DENTES COM TRATAMENTO ENDODÔNTICO: COMO E COM O QUE RESTAURAR? INTRODUÇÃO O questionamento de como e com qual material restaurar os dentes após o tratamento endodôntico tem sido baseado na preocupação com a possível modificação das características físico mecânicas da estrutura dental em função da remoção do órgão pulpar. Essas possíveis modificações na resistência à compressão, dureza e módulo de elasticidade da dentina tem sido atribuídas a perda do conteúdo de umidade do dente após o tratamento endodôntico, o que levaria a uma maior possibilidade de ocorrência de fraturas dentais. Isso tem levado os profissionais a acreditarem que a perda da vitalidade pulpar torna os dentes “secos” e mais “frágeis”. Devido a este raciocínio muitos profissionais indicam o uso de pinos intra-canal e restaurações parciais com cobertura de cúspides ou coroas totais sem um protocolo clínico definido, principalmente pela ausência de critérios precisos de diagnóstico que suportem este tipo de tratamento. O fato de realizar o tratamento endodôntico não significa que as características físicas e mecânicas da dentina e do esmalte serão alteradas de maneira significativa ao ponto de justificar o sacrifício de estrutura dental sadia para realização de procedimentos restauradores mais invasivos. Na realidade, os fatores que levam à fratura não estão vinculados exclusivamente à remoção do órgão pulpar, já que na literatura não encontramos estudos que demonstrem que a dentina e o esmalte de dentes tratados endodonticamente tenham propriedades físicomecânicas significativamente inferiores a de um dente vital. Os relatos disponíveis estão baseados em observações clínicas e afirmações empíricas, sem estudos confiáveis que suportem taís afirmações. O objetivo deste capítulo é embasar o profissional em critérios científicos que auxiliem na seleção do material e da técnica para restauração de dentes tratados endodonticamente. CARACTERÍSTICAS FÍSICAS E MECÂNICAS DA ESTRUTURA DENTAL Para a compreensão dos critérios que devem reger a decisão de como e com o que restaurar os dentes tratados endodonticamente é necessário conhecer algumas características físicas e mecânicas dos tecidos dentais relevantes para a resistência à fratura dos dentes antes e após o tratamento endodôntico. Resistência à compressão da dentina: Algunsa estudos mostraram uma redução na resistência à compressão da dentina de dentes tratados endodonticamente ao redor de 7%, enquanto que outros trabalhos encontraram redução na resistência a compressão da dentina de dentes que sofreram tratamento endodôntico na faixa de 1 a 3% 7,11,15 . Ao nosso ver, esta redução na resistência à compressão da dentina inferior a 10 %, não justifica a freqüência de fraturas observadas em dentes com tratamento endodôntico. Ainda mais, se considerarmos que a literatura também apresenta alguns estudos onde não foi encontrada nenhuma diferença significativa na resistência à compressão da dentina de dentes desvitalizados comparativamente a dentes vitais 4, 7,17. Módulo de elasticidade, dureza ou resistência à fratura: Alguns autores ao compararem estas características da dentina de dentes submetidos ou não ao tratamento endodôntico observaram alterações inferiores a 1%, não sendo portanto, diferenças significativas 4,7,8,17. Conteúdo de líquido da dentina: A perda da umidade inerente à dentina em função da remoção do órgao pulpar tem sido considerada por muitos como a principal causa de fratura dos dentes tratados endodonticamente. Entretanto, na literatura não encontramos trabalhos que suportem esta informação. Na realidade observa-se inúmeras afirmações em relatos clínicos atribuindo a fratura a perda de conteúdo líquido sem, no entanto, existir a citação de uma referência de um experimento científico que comprove modificação significativa desta característica da dentina. Infelizmente a frequencia de observações clínicas de fraturas de dentes tratados endodonticamente tem erroneamente dado suporte para tal afirmação, já que os estudos científicos disponíveis não o permitem 7,11. A percepção visual da alteração de umidade da dentina pode ser observado clinicamente quando mantemos, por exemplo, um dente vital ou não sob isolamento absoluto com dique de borracha,ou seja, isolado do contato com a saliva. Esta observação é simples de ser realizada e reforça o fato de que a perda do órgao pulpar não é determinante na manutenção do conteúdo de umidade da dentina. POR QUE OS DENTES FRATURAM? Na realidade os dentes fraturam em função da remoção de tecido dental independente da remoção do órgão pulpar, haja visto que a perda da vitalidade não implica em diminuição