Trabalho humano, bem humano, riqueza e capital

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Trabalho humano, bem humano, riqueza e
capital
Relação de «trabalho» e de «técnica» com o bem humano
Os temas de que tratamos nesta reflexão mobilizam muitas dimensões
da inteligência humana, intelectual e sensível, pelo que, muitas vezes, são
tratados de forma muito pouco racional, abundando os modos ideológicos
de aproximação. Iremos procurar evitar tais escolhos e pensar a temática de
uma forma o mais racional e descomprometida ideologicamente possível.
Há uma ligação não apenas estreita, mas absolutamente necessária
entre o trabalho, em seu sentido humano pleno, e a técnica e aquilo que é o
bem humano quer como finalidade quer como realização concreta perene
dessa mesma finalidade: sem o trabalho e a técnica nele implicada, não é
simplesmente possível construir qualquer forma de «bem humano».
Deste modo, podemos também perceber que qualquer forma de bem
humano depende sempre da utilização de uma qualquer forma de trabalho e
de técnica a este associada. Deste ponto de vista, o trabalho e a técnica são
possibilitadores do bem humano, isto é, da mesma humanidade. Ainda
deste ponto de vista, trabalho e técnica são sempre um bem medial ao
serviço de um bem final. E não há substitutos possíveis. Não é, assim,
através do simples trabalho ou da simples técnica que qualquer mal entra
no mundo humano, mas apenas, e apenas só, através da perversão do uso
de trabalho e de técnica.
Um exemplo concreto permite perceber, sem margem para dúvidas, o
que está aqui em causa: sabe-se do uso perverso que o médico Dr. Mengele
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fez do trabalho e das técnicas médicas por tal trabalho implicadas durante a
sua estadia em Auschwitz. Mas se tal médico tivesse utilizado o seu
trabalho e as técnicas associadas, ainda que no mesmo lugar, mas ao
serviço da cura dos prisioneiros, tal trabalho e tais técnicas adequados a
este outro fim nunca seriam algo de perverso – porque pervertido pela
pessoa no seu uso –, mas manteriam a sua qualificação de bens mediais ao
serviço de bens finais.
Podemos, assim, perceber que não só existe a relação necessária a que
já aludimos entre o trabalho e a técnica e o bem humano como também que
qualquer qualificação possível de tais meios humanos depende apenas do
modo como quem os usa os usa, incluindo a finalidade de tal uso.
Esta relação aqui em estudo é de tal modo profunda que a
encontramos, posta numa linguagem muito própria, adequada aos tempos
próprios,
já
nos
grandes
mitos
fundadores,
especialmente
nos
cosmogónicos, pois toda a acção e pragmática cosmogónica é uma
actualidade dinâmica e cinética de tipo ergológico e ergonómico, isto é, é
uma acção que corresponde a uma forma de trabalho, trabalho que é
exemplar, divinamente exemplar, e que constitui o modelo de possibilidade
de trabalho para todos os que de uma possibilidade análoga vão usufruir:
deuses, seres humanos, outros seres.
A criação ou a produção dos mundos é sempre um acto mediacional
que implica uma qualquer forma de trabalho e de técnica. Podemos
encontrar tal em todas as formas cosmogónicas conhecidas. Com especial
relevo para a nossa tradição, encontramos tal trabalho e perfeição técnica
no mito criador do Génesis, em que Deus produz trabalho infinito, ao tirar
toda a criação do nada – e por tal é criação, por causa deste trabalho
infinito. Mas tal trabalho, segundo este mito, é um trabalho que fica
perfeito, o que implica uma técnica perfeita.
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Sem chegar a ser um trabalho infinito, e, por isso, não podendo ser
considerado «criador» na sua generalidade, o processo cosmogerador da
mítica helénica é, todo ele, um imenso acto de posição de mediações,
sucessivamente mais perfeitas, o que implica que seja um trabalho
fundador, que segue um progresso técnico no sentido de uma cada vez
maior e mais perfeita lógica de tipo a que nos habituámos a chamar de
«racional».
