CASO CLÍNICO R E V I S TA P O R T U G U E S A DE CIÊNCIAS VETERINÁRIAS Trauma elétrico em preguiça de vida livre: relato de caso Electric trauma in a wild sloth: a case report Dayanne Anunciação S. D. Lima1*, Wagner C. Lima1, Marcelo C. Rodrigues2, Ana Maria Quessada2, Karynne M. M. dos Santos3, Charlys Rhands C. de Moura1, Cláudia S. Magalhães1, João M. de Sousa2 1 Programa de Pós-Graduação em Ciência Animal, Universidade Federal do Piauí – UFPI 2 Hospital Veterinário da Universidade Federal do Piauí – UFPI 3 Graduação em Medicina Veterinária, Universidade Federal do Piauí – UFPI Resumo: As preguiças do género Bradypus são largamente encontradas em grande parte da região Nordeste do Brasil. O crescimento da população humana tem levado à destruição das áreas de ocorrência natural dessas espécies que cada vez mais são encontradas em zonas urbanas e sujeitas a acidentes diversos. Um exemplar de Bradypus variegatus foi encaminhado para um Hospital Veterinário apresentando inapetência, otorragia bilateral, desidratação moderada e queimaduras localizadas nos membros torácicos e pélvicos decorrentes de choque elétrico em fios de alta tensão. Após avaliação clínica, laboratorial e eletrocardiográfica, foi instituído tratamento ambulatorial e cirúrgico. Não houve melhora do quadro clínico e o mesmo evoluiu para o óbito. Alterações nutricionais, imunológicas e microbiológicas justificam a gravidade do quadro clínico e a progressão para o óbito. O eletrocardiograma estava normal, apesar de a fibrilhação ventricular ser um evento esperado nestes casos. A ausência de fibrilhação ventricular pode estar relacionada à capacidade de reversão espontânea a alterações cardíacas que a preguiça possui. Dessa forma, a abordagem de emergência em casos de trauma elétrico é obrigatória, principalmente tratando-se de animais silvestres. Não menos importantes são o manejo nutricional e o acompanhamento por meio de exames laboratoriais. Palavras-chave: animal silvestre, Bradypus variegatus, queimadura, choque Summary: Sloths of the genus Bradypus are largely found in much of northeastern Brazil. The human population growth has led to the destruction of areas of natural occurrence of these species, and these animals are more often found injured in urban areas, mainly by electric shocks. A specimen of Bradypus variegatus was transported to a veterinary practice with a history of trauma after contact with electrical power lines. It presented low level of consciousness, somnolence, bilateral otorrhea, burns and moderate dehydration. After clinical, laboratory and electrocardiographic tests, ambulatorial and surgical treatments were initiated. There was no clinical improvement, and the animal died. Nutritional, immunological and microbiological alterations justified the severity of the clinical progression and death. The electrocardiogram was normal, although *Correspondência: [email protected] Universidade Federal do Piauí, Centro de ciências Agrárias, Campus Socopo, CEP 64049-550, Teresina, PI ventricular fibrillation was an expected event. The absence of ventricular fibrillation may be related to the resistance that sloth has to heart changes with the possibility of spontaneous reversion. Thus, an emergency approach in cases of electrical trauma is mandatory, especially when dealing with wild animals. No less important are the nutritional management and monitoring through laboratory tests. Keywords: wild animals, Bradypus variegatus, burn, shock Introdução As preguiças são mamíferos da família Bradypodidae composta por dois géneros, Choloepus e Bradypus, diferenciados entre si pelo número de dedos. O género Bradypus é largamente encontrado em grande parte da região