas e aproveitadas na anunciação da mensagem: - Os ais do Senhor sobre o seu povo - O chamado, capacitação e envio do profeta – O pecado da hipocrisia - Amós, um líder leigo que é transformado em profeta - O que é e como será o Dia do Senhor - O desprezo do Senhor pelas cerimônias religiosas e eclesiásticas apa128 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 rentes e artificiais - O Senhor olha o coração e não apenas o que é da boca para fora - O arrependimento diário – Deus tira as máscaras - A missão do profeta numa sociedade corrupta - Mudar antes do juízo ou “Dia do Senhor”. MENSAGEM A retidão, a justiça, a honestidade, a moralidade são essenciais para uma sociedade digna, humana e saudável. A verdadeira religião e o verdadeiro culto são mais que observâncias exteriores de reuniões, assembléias, cânticos, orações, sacrifícios e ofertas. Deus vê e conhece os corações. O cristão ama a Deus e ao próximo. Cuidar dos pobres. Cuidado com a riqueza material; ela pode sufocar a riqueza espiritual e levar à corrupção religiosa. Em tempo: é difícil o pregador explorar, num só sermão. todos os lados e enfoques que Amós aborda. Seria um “balaio muito grande”. Muita cautela com o equilíbrio entre a aplicação de Lei e Evangelho. TEMA Como sugestão, algumas opções: COMO SERÁ O DIA DO SENHOR PARA OS IMPENITENTES (Como? Adversativa) I – Não será um dia de luz - não de claridade, brilho, glória - não de triunfo, libertação, salvação II – Mas será um dia de trevas - de escuridão, nuvens, negridão (Joel 2.2) - de julgamento, justiça, condenação AI DE VÓS ( Por quê?) I – Porque a vossa religiosidade é pura hipocrisia II – Porque desprezais a justiça e a honestidade Ou: PAREM COM ESTA OSTENTAÇÃO RELIGIOSA (Por quê?) I – Porque vocês estão mentindo para si mesmos II – Porque vocês não conseguem me enganar III – Porque no dia do Senhor a máscara de vocês vai cair. Leopoldo Heimann São Leopoldo, RS 129 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 ANTEPENÚLTIMO DOMINGO APÓS PENTECOSTES Jó 14.1-6 10 de novembro de 2002 - Sl 90. 1-12 - Expressa o cansaço e a fragilidade do ser humano diante da vida. Único atribuído a Moisés (Bíblia de Jerusalém). Parece ser a oração de um Moisés que anseia por ver finalmente o alvorecer sobre uma vida (vv.14,15) que experimentou angústias e contratempos. Um dos recados que fica aponta para o absurdo de viver e agir como se houvesse tempo para consertar erros e injustiças, fruto da inconsciência de quem faz por ignorar que cada instante da vida é definitivo aos olhos de Deus. - 1Ts 2.8-13 - Talvez um dos discursos mais “apelativos” do apóstolo. Uma linguagem marcadamente emocional que não permite ao leitor/ ouvinte espaço a não ser para concordar com o apóstolo. Entretanto, por isso mesmo, é um momento de grave reflexão para os mensageiros de Deus em todos os tempos a respeito da seriedade do compromisso de quem escolheu ser mensageiro de Deus junto ao povo de Deus. Se Paulo tivesse alguma dúvida sobre a seriedade dos seus motivos e procedimentos, ele próprio estaria se condenando. Assim como a oração de Moisés, também estas palavras de Paulo podem ser entendidas como palavras-testamento de um obreiro de Deus. - Mt 23.1-12 - Em contraste com o testemunho de Moisés e de Paulo recolhidos para esse domingo, Jesus mostra que Deus realmente está atento e vigilante sobre a postura teológica dos que se dizem seus mensageiros. Ensinar e fazer o que se ensina é a coerência que Jesus esperava. Não basta ensinar corretamente a respeito do amor de Deus enquanto o povo é atormentado com cargas de culpa e leis sem nenhum esforço de repartir as cargas e ajudar a carregá-las com atitude de mensageiro do evangelho que alivia, liberta e fortalece. 130 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 CONTEXTO (LITÚRGICO/HISTÓRICO) Sendo o antepenúltimo domingo do ano, é tempo de preparo para o advento. Visualizando a segunda vinda de Jesus, é tempo de também o pastor e a liderança da igreja mostrar o que é estar preparado. Quando vemos um gigante de Deus como Moisés expor toda a sua fragilidade, é de se perguntar até que ponto mensageiros da palavra e guias do povo se identificam com Moisés enquanto buscam servir com a entrega de Paulo e seus companheiros. É tempo de líderes encararem a fragilidade da vida e a proximidade de Deus e dirigirem-se ao povo não como mestres e pais (Mt 23.7-9), mas como servos que prestam serviço a alguém: Deus, o Pai, que certamente está no coração do povo esperando que este povo receba aquilo que ele, o servo maior, preparou para ser distribuído na palavra (Mt 24.45-51). TEXTO O sofrimento físico de Jó é algo que por si só merece ser avaliado. Jó, como qualquer ser humano, levanta a grande questão do por quê? Mesmo que houvesse uma resposta para essa questão, como os amigos de Jó acabavam de propor, resta ainda a pergunta mais crucial: Por que eu? De