significativa nas características físicas e mecânicas dos tecidos dentais. DICA CLÍNICA A remoção de tecido dental é um fator determinante no padrão de fratura do dente, muito mais do que o fato do elemento dental apresentar ou não vitalidade, portanto devemos refletir sobre a necessidade de realizar desgaste dental e também a respeito da seleção do material e técnica restauradora. Isto pode ser observado clinicamente, pela ocorrência de fraturas em dentes vitais, principalmente quando tem suas cristas marginas removidas, acelerando o processo de fadiga das cúspides em função da deflexão provocada pela função fisiológica do dente. Isso já foi relatado em trabalhos da década de 50 mais recentemente por Seco e colab 14 ., verificando-se uma estreita relação entre a remoção de tecido dental, tanto nas caixas proximais e cristas marginais, quanto pelo aumento da abertura do preparo cavitário, levando a diminuição da resistência à fratura destes dentes. Portanto, estes achados não estão vinculados com a existência ou não do órgão pulpar e sim com a quantidade de remoção de tecido dental o que nos coloca diante de um desafio, pois para que a terapia endodôntica possa ser executada com sucesso é necessária a remoção de quantidades significativas de tecido dental. A remoção de tecido dental com aumento da abertura da cavidade acentua o processo de deflexão das cúspides principalmente pela remoção da parede de fundo da cavidade com o objetivo de obter o acesso aos canais radiculares. Esta situação se torna ainda mais crítica para a manutenção da resistência à fratura do dente quando há envolvimento das cristas marginais. O teto da câmara pulpar assim como as cristas marginais agem como vigas de união entre as cúspides, protegendo a raiz do dente do fenômeno de deflexão e também da ação de cunha do próprio material restaurador. DICA CLÍNICA O paciente deve ser alertado quanto ao risco de fratura do dente nos intervalos entre as consultas de tratamento endodôntico Esta situação poderá ser ainda mais crítica quando o material restaurador não tem união eficiente aos tecidos dentais, ou apresenta características físicas e mecânicas significativamente diferentes da estrutura dental 1,5 .Com isto, forças fisiológicas são transferidas ao remanescente dental propiciando uma deflexão constante das cúspides até que o limite de proporcionalidade é ultrapassado através de uma carga mastigatória considerada normal ou de impacto levando o dente à fratura. Para o entendimento deste fenômeno é importante o conhecimento da distribuição de forças no elemento dental durante um contato cêntrico e durante os movimentos mastigatórios (figura x1). A figura x2 apresenta a modificação da distribuiçao dos esforços conforme é realizada a remoção de estrutura dentária ocasionando o fenômeno de deflexão das cúspides. Independente do elemento dental ter sido submetido a tratamento endodôntico, as cúspides que não estão unidas através das cristas marginais vão sofrer esforços semelhantes a braços de alavanca impulsionadas pelo próprio material restaurador. Quanto maior e mais constante for a deflexão desta cúspide, maior será a probabilidade do dente fraturar. Este tipo de fratura ocorre em função de repetidas cargas cíclicas que levam a fadiga e à formação de microtrincas no dente, seja o dente vital ou não. Assim a fratura das cúspides freqüentemente ocorre em função de esforços mastigatórios normais, que através do tempo vão diminuindo a rigidez do dente e aumentando a deflexão das cúspides até ocorrer a fratura 14 . Inclusive nestas situações, freqüentemente os pacientes relatam que a fratura ocorreu durante a mastigação de um alimento macio, ou seja, que não houve uma força de impacto significativa que justificasse o traumatismo dental ocorrido. COMO RESTABELECER A RESISTÊNCIA DO DENTE À FRATURA ? Dessa forma, para restabelecer a resistência do elemento dental existe a necessidade de definir a filosofia de trabalho que irá determinar o protocolo clínico, essencial para o sucesso do procedimento. Assim sendo, o profissional pode optar basicamente por duas filosofias de trabalho para restaurar os dentes tratados endodonticamente. A resistência pode ser restabelecida através de técnicas que preconizem a proteção das cúspides, evitando assim o processo de deflexão do dente por conferir uma cobertura ao elemento dental através do material restaurador, conferindo ao dente a resistência do próprio material. Para a realização deste procedimento do ponto de vista clinico é frequentemente necessário a remoção de estrutura dental sadia para conferir espaço e espessura adequadas ao material restaurador. A