Leituras / Readings Volume X Nº6 Novembro/Dezembro 2008 O Internamento de Adolf Hitler no Hospital de Pasewalk, um Caso de Cegueira Histérica? The Adolf Hitler´s Hospitalization in Pasewalk, a Case of Hysterical Blindness? 1- O internamento na Casa de Tiros de Pasewalk Dois artigos recentemente publicados abordam, de uma perspectiva psiquiátrica, um episódio pouco conhecido da vida de Adolf Hitler[1, 2]. Em 15 de Outubro de 1918, quando a derrota da Alemanha na Primeira Grande Guerra já era evidente, o cabo Hitler, que lutava na região de Ypern, na frente da Bélgica, foi atingido, juntamente com outros soldados do mesmo regimento, por um ataque britânico com gás mostarda que lhes provocou uma cegueira transitória por queimaduras oculares. O grupo de soldados foi internado num hospital militar nas cercanias de Bruxelas, mas enquanto os colegas recuperaram ao fim de vários dias, o cabo Hitler não tornou a recuperar a visão. Os médicos oftalmologistas que o observaram não encontraram lesões oculares que justificassem a cegueira persistente e diagnosticaram uma cegueira histérica provocada pela situação de colapso psicológico, um quadro conversivo considerado uma forma clínica de neurose de guerra. Seguindo os sistemas de classificação diagnóstica Figura 1 - Edmund Forster alguns dias antes de sua morte em 1933. actualmente vigentes, o quadro corresponderia aos diagnósticos de Perturbação de Conversão (DSM-IV-TR) ou Perda Sensorial Dissociativa (CID-10). Segundo a versão oficial, o cabo Hitler teve apenas um episódio Adrian Gramary Médico Psiquiatra de cegueira provocado por gás mostarda e terá sido transferido para o hospital de Pasewalk, cidade localizada a mais de 800 km, na longínqua Pomeránia, na parte mais oriental do Correspondência relacionada com o artigo: Centro Hospitalar Conde de Ferreira Rua Costa Cabral, 1211, 4200-227 Porto e-mail: [email protected] Império Alemão. Segundo os autores dos artigos, a decisão da transferência respondia às regras dos serviços médicos militares de Alemanha, 47 Leituras / Readings Saúde Mental Mental Health que estabeleciam que os doentes histéricos e simuladores de 20 e 30, e a medida que o percurso político de Hitler se ia não deviam ser tratados juntamente com os doentes médico- aproximando do poder, o seu posicionamento político contrário cirúrgicos, por temor a um eventual efeito “contagiante”, que aos nazis. Para ele tornou-se evidente, apesar do dilema moral comprometesse o espírito de combate da tropa. que implicava dar a conhecer publicamente informação clínica Na enfermaria psiquiátrica do IV Hospital de Reserva de Prússia de um doente, a transcendência que o processo clínico de de Pasewalk, também conhecido como a Casa de Tiros – por Hitler poderia ter para o futuro político da Alemanha. ter sido usada como stand de tiro, antes de ser confiscada No verão de 1933, quando a ascensão do nazismo já era pelo Exército –, o doente foi observado pelo Dr. Kroner, um evidente, Forster decide agir e viaja a Paris, onde o seu irmão médico judeu com vastos conhecimentos sobre intoxicações trabalhava como conselheiro da embaixada alemã. Nessa por gás. Kroner terá confirmado o diagnóstico de histeria, cidade reuniu-se, no Café Royal, com Leopold Schwarzschild, mas, contudo, terá solicitado a avaliação do neuropsiquiatra Joseph Roth e Ernst Weiss, jornalistas colaboradores de Novo consultor do hospital, o Professor Edmund Forster. Diário, jornal porta-voz dos exilados alemães. Forster partilhou Forster, autor de diversos artigos sobre as neuroses de guerra, com eles a informação relativa ao internamento de Pasewalk, as reacções histéricas e a simulação, observou o doente numa e terá entregue duas cópias do processo a um deles para que visita, concordando com o diagnóstico colocado pelo seu co- as guardasse em segurança. Nas conversas desenvolvidas lega. O Dr. Forster, convicto da origem psicogénica do quadro, nesses três dias da Primavera de 1933 terá insistido junto dos