modo muito simplório, muitos sermões entram nessa busca de explicação apelando para o atalho implícito na verdade de que o sofrimento humano é conseqüência do pecado. Não resta dúvida de que todo o sofrimento na criação de Deus é resultante do pecado. Mas o ouvinte tem o direito de ver respeitada e respondida a pergunta que lhe é mais própria e mais próxima: Por que eu? No contexto, Jó desafia os seus amigos a provar que ele, Jó, havia pecado a ponto de fazer por merecer um castigo diferente do castigo ou punição que está reservado a qualquer pessoa. Jó está perfeitamente consciente da fragilidade humana e da sua insignificância diante de Deus. Entretanto, Jó sabe que Deus não busca afirmar seu poder e glória sobre a sua criatura por meio de punições. Jó desafia Deus a dar a conhecer a sua verdadeira e própria natureza. Jó faz mais: ele apela a essa natureza de Deus: Sobre tal homem (frágil, sombra), terá Deus que mostrar a sua força? (vers. 3). Se é Deus que impõe limites ao ser humano (v. 5), se do ser humano nada se pode esperar além de imundícia (v. 4), Jó pede que Deus ignore essa criatura, pois não merece a sua atenção. Ao confessar a absoluta perdição do ser humano, Jó está também cancelando o raciocínio dos amigos. Se Jó realmente fosse especialmente 131 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 culpado, significaria que pessoas menos culpadas que ele estariam salvando-se da perdição por esforços próprios, disputando e merecendo uma graça especial de Deus. Quando Jó nega ao ser humano qualquer possibilidade de agradar a Deus ou merecer algum tratamento especial, Jó, na verdade, está demonstrando a fé mais profunda de que em havendo salvação para o ser humano, esta somente pode vir de Deus, e não do ser humano. A frase do vers. 6 é reveladora: se Deus desviar os olhos do ser humano, isto já é alívio suficiente para quem se defronta com o seu juízo. Assemelha-se essa postura à do filho perdido da parábola a quem Jesus atribui as palavras de que ser jornaleiro na propriedade do pai era suficiente para quem sabia e tinha experimentado o que é querer merecer a vida com o esforço próprio, longe do pai. De uma maneira inesperada, essas palavras de Jó são, na verdade, um hino de quem canta “Das profundezas” e se lança absolutamente indefeso à mercê de Deus porque nada temos a oferecer a Deus, a não ser esperar por ele entregues ao seu juízo. “Levantar-me-ei”, diz o filho perdido. “Das profundezas clamo”, diz o salmista. “Volta-te Senhor”, canta Moisés no salmo do dia. “Para que tenha repouso”, completa Jó. Jó crê que no confronto, Deus pode desviar os olhos do pecado. E somente, se Deus desviar os olhos, pode haver esperança de repouso para cada pecador. E porque o pecado é tão grande e completo, Jó sabe que não será algo simples que fará Deus desviar o olhar. Assim podemos avaliar também o que terá significado para Jó exclamar: “O meu Redentor vive.” TEMA O repouso do ser humano está em Deus 1. O ser humano não encontra repouso para a inquietação que o consome. a. A inquietação que nasce do pecado b. A inquietação que nasce no seu confronto com Deus 2. Porque Deus “desvia dele os seus olhares” o ser humano a. Encontra repouso para a inquietação b. Encontra prazer para os seus dias de vida na terra. Paulo P. Weirich São Leopoldo, RS 132 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 PENÚLTIMO DOMINGO APÓS PENTECOSTES Jeremias 25. 30-32 17 de novembro de 2002 CONTEXTO No início do capítulo temos uma descrição bem apurada do contexto histórico no qual o texto está inserido, inclusive com datação. Provavelmente 605 a.C. A citação de Nabucodonosor na datação da profecia conectase à profecia do cativeiro (vv. 9 e 12). “É chamado o primeiro ano de Nabucodonosor (v. 1), rei da Babilônia, porque sob o comando do seu velho e decrépito pai Nabopolassar, Nabucodonosor tomara a condução da guerra contra o Faraó Neco do Egito.”1 Nesse ano Nabucodonosor começa a exigir tributos de Jeoaquim. Dos vv. 3 a 14 há o anúncio de que as tribos do norte sob o comando de Nabucodonosor trarão a ruína de Judá; depois de setenta anos, Babilônia cairá. Dos vv. 15 a 29, o cálice da ira de Deus é dado a Jeremias para que ele o distribua entre as nações. Dos vv. 30 a 38 o julgamento de Deus sobre as nações é dado em discurso público e direto. Jeremias claramente chama a atenção do povo para o fato de que durante 23 anos ele anunciou a palavra (v. 3). E o lamento do profeta e de Deus é: “vós não escutastes”. O texto dos vv.30 a 32 aponta para as conseqüências diante da recusa ao chamado de Deus ao arrependimento. E esse julgamento atinge não somente Israel, mas toda a terra (v. 29). Naturalmente haverá necessidade do uso dos textos do domingo e do contexto litúrgico para a aplicação do Evangelho. TEXTO O cálice da ira de Deus é colocado em ação na profecia; e em forma poética. Note a força das palavras do discurso: rugido, brados, estrondo, juízo, contenda, espada, mal e tormenta. Palavras que denotam batalha, embate, bem como violência (como a imagem das uvas sendo esmagadas). 