Contra quase tudo

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09/02/2017
Contra quase tudo ­ Revista de História
Contra quase tudo
Contestadores planejavam o fim da monarquia, no século XVIII, em diversas
regiões
Lorenzo Aldé
13/1/2011 O Brasil já nasceu livre da ameaça republicana. Isso era o que garantia José Bonifácio em 1823. “Este
partido é hoje miserável e abandonado por todo homem sensato”, proclamou o Patriarca da
Independência.
Puro discurso político. Bonifácio bem sabia que a decisão de separar o Brasil de Portugal, em atenção
aos interesses das províncias do Sudeste, encontrara forte resistência entre homens sensatos de outras
partes do país. Não poderia supor que o regime escolhido para nos governar – uma continuidade da
tradição monarquista lusitana – seria acatado pacificamente. O Brasil foi um Império pontilhado de
Repúblicas por todos os lados.
Nas mentes contestadoras, a inspiração vinha do Norte. Conquistada em 1783, a independência das ex‐
colônias britânicas criara uma inédita composição de “Estados Unidos”, na forma de uma confederação
republicana. Os ideais da Res publica – expressão do latim para definir a “coisa pública” – estavam lá:
um governo voltado a atender aos interesses “do povo” (escravos fora), livre da subserviência à
monarquia ou à tirania.
Apenas seis anos depois, e no mesmo ano da Revolução Francesa, as Minas Gerais foram palco da
primeira aventura republicana brasileira. Na rica capitania, o interesse do “povo” era livrar‐se dos
escorchantes impostos a que era submetido pela Coroa portuguesa. Não à toa, um dos conspiradores,
José Álvares Maciel, acabara de chegar de viagem à Inglaterra, onde adquirira conhecimentos em
“manufaturas e mineralogia”, concluindo que “os nacionais desta América não sabiam os tesouros que
tinham, e que podiam aqui ter tudo se soubessem fabricar”. Pelas nações estrangeiras por onde tinha
andado, testemunhara espanto geral por Minas Gerais não ter seguido o exemplo da América inglesa.
Alguns anos antes, em 1787, José Joaquim Maia e Barbalho, natural do Rio de Janeiro e estudante na
França, chegara a encontrar o principal autor da “Declaração de Independência” dos Estados Unidos,
de 1776, Thomas Jefferson, a quem pediu apoio para um levante que envolveria Minas, Rio e Bahia.
Jefferson, que era embaixador norte‐americano na França, afirmou ao secretário de Negócios
Estrangeiros do seu país que “um governo republicano único seria instalado” caso o projeto
revolucionário fosse adiante.
Outro participante da Inconfidência Mineira, o alferes Joaquim José da Silva Xavier, vulgo Tiradentes,
buscava apoiadores para a nova causa descrevendo um cenário sedutor, em que “esta terra se fizesse
uma República, e ficasse livre dos governos, que só vêm cá ensopar‐se em riquezas de três em três
anos, e quando eles são desinteressados, sempre têm uns criados que são uns ladrões” – como ele
próprio relataria no processo que investigou a conspiração.
República significava autonomia política. Questões secundárias, como quem seriam os cidadãos e quais
seriam seus direitos, não chegaram a virar consenso. A escravidão não foi obstáculo para os
libertadores dos Estados Unidos nem para os republicanos mineiros. A situação dos negros preocupava
apenas por suas implicações econômicas e por seu peso na revolução. José Álvares Maciel lembrou que
os escravos eram maioria, “e que para conseguirem liberdade tomariam o partido contrário, matando
os brancos”. Chegou‐se a propor que lhes dessem a liberdade para que aderissem à revolta, mas Maciel
ponderou possíveis prejuízos à produção: “(...) não ficaria em boa ordem o serviço das Minas”.
Em Pernambuco, as aspirações por autonomia vinham de longe. Segundo o historiador Evaldo Cabral de
Mello, as províncias que haviam estado sob domínio holandês tinham sentimentos decididamente
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republicanos. Ele também lembra que, no início do século XIX, era constante o intercâmbio entre a elite
local e os Estados Unidos. Movimentos de emancipação ocorriam em toda a América, e os cônsules
norte‐americanos atuavam como verdadeiros agentes políticos no continente, vendendo seu modelo
confederado como a melhor receita de autogoverno. Em 1817, Pernambuco declarou‐se independente.
Copiando a Revolução Francesa, a República publicou uma “Declaração dos Direitos Naturais, Civis e
Políticos do Homem”, defendendo princípios até hoje sagrados para a democracia, como a liberdade de
consciência e de imprensa e a tolerância com todos os cultos religiosos.
Aos escravos, a cidadania continuava inacessível até segunda ordem. Mas enquanto as classes altas
visavam apenas livrar‐se do poder central, nas camadas populares a independência alimentava o sonho
da igualdade. “Os cabras, mulatos e crioulos andavam tão atrevidos que diziam que éramos todos iguais
e não haviam de casar senão com brancas das melhores”, narrou uma carta em Recife pouco depois do
fim da revolução – que durou apenas dois meses.
Sete anos depois, em 1824, o atual Nordeste voltaria a proclamar‐se livre. A novidade foi o formato de
governo: em vez de simples república, uma confederação de estados como a dos norte‐americanos.