terá submetido o cabo Hitler, a tratamento por auto-sugestão o jornalistas que acreditava que tinha chegado a sua hora e que que permitiu que, em 19 de Novembro de 1918, uma semana não deveriam acreditar em suicídio se ouvissem falar de sua após o fim da guerra, Hitler tivesse alta totalmente recuperado morte nas próximas semanas. e fosse enviado de volta ao seu regimento em Munique. Após o seu regresso a Alemanha, em 1 de Setembro de 1933, na sequência da chegada dos nazis ao poder, foi expulso do 2- Uma reunião em Paris, seguida de uma morte e um desaparecimento misteriosos seu cargo, com base em denúncias graves realizadas pelo filho do reitor da faculdade. O denunciante salientava, na sua carta, o conhecido posicionamento de Forster contrário ao nazismo, 48 Infelizmente, não contamos actualmente com informação do- juntamente com difamações como a eventual simpatia deste cumental sobre o tratamento realizado por Hitler durante esse pelos judeus e pelos marxistas, e acusações de posse de foto- internamento no Hospital de Pasewalk pois o processo clínico grafias pornográficas e de organização de orgias alcoólicas. desapareceu misteriosamente com a ascensão dos nazis ao Nesse contexto, Edmund Forster fez duas tentativas de suicí- poder. Tendo em conta as repercussões que dita informação dio, uma por ingestão de nicotina e outra por enforcamento, poderia ter para a imagem de Hitler como herói da Primeira sendo salvo em ambas ocasiões, a primeira vez por sua esposa Grande Guerra, não é difícil compreender que o Partido Nazi e a segunda por um colega. Quando aumentou a pressão fizesse todos os esforços possíveis para fazer desaparecer os contra ele, cumprindo os seus próprios vaticínios, acabou por registos clínicos. suicidar-se com um tiro de revólver, no dia 11 de Setembro Também era previsível, para as pessoas que entraram em con- de 1933. Ninguém na família tinha conhecimento da existência tacto com Hitler nesse internamento, que a sua participação desse revólver. se tornasse um perigo evidente para as suas vidas. Mas Forster não foi a única vítima do processo clínico de Assim aconteceu para o Professor Edmund Forster, que após Hitler. O Dr. Kroner foi detido e enviado para o campo de con- o fim da I Grande Guerra, deixou o Corpo Militar, sendo con- centração de Oranienburg, de onde foi solto 13 dias depois, decorado pelo seu trabalho como médico chefe militar. Forster graças à intervenção do embaixador da Islândia, conhecido era um neuropsiquiatra reputado, que mantinha em simultâneo da sua esposa. Kroner imigrou inicialmente para Copenhague, o seu trabalho clínico e as suas funções como docente na Uni- instalando-se definitivamente na Islândia, onde, em Março versidade da Charité de Berlim. Em 1925, tornou-se catedrático de 1945 terá relatado os factos acima referidos aos Serviços em Greifswald. Segundo a informação recolhida nos dois arti- de Inteligência dos Estados Unidos (US Office of Strategic gos referidos, Forster, não terá ocultado, durante as décadas Service – OSS). Leituras / Readings Volume X Nº6 Novembro/Dezembro 2008 3- O tratamento da cegueira de A.H. responsáveis por esses acontecimentos. Nos dias que se seguiram tive a consciência do meu destino. (…) O Devido ao desaparecimento do processo clínico, actualmente, imperador Guilherme II tinha sido o primeiro imperador dispomos só de informação procedente de fontes indirec- alemão que tinha oferecido a mão à conciliação com tas sobre o que pode ter acontecido com o cabo Hitler em os líderes do marxismo, sem se lembrar que bandidos Pasewalk, nomeadamente, contamos com a própria versão não têm honra. Enquanto eles seguravam a mão do dos factos narrada por este no seu livro Mein Kamp, e com imperador com a outra procuravam o punhal. (…) Eu, a versão literária elaborada pelo escritor Ernst Weiss, um dos porém, resolvi tornar-me político.” participantes nas famosas reuniões de Paris, no seu romance “A Testemunha Ocular (Der Augenzeuge)”[3]. O