Quer num caso como no outro, o trabalho primordial divino
estabelece-se como o modelo transcendental de possibilidade de trabalho
para os seres humanos. Inicialmente, quer no jardim edénico quer na idade
de oiro dos seres humanos helénica, o trabalho era apenas o
estabelecimento não penoso de relação entre a carência e a sua supressão:
bastava estender a mão e colher, digamos assim. Tal simboliza o carácter
não doloroso intrínseco do trabalho, sem mais: vivia-se como quem passeia
amenamente pelo fértil jardim, usufruindo do poder criador do movimento
cósmico, que tudo dá, bastando, para se ser completo, sucessivamente,
«estender a mão e colher».
A penosidade do trabalho advém sempre de uma qualquer falha
humana: a partir de tal acto, todo o trabalho passa a implicar um esforço já
não grácil – de dançarino, diria Nietzsche –, mas ponderoso, penoso. Passa
a humanidade a sentir o peso da gravidade. Trabalhar será sempre lutar
contra o peso da relação com a terra, que deixa de ser mãe para ser
madrasta.
O próprio Platão que, na República, concebe o momento ontogénico e
cosmogónico como pura dádiva do Bem, no Timeu, retoma o tema de uma
produção do cosmos que depende de uma matéria eterna, isto é,
simbolicamente e não só, de uma gravidade que torna tudo pesado, difícil,
penoso. O Demiúrgo é o trabalhador por excelência e passa a ser o modelo
transcendental do trabalhador: modelador de uma obra que o transcende
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quer pelo modelo quer pela matéria a que tal modelo se aplica, no que é o
primeiro grande tratado do trabalho como alienação absoluta (já ao nível do
próprio divino).
No entanto, quer segundo um modelo em que a relação entre o ser
humano e o trabalho seja de gratuita criação quer num modelo em que a
produção seja sempre algo de não-gratuito, de penoso, tal relação afirma-se
sempre como necessária e absolutamente imprescindível à possibilidade de
existência da humanidade. Tal é a importância do trabalho e da sua sempre
necessária acompanhante técnica.
Bem humano, riqueza e capital
Sabemos que o entendimento do que possa ser o bem humano divide
as chamadas opiniões. Mas, se deixarmos de parte o domínio do opinativo,
dependente do onfalocentrismo de quem opina, podemos perceber que não
pode haver bem humano se este não for entendido como a melhor
realização possível de todas as capacidades de supressão das multímodas
carências que concretizam a finitude do ser humano. O bem humano será,
assim, isso que melhor suprir as carências do ser humano, aproximando-o,
tanto quanto possível, do que seja o melhor acto possível permitido pela
relação binomial entre as suas carências e sua capacidade de as anular.
Tal nunca pode ocorrer senão em ambiente político, isto é, na interrelação entre seres humanos, pois, mesmo a própria possibilidade concreta
de ser, para o ser humano, depende da acção de outros seres humanos; o
mesmo tem de se dizer da sua capacitação inicial quanto ao adestramento
para a sua autonomia ergonómica relativa, sempre relativa. É esta
relatividade que implica a constituição do domínio da inter-relação política.
Tal significa que não é possível haver ser humano senão nesta interrelação política. O que, por sua vez, implica que todo o bem possível para o
ser humano implique sempre o bem desses com quem se estabelece tal
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inter-relação. Assim, o bem do ser humano é sempre o bem de todos os que
com ele se inter-relacionam. Isto foi sempre válido ao longo da história
humana e continua a ser válido agora. Mas agora, devido à universalização
prática das relações entre os seres humano, o bem de cada um passa
necessariamente pelo bem de todos, universalmente entendidos e sem
excepção previsível como tal: um atentado cometido por um ser humano
qualquer num qualquer sítio relevante – à partida não se pode saber quais
são os relevantes – pode condicionar a vida de todos os seres humanos,
quer por pouco tempo quer por períodos mais vastos (lembremo-nos de que
qualquer
acontecimento
deste
tipo
pode
influenciar
de
forma
profundamente negativa os chamados mercados financeiros, com as
consequências sempre imprevisíveis em abrangência e duração que tal pode
ter).
Estas considerações gerais permitem-nos perceber que o trabalho
humano possui um poder e um alcance cada vez mais importantes a nível
universal, podendo determinar modificações no que é quer o bem humano
existente a nível mundial quer a sua mesma possibilidade.