1 KEIL, C. F., Commentary on The Old Testament in Ten Volumes. Eerdmans, Grand Rapids. V. III, pp. 370. 133 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 V. 30 - “lhes profetizará”; “todos os moradores da terra”: a profecia é para todas as nações (cf. v. 29). - “lá do alto rugirá”; “fará ouvir a sua voz”: uma imagem que aparece em Jl 3.16 e Am 1.2 (cf. Os 11.10 e Am 3.8). Mas aqui a origem está no alto, no céu. Ou seja, atinge também Jerusalém e Sião, a teocracia. - “contra a sua malhada”: ou “contra a sua pastagem” (algumas traduções trazem “habitação”). O rugir como de leão atinge o seu próprio povo. - “pisar as uvas”: na tarefa de pisar as uvas, bradava-se um “eia” para manter o ritmo do levantar e abaixar dos pés (cf. Is 63.3). A raiz é “esmagar”. Duas imagens se intercalam: o brado e o ato de pisar, de esmagar: a força conjunta do grito/palavra e a ação de pisar. V. 31 - “estrondo... terra”: (cf. Am 2.2). Esse estrondo é resultante da ação do v. 30; o barulho de guerra (Is 66.6) contra toda “a carne”, onde a “espada” é usada na batalha para trazer a justiça de Deus. Novamente vemos a ênfase da universalidade da ação e do discurso de Deus em seu julgamento. V. 32 - O “Senhor dos Exércitos” comanda também uma “tormenta”, uma tempestade (cf. 23.19) que se espalha por todo o mundo trazendo o “mal” dos confins da terra, do horizonte (cf. Is 41.25). APLICAÇÕES HOMILÉTICAS É impossível escapar do juízo do Deus dos Exércitos. Quando a ira de Deus se derrama sobre a humanidade, sobre o ser humano, não há lugar seguro debaixo do céu. A força do brado de Deus atinge a todos. A desobediência diante da santa morada, do Deus perfeito, traz o juízo desse Deus. E não há como escapar (Mt 25.41). Com a mesma intensidade, em palavra e poder (1Ts 1.5), Deus brada para todas as nações a sua salvação (1Ts 1.8,9), repercutindo no mundo a ressurreição de Jesus (1Ts 1.10). Esse mesmo Jesus virá (Mt 25.31) para o último julgamento e proclamará a salvação aos que creram e, conseqüentemente, frutificaram em ações de amor, que tornam a anunciar o amor do Pai em Jesus. Sugiro que o “meio” seja parte da mensagem usando-se algum recurso para que a voz tenha um volume mais alto que o normal no anúncio de Lei e Evangelho. Pode-se na introdução, por exemplo, usar uma narração dramatizada (gravada, de preferência) de Jr 25.30-32 e, no final da mensagem, outra dramatização de Mt 25.34. 134 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 SUGESTÃO DE TEMA Deus está gritando! A. Para mostrar sua justa ira 1. diante da desobediência do ser humano (Judá e nações) 2. que trará a espada no julgamento. a. Cativeiro Babilônico e ruína das nações b. Cativeiro Eterno (Mt 25.46a) B. Para anunciar a solução/salvação 1. Libertação do cativeiro e Nova Aliança (Jr 29.10, 13; 31.33c) 2. Libertação da condenação eterna (Mt 25.34) Fernando Henrique Huf Recife, PE 135 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 ÚLTIMO DOMINGO APÓS PENTECOSTES Ezequiel 34. 11-16, 23,24 24 de novembro de 2001 CONTEXTO O profeta Ezequiel prega aos israelitas exilados na Babilônia. O conjunto do capítulo 34 traz mensagens de juízo e graça. Juízo contra os pastores infiéis de Israel (vv. 1-10). Graça da parte de Javé, que se dispõe a tomar o lugar dos pastores infiéis para dedicar-se a seu povo em um pastoreio solidário e misericordioso (vv. 11-31). O exílio babilônico aconteceu de 597 a 538 a.C. Em diferentes levas, foram deportados especialmente os integrantes da corte (militares, funcionários de Estado e sacerdotes) de Jerusalém, num total de 15 mil pessoas. Na Palestina permaneceu a maioria da população, cerca de 100 mil pessoas, representantes da parcela mais simples e pobre do povo. Na Babilônia, os exilados foram assentados junto ao Rio Quebar e a TelAbibe. Haviam sofrido terrivelmente durante as longas marchas, quando muitos morreram. O sofrimento teve continuidade nos trabalhos forçados exigidos pelo povo dominador. Trabalhavam no campo, produzindo cereais para a própria subsistência e para o pagamento de tributos aos babilônios. Assim, a liderança judaica passou de uma situação de elite para a de agricultores primários. Tinham certas liberdades, por exemplo, para continuar preservando sua língua, ritos, costumes e religião. Nesse sentido, a dominação foi menos brutal do que a sofrida em outras situações. Ainda assim, os exilados sentiam profunda depressão em razão de sua condição de desterrados, do trabalho diferente, do fracasso dos valores, do fim de seu centro cultual e de Jerusalém e do fracasso do sistema monárquico, onde ocuparam funções privilegiadas. São apresentados por Ezequiel, no texto, como ovelhas dispersas, perdidas, desgarradas, alquebradas