Ameaça também pressentida por José Bonifácio um ano antes. No mesmo discurso em que chamou os
republicanos de “abandonados”, ele qualificou os federalistas de “incompreensíveis”, ou “bispos sem
papa”. E explicou: “Não querem ser republicanos de uma só república, querem um governo
monstruoso, um centro de poder nominal e cada província uma pequena república, para serem nelas
chefes absolutos, corcundas despóticos”. Como ele temia, o governo “monstruoso” virou realidade:
reunindo Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, a Confederação do Equador foi arrasada
pelas tropas imperiais seis meses depois de nascer. O movimento teria perdido força quando alguns
líderes mais inflamados, como frei Caneca e Cipriano Barata, defenderam o fim do tráfico negreiro. A
arcar com este prejuízo, os grandes proprietários preferiam continuar submissos ao Rio de Janeiro. Frei
Caneca acabou fuzilado.
A imprensa refletia o acirrado debate político que literalmente dividia o país. “República não é para o
Brasil!”, exclamou em sua capa o Novo Diário da Bahia, em 30 de novembro de 1837. Um panfleto em
apoio à Corte fluminense? Ao contrário: o jornal era editado pelo médico Francisco Sabino Vieira, líder
do Estado independente proclamado em Salvador no dia 7 daquele mês. Em homenagem a ele, o
movimento ficou conhecido como Sabinada. O artigo questionava a tese que vinha do Sudeste, segundo
a qual a realidade brasileira era incompatível com o regime republicano.
Na prática, porém, nem mesmo os sabinos sabiam ao certo que rumo político tomar. “Os rebeldes
militares e civis que tomaram a cidade e expulsaram o governo provincial pareciam ser republicanos.
Prometeram convocar uma assembléia constituinte e elegeram um presidente e um vice‐presidente.
Mas, no dia 11, o próprio vice‐presidente eleito, João Carneiro da Silva Rego (...) requereu que a
Câmara limitasse a duração da independência à menoridade de D. Pedro II, que terminaria no dia 2 de
dezembro de 1843”, relata o historiador Hendrik Kraay em artigo inédito para o site da RHBN. Foi uma
“república suicida”.
Em alguns momentos, os rebeldes ostentavam verdadeira ojeriza à monarquia. Como quando apagaram
a inscrição de um obelisco que lembrava a chegada de D. João a Salvador, em 1808: “um déspota
sanhudo e ingrato [que] veio infeccionar[‐nos] com o bafo pestífero da corte portuguesa”. Mas no dia 2
de dezembro festejaram o “Glorioso Aniversário do natalício” do menino imperador D. Pedro II com
salvas de artilharia, cortejo e a iluminação dos edifícios públicos. O autor tenta explicar a contradição:
“Símbolo poderoso, a monarquia estava profundamente enraizada na sociedade brasileira”, escreve
Kraay.
Enquanto o hesitante novo governo baiano sucumbia ao massacre das tropas imperiais – que deixaram
por lá um rastro de mais de mil mortos –, no Sul se instituía a República Rio‐Grandense, que resistiria a
quase dez anos de guerra civil. O modelo escolhido, mais uma vez, foi o federativo, e as causas
principais, as econômicas. “Combatiam o excesso de tributos do Estado brasileiro e propugnavam pela
permanência do imposto no local de origem, pois, na época, dois terços iam para a Corte para obras
inúteis, restando um terço para a província do Rio Grande do Sul pagar funcionários, construir a
infraestrutura e sustentar a tropa militar nas guerras de fronteira”, explica o professor Moacyr Flores,
da PUC‐RS, também autor de artigo especial em nosso site.
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A Guerra dos Farrapos (1835‐1845) confirma que República não era sinônimo do que entendemos hoje
por democracia. “Na época, não se discutia e nem se aceitava a participação popular, por ser
considerada uma forma impura de política conforme a doutrina liberal. Não foram aceitas as ideias
democráticas da Jovem Itália, de Mazzini. Por publicar essas ideias, o redator Luigi Rosseti foi expulso
da oficina do jornal O Povo, órgão oficial da República Rio‐Grandense”, conta Flores, referindo‐se ao
revolucionário Giuseppe Mazzini (1805‐1872), que defendia a igualdade radical entre os cidadãos.
Ao contrário do que vaticinou José Bonifácio, o Partido Republicano só fez ganhar força, inclusive
graças à liberdade de associação e imprensa garantida pelo próprio imperador D. Pedro II (ver box). Se
hoje consideramos os “valores republicanos” o que há de mais progressista em termos políticos, no
século XIX as cartas estavam embaralhadas. Nem sempre os partidários do republicanismo defendiam o
fim da escravidão e a reforma agrária, por exemplo.
Nos séculos XX e XXI, nossa República – apesar dos trancos e barrancos ditatoriais no meio do caminho –
consolidou‐se e ampliou enormemente os direitos dos cidadãos. Mas a tortuosa trajetória do
republicanismo brasileiro deixa uma lição sempre válida: de nada valem princípios igualitários formais
se a cultura da desigualdade impede seu cumprimento. Como diz a voz do povo: “na prática, a teoria é
outra coisa”.
OLHOS (pra escolher 2)
República significava autonomia política. Questões secundárias, como quem seriam os cidadãos e quais
seriam seus direitos, não chegaram a virar consenso
“Os cabras, mulatos e crioulos andavam tão atrevidos que diziam que éramos todos iguais”
Os rebeldes baianos tinham relação ambígua com a monarquia. D. João era “déspota ingrato”, mas
festejaram o “glorioso aniversário” de D. Pedro II
Saiba Mais ‐ Bibliografia:
MAXWELL, Kenneth. A Devassa da Devassa: A Inconfidência Mineira, Brasil e Portugal (1750‐1808). 7ª
ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009.
MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São
Paulo: Ed. 34, 2005.
SOUZA, Paulo César de. A Sabinada. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
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