Na sua relação com o trabalho, cuja latitude e profundidade em termos
de implicação acabámos de perceber, a técnica assume, assim, uma
importância cada vez maior. Não apenas a técnica entendida como
integrante do mero processo produtivo como é habitualmente pensado,
mas, para além deste, também no âmbito mais geral, universal mesmo, de
toda a acção humana, no que esta tem de componente de trabalho, que,
como já vimos, coincide com a totalidade da acção humana politicamente
transitiva.
Quer isto dizer que, no âmbito político geral, no âmbito universal das
relações inter-humanas, a técnica assume uma importância cada vez maior,
pois cada acto técnico pode influenciar e influencia já não apenas o
confinado nicho de uma população, de um povo ou de um continente, por
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exemplo, mas a humanidade como um todo. Uma descoberta técnica
benéfica pode, passado relativamente pouco tempo, influenciar a vida de
toda a humanidade: caso, por exemplo, da parte benéfica da «internet»;
mas, não saindo do mesmo, exemplo, a mesma rede universal carrega,
através da sua técnica e do trabalho perverso que permite, muitos
malefícios e possíveis malefícios.
A técnica, como mero meio de trabalho que é, mantém a sua prístina
inocência de coisa; o trabalho mantém a sua qualificação ética na relação
com quem o realiza, não apenas no serviço às finalidades a que se propõe,
mas também, e inseparavelmente, no modo como tais finalidades são
servidas, isto é, em cada concretização actual. Há, assim, um trabalho que
serve o bem da humanidade e um trabalho que não serve esse mesmo bem.
Há, pois, um bom trabalho e um mau trabalho. Há, pois, por via da relação
de geração desse mesmo trabalho, um bom trabalhador e um mau
trabalhador.
Este sentido de bondade do trabalho e de quem o realiza não diz, pois,
respeito a índices de produtividade ou a considerações do mesmo jaez, mas
à qualidade da aportação de bem que o trabalho realiza, que se realiza
através do trabalho. É bom o trabalho e o trabalhador que contribui para o
bem da humanidade; é mau o trabalho e o trabalhador que não contribui
para o bem da humanidade, seja de forma neutra seja de forma negativa.
Voltando ao exemplo do Dr. Mengele: a bondade do seu trabalho não
se mede pelo número de actos perversos que fez, segundo um programa
também perverso, mas pela mesma qualidade de perversidade de tais actos.
O bem humano é, assim, constituído por toda a positividade
ontológica que existe em cada determinado momento no conjunto universal
de todos os seres humanos então presentes. É claro que esta definição é
teórica, não sendo possível pragmaticamente encontrar um tal momento,
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dado que a realidade humana, como toda a demais, é dinâmica e cinética,
isto é, constituída por potencialidade e movimento de actualização dessa
mesma possibilidade, ambos impossíveis de suspender sob pena de queda
no absoluto nada, como bem percebeu Heraclito. Mas não é impossível
perceber que, mesmo no decurso deste fluxo imparável, há uma
determinada, se bem que humanamente incognoscível, quantidade de bem
humano presente.
É esta, precisa em si mesma, mas humanamente indeterminável
quantidade de bem humano, que constitui isso que é a riqueza humana. Não
há outra, outra não é possível.
Sem entrarmos em conta com a riqueza de tipo metafísico, cuja
relação com esta disciplina seria moroso estabelecer, podemos intuir
facilmente que o ser humano, quer entendido individualmente quer
entendido como possível comunidade ou sociedade real, só tem como bem
isso que constitui quer as suas possibilidades próprias quer isso que é já a
realização dessas mesmas possibilidades. Toda a vida da humanidade pode
apenas ocorrer neste intervalo e nesta relação entre o bem possível para
cada ser humano e para a humanidade como um todo, integradamente, e a
mesma realização de tal bem possível. O trabalho e a técnica que o serve
constituem a mediação entre a possibilidade do ser humano e da
humanidade e a sua possível plena realização.
