LUGAR COMUM Nº23-24, pp.167-184 O agenciamento Foucault/Deleuze Antonio Cavalcanti Maia “Enfim, é em torno do conceito de agenciamento que se pode avaliar a relação de Deleuze com Foucault, os empréstimos desviados que lhe fez, o jogo de proximidade e de distância que liga os dois pensadores (...); todo o Foucault é construído em cima dos diferentes aspectos do conceito de agenciamento.” François Zourabichvili Entre os pensadores da constelação do pós-estruturalismo aqueles cujos projetos filosóficos apresentam maiores convergências são Foucault e Deleuze. Da matriz nietzscheana à insatisfação com a arquitetônica teorética da filosofia da consciência (em especial na sua versão fenomenológica), da identificação com a nova agenda de lutas políticas pós maio de 68 à crítica da sociedade de controle, as obras desses dois contemporâneos marcaram definitivamente uma certa forma de pensar o presente. O objetivo deste artigo será explorar alguns elementos da leitura do trabalho de Foucault realizada por Deleuze. Ora, todos aqueles que enfrentam a tarefa de procurar uma interpretação integradora do trabalho de Foucault encontram-se em dificuldades. Uma obra marcada pelo signo do deslocamento, deliberadamente elusiva – de um pensador que não se citava –, situando-se, por vezes, às margens do discurso filosófico, em um original imbricamento de filosofia e história. De uma investigação inicialmente centrada no domínio epistemológico, à época da arqueologia do saber, paulatinamente, de forma não ortodoxa, o projeto genealógico atravessa o campo da teoria social e termina no continente da ética. As inúmeras reflexões metodológicas presentes ao longo de seus livros testemunham as dificuldades de situá-lo dentro dos quadrantes tradicionais do discurso filosófico. Da auto-classificação como historiador do sistema de pensamento (quando do ingresso no Collège de France, em 1970) à reivindicação de um estatuto teórico para a ontologia do presente (nos seus textos finais na década de oitenta), Foucault deixou em apuros aqueles preocupados com uma certa sistematização de sua obra; afinal, “os filósofos não conseguiam estar de acordo a respeito daquilo que Foucault queria fazer” (Kelly, 1994, p. 8). 168 O AGENCIAMENTO FOUCAULT/DELEUZE Neste artigo, utilizarei a leitura de Foucault realizada por Deleuze no intuito de oferecer uma chave de compreensão capaz de iluminar os objetivos de sua empresa teórica. É claro que alguns temas deleuzianos auxiliam a compreensão e complementam as pesquisas genealógicas, como, por exemplo, a articulação entre a temática da estética da existência e os devires minoritários, o continuum biopoder, biopolítica, sociedade de controle.95 Já em seu livro sobre Foucault, Deleuze lança uma interpretação capaz de explicar as vicissitudes metodológicas observadas na trajetória do autor de As Palavras e as Coisas. Tanto a idéia de reconhecer nas análises arqueológicas de Foucault uma nova forma de arquivar os dados históricos (no texto “Um Novo Arquivista”96) como a identificação do projeto genealógico sob o signo de uma nova cartografia das relações de poder em sociedade (no texto “Um Novo Cartógrafo”97) apreendem as especificidades de uma original investigação filosófica. Entretanto, estribarei minha análise em referências encontradas nas entrevistas reunidas no livro Conversações, nas quais é tematizada a obra de Foucault. Tal opção se justifica não só pelo fato de que este caminho possibilitará uma explicitação do trabalho deste último – no sentido de uma contribuição no âmbito da filosofia da cultura –, mas também porque pode-se sustentar que “(...) seu Foucault é uma análise impressionante mas que lança mais luz sobre o próprio Deleuze do que sobre Foucault” (Gutting, 2001, p.339). O foco principal desta investigação situa-se nas cogitações realizadas por Deleuze acerca de certas tarefas da filosofia no quadro do pensamento contemporâneo tomando como referência suas reflexões sobre Foucault (bem como a própria obra deste pensador). Tais reflexões permitem definir como campo legítimo Já desenvolvi algumas considerações sobre o aspecto complementar do conceito deleuziano de sociedade de controle vis-à-vis a temática do biopoder no texto “Biopoder, biopolítica e tempo presente”. In. Novaes, 2003, p. 77-108. Esclarecedor sobre este aspecto também os seguintes livros de Peter Pál Pelbart: A Vertigem por um Fio, 2000 e Vida Capital, 2003. 95 Como salienta Deleuze, “o livro de Foucault [Arqueologia do Saber] representa o passo mais decisivo para uma teoria-prática das multiplicidades” (Deleuze, 1987, p. 34); e, logo a seguir: “a arqueologia opõe-se às duas principais técnicas até agora empregadas pelos arquivistas: a formalização e a interpretação” (idem). 96 Por exemplo, a própria maneira como Foucault compreende seu trabalho em passagem retirada de lição no Collège de France em 1979: “Eu vou descrever certos aspectos do mundo contemporâneo e de sua governamentalidade; este curso não dirá a vocês o que devem fazer ou contra quem devem combater, mas ele fornecerá uma carta/mapa; ele dirá portanto o seguinte: se vocês atacarem por esta direção, bem, há aqui um nó de resistência, mas por lá há uma passagem possível”. Esta referência se encontra no texto de Paul Veyne 1986, p. 938. 97 Antonio Cavalcanti Maia de tematização do discurso filosófico o âmbito da cultura, extraindo, a partir destas análises, sugestivas orientações relativas a possíveis práticas político-culturais inscritas em um movimento de resistência a um cenário contemporâneo, em muitos aspectos, inóspito e homogeneizador. Pretendo realizar aqui um agenciamento entre Foucault e Deleuze, isto é, um esforço de construir “(...) algo capaz de fazer algo, de produzir um efeito” (Baugh, 2000, p. 52). Produzir algo conectando o trabalho desses dois filósofos com a démarche de Adorno; produzir um efeito, se possível, auxiliando em nossa compreensão dos dilemas postos no horizonte da cultura contemporânea, em especial na forma como são vividos em uma sociedade periférica emergente. I Ao descrever o panorama atual da filosofia francesa, Christian Delacampagne afirma: “Foucault, Deleuze, Lyotard: três pensadores ‘nômades’, deliberadamenrte marginais, e que compartilham, entretanto, a mesma concepção ‘afirmativa’, ‘energética’ e pluralista da prática filosófica” (Delacampagne, 1997, p. 256). Esta concepção do trabalho