escritor judeu Ernst Weiss estudou medicina em Viena e Sabemos através de Kershaw, o autor da monumental biogra- Praga e durante a Primeira Grande Guerra serviu como médico fia de Hitler publicada no fim da década de 90, que este terá militar na frente oriental e em diversos hospitais de guerra. Foi confessado a múltiplas pessoas próximas ter tido, quando amigo de Kafka e, enquanto realizava os seus estudos universi- estava internado no hospital de Pasewalk, uma iluminação tários, teve a oportunidade de frequentar as aulas de Sigmund espiritual ou visão, em que sentiu que tinha que libertar o povo Freud. Em 1934, após a chegada de Hitler ao poder, Weiss, alemão e devolver a Alemanha à sua grandeza[4]. Segundo a tal como fariam muitos judeus austríacos e alemães, decidiu versão oferecida por Hitler no Mein Kamp, o internamento em emigrar para Paris, onde terminaria por se suicidar, cortando Pasewalk teve para ele uma influência fulcral na estruturação os pulsos e tomando veneno, no verão de 1940, quando as do seu pensamento e na decisão de começar a sua carreira tropas alemãs entraram na capital francesa. politica, descrevendo assim, no seu livro, o choque emocional O protagonista do livro de Weiss, “A Testemunha Ocular”, que sofreu ao receber a informação sobre a capitulação da é um médico psiquiatra militar, com muitas semelhanças Alemanha: com o Professor Forster, que declara nas primeiras linhas do “Foi então que soubemos de tudo. Estava presente romance: e fiquei profundamente emocionado. O velho e digno “Eu fui destinado a desempenhar um papel significativo senhor parecia tremer ao nos comunicar que a casa dos na vida de um homem estranho, o qual, depois da I Hohenzollern não mais poderia usar a coroa imperial e Grande Guerra, viria a provocar imenso sofrimento e que a Pátria se tinha transformado em república (…) No mudanças radicais na Europa”. pequeno salão havia profundo desânimo em todos os corações e creio que não havia quem pudesse conter Os autores dos artigos defendem os argumentos dos historia- as lágrimas. Quando o pastor procurou continuar e dores que acreditam que Weiss usou a informação recebida começou a comunicar que teríamos que acabar essa no café Royal de Paris para o criar o seu romance. O argu- longa guerra e que a nossa Pátria, agora que tínhamos mento do livro é o seguinte: em 1918, no hospital de guerra perdido a guerra e estávamos sujeitos à misericórdia de Pasewalk, um psiquiatra cura, mediante a hipnose e a auto- do inimigo, iria sofrer grandes opressões e que o ar- sugestão, o paciente A.H. (estas são as iniciais usadas no livro mistício seria aceite dependendo da magnanimidade para se referir ao doente) da sua cegueira histérica. O médico dos nossos inimigos - eu não me contive. Para mim não consegue libertar o paciente do seu fanatismo político e do era impossível permanecer onde estava. Comecei a ver seu ódio, mas tem sucesso em restabelecer e aumentar a sua tudo preto em torno de mim e cambaleando voltei ao autoconfiança, o que – do ponto de vista do médico – o torna dormitório. Joguei-me na cama e cobri a cabeça em co-responsável pela terrível carreira e ascensão de A.H. fogo com o cobertor e o travesseiro. (…) Que significa- Num momento fulcral do romance, assistimos à cura por vam todas as dores dos meus olhos comparadas com sugestão da cegueira histérica de A.H. O psiquiatra, depois essa miséria. (…) Seguiram-se dias terríveis e noites de examinar cuidadosamente os olhos do doente, simula, mais terríveis ainda. Eu sabia que tudo estava perdido. confirmando que a sua cegueira é, de facto, causada pelo (…) Nessas noites cresceu em mim o ódio contra os dano irreparável provocado pelo gás e que, dada a extensão 49 Leituras / Readings Saúde Mental Mental Health das lesões, é improvável que ele algum dia volte a ver. De- devemos reconhecer que a sua leitura não permite obter res- pois de esperar por alguns momentos para que sua notícia postas definitivas para algumas das