e enfermas. Ezequiel é um dos exilados e foi vocacionado ao ministério profético na Babilônia. Era sacerdote e provavelmente tinha atuado como tal no templo antes da deportação. Sua profecia reflete bem a condição da gente no exí136 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 lio, suas dores, fracassos, culpas e esperanças. Esta recebe a pregação de Ezequiel como mensagem do próprio Senhor. TEXTO Vv. 11-15 - O próprio Javé passa a ocupar-se com seu rebanho. A ênfase está em sua intenção de acabar com sua dispersão (v. 12). No v. 13, abre-se mão da linguagem figurada, pois deve ficar claro, retomando 20.34, que a referência fundamental é à dispersão de Israel entre os povos e países e a Javé, que irá reuni-lo e levá-lo de volta. O v. 12 assegura que também incluem-se aqui aqueles que foram dispersos “no dia de nuvens e de escuridão”, isto é, no dia do juízo de Javé sobre Jerusalém (587 a.C.). A segunda parte do v. 13 e o v. 14 remetem a 33.28, pois anunciam o repovoamento dos montes de Israel e o fim de sua devastação, com a garantia de fertilidade dada pelo próprio Javé. Ao mesmo tempo, antecipando 35.12, assegura-se que a avaliação feita pelos profetas de Edom não se fará realidade. O v. 15 ressalta uma vez mais que o próprio Javé é e permanece responsável por seu rebanho. É reforçada assim a idéia de que o Senhor quer efetivamente redimir a parcela de Israel que se encontra na diáspora. A profecia de Ezequiel quer animar os exilados com a esperança da libertação, do retorno e da nova reunião na terra de origem, além de exortar aqueles que permaneceram nela, a fim de que aceitem e promovam a integração dos que retornam. Vv. 16, 23, 24 - O v. 16 faz a transição a um trecho, o qual explicita que, além da relação problemática entre pastores e seu rebanho, existe ainda uma dificuldade inerente a este último: sua desordem. As imagens apresentadas a seguir (vv. 17-22) dão a entender que o povo de Javé se apresenta dividido em dois grupos. Um, de fortes e poderosos, que vive às custas de outro, formado pelos mais fracos e humildes. Ezequiel faz referência a uma situação marcada por graves distorções sociais, que Neemias procurou combater por volta de 445 a.C. A postura de Javé é clara em relação a isso: ele apascentará suas ovelhas com justiça. Javé demite os pastores irresponsáveis e assume o ministério de apascentar seu povo. Articula-se com isso a expectativa de uma teocracia ilimitada a ser concretizada na terra no futuro. Nos vv. 23s., põe-se a esperança na restauração da dinastia de Davi (cf. Jr 23.5s.; 30.8s.), antecipando o que será exposto em 37.25-28. Interessante é que aqui Davi não recebe o título de rei, mas uma função de pastor, igualmente de comando, como “príncipe em meio” às ovelhas. Quais serão concretamente suas tarefas? Isso permanece em aberto. Certo é que o texto diferencia claramente entre o príncipe, que assume um ministério em Israel, e o próprio Senhor de Israel. 137 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 APLICAÇÃO HOMILÉTICA Na profecia de Ezequiel, Javé se apresenta como pastor. Nossas sociedades urbanizadas não têm pastores de ovelhas. Mesmo no campo, a pecuária intensiva desenvolvida em espaços restritos não comporta mais a figura do pastor. Ainda assim, a imagem é tão conhecida da literatura, de obras de arte e de outras manifestações culturais, que a maior parte das pessoas não terá dificuldade de perceber o que expressa. O texto também é muito claro ao caracterizar o contraste entre as ações de pastores infiéis e o pastoreio modelar de Javé. O ponto alto do texto é a mensagem acerca do Senhor, que volta-se amorosamente para seu povo e solidariza-se incondicionalmente com ele em sua deprimente condição de povo exilado e oprimido, dispondo-se a agir com decisão para reverter completamente esse quadro. Cabe ao pregador explicitar essa mensagem à comunidade reunida. Muitas pessoas de nossas comunidades sabem muito bem o que é ter de viver em um lugar completamente diferente de onde nasceram e viveram os primeiros anos de sua existência. São em boa parte migrantes, forçados pelas circunstâncias a deixar as próprias raízes e desvincularem-se das relações familiares, culturais, profissionais e de fé, a partir das quais constituíram sua identidade. Facilmente podem existir aqui sentimentos e percepções análogos aos de quem vive no exílio, no desterro. Que consolo não trará, a essas pessoas, vivenciar o testemunho profético de que o Senhor, tal qual um pastor, vai ao seu encontro, amparando-as em sua fragilidade, fortalecendo-as em sua enfermidade, conduzindo-as ao lugar onde poderão sentir-se abrigadas e em casa? Ricardo Willy Rieth São Leopoldo, RS Os Auxílios Homiléticos para a Série B serão elaborados a partir da leitura do Antigo Testamento (ou 1a leitura). 138 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 DEVOÇÕES A LOUCURA DO EVANGELHO 1 Coríntios 1. 