outra forma de se restabelecer a resistência é através de uma filosofia baseada em técnicas adesivas, promovendo entre o dente e o material restaurador, união micromecânica e ou adesão química. A opção por determinada filosofia de tratamento deve ser realizada a partir de uma reflexão que questione os princípios que vão nortear o procedimento restaurador. Um questionamento importante é “justifica remover estrutura dental hígida para propiciar resistência ao material restaurador?” Ao nosso ver, nesse momento o profissional necessita refletir a respeito do estágio atual dos sistemas adesivos (veja capítulo 7) e principalmente observar o compromisso de “restaurar preservando” abordado no capítulo 1 e vinculado a uma atuação atual em Dentística. Alternativas de tratamento em função do diagnóstico serão apresentadas quando da seleção do material e técnica restauradora. DIAGNÓSTICO *Quantidade de tecido dental remanescente: após a remoção de tecido cariado e/ou restauração antiga deficiente é importante que o profissional analise a quantidade de tecido dental coronário remanescente. Alguns autores recomendam que quando há uma perda de estrutura dental superior a 50% é indicado realizar um reforço do dente com pino intra-canal 3,9,16 . Entretanto, a literatura mostra que o uso de pino intra-canal não reforça o dente tratado endodonticamente e que a função destes pinos é apenas auxiliar na retenção do material restaurador 3,9,16. Portanto, o pino intra-canal deve ser indicado apenas para este fim,ou seja, quando houver perda total da coroa dental. Assim sendo, preferencialmente o dentista deve optar por procedimentos restauradores adesivos, quer sejam diretos ou indiretos, pois estes realmente conferem um reforço da estrutura dental remanescente. *Localização do dente no arco dental: devido a diferença existente na distribuição das forças que incidem sobre os dentes posteriores e anteriores a seleção do material e técnica restauradora pode ser diferente. Enquanto que em dentes posteriores, mesmo com perda coronária total, pode-se indicar com segurança a confecção de uma restauração do tipo overlay sem emprego de pino intra-canal (veja capítulo 18); em dentes anteriores, apesar dos relatos de Pissis, esta indicação representa uma situação de maior risco necessitando ainda mais estudos clínicos longitudinais. *Condição da raiz remanescente: é essencial que o profissional observe a quantidade de tecido dentinário remanescente na porção radicular do dente tratado endodonticamente, pois se ocorreu perda significativa está indicado a realização de um reforço interno da raiz através do emprego de sistema adesivo e resina composta, que em alguns casos pode ser associado com pino intra-canal previamente à confecção da restauração. Outro aspecto que deve ser observado é a anatomia da raiz, visto que dentes com acentuada dilaceração apical podem limitar a indicação de pino intra-canal. *Restauração unitária ou múltipla: as solicitações mecânicas são diferentes quando confeccionamos uma restauração unitária ou quando o dente é parte integrante de uma restauração múltipla como, por exemplo, pilar para prótese fixa ou prótese parcial removível. Nestes casos, preferencialmente deve-se utilizar núcleos metálicos fundidos associados à coroas totais, visto que a resistência a um deslocamento lateral é muito maior. *Estética: dentes que apresentam um comprometimento estético significativo devido a alterações de cor, forma ou posição podem necessitar uma restauração mais ampla ou até mesmo indireta, fator este que pode influenciar na decisão do dentista quanto a seleção do material e técnica restauradora. SELEÇÃO DA TÉCNICA E MATERIAL PARA RESTAURAÇÃO: Tabela 1. Sugestão de procedimento restaurador para dentes anteriores em função da integridade da coroa: Integridade da coroa dental Cristas marginais Face vestibular Procedimento restaurador Materiais Técnica Intactas ou perda de Intacta até 50% de tecido Resina composta Rest. direta Intacta Resina composta Restauração Direta Perda superior a 50% _________________ ________________ _________________ de tecido Restauração Indireta Cerâmicas Estética / pino direto Polímeros comprometida Perda total Perda total Cerâmicas Polímeros Rest. Indireta / pino direto Tabela 2. Sugestão de procedimento restaurador para dentes posteriores em função da Integridade da coroa dental Integridade da coroa dental Cristas marginais Cúspides Procedimento restaurador Materiais Intactas ou perda de Envolvimento parcial Resina composta até 50% de tecido Perda superior a 50% Envolvimento de 1 ou mais de tecido Perda total Perda total Técnica Rest. Direta