A Vénus renascida: estigma e discriminação em tempos de Sida em contexto de prostituição de rua em Lisboa-Portugal e Belém-Brasil Luis Junior Costa Saraiva1 Resumo: Em tempos pretéritos, a Sífilis era considerada o grande mal transmitido pelas meretrizes, (o mal de Vénus) o que possibilitou todo um controle por parte do Estado, as prostitutas, tanto no contexto português quanto brasileiro. Com o surgimento da SIDA, algumas imagens presentes na época da Sífilis, fazem-se presentes novamente, como nas idéias iniciais de grupos e posteriormente de comportamentos de risco. A partir do contexto de prostituição em Lisboa e Belém, proponho uma reflexão sobre as imagens sobre SIDA nessas cidades, e como essas imagens são vivenciadas por profissionais do sexo. É importante então a compreensão de processos discriminatórios que pesam sobre as profissionais do sexo, a partir das imagens de ilegalidade, pecado e imoralidade, e como todo esse conjunto de elementos contribui para o aumento da vulnerabilidade frente ao VIH/SIDA e o reforço de estigmas que se pensavam eliminados, o que gera ainda, um processo de auto-discriminação. Palavras-chave: prostituição, SIDA, stigma, Lisboa-Portugal, Belém-Brasil “Seria mui fácil resolver este problema (da sífilis) extinguindo completamente as prostitutas, sem elas não há propagação do Vírus venéreo”. (Santos Cruz, 1984, p. 46) “Como é que se pode lutar contra a SIDA, a hepatite e outras doenças sendo a prostituição legal? (Jornal Público, 11.12.2002, p.43) 1 Doutorando em Antropologia junto ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS) e bolsista do Governo brasileiro – CAPES-Brasil. Email: [email protected] 1 Quase dois séculos estão a separar as duas afirmativas que servem de epigrafe para o presente artigo, mas ambas parecem retiradas de uma mesma origem. A primeira surge ainda no século XIX, na obra do influente médico português Francisco Ignácio dos Santos Cruz, na qual defende que só através de um controle eficiente da prostituição é que seria possível controlar doenças como a sífilis. A segunda é uma pergunta em tom afirmativo, veiculada no jornal Público, já no século XXI, época de transformações no campo da Saúde Pública, em um momento no qual muitos profissionais da medicina já julgavam a sífilis e outras doenças sexualmente transmissíveis, sob o mais rigoroso controle.2 Contrariando as expectativas otimistas a SIDA viria trazer a público o retorno de velhos fantasmas que se julgavam esquecido, e se num primeiro momento a doença pareceu restrita aos Estados Unidos e aos homossexuais 3, logo viria a tornarse uma pandemia de alcance e repercussões inesperadas, trazendo consigo mudanças na forma como doentes e médicos teriam que lidar com a doença. 4Por outro lado, a nova doença traria uma série de estigmas ligados a sexualidades desviantes e se no início o foco era sobre os homossexuais, logo esses estigmas alcançariam outros grupos, entre eles as prostitutas. O presente artigo tem como objetivo fazer uma breve incursão histórica sobre a relação entre prostituição e sífilis ao longo do século XIX e inícios do XX, no contexto de Belém-Pará-Brasil e em Lisboa-Portugal, e posteriormente analisar como alguns resquícios de como a prostituição foi tratada de forma criminalizada e medicalizada em tempos de sífilis, retornam agora em tempos de SIDA, mas com outras roupagens que nem sempre possibilitam perceber claramente o conjunto de estigmas e da discriminação que continua a pesar sobre os ombros das profissionais do sexo. 2 Com o surgimento da SIDA no cenário mundial, o otimismo do pós segunda guerra vai dar lugar a indecisão que a nova doença trazia consigo e o próprio questionamento dos limites da medicina no controle de determinadas doenças sexualmente transmissíveis. (Bastos, 2002). 