22-25 Em nome de Jesus, poder de Deus e sabedoria de Deus. Amém. Uma leitura descuidada e rápida do texto pode dar a impressão de que cristãos se vangloriam de serem estúpidos e irracionais. Será a mensagem cristã uma apologia ao relaxamento na elaboração de uma mensagem? Será ela o esforço consciente dos pregadores cristãos em elaborarem um anúncio sem sentido? Vale a pena observar que Paulo não diz que nós tornamos a mensagem do evangelho em escândalo e loucura; mas que ela o é ... para os que se perdem! É, porém, o que há de mais sábio e forte, mais do que qualquer palavra dos sábios e vigor dos homens. Há algo no próprio evangelho que se torna escandaloso e louco diante do mundo; mas que é recebido como a mais sublime sabedoria e poder entre os que crêem. A mensagem é “escândalo” - uma pedra na qual se tropeça e cai. Assim o foi para os judeus, diz Paulo. E, convenhamos, eles tinham suas razões. Afinal, quem tem o Antigo Testamento como base, vai lembrar das pragas que assolam o inimigo, do mar que é aberto, da água que sai da pedra, do alimento que cai do céu, enfim, sinais que apontam para o Deus Todo-Poderoso que está agindo. É de se perguntar, então: Será que Deus não vai continuar agindo assim, com poder, com sinais? E foi isso que os judeus exigiram de Jesus - “que sinal fazes para que o vejamos e creiamos em ti?” (Jo 6.30). Vale lembrar que ao lhe serem pedidos sinais, Jesus falou do que ele chamou de “sinal de Jonas”, ou seja, sua própria morte e ressurreição. Um Messias crucificado? Não era o que se poderia esperar, na visão de muitos judeus. Messias significa rei, significa glória, poder ... não cruz, vergonha, sofrimento! A mensagem é “loucura”. O estadista romano Cícero, que viveu no primeiro século antes de Cristo, falou sobre o horror que a cruz causava aos romanos, e que ela jamais deveria estar presente nem no corpo de qualquer 139 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 romano, nem em seu pensamento ou diante de seus olhos e ouvidos. Um Deus crucificado? Só pode ser uma “superstição perniciosa”, como disse o historiador romano Tácito. O evangelho do Cristo crucificado afronta os padrões da sabedoria humana; e isto, para os gentios da época de Paulo, cheirava à vulgaridade. Mais grave ainda, ela afronta o que há de mais humano - a certeza, ou ao menos esperança, de que as pessoas podem resolver os problemas através da reflexão, análise e tomada de decisão. É importante lembrar que Paulo havia dito, pouco antes, no v. 18, que “a palavra da cruz é loucura para os que se perdem”. Mas esta palavra é, de fato, “poder de Deus e sabedoria de Deus” (v. 24). O próprio Deus já havia alertado, pela boca de Isaías, que os seus caminhos e pensamentos são mais altos do que os caminhos e pensamentos humanos (Is 55.9). É que o poder e a sabedoria de Deus não se medem pelo seu impacto na razão e expectativa humanas, mas se caracterizam pelo amor de Deus, que traz salvação de um modo contrário a toda expectativa humana. Os judeus tinham seus motivos para desconfiar da mensagem da cruz como sendo de Deus. Afinal, a cruz os lembrava das palavras de Deuteronômio, “o que for pendurado no madeiro é maldito de Deus” (Dt 21.23). Sim, o evangelho é loucura e escândalo porque mostra um Deus santo e justo, diante de pecadores ímpios, que ao invés de castigo, propõe, no Seu Filho crucificado, perdão e vida incondicionais, totalmente imerecidos. Ao justo ele condena na cruz; aos ímpios ele declara justos - que loucura, que escândalo - ou, nas palavras do Hino 75: “Quanto amor! Oh! Quanto amor! Revelaste, ó meu Senhor!” O Evangelho continua sendo e sempre será desafiador, não só para o mundo, mas para a Igreja e para os pastores! Há propostas de poder e de sabedoria no caminho da Igreja neste mundo. Não faltam os planos, os projetos e programas que, na sua proposta, irão resolver os problemas da Igreja, seja na área das finanças, seja no evangelismo, seja no envolvimento das pessoas no trabalho. Fórmulas do tipo “Como ter sucesso no ministério”, “Como tornar sua Igreja eficiente”, “Como aumentar os números”, podem refletir a preocupação sincera de pastores e congregações com o trabalho no reino de Deus. Mas a trajetória do Evangelho nem sempre é aquela dos grandes resultados. Esta não é nenhuma defesa do relaxamento, do descuido, do desleixo ou do despreparo com a obra de Deus. Paulo não anuncia que nós tornamos o Evangelho loucura e escândalo, mas ele o é, pela sua própria natureza; que confronta o desejo humano de salvar-se a si mesmo. É preciso que pastor e Igreja deixem o evangelho ser escândalo e loucura. 