O autismo, também chamado de Transtorno do Espectro Autista, é um Transtorno Global do Desenvolvimento (TGD) que tem influência genética e é causado por defeitos em partes do cérebro, como o cerebelo, por exemplo. Caracteriza-se por dificuldades significativas na comunicação e na interação social, além de alterações de comportamento, expressas principalmente na repetição de movimentos, como balançar o corpo, rodar uma caneta, apegar-se a objetos ou enfileirá-los de maneira estereotipada. Todas essas alterações costumam aparecer antes mesmo dos 3 anos de idade, em sua maioria, em crianças do sexo masculino. Para o autista, o relacionamento com outras pessoas costuma não despertar interesse. O contato visual com o outro é ausente ou pouco frequente e a fala, usada com dificuldade. Algumas frases podem ser constantemente repetidas e a comunicação acaba se dando, principalmente, por gestos. Por isso, evita-se o contato físico no relacionamento com o autista - já que o mundo, para ele, parece ameaçador. Insistir neste tipo de contato ou promover mudanças bruscas na rotina dessas crianças pode desencadear crises de agressividade. Para minimizar essa dificuldade de convívio social, vale criar situações de interação. Respeite o limite da criança autista, seja claro nos enunciados, amplie o tempo para que ele realize as atividades propostas e sempre comunique mudanças na rotina antecipadamente. A paciência para lidar com essas crianças é fundamental, já que pelo menos 50% dos autistas apresentam graus variáveis de deficiência intelectual. Alguns, ao contrário, apresentam alto desempenho e desenvolvem habilidades específicas - como ter muita facilidade para memorizar números ou deter um conhecimento muito específico sobre informática, por exemplo. Descobrir e explorar as 'eficiências' do autista é um bom caminho para o seu desenvolvimento. "Matheus chegou para mim na 1ª série. Eu tinha 42 alunos, e ele já estava com 7 anos completos e só falava o próprio nome. Era agressivo, agitado e não queria ficar na sala. Eu não fazia ideia do que era autismo. Então, no primeiro dia de aula, foi uma surpresa." O relato é da professora Hellen Beatriz Figueiredo, da rede pública municipal de São Paulo, mas poderia ser de um educador de qualquer sala de aula do Brasil. Desde 2008, a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva determina que todos os alunos com necessidades educacionais especiais sejam matriculados em turmas regulares. A Educação Especial passou a ser oferecida apenas como um complemento no contraturno. Na prática, isso significou a matrícula só no ano passado de 375.775 alunos com deficiência em salas regulares, regidas por educadores que, muitas vezes, não se sentem preparados para lidar com a situação. Exatamente como aconteceu com Hellen em 2003, quando acolheu Matheus Santana da Silva. Naquele tempo, apesar de a lei determinar a inclusão, imperava uma visão integracionista. Uma criança com deficiência só permanecia numa sala regular se acompanhasse o ritmo da turma. Hellen poderia ter alegado que Matheus não aprendia como os demais. Seria mais fácil desistir do aluno autista que fugia da sala a toda hora, mas ela escolheu o caminho mais difícil, o de incluí-lo. Ambos saíram ganhando. Hoje, aos 14 anos, Matheus cursa a 7ª série na EMEF Coronel Hélio Franco Chaves, na capital paulista. Adora ler, resolve expressões matemáticas com letras e números e navega na internet. Tem muitos amigos e aprendeu o significado de emoções como orgulho e felicidade - uma vitória para um autista. Hellen, por seu lado, fez vários cursos sobre autismo, escreveu sua monografia da graduação em Pedagogia sobre inclusão e hoje integra a Diretoria de Educação de um dos Centros de Formação e Acompanhamento à Inclusão (Cefai) da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. A história dos dois simboliza a mudança de mentalidade já em curso em muitas escolas públicas e particulares espalhadas pelo país. Romper com as velhas ideias SETE ANOS DE AVANÇOS No início, Matheus só sabia dizer o próprio nome e hoje participa de diversas atividades da 7ª série. Foto Marcelo Min Durante séculos, o mundo tratou as crianças com deficiência como doentes que precisavam de atendimento médico, não de Educação. Essa perspectiva começou a mudar na década de 1950 (veja a linha do tempo nas próximas páginas). Mas foi só nos anos 1990 que as velhas ideias assistenciais foram suplantadas pela tese da inclusão. Procurava-se garantir o acesso de todos à Educação. Documentos como a Declaração Mundial de Educação para Todos, de 1990, e a Declaração de Salamanca, de 1994, são marcos desse movimento. O rompimento com práticas e conceitos antigos marcou também o início do trabalho de Hellen. Ela sabia que precisaria inovar se quisesse que Matheus aprendesse. E o primeiro desafio era mantê-lo em sala. "Passei a iniciar as aulas do lado de fora. Todos os dias eu cantava, lia histórias ou sugeria alguma atividade que estimulasse a alfabetização ou outro aprendizado", lembra. "Era uma forma de ensinar o conteúdo, promover a integração entre as crianças e atrair o Matheus para a classe." Para lidar com as fugas repentinas para o bebedouro - onde Matheus se