3 Em sua crítica a essa visão da SIDA como doença homossexual, Herbert Daniel satiriza os esforços da medicina Norte Americana em construir teorias para explicar a “peste gay, e em tom de sátira aponta o surgimento do que seria uma nova especialização médica, a gayatria. (Daniel, 1986) 4 Um elemento importante de mudança se refere ao envolvimento direto dos doentes em campanhas contra o preconceitos com os doente de SIDA assim como o surgimento de novas ONGs que lidam com a questão da prostituição e o fortalecimento das já existentes. (Bastos, 2002) 2 O mal de Vénus em Lisboa: compreender para controlar Como bem analisou Foucault (1987, 1996) os surtos epidêmicos são momentos excelentes para que governos ditatoriais exerçam o controle, e nesse sentido, em Portugal isso é claro no que se refere as prostitutas e ao surgimento da sífilis como grande problema no seio da sociedade portuguesa, pois ao longo do século XIX, foram aos poucos sendo criadas leis que possibilitavam controlar a prostituição, com a justificativa do combate a sífilis. Em 1949 é editada a Lei nº 2:036,5 a qual definia as bases da luta contra as doenças contagiosas, e que em seu artigo c da Base III, defini a importância de “Promover o exame sanitário das pessoa que se entreguem à prostituição”.6 Não é de menor importância ainda que as prostitutas têm um tratamento diferenciado, e nesse caso, discriminatório, pois a estas não é dado o direito a privacidade que os outros doentes possuem, como bem observamos no artigo 2 da Base XIII: “ Na declaração, participação ou ficha sanitária relativas às doenças venéreas, omitir-se-á o nome e a residência dos doentes a que respeitem, salvo quando se trate de mulheres que habitualmente se entreguem à prostituição...” 7Essa impossibilidade leva então muitas mulheres a esconder a doença, o que por sua vez faz com que o Estado através da Polícia de Costumes, se faça mais presente e crie novas formas de controle. O processo de controle da prostituição com a justificativa de controlar a doença, vai culminar com a criação do Decreto Lei nº 44 579: de 19 de setembro de 1962, que em seu artigo 1º definia que “ É proibido o exercício da prostituição a partir de 1 de janeiro de 1963.”8 Valendo-se mais uma vez dos argumentos de que a prostituição representava um perigo para a saúde pública, assim como para a segurança da sociedade portuguesa, pois juntamente com a prostituição conviviam outras contravenções que precisavam ser controladas. O efeito da referida lei será mais uma vez a criminalização da prostituição e nesse diploma especifico, ganhará o efeito de crime como pode ser observado no parágrafo 3 do artigo 1 da referida lei, o qual na dificuldade de enquadrar um delito especifico para a prostituta, a coloca na 5 Lei publicado no Diário do Governo de 9 de agosto de 1949. Id,. ibid,. p. 1. 7 Id,. ibid,. p. 175. 8 Decreto Lei publicado no Diário do Governo de 19 de setembro de 1962. p. 1246. 6 3 mesma lei que pune o crime de vadiagem. “As prostitutas são equiparadas aos vádios, para o efeito de aplicação de medidas de segurança.” 9. A construção da imagem da prostituta como propagadora de doenças será assim uma forte justificativa para a criação de um conjunto de dispositivos de dominação que se materializam nas leis, mas também na criação de outras formas de controle, como as casas de recuperação de prostitutas, as quais eram mantidas pelo Estado Ditatorial português, com a participação da igreja no funcionamento de algumas destas, como no caso do local onde hoje funciona o Chapitô. Pude chegar a esta informação, através de uma entrevista com a profissional do sexo Ana,10 a qual esteve presa no referido local durante algum tempo, em 1963, em uma Lisboa que ainda vivia, usando as palavras da mesma, “no tempo de Salazar”, um momento de forte controle e repressão a prostituição, e no local descrito por Ana, era comum a presença de outras mulheres que eram presas e encaminhadas para esta casa de recuperação, um misto de prisão-reformatório na qual eram tratadas como criminosas-doentes que precisavam ser punidas e curadas das suas degenerações. Foto 1: Local onde funcionou uma casa de Recuperação de Meretrizes Foto: Saraiva, Luis J. C., dezembro de 2007. 