Há, aqui, um corolário ético e político que tem de ser relevado: é
mediante o trabalho e a técnica e a sua qualidade que o bem e o mal entram
no mundo, não apenas no mundo humano, mas, através do ser humano, no
mundo como um todo. O exemplo citado anteriormente é elucidativo: um
eventual Dr. Mengele inicialmente neutro antes de começar a agir, quando
começa a agir, torna-se no veículo, único como paradigma, de bem e de
mal. Se agir no sentido da introdução de mais positividade ontológica no
mundo, torna-se veículo de bem; se agir no sentido de aniquilar bem
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presente no mundo ou possibilidade de introdução de mais bem, torna-se
veículo de mal. Sabemos qual a escolha do portador do nome aludido. Tal
implica que o bem e o mal que existiram em sítios como AuschwitzBirkenau foram devidos à acção dos que neles introduziram negatividade
ontológica. O mal foi neles posto através de trabalho e de técnica usados ao
serviço do mal.
Estes campos de concentração, de trabalho escravo e de extermínio
são um exemplo terrível e absolutamente esclarecedor do que é a relação
entre a acção humana e o trabalho e técnica nela e por ela implicados e a
riqueza humana. A riqueza humana não é discernível do que seja o bem
humano. São o mesmo. Cada ser humano possui uma riqueza própria, que é
constituída pelo bem que já definimos. Esta riqueza é própria sua;
absolutamente sua e absolutamente própria. A nada mais redutível e a nada
devendo ser alienada.
O melhor exemplo fundador do paradigma aqui em causa é a narrativa
presente
no
Génesis.
Ainda
que
numa
perspectiva
mito-lógica
simplesmente laica, podemos perceber que a noção que o texto nos dá da
ontologia própria do mundo é de uma absoluta positividade ontológica
incoativa: tudo é bom, como tal declarado pelo seu autor. Tudo é, assim,
uma riqueza absoluta, absolutamente impoluta: nada há de não-bem no
mundo.
A própria humanidade, quando surge, surge absolutamente boa no que
é. Mas o que é transporta em si uma positividade que é possibilidade de
ambivalência proléptica: compete ao ser humano escolher o que fazer com
a riqueza que lhe é própria e em que se inclui o todo da riqueza do mundo.
Enquanto o restante mundo está submetido a uma mecânica necessária, em
que o único modo de trabalho possível, se bem que omnipresente, é de tipo
estritamente físico, o ser humano não só está submetido a este modo
necessário, a que não pode eximir-se, mas possui uma outra possibilidade,
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a de poder interferir deliberadamente no modo como o trabalho necessário
pode ser feito.
E é aqui que nasce a técnica: é a técnica que permite ao ser humano
não estar dependente da estrita necessidade ergonómica física, que lhe
permite inflectir a mecânica dinâmica e cinética do mundo segundo as suas
escolhas.
Não pode o ser humano deixar de seguir as finalidades físicas a que
está sujeito, mas pode escolher o modo como as segue, em muitas ocasiões.
É esta possibilidade que constitui o próprio do ser humano e que recebe o
nome de livre-arbítrio, possibilidade de cuja sucessiva concretização nasce
o resultado do trabalho humano, que constitui integralmente o que é a
cultura, marca da presença do ser humano no mundo, lar técnico da
possibilidade humana, já não apenas como dado inicial, mas como fruto
autónomo de tal possibilidade. O trabalho não apenas produz, mas
verdadeiramente cria uma segunda forma de possibilidade humana, a
cultura como universal útero humano de possível humanidade.
Assim sendo, a cultura, em seu sentido lato, que é o mais nobre, pois é
o que coincide com a mesma humanidade como um todo em auto-poiese, é
o absoluto da riqueza humana quer como tesouro do já criado quer como, a
partir da potencialidade inaudita de tal tesouro, isso que humanamente
permite que a humanidade seja como propriamente humanidade, num
mundo que, para além da cultura, é apenas coisa física.
Ora, é esta riqueza quer como, fundamentalmente, potencialidade quer
como actualidade instantemente presente, que constitui o real capital
humano. Deste modo, pode perceber-se facilmente que o principal capital
humano é o próprio ser humano enquanto tal: foi dele e apenas dele que
toda a riqueza cultural surgiu.