dúvidas que continuam devastadora tivesse o efeito desejado, o psiquiatra apaga a a pairar sobre ela. Assim, parece uma explicação plausível, luz, deixando o paciente no escuro. Então, de modo suave e para o desaparecimento das cópias entregues aos jornalistas relutante, acrescenta que há uma ponta de esperança: “Talvez exilados em Paris, pensar que elas fossem destruídas, por você mesmo tenha o raro poder, que ocorre uma vez a cada temor à vingança da Gestapo, no meio da confusão provocada milénio, de realizar um milagre… Jesus fez isso, Maomé e os pela chegada dos nazis a França. Mais difícil é encontrar uma Santos. Com seus sintomas, alguém normal ficaria cego pelo resposta para outra importante dúvida, para o qual ninguém resto da vida, mas para uma pessoa com excepcional força conseguiu encontrar uma explicação convincente: porquê é de vontade e energia mental não há limites, o conhecimento que foi que os jornalistas que participaram na referida reunião científico não se aplica a esse tipo de pessoa. Você precisa de do Café Royal de Paris não fizeram pública a informação de acreditar em si completamente, então poderá voltar a ver. Você que eram depositários? Talvez o temor a eventuais retaliações sabe que a Alemanha, agora precisa de pessoas que tenham por parte da Gestapo pudesse explicar o seu silêncio durante a energia e fé cega em si mesmas. Para você tudo é possível!”. O Segunda Guerra Mundial, mas não há uma resposta satisfatória médico faz então uma pausa e acende uma vela sobre a mesa que permita esclarecer porquê o único sobrevivente, Leopold entre eles, explicando que, se A.H. é capaz de ver a chama, Schwarzschild (dos três referidos, ele foi o único que sobreviveu isso seria a prova definitiva das suas qualidades únicas como à guerra, pois o escritor Joseph Roth também se suicidou, ser humano e de que Deus lhe tinha dado o destino de levar quando o exercito alemão entrou em Paris), decidiu manter-se a Alemanha à vitória. No princípio, o paciente nega que possa em silêncio até à sua morte, acontecida na década de 50. ver alguma coisa, mas, depois de alguns minutos de exortação do médico, murmura que pode ver uma chama de vela ténue e cintilante. Gradualmente, passa a perceber mais detalhes na sala. Sua visão está recuperada. “Tudo aconteceu porque eu queria que acontecesse”, relembra mais tarde o médico, “eu brinquei de Deus e restitui a visão a um cego”. No romance, o médico mantém consigo os registos clínicos do paciente, o que, juntamente com o facto de ser casado com uma judia, faz com que seja enviado em 1933 para um campo de concentração, onde quase morre em consequência de graves espancamentos sofridos. No entanto, consegue ser libertado porque sua mulher entrega os documentos a um dirigente nazi, na Suiça. Física e psiquicamente debilitado, o psiquiatra desespera, porque a sua liberdade fora comprada e decide ir para Espanha e ajudar, como médico, os defensores Bibliografia da República na luta contra o fascismo. É necessário salientar que as opiniões sobre o episódio de cegueira de Hitler não são consensuais. Assim, enquanto Vallejo-Nágera não duvida em qualificar o episódio do internamento em Pasewalk de cegueira histérica[5], pode surpreender boletim médico. Rev. Psiq. Clin. 33 (4); 218-224. [2] Lewis DA (2006): Trinta dias na casa de tiros. O estranho caso do Dr. Edmund e Adolf Hitler. Rev. Psiq. Clin. 33 (5); 276-285. o parecer de Ian Kershaw, o mais conhecido biógrafo de Hitler, [3] Weiss E (2003): El testigo ocular. Siruela. Madrid. que defende a versão oficial de cegueira por gás mostarda e [4] Kershaw I (2004): Hitler (1889- 1936). Quinteto. Ediciones considera “improvável que se produzisse em Pasewalk uma segunda cegueira, histérica ou alucinatória”[4]. Até aceitando a teoria defendida pelos autores dos artigos, 50 [1] Köpf G (2006): A cegueira histérica de Adolf Hitler: histórico de um [Península]. [5] Vallejo-Nágera JA (1996): Locos egregios. Planeta DeAgostini. Barcelona.