9 Id,. ibid,. p. 1246. Ana, assim como os demais nomes utilizados ao longo do texto são fictícios. Ana trabalha atualmente na área do Intendente e gentilmente aceitou conversar comigo algumas vezes, o que me possibilitou conhecer um pouco mais sobre o funcionamento da referida área de prostituição de rua. 10 4 Não pretendo me alongar mais ao apresentar a relação problemática entre sífilis e prostituição e a forte pressão sobre as profissionais do sexo ao longo do século XX em Portugal, quero apenas reiterar que mesmo com o processo de descriminalização legal da prostituição em 1982, através do Decreto-Lei nº 400/82 de 23 de setembro (Oliveira, 2004, Silva, 2007), essa descriminalização legal não será acompanhada por uma descriminalização real. Vejamos então o caso de Belém no Brasil e como a prostituição foi tratada em relação a sífilis nesse contexto. O Asilo das Madalenas: entre médicos, remédios e o mal de Vénus Em sua obra intitulada, Tributo a Vénus, Sergio Carrara (1996), faz referencia a uma casa de recuperação de prostitutas chamada Asilo das Madalenas, a qual teria funcionado em Belém, em princípios do século XX. Tomado de certa curiosidade em saber mais sobre o referido local, terminei por pesquisar documentos referentes a saúde no contexto da cidade de Belém de inícios do século XX e descobrir que na verdade o Asilo das Madalenas foi um hospital chamado São Sebastião, que funcionou como dispensário antivenéreo no período de 1921 a 1924, terminando por ter um curto período de existência. No referido local as prostitutas eram tratadas compulsoriamente de seus problemas de saúde e aquelas que se recusassem, poderiam ser presas por cometer crime contra a saúde pública. Com a intenção de ampliar o controle das mulheres de má vida, a sociedade era mobilizada a denunciar qualquer prostituta que fosse suspeita de estar contaminada com sífilis e essas denuncias poderiam ser encaminhadas aos Serviço de Profilaxia Rural do Estado do Pará, que repassava diariamente uma lista de mulheres que deveriam fazer os exames, aos jornais locais, para que estes divulgassem e ajudassem no controle das doenças, pois assim como no contexto de Lisboa, as prostitutas de Belém no Brasil, eram tidas como culpadas de transmissão de doenças. Essas mulheres que eram denunciadas pelos jornais, como na notícia abaixo, eram perseguidas pela Polícia de Costumes, criada pelo Serviço de Profilaxia Rural, nesse período. “Prophylaxia Rural. Nota Official. Insctituto de Propylaxia das Doenças Venéreas – De accôrdo com o regulamento interno deste Instituto são consideradas suspeitas de enfermidade até terça-feira próxima, por não terem 5 comparecido ao exame sanitário a que estão sujeitas as meretrizes de pronptuários e residências abaixo discriminadas. 09- rua. Riachuelo, 23: 188 rua Caetano Rufino 15:507 residência ignorada : 497- Boa Ventura da Silva , 3.520, rua Soares Carnneiro 14:667- trav. Dr. Moraes 7: 355, residência ignorada :720- rua Soares Carneiro 14:780 residência ignorada . 703 rua Aristides Lobo, 45- 736- rua Tiradentes 63, 808 travessa 22 de Junho s/nº : 769- travessa 1º de Março, 68: 532- rua Riachuello-49.”11 Esse conjunto de medidas, existentes tanto no contexto de Lisboa-Portugal como de Belém-Brasil, terminaram por criminalizar e medicalizar a prostituição e colocar a prostitutas na condição de propagadoras de doenças, o que termina por gerar imagens que vão estar presentes ao longo do século XIX e XX e ressurgir com novas roupagens com o surgimento da SIDA. As varias faces da SIDA: medo, estigma e discriminação São muitas as imagens que surgem a partir do momento em que a SIDA ocupa um lugar importante na mídia mundial e que renderam analises interessantes sobre a construção midiática dessa doença e as conseqüências sociais advindas com a mesma ( Threichler, 1987, Pigg, 2002). Juntamente com os elementos biológicos da doenças, surgem todo um conjunto de metáforas que fazem parte do processo de construção da doença e do doente de SIDA, o que faz com que a própria doença seja uma metáfora que remete a todo um conjunto de novos