Restauração Indireta recobrimento total Porcelana Feldspática sem das demais cúspides Resina Composta Porcelana Resina Composta ________________ Porcelana Resina Composta Metalocerâmica Restauração Indireta _________________ Coroa Total com pino direto ou indireto UTILIZAÇÃO DE PINOS INTRA-CANAL DIRETOS E INDIRETOS Sempre que possível devemos evitar o uso de pino intra-canal no sentido de simplificar o procedimento restaurador e evitar os riscos associados com sua utilização. Dentre estes, podemos citar a possibilidade de induzir microtrinas na raiz, efeito de “cunha” podendo gerar futura fratura radicular. No entanto, em algumas situações clínicas pode ser necessário a utilização de pino intra-canal. Por exemplo, em dentes anteriores quando a perda de estrutura dental coronária e/ou radicular for acentuada e em dentes posteriores quando houver perda total da coroa clínica e o dente for utilizado como pilar de uma prótese fixa ou removível. Estes pinos podem ser confeccionados pela técnica indireta (metálicos ou cerâmicos) ou diretos. Os pinos diretos apresentam uma importante vantagem que é a possibilidade de eliminar uma sessão clínica, reduzindo assim o tempo e custo para confecção da restauração visto que não há necessidade de uma fase laboratorial para fundição do pino metálico. DICA CLÍNICA Os pinos diretos são preferencialmente indicados em dentes que irão receber restaurações unitárias, já os indiretos em dentes que serão pilares de prótese fixa. Os pinos diretos podem ser classificados de acordo com sua composição em: CLASSIFICAÇÃO # Pinos metálicos: são confeccionados em ligas de aço inoxidável, titânio ou ligas nobres. Marcas comerciais: Luminex – Dentatus; Unimetric - Maillefer # Pinos de fibro-Carbono: são confeccionados com resinas que aglutinam as fibras, possibilitando união com a fase orgânica de agentes cimentantes resinosos. Apresentam como vantagem um módulo de elasticidade próximo da estrutura dental. Marcas Comerciais: C-Post – Bisco # Pinos Cerâmicos: são confeccionados a base de cerâmicas fundíveis e ou prensadas, possibilitando união com agentes cimentantes resinosos após o tratamento da superfície com agentes condicionadores e ou silanos. Apresentam como vantagem uma cor estética, podendo ser utilizados com materiais translúcidos (Coroas de IPS Empress ou Porcelana Pura). Marcas Comerciais: Cosmopost – Ivoclair #Pinos Fibro-resinosos Marcas comerciais:FibreKor(Jeneric-Pentron) A cimentação, tanto dos pinos indiretos quanto indiretos, pode ser realizada com cimento de fosfato de zinco, cimento de ionômero de vidro ou cimento resinoso. O uso de cimento resinoso associado a sistema adesivo que emprega a técnica de condicionamento ácido total propicia um reforço da raiz do dente tratado endodonticamente. Deve-se utilizar cimentos resinosos quimicamente ativados para fixar os pinos devido a dificuldade de acesso com a luz do aparelho fotopolimerizador na região radicular. PROTEÇÃO DAS CÚSPIDES Utilizando técnicas restauradoras adesivas diretas ou indiretas consegue-se aumentar a resistência à fratura do dente restaurado comparativamente ao dente preparado. Portanto, deve-se tentar manter sempre que possível as cúspides remanescentes. Estas regiões dos dentes possibilitam a manutenção de uma adequada relação oclusal, facilitam o protético na construção da anatomia da restauração, podem evitar um envolvimento da face vestibular e conseqüente prejuízo estético pela visualização da interface dente/material restaurador e representam área adicional de tecido dental para união com o sistema adesivo. A redução das cúspides deve ser realizada somente quando a parede vestibular ou lingual estiver extremamente fragilizada pela presença de trincas e restaurações deficientes ou quando o profissional por alguma razão utilizar uma restauração indireta não adesiva. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: 1. Ausiello P, et al. Fracture resistance of endodontically-treated premolars adhesively restored. Am J Dent. v.10, n.5, p.237-241, 1997. 2. Causton BE, Johnson NW. Changes in the dentine of human teeth following extraction andtheir implication for in-vitro studies of adhesion to tooth substance. Archs oral Biol. v.24, p.229-232,1979. 3. Christensen GJ. Posts: necessary or unnecessary? JADA. v. 127, p.1522-1526, Oct. 1996. 4. Fusayama T, Maeda T. Effect of pulpectomy on dentin hardness. J Dent Res. v.48, n.3, p. 452-460, 1969. 5. Hansen EK, Asmussen E, Christiansen NC. In vivo fractures of endodontically treated posterior teeth restored with amalgam. Endod Dent Traumatol. v.6, p.4955, 1990. 6. 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