acalmava mexendo na água -, a professora ensinou-o a pedir para sair. Mostrava, a cada fuga, que ele podia bater com a caneca na carteira quando quisesse beber água. "Um dia, ele bateu a caneca e permaneceu sentado, esperando a minha reação," conta a professora Hellen. "Percebi que ele tinha aprendido." Para a psicopedagoga Daniela Alonso, consultora na área de inclusão e selecionadora do Prêmio Victor Civita - Educador Nota 10, Hellen acertou em cheio: "Pensar nas diferenças implica oferecer variadas intervenções. Os caminhos da inclusão para atender à diversidade costumam sempre beneficiar todos e melhorar a qualidade do ensino." Antes de entrar na escola em que está até hoje, Matheus rodou por três outras sem se encontrar. Na primeira, particular, a direção não soube lidar com ele. A mãe, Lindinalva Santana, tentou uma escola especial, mas em pouco tempo concluiu que o filho não estava aprendendo. Partiu para a matrícula numa EMEI indicada pela fonoaudióloga que atende Matheus desde pequeno. Diante do histórico apresentado quando Matheus chegou à escola de Ensino Fundamental, Hellen imaginou que ele poderia ter aprendido alguma coisa. "Eu o observava durante as aulas de leitura e o jeito como ele manuseava o livro, mexia a boca e colocava os dedos sobre as palavras e frases me fez perceber que ele sabia ler." Como o garoto não falava, Hellen encontrou um meio de testá-lo. "Escrevi com letra bastão em tiras de papel o nome de dez objetos. Misturei todas e pedi que ele pegasse só a que correspondia ao objeto que eu citava." Na primeira tentativa, Matheus não prestou atenção e pegou qualquer palavra. Hellen insistiu e ele acertou. "Achei que pudesse ser coincidência e continuei, inclusive com frases inteiras, e ele acertou tudo. Depois disso, não dei mais sossego para o Matheus", lembra a professora. Daniela Alonso diz que descobrir as competências dos estudantes é o caminho. "Antes, focávamos as dificuldades. O professor queria checar o que eles não sabiam, valorizando as diferenças pelas 'falhas'. Hoje, devemos sondar o que cada um conhece para determinar como pode contribuir com o coletivo", explica. Matheus deixou para trás a trajetória errante na Educação Especial, seguindo o mesmo caminho das políticas públicas brasileiras. O país apostou, em 2001, na inclusão. Nesse ano, começou a ser divulgada a lei aprovada em 1989 e regulamentada em 1999 que obrigava as escolas a aceitar as matrículas de crianças com necessidades especiais e transformava em crime a recusa a esse direito. Desde então, começou a aumentar o número de estudantes com deficiência nas salas regulares. De 81.344 naquele ano, ele saltou para 110.704 em 2002 e nunca mais parou de crescer. O Brasil, porém, estava ainda longe de assumir a inclusão como um fato consumado. As salas especiais eram muito mais numerosas, com 323.399 matrículas em 2001 e 337.897 em 2002. O novo papel da Educação Especial A nova política nacional para a Educação Especial é taxativa: todas as crianças e jovens com necessidades especiais devem estudar na escola regular. Desaparecem, portanto, as escolas e classes segregadas. O atendimento especializado continua existindo apenas no turno oposto. É o que define o Decreto 6.571, de setembro de 2008. O prazo para que todos os municípios se ajustem às novas regras vai até o fim de 2010. O texto não acaba com as instituições especializadas no ensino dos que têm deficiência. Em lugar de substituir, elas passam a auxiliar a escola regular, firmando parcerias para oferecer atendimento especializado no contraturno. Na prática, muda radicalmente a função do docente dessa área. Antes especialista em uma deficiência, ele agora precisa ter uma formação mais ampla. "Ele deve elaborar um plano educacional especializado para cada estudante, com o objetivo de diminuir as barreiras específicas de todos eles", diz Maria Teresa Eglér Mantoan, professora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e uma das pioneiras nos estudos sobre inclusão no Brasil. Ensinar os conteúdos das disciplinas passa a ser tarefa do ensino regular, e o profissional da Educação Especial fica na sala de recursos para dar apoio com estratégias e recursos que facilitem a aprendizagem. É ele quem se certifica, ainda, de que os recursos que preparou estão sendo usados corretamente. "Ele informa a escola sobre os materiais a serem adquiridos e busca parcerias externas para concretizar seu trabalho", afirma Maria Teresa. A princípio, esse educador não precisa saber tudo sobre todas as deficiências. Vai se atualizar e aprender conforme o caso. Ele pode atuar na sala comum de longe, observando se o material está sendo corretamente usado, ou estender os recursos para toda a turma, ensinando a língua brasileira de sinais (Libras), por exemplo. Quem souber se adaptar não correrá o risco de perder espaço. "O profissional maleável é bem-vindo", garante Maria Teresa. O momento atual é de construção. De fato, a inclusão na sala de aula está sendo aprendida no dia a dia, com a experiência de cada professor. "Mas não existe formação dissociada da prática. Estamos aprendendo ao fazer", avalia Cláudia Pereira Dutra, secretária de Educação Especial do Ministério da Educação (MEC).