significados. (Sontag, 1989) Antes de continuar meu percurso em meio as imagens da SIDA em contextos de prostituição, abrirei um breve parêntese para pensar a própria construção da notícia nos jornais. Em suas pesquisas jornalísticas Asa Brigs e Peter Burke 12, propõem que se busque compreender as intenções de quem escreve, os meios em que comunicam, pois mensagens elaboradas precisam ser, na concepção dos autores, problematizados de acordo com o contexto social em que se inserem para que possam ser analisados adequadamente. Já em relação às influências que provocam sobre o público, é mais difícil de compreender porque entra em um amplo campo de possibilidades entremeado por subjetividades. O jornal situa-se então na encruzilhada entre o escritor, o público e o 11 Jornal Folha do Norte, nº. 9.806, coluna 5-6, p. 1, de 02/08/1922. 12 Consultar, (Briggs, & Burke, 2006). 6 campo político-social, o que fica claro quando nos deparamos com a forma como as imagens da SIDA foram sendo estruturadas ao longo dos ano. Na imagens que segue, analisada na obra de Sander (1988), temos as figuras de quatro prostitutas as quais sobre suas cabeças assenta as inicias da palavra AIDS, o que de imediato as culpa pela transmissão da referida doença. Vestidas com roupas chamativas e dotadas de belos corpo, estão expostas aos olhares em uma rua que pode ser em qualquer lugar, mas seus rostos são caveiras.13 Se de alguma forma seus belos corpos remetem a luxúria e ao pecado, suas faces anunciam a morte, confirmada pelo titulo, DEATH FOR SALE, o qual está em letras destacadas, como uma forma de chamar atenção e não deixar o leitor passar despercebido da mensagem que se quer transmitir. Sander L. Gilman. Disease and representation. Images of from madness to AIDS. Nova York: Cornell University Press, 1998. A imagem da prostituta como transmissora de doença volta a cena, não mais ligada a sífilis, e sim a SIDA, são as prostituas que como a frase negritada indica, vendem a doença do pecado. Essa imagem não está distante dos dois contextos aqui estudados, como observado no caso português e na matéria jornalística que retoma 13 Ao pensar na idéia de Deleuze de um devir rosto a partir do quadro acima, o que temos é um devir morte, presente no rosto das mulheres, o que da sentido ao trinômio prostituta-doença-morte. (Deleuze e Guattari, 1996) 7 uma velha discussão sobre a legalização e controle dos bordéis, com a diferença que a doença do momento é a SIDA. “No caso dos bordéis, esses outros valores impõem que se equacione a questão nestes termos: dado que a experiência demonstra à sociedade ser impossível acabar por decreto com a mais velha profissão do mundo, o que será preferível: manter a situação actual em que as prostitutas polulam nas ruas, numa existência degradante, sujeitas a todos os riscos e sem qualquer controlo sanitário, contribuindo assim para a disseminação da sida; ou consentir na instalação de bordéis em que esse controlo se possa exercer...”[grifo nosso]14 A partir da notícia acima referida fica claro como a idéia veiculada no referido jornal, da disseminação da SIDA pelas prostitutas, serve como justificativa para a criação de políticas de controle das profissionais do sexo que no momento começavam a viver a experiências de busca por melhores condições de trabalho e reconhecimento da prostituição como uma atividade laboral. O surgimento da SIDA termina por funcionar como avanços para o contexto das profissionais do sexo, pois foram criadas nesse momento muitas ONGs ligadas a busca dos direitos a saúde e a melhore condições laborais. (Lopes, 2006) mas foi também um período de recuo devido a forma estigmatizada que imputava como um dos grupos culpados de transmissão da SIDA, as prostitutas. O resultado dessa visibilidade que a prostituição vai ter em tempos de SIDA terá como resultado negativo a pressão que muitas dessas profissionais do sexo vão sofrer para fazer o teste de SIDA, algo que já se imagina esquecido nas imagens pretéritas da polícia de costumes, tanto em