Nordeste do Brasil (Silva et al., 2005). São animais de porte médio, apresentam coloração geral cinza tracejada de branco ou castanho-ferrugem, podendo ter manchas claras ou negras. Possuem membros compridos, corpo curto, cauda curta e grossa, adaptados para o seu modo de vida. Com comportamento solitário, noturno e diurno, apreciam ficar nas copas das árvores expostas ao sol matinal e têm hábito alimentar composto basicamente por folhas de diversas espécies arbóreas. O crescimento da população humana tem levado à destruição das áreas de ocorrência natural dessas espécies que cada vez mais são encontrados em zonas urbanizadas necessitando de cuidados veterinários imediatos (Silva et al., 2005). Dentre as várias afecções que podem acometer animais silvestres em áreas urbanas, os choques elétricos estão em destaque, inclusive em preguiças já que, pelos seus hábitos arborícolas, estes animais podem alcançar postes de alta tensão e serem vítimas de descargas elétricas (Petrucci et al., 2009; Araújo et al., 2010; Fonseca et al., 2011). As preguiças apresentam movimentos muito lentos, baixa taxa metabólica e 199 Lima DASD et al. sistema cardiovascular com algumas peculiaridades (Silva et al., 2005). Objetivou-se relatar detalhadamente um caso de trauma elétrico em preguiça de vida livre. História pregressa, diagnóstico e tratamento Um exemplar de B. variegatus, fêmea, sem idade definida, foi atendido no Hospital Veterinário da Universidade Federal do Piauí (HVU), com história de trauma elétrico após contato com fios de alta tensão. À inspeção, o animal apresentava ulceração cutânea nas regiões palmar e plantar e na face lateral esquerda do dorso (Figura 1), baixo nível de consciência e sonolência, com pouco ou nenhum movimento quando estimulado, otorragia bilateral, condição corporal magra e desidratação moderada. O animal foi encaminhado para o internamento no HVU e, após a realização dos exames clínico e eletrocardiográfico, ficou sob observação quanto à evolução do quadro clínico. Os parâmetros eletrocardiográficos (Pms, PmV, PRms, QRSms, RmV, QTms e RRms) foram registrados em derivação DII e amplitude 2N com velocidade de 25 mm/s (Figura 2); a frequência cardíaca (FC) foi calculada através do intervalo RR; a frequência respiratória (ƒ) obtida pela contagem dos movimentos da parede torácica em um minuto e a temperatura retal (TR) pela inserção de termómetro clínico digital na ampola retal durante 1 minuto. Amostra de sangue foi coletada para análise hematológica. Durante o internamento, foi administrado fluido endovenoso (Ringer com lactato 10 mL/kg/hora), anti- RPCV (2012) 107 (583-584) 199-202 biótico (enrofloxacina 10 mg/kg/24-24h, via intramuscular - IM), analgésico (tramadol 2 mg/kg/8-8h/IM) e anti inflamatório (dexametasona 1 mg/kg/24-24h/IM). A cada 12 horas, o animal foi submetido à limpeza e curativo das feridas com uso de solução salina (NaCl 0,9%) e nitrofurazona. O animal permaneceu 10 dias internado sob alimentação e ingestão de água forçada (aspersão em folhas frescas de imbaúba previamente lavadas). Não havendo melhora satisfatória do quadro clínico, o animal foi encaminhado para o centro cirúrgico para debridamento das feridas (Figura 3). A indução anestésica consistiu da associação de quetamina (2,5 mg/kg) e xilazina (0,3 mg/kg) administrada na mesma seringa por via IM, seguida da manutenção com isoflurano diluído em 100% de oxigénio oferecido por meio de máscara facial em circuito semi-aberto. Após a cirurgia o quadro clínico deteriorou-se e dentro de 48 horas, ocorreu o óbito do animal. Foi solicitado o exame post-mortem. Resultados e discussão A manutenção de um Bradypus em cativeiro é um desafio, dado este género ser