140 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 Ou, não é um escândalo dizer que um bebê, nascido em pecado, nasce novamente, como filho querido de Deus, nas águas do Batismo? E que nós, até o fim de nossos dias, em nosso batismo teremos fonte de consolo e de amparo - somos filhos de Deus! É ou não um escândalo, que um homem pecador, parado diante de nós, diga, da parte do próprio Deus: “Eu vos perdôo”? É ou não é um escândalo e loucura que no pão e no vinho Jesus nos dê seu verdadeiro corpo e sangue, ao ponto de podermos sair daqui hoje exultantes com o perdão e vida eterna dados a nós no sacramento? Que “escândalo” e “loucura” benditos! Pois para nós, que fomos chamados por Deus, em Seu evangelho, esta palavra é poder e sabedoria de Deus, pela qual vale a pena, sim, dedicar nossa vida, nosso tempo, nosso estudo, nosso trabalho. Amém. Devoção proferida na Capela do Seminário Concórdia no dia 6 de março de 2002, pelo Rev. Prof. Gerson Luis Linden 141 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 O DEUS QUE CRIA COISAS NOVAS Isaías 65.17-25 Perto das 10h de ontem eu aplicava a prova de Grau 2 para os alunos do 40 ano na ULBRA, estes mesmos que aqui estão à nossa frente. Numa das vezes que saio da sala pelo corredor para buscar um copo d´água, vejo um aluno que acabara a prova e saíra da sala. Ele levanta um dos braços, esmurra o ar e esboça um grito que pelo esforço dele faria inveja a qualquer lobo das pradarias americanas que se vê em filme de caubói. Era uma explosão de alívio, de liberdade, de alegria, de regozijo; acabou, finalmente acabou. Como o aluno saíra da minha classe, eu deveria ficar um pouco magoado; mas pensei um pouco e entendi o seu gesto que interpretei com simpatia e compreensão. Esta tarde fica na história como um dos momentos mais marcantes e significativos para cada um de vocês formandos da ULBRA e do Seminário. É marcante porque a designação que recebem hoje é instrumento pelo qual vocês dão um passo a mais em direção ao ofício do santo ministério que Lutero chama de “o mais elevado ofício no Cristianismo”. É um momento significativo porque daqui a uns dias receberão um belo diploma, um deles em latim, que provavelmente será emoldurado e pendurado na parede do gabinete pastoral. Mas, além de ser marcante e significativo, este momento é, também, um momento de alegria e regozijo. Alegria, regozijo. Que é alegria? Disse alguém que a alegria é uma jóia de múltiplas facetas. E uma dessas facetas é o sentimento de ter o dever cumprido, de ter completado uma tarefa, concluído um projeto. Alegria e regozijo são o núcleo do texto de Isaías 65 porque ele fala de um passo adiante, de uma realidade à frente, de uma nova criação. Ele fala de coisas passadas sim, que não serão mais lembradas. E ele fala de bênçãos futuras, ou seja, de momentos de Deus que ele antecipa para nós e se tornam iminentes, imediatos. Deus cria coisas novas. Na palavra “novo” está o paradoxo. “Novo”, especialmente em Isaías, significa “cumprimento” , cumprimento das coisas antigas, cumprimento das coisas profetizadas. Isaías 65 é 142 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 um texto escolhido pela igreja para ser lido no último domingo do Ano Eclesiástico, antes do Advento. Com este texto celebramos o cumprimento de outro ano do Senhor como um tipo ou profecia do cumprimento de todas as coisas no Messias quem vem, no Emanuel, no Deus que está conosco. O objetivo da profecia em nosso texto evidentemente é apontar para o céu, para a eternidade, uma realidade que é difícil de ser descrita a não ser em termos opostos ao que nós conhecemos e vivenciamos neste mundo. Por isso também Deus neste texto fala de uma nova terra ao seu povo, oposta, especificamente oposta, ao exílio babilônico que parece ser a antítese imediata do novo céu e nova terra. O retorno do povo de Israel do exílio é um tipo de garantia, penhor, entrada do grande cumprimento, da gloriosa liberdade, da nova criação. Numa realidade de antíteses não há espaço para a alegria e regozijo. Nem o povo de Deus e nem Deus podiam alegrar-se quando Jerusalém caíra na mão do babilônios. Deus não se alegra senão quando a sua igreja, também está alegre e rejubila. Esta alegria mútua é impossível enquanto a natureza do pecado não for tratada. Mas o SENHOR assume esse tratamento na pessoa do Messias que no cap. 61 vem para anunciar boas-novas e trazer o ano da liberdade do SENHOR. E aí está o motivo da alegria e regozijo. Aí está a faceta mais brilhante da jóia. “Folgareis”, “exultareis” - na tradução os verbos estão no futuro. Mas, no original os verbos são dois imperativos: “folgai, exultai” ou, como diz a Nova Tradução na Linguagem de Hoje: “Alegrem-se”, “fiquem felizes para sempre com o que estou criando”. Imperativos são ordens. Podem alegria, regozijo, ser ordenados? É possível dar ordens a alguém para que seja alegre e se regozije? Claro que não! Na verdade este é o imperativo evangélico, o incentivo para que as novas criaturas, o povo de Deus, como nós, sejam o que efetivamente são: parte da nova criação de Deus. O imperativo conclama a que se comece logo a alegria porque a ação