A relação fundadora da possibilidade do ser humano quer como
indivíduo quer como humanidade universalmente entendida pode ser vista
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como a mediação em acto que existe entre o capital ontológico potencial do
ser humano e a realização desse mesmo capital. Mas tal realização implica
imediatamente a criação de um capital que é coisa real como produto
cultural e como nova possibilidade, pois todo o novo produto cultural é
nova riqueza de potencialidade, logo, novo capital de possibilidade.
Esta dialéctica necessária entre o capital como possibilidade
ontológica humana e a sua realização, que imediatamente se transforma em
novo capital de potencialidade, permite intuir que o capital não é
fundamentalmente ao modo hipostático das «coisas», mas ao modo
poiético do acto de possibilidade: o capital é fundamentalmente uma
possibilidade. Mas tal implica que o acesso ao capital é o acesso à
possibilidade, isto é, o acesso ao poder-ser próprio do ser humano e da
humanidade como um todo.
Entende-se, assim, melhor a importância e o poder que o capital
reveste: não se trata de um modo ideológico de perspectivar a realidade,
que divide a humanidade em “capitalistas” e outros, que reduz o capital a
uma coisa que se possui em detrimento dos outros, que o não possuem, mas
de um modo de entender a realidade humana muito naturalmente como
capital ontológico de si própria.
O capital não se «possui», é-se.
Eu sou o meu capital ontológico que me constitui como possibilidade.
As relações humanas podem ser perspectivadas a partir deste sentido
do capital como modo de relação entre capitais humanos: estes ou são
usados harmonicamente na procura de um bem comum, que é
necessariamente universal, pois é capital que é potencial universal, ou
usado de forma predatória, ao serviço do bem do predador, em detrimento
do bem da presa. O primeiro modo define o modo próprio da humanidade;
o segundo, o modo próprio das bestas, e o seu uso é sempre um retrocesso
da humanidade ao nível não-humano próprio precisamente das bestas.
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O tema da alienação do ser humano relativamente à riqueza não é
moderno, mas muito antigo: já o encontramos em Job, posto de uma forma
definitiva como dialéctica agónica entre o bem do ser humano e o bem do
mundo, mas também o bem do próprio Deus. Job não permite que o seu
bem próprio, a sua riqueza ontológica definidora, o seu capital humano seja
posto em causa nem pelo Satã nem pelos falsos amigos nem pelo próprio
Deus. Tal situa o debate acerca do bem próprio do ser humano
imediatamente no limite do pensável, impedindo o autor do texto que se
pudesse pensar que o bem próprio do ser humano lhe pudesse ser
legitimamente retirado: não, nem Deus o pode fazer, sob pena de deixar de
merecer ser Deus.
O trabalho presente no drama de Job não é o trabalho entendido como
algo de poiético exterior ao ser humano, mas o trabalho radical de
afirmação do absoluto do ser humano precisamente como ser humano: este
é o grande trabalho, o da construção ontológica de cada ser humano por si
próprio, mas em comunidade, mesmo que, como no caso de Job, contra o
que essa comunidade entende como bem.
Aqui, toca-se o grande problema que paira sobre esta reflexão: e o que
é o bem? Como pode o trabalho servir o bem sem saber o que esse bem é?
A resposta encontra-se, ainda, na acção de Job: bem é tudo o que servir a
afirmação do absoluto de bondade universal. Job nunca se nega, isto é,
nunca nega o absoluto de bem que é. Mas Job também nunca atenta contra
o bem universal. É neste difícil equilíbrio que está a solução para o
problema do bem: procurar o melhor para o ser próprio meu, mas que seja
o melhor para o bem de todos, para o bem já presente e para o bem
possível.
Ninguém tem o direito de diminuir o meu bem realizado ou possível,
mas eu também não tenho o direito de fazer tal seja a quem for. O trabalho,
a técnica que o serve devem ser usados para promover o maior bem
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possível para todos os seres humanos presentes num determinado
momento. É esta a grande riqueza, o grande capital. O mais são ilusões,
deletérias de quem as tem, no que é uma bela forma de justiça poética.
Novembro de 2016
Américo Pereira
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