Lisboa-Portugal, quanto em Belém-Brasil. Em Belém-Brasil, em pesquisa de campo realizada em algumas área de prostituição da cidade, pude ouvir relatos das própria profissionais do sexo, sobre grupos de pesquisadores da área da saúde, que tentaram fazer testes de forma compulsória, o que causou forte indignação por parte de muitas dessas mulheres. Mas, para além do desagrado quanto ao teste compulsório, muitas das mulheres entrevistadas em Belém-Brasil, respondia que preferiam não fazer o teste e assim não saber se estavam doentes, pois sabiam que seriam melhor conviver com a dúvida de estar ou não com o VIH, do que a certeza. Essa busca em não lidar com a SIDA como algo existente é percebido na própria escolha em silenciar sobre o 14 , Jornal O Expresso, Bordeis sim ou não? 12.02.1994. 8 assunto, mesmo porque a SIDA surge nos discursos de algumas das mulheres como uma punição merecida pelo pecado cotidiano que muitas delas acreditam cometer. A idéia da SIDA como punição, termina por ser um elemento interessante para pensar a lógica que faz com que muita mulheres deixem de fazer o teste ou mesmo não usem preservativo, pois para muitas, a doença só será adquirida se for vontade de deus. A presença de cosmologias religiosas em meio aos discursos das profissionais do sexo é algo presente e importante para entender alguns comportamentos, como fica claro no relato que passo a citar. “Eu nunca fiz teste de AIDS, eu não gosto nem de ouvir falar dessa doença, eu tenho Deus do meu lado, e sei que nada vai me acontecer, se acontecer algumas coisa é porque Deus quis, mas eu sei que ele não quer, eu sei que ele me protege. Pode ver, meu corpo é sadio, (aponta para os braços) num tenho nem gripe, sou uma pessoa saudável (risos)”15 No decorrer da conversa com Marta, está vai aos poucos deixando claro que tem muito medo da SIDA, mesmo porque pensa sua atividade como algo errado, como ela mesma afirma, “eu sei que o que eu faço é errado”. E essa forma de encarar a prostituição como algo negativo, como algo errado e marginal, aponta para a forma como algumas profissionais do sexo pensam sua atividade como algo negativo, e que nesse caso, pode em algum momento ser passivo de punição. Nesse sentido, é possível que esse olhar criminalizado da própria profissional do sexo, seja uma explicação para a forma como muitas mulheres lidam com abusos de autoridade por parte da policia (Sanders, Teela & Campbell, Rosie 2007, Lopes, 2006), e nesse caso, estas mesmo quando vítimas de violência por parte de um cliente, por exemplo, preferem não denunciar com medo de represálias por parte da polícia. Apontamentos finais Ao olharmos para a forma como uma doença como a sífilis foi pensado no século XIX e inícios do XX, e pensarmos como a SIDA e pensada hoje, em relação a prostituição, nos possibilita o contato com continuidades históricas que preferíamos 15 Entrevista com Marta, em 20.04.2008. Marta trabalha na Riachuelo, a área de prostituição mais antiga da cidade de Belém-Brasil, é evangélica, tem 3 filhos e trabalho como profissional do sexo e 15 anos. 9 dar por esquecidas num passado não tão distante. Mas na verdade o que se apresenta é a retomada de elementos do passado que se refletem na tentativa de realizar testes compulsórios, na discriminação através de idéias como de grupo de risco, (e nesse sentido as prostitutas eram um desses grupos), comportamento de risco, atitudes de risco, as quais carregam ideologias discriminatórias com relação ao comportamento sexual. A epidemia de SIDA traz novamente para o contexto de prostituição o forte preconceito que se faz representar na imagem cadavérica da prostituta que vende a morte, ou nas palavras publicadas no jornal Público, com a afirmativas de que é impossível combater a SIDA sendo a prostituição legal, uma afirmativa que nem mesmo está ancorada na realidade, pois apesar de ser pensada pela legislação, tanto no Brasil como em Portugal, como algo que não é ilegal, a prostituição não pode ser pensada como algo legal, estando sim, envolta no véu da ilegalidade. A