de Deus é imediata, a nova criação de Deus já começou, e está prestes a ser profetizada a outros por meio de nós - e de vocês. Prezados estagiários e formandos: daqui a dois meses você pendurou na parede do gabinete o seu diploma. A casa pastoral está em absoluto silêncio. A família pastoral dorme. São 4 horas da madrugada. Você se vira do outro lado na cama, aliviado com o sentimento de que não precisa ir às aulas no Seminário ou da ULBRA, não há hebraico para memorizar, nem monografias a escrever - e você volta a dormir profundamente. Vinte minutos depois o telefone soa. Você dá um pulo na cama mas fica deitado imagi143 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 nando que é um sonho. Telefones, campainhas, batidas à porta, perguntas que esperam respostas, respostas que esperam perguntas. Do outro lado da linha está uma voz, talvez familiar talvez não. As únicas palavra que você consegue ouvir é: “Pastor, aconteceu uma coisa”. Em cinco minutos você está atravessando a escuridão para falar uma palavra de conforto, esperança, perdão, paz, alegria. E através de vocês o SENHOR Deus terá começado uma “nova criação” para a “nova criação”. Que Deus vos abençoe. Devoção proferida no dia 21 de novembro de 2001 pelo Dr. Acir Raymann por ocasião da cerimônia de habilitação e designação de estágio aos alunos do Quarto Teológico e indicação de locais para o ministério na IELB aos alunos do Sexto Teológico. 144 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 RESCENSÃO CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO Por Oscar Cullmann. Traduzido por Daniel Costa e Daniel de Oliveira. São Paulo: Líber, 2001. 427 páginas. Oscar Cullmann (1902-1999) impressiona pelo conhecimento enciclopédico sobre o assunto, evidenciado não apenas pelo conteúdo exposto, mas pelas notas de rodapé e a ampla bibliografia ali referenciada. Obviamente o leitor contemporâneo poderá ficar decepcionado, face à inexistência de bibliografia posterior aos anos 50. Mas este é o ônus de trabalhar com uma obra escrita há meio século e só agora traduzida para o Português. O conteúdo do texto, a profundidade da pesquisa e a relevância das conclusões de Cullmann (mesmo onde não se possa concordar com o autor) porém, superam esta “deficiência”. O livro está dividido em quatro partes, precedidas de uma Introdução, onde Cullmann discute “O pensamento cristológico no cristianismo primitivo”, e de uma Conclusão, com “Perspectivas da Cristologia do Novo Testamento.” As partes são organizadas tendo o tempo/história como base para a divisão. A primeira parte trata dos “títulos cristológicos referentes à obra terrena de Jesus”: Jesus, o Profeta; Jesus, o Servo sofredor de Deus; Jesus, o Sumo Sacerdote. A segunda parte traz os “títulos cristológicos referentes à obra futura de Jesus”: Jesus, o Messias; Jesus, o Filho do Homem. A terceira parte refere-se aos “títulos cristológicos referentes à obra presente de Jesus”: Jesus o Senhor; Jesus o Salvador. A quarta parte, com os “títulos referentes à preexistência de Jesus”: Jesus, o “Logos”; Jesus, o Filho de Deus; Jesus chamado “Deus”. Em cada um dos capítulos, Cullmann, após refletir sobre determinado título de Jesus, a partir do contexto helenista, do Judaísmo, do próprio Jesus e da Igreja primitiva, pergunta-se em que medida o título estudado soluciona o problema cristológico. Quanto à importância dos títulos cristológicos, Cullmann procura mostrar que era por meio deles que se dava resposta à questão sobre quem era Jesus. Eles “buscam explicar o que há de único nele.” (p. 23) “Se Jesus é designado no Novo Testamento de maneiras tão 145 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 diversas, deve-se que a nenhum destes títulos pode, por si só, abranger a totalidade de sua pessoa e de sua obra. Cada um deles indica só um aspecto particular da pessoa de Cristo.” (p. 23) Sobre seu método teológico, Cullmann mesmo afirma: “Renunciando a considerações metodológicas profundas ... nos limitaremos a sublinhar aqui que não reconhecemos outro método senão o histórico e filológico, este demonstrado pela experiência; nem outra atitude com respeito ao texto além de uma inteira disposição de escutá-lo honestamente, inclusive quando o que nos disser seja estranho ou contradiga nossas, determinadas e muito queridas, concepções. Para compreender e explicar o texto, faremos, pois, abstração de nossas “opiniões” filosóficas e teológicas pessoais e nos negaremos a desqualificar, como agregados secundários, aquelas afirmações neotestamentárias que não se enquadrem com ditas opiniões.” (Prefácio do autor, p. 16) O “ranço” do método histórico-crítico (particularmente com o instrumental da Crítica da Redação e da Crítica das Formas) está bem presente em algumas discussões de Cullmann. Pode-se notar, por exemplo, na questão a respeito da “autenticidade” de determinados textos, se são palavras de Jesus ou não (veja-se, por exemplo, pp. 88ss). Isso fica bastante evidente também no método adotado por Cullmann. Ele considera separadamente cada assunto, no pensamento de Jesus e no que o autor denomina “cristianismo primitivo”, que se refere aos evangelistas (ou às comunidades que estão por detrás deles!). Cullmann se revela, por vezes, um ardoroso crítico às idéias da teologia liberal; por exemplo, sobre a idéia de uma revelação geral, presente em todas religiões, que se torna especial no cristianismo (p. 346). Ou então quando designa de “dogmatismo” uma atitude que a priori negue a possibilidade de Jesus e os primeiros cristãos terem dado aos termos conteúdo completamente novo (p. 354). Tal observação se reveste de especial importância quando se percebe que Cullmann não deixa de dialogar com a pesquisa contemporânea (a ele). Uma palavra interessante contra os críticos mais radicais: “Certamente devemos evitar as tentações de harmonização que façam violência aos textos e devemos deixar subsistir as dificuldades que neles se encontrem de maneira efetiva. Porém, como especialistas do Novo Testamento, não corremos o risco de sucumbir a um tipo de deformação profissional que consiste em experimentar uma alegria quase insana ao constatar contradições e a nos irritarmos contra toda tese que estabeleça um elo ou uma relação – ainda que fosse entre Jesus e Paulo?” (96). 146 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 Em conclusão, podemos chamar a atenção do leitor para algumas reflexões particularmente relevantes, feitas por Cullmann. Por exemplo, em contraste com a crítica liberal, sua afirmação de que “O fundamento de toda cristologia é a vida de Jesus”, em outras palavras, a ação de Jesus no mundo, como Servo, Filho do Homem, etc. Outra questão interessante é a afirmação, diversas vezes repetida, de que o docetismo é a “heresia cristológica fundamental” contra a qual o Novo Testamento se levanta. Além disso, a insistência de Cullmann de que a idéia de “substituição” é uma das mais fundamentais na cristologia do Novo Testamento. Dedicar um livro inteiro, com tamanha profundidade de pesquisa, ao tema da Cristologia já é, por si só, elogiável. Isso é especialmente relevante tendo em vista que o lugar onde normalmente se estuda este tema na Teologia Sistemática (Dogmática) reserva bastante tempo para as controvérsias cristológicas e as questões envolvendo a pessoa de Cristo. Cullmann, porém, está especialmente interessado na obra de Jesus. É, portanto, um estudo muito bem-vindo para todos quantos consideram Cristo e sua obra como o centro da Teologia, sua fonte e seu conteúdo. Gerson Luis Linden 147 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 FICHA DE ASSINATURA SIM! DESEJO FAZER UMA ASSINATURA DA REVISTA IGREJA LUTERANA. PARA ISSO, ESTOU ASSINALANDO UMA DAS SEGUINTES OPÇÕES: • • UMA ASSINATURA DE IGREJA LUTERANA POR UM ANO, POR R$ 17,00 UMA ASSINATURA DE IGREJA LUTERANA POR DOIS ANOS, POR R$ 30,00. NOME RUA OU CAIXA POSTAL CEP CIDADE ESTADO Após preenchida, coloque num envelope esta folha acompanhada de cheque nominal ao Seminário Concórdia no valor correspondente e remeta-o para: REVISTA IGREJA LUTERANA CAIXA POSTAL, 202 - 93.001-970 SÃO LEOPOLDO, RS ASSINATURA DE PRESENTE: SIM! DESEJO PRESENTEAR COM UMA ASSINATURA DA REVISTA IGREJA LUTERANA A PESSOA INDICADA NO ENDEREÇO ABAIXO. PARA ISSO, ESTOU ASSINALANDO UMA DAS SEGUINTES OPÇÕES: • • UMA ASSINATURA DE IGREJA UMA ASSINATURA DE IGREJA LUTERANA POR UM ANO, POR R$ 17,00 LUTERANA POR DOIS ANOS, POR R$ 30,00. NOME RUA OU CAIXA POSTAL CEP CIDADE ESTADO Após preenchida, coloque num envelope esta folha acompanhada de cheque nominal ao Seminário Concórdia no valor correspondente e remeta-o para: REVISTA IGREJA LUTERANA CAIXA POSTAL, 202 - 93.001-970 SÃO LEOPOLDO, RS 148 Igreja Luterana - nº 1 - 2002 SEMINÁRIO CONCÓRDIA Diretor Paulo Moisés Nerbas Professores Acir Raymann, Clóvis Jair Prunzel, Ely Prieto, Gerson Luís Linden, Leopoldo Heimann, Norberto Heine (CAAPP), Paulo Gerhard Pietzsch, Paulo Moisés Nerbas, Paulo Proske Weirich, Vilson Scholz. Professores Eméritos Donaldo Schüler, Martim C. Warth IGREJA LUTERANA ISSN 0103-779X Revista semestral de Teologia publicada em junho e novembro pela Faculdade de Teologia do Seminário Concórdia, da Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB), São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil. Conselho Editorial Acir Raymann (editor), Vilson Scholz Assistência Administrativa Janisse M. Schindler A Revista Igreja Luterana está indexada em Bibliografia Bíblica Latino-Americana e Old Testament Abstracts. Os originais dos artigos serão devolvidos quando acompanhados de envelope com endereço e selado. Solicita-se permuta We request exchange Wir erbitten Austausch Correspondência Revista IGREJA LUTERANA Seminário Concórdia Caixa Postal 202 93.001-970 – São Leopoldo, RS 149