muito vulnerável ao "stress" adaptativo com consequente baixa imunológica e, na maioria das vezes, com alteração respiratória de difícil resolução (Miranda e Costa, 2006). Além disso, as queimaduras estão intimamente relacionadas a alterações agudas nos sistemas nutricional, imunológico e microbiológico que podem interferir na recuperação do paciente. Ocorre ativação de mecanismos inflamatórios, imunidade celular e alterações de Figura 1 - Exemplar de Bradypus variegatus, fêmea, sem idade definida, apresentando ulceração cutânea decorrente de queimaduras causadas por trauma elétrico após contato com fios de alta tensão. Figura 2 - Traçado eletrocardiográfico de um exemplar de Bradypus variegatus, fêmea, sem idade definida, registado em derivação DII e amplitude 2N com velocidade de 25 mm/s, após trauma elétrico por contacto com fios de alta tensão. 200 RPCV (2012) 107 (583-584) 199-202 Lima DASD et al. mediadores do sistema imunitário (Barbosa et al., 2009). Tais elementos podem justificar a gravidade do quadro clínico do animal sem resposta ao tratamento instituído e progressão para o óbito. A frequência cardíaca da preguiça está sob o controle do sistema nervoso autónomo e é menor do que o registado em outros mamíferos do mesmo tamanho, tais como cães e coelhos (Silva et al., 2005). Nesse caso em questão, a frequência cardíaca de 79 bpm e a respiratória de 10 mpm observadas durante o exame clínico no dia do atendimento estavam normais para a espécie (60-110 bpm e 10-80 mpm, respectivamente) (Gilmore et al., 2000; Duarte et al., 2004; West et al., 2007; Hanley et al., 2008). A termorregulação é vital e, baseada nas alterações climáticas do ambiente, garante uma grande faixa de variação (24-33 ºC) (Gilmore et al., 2000; Miranda e Costa, 2006; Hanley et al., 2008) como observado neste estudo em que a temperatura retal do animal manteve-se entre 33 e 34 ºC. Na análise laboratorial, a hematologia confirmou a condição de desidratação observada durante o exame clínico da preguiça (hematócrito > 40%) (Gilmore et al., 2000). Não foram diagnosticadas alterações eletrocardiográficas, sendo o ritmo sinusal normal prevalente. Os dados obtidos (Tabela 1) foram semelhantes aos encontrados em outros estudos (Silva et al., 2005). No eletrocardiograma de vertebrados o conjunto de ondas é semelhante entre as espécies, independentemente de a condução elétrica ventricular ser mediada pelas fibras de Purkinje (mamíferos e aves) ou por músculos apropriados (animais poiquilotérmicos) (Prosser e Brown Jr., 1975 citado por Silva et al., 2005). Extensos estudos em animais indicam que a fibrilhação ventricular é a principal causa de morte em casos de choque elétrico e resulta da elevação dos níveis de catecolaminas e ativação do sistema nervoso simpático aumentando o trabalho cardíaco (Bradford e Regan, 1985). Podem estar associadas a queimaduras profundas e paragem respiratória proveniente de paralisia bulbar resultante de incontroláveis contrações tetânicas dos músculos respiratórios. Devido à queimadura grave da musculatura ocorre maior libertação de mioglobina a qual se deposita nos túbulos renais e induz efeitos tóxicos diretos. Para reduzir este evento adverso recomenda-se a administração imediata de soluções alcalinas (Bradford e Regan, 1985), como foi feito neste animal. A ausência de fibrilhação ventricular nesta preguiça pode estar relacionada à resistência característica que a espécie possui comprovada em um estudo comparativo com o gato doméstico devido sua semelhança de porte (Oliveira et al., 1980). Foi observado que além da resistência, uma vez que a fibrilhação era induzida, a recuperação era mais rápida do que no gato com 40% das preguiças apresentando reversão espontânea do quadro. Em outro estudo comparativo das características mecânicas de enfarte em preguiça, gato e rato, não só a contratilidade, mas também o processo de relaxamento foram retardados na preguiça em relação às outras espécies (Gilmore et al., 2000). O laudo necroscópico foi conclusivo para sepsis a qual pode ser explicada pela ruptura da barreira de proteção constituída pela pele provocando infecção, fator determinante de mortalidade (Ramakrishnan et al., 2006) como aqui observado. Pode ser feito o isolamento de microrganismos no local da infecção, ainda que, em lesões de queimaduras, seja predominante a microbiota normal da pele como, por exemplo, os géneros Staphylococcus e Streptococcus (Diniz et al., 1995). Ressalta-se que o estado nutricional inadequado intensifica as complicações e as taxas de morbidade e mortalidade, geralmente elevadas em pacientes queimados (Farrell et al., 2008). Tabela 1 - Variáveis eletrocardiográficas obtidas em Bradypus variegatus durante exame clínico após trauma elétrico de alta tensão. Parâmetro Onda P Intervalo PR Segmento PR Complexo QRS Intervalo QT Onda R Onda T Duração (ms) 0,04 (*0,05±0,02) 0,11 (*0,13±0,02) 0,07 (*0,07±0,02) 0,06 (*0,07±0,02) 0,34 (*0,38±0,04) 0,03 -------- Amplitude (mV) 0,08 (*0,05±0,07) ----------------------------0,05 0,03 (*0,08±0,15) * Valores de referência para a espécie segundo Silva et al. (2005). Figura 3 - Debridamento da ulceração tecidual decorrente de queimaduras causadas por trauma elétrico após contato com fios de alta tensão, em um exemplar de Bradypus variegatus, fêmea, sem idade definida. 201 Lima DASD et al. RPCV (2012) 111 (583-584) 199-202 Conclusão Fonsêca FS, Miranda TKS, Duque PR, Santos JM, Alves TC, Ferreira AC, Sá FB, Valença YM (2011). Relato dos casos de acidentes por choque elétrico com sagui do nordeste (Callithrix jacchus) no centro de triagem de animais silvestres do Ibama-PE. In: 35° Congresso da Sociedade de Zoológicos do Brasil. Gramado, Rio Grande do Sul. Disponível em: <http://www.propague.net/ resumos_aceitos.pdf>. Acesso 01/2012. Gilmore DP, Da-Costa CP, Duarte DPF (2000). An update on the physiology of two- and three-toed sloths. Brazilian Journal of Medical and Biological Research, 33, 129-146. Hanley CS, Siudak-Campfield J, Paul-Murphy J, Vaughan C, Ramirez O, Keuler NS, Sladky KK (2008). Immobilization of free-ranging hoffmann´s two-toed and brown-throated three-toed sloths using ketamine and medetomidine: a comparasion of physiologic parameters. Journal of Wildlife Diseases, 44 (4), 938-945. Miranda F e Costa AM (2006). Xenarthra (tamanduá, tatu, preguiça). 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West G, Carter T, Show J (2007). Edentates (Xenartha). In: West G, Heard D, Caulkett N. Zoo animal & Wildlife Immobilization and Anesthesia. Iowa: Blackwell, 349354. Dessa forma, a abordagem de emergência em casos de trauma elétrico é estritamente necessária para conseguir a ideal resolução do quadro clínico dos animais acometidos por esse agravo, principalmente em se tratando de animais silvestres. Não menos importantes são o maneio nutricional e o acompanhamento através de exames laboratoriais. Bibliografia Araújo GD, Kanayama CY, Machado FME (2010). Trauma elétrico em macaco bugio (Alouatta guariba, HUM BOLDT, 1812): relato de caso. In: Anais do I SINCA – Simpósio Nacional em Ciência Animal, Universidade Federal de Uberlândia, 2010. Disponível em: < http://www.sinca.famev.ufu.br/ANAIS%20I%20SIN CA.pdf>. Acedido em 02 fev. 2012. Barbosa ASAA, Calvi SA, Pereira PCM (2009). Nutritional, immunological and microbiological profiles of burn patients. 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