partir da analise de Tronca (2000) sobre a linguagem sobre a doença, e possível pensar como a linguagem cria uma nova doença que não deixa de ter lugar no passado, com memórias de outras doenças, e nesse caso a SIDA termina por trazer elementos metafóricos da época da sífilis. Nos nossos dias a linguagem sobre a SIDA cria uma outra doença paralela, que nem sempre condiz com as características biológicas, também difíceis de definir. Em um universo de representações da nova doença e muito presente a imagem do vírus que é invisível no corpo, mas visível nas revistas e cartazes espalhados por várias partes do planeta, assim como as armas de combate a este, nas inúmeras metáforas bélicas existente sobre a SIDA, (Bastos, 2002). O vírus se esconde ainda nos corpos das prostitutas do cartaz aqui analisado, ou no sangue sem um dono ou dana, que se derrama nos cartazes de uma nova campanha. A SIDA conseguiu colocar em xeque a objetividades de alguns campos de saber como a medicina por exemplo, deixando aberto o campo da Duvida e da indecisão quanto ao futuro da doença que hora leva ao desespero com a imagem do fim da humanidade, hora com a possibilidade de controle através da descoberta de uma nova vacina. Mas enquanto a cura não chega, o vírus invisível ao olhos e visível a imaginação vai se instalando em diferentes contextos, como na prostituição. Por fim, hoje como em outros tempos e lugares, a prostituição sofre 10 influências, positivas ou negativas de estar historicamente ligada as doenças de cunho sexual, mas utilizando uma metáfora muito presente em tempos de sífilis, a Vénus que renasce, não deixa de trazer algo do passado, mas não pode negar o presente, e muito menos o futuro, o que possibilita pensar que é importante e urgente um olhar para além da prostituta como transmissora de doenças, para criar a possibilidade de rasgar o tão mal afamado véu da ilegalidade e da doença que marca a prostituição. 11 Bibliografia Bastos, Cristiana. Ciência, poder, acção: as resposta à Sida. Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2002. Briggs, Asa & Burke, Peter. Uma história social da mídia – de Gutenberg à Internet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006 CARRARA, Sérgio. Tributo a Vênus: a luta contra a sífilis no Brasil, da passagem do século aos anos 40. Rio de Janeiro, Fio Cruz, 1996. Daniel, Herbert. “Síndrome dos nossos dias” in Desvios 5. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986. DELEUZE, Giles & GUATTARI, Felix. Mil platôs – capitalismo e esquizofrenia, vol. 3. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996 Foucault, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1987 ____________________. A ordem do discurso. São Paulo, Loyola, 1996. Gilman, Sander L. Disease and representation. Images of from madness to AIDS. Nova York: Cornell University Press, 1998. Lopes, Ana. Trabalhadoras do sexo, uni-vos: organização laboral na industria do sexo. Lisboa: Dom Quixote, 2006. Oliveira, Alexandra. As vendedoras de ilusões: estudo sobre prostituição, alterne e striptease, Lisboa, Noticias Editorial, 2004. Pigg, Stacy Leigh. “Expecting the Epidemic: A Social History of the Representation of Sexual Risk in Nepal” In Feminist Media Studies, Vol. 2, No. 1, 2002. Sanders, Teela & Campbell, Rosie (2007), “Designing out vulnerability, building in respect: violence, safety and sex work policy”, in The British Journal of Sociology, Volume 58 Issue 1. Santos Cruz, Francisco Inácio dos. Da prostituição na cidade de Lisboa, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1984. Silva, Susana. “Classificar para silenciar: vigilância e controlo institucionais sobre a 12 prostituição feminina em Portugal”, In Analise Social, vol. XLII, nº 189, (3º Trimestre), 2007. Sontag, Susan. AIDS e suas metáforas. São Paulo, Companhia das Letras, 1989. TRONCA, Italo A. (2000) As mascaras do medo: lepra e aids. São Paulo, Ed. Unicamp. Threichler, Paula. “AIDS, Homophobia and Biomedical Discurse: an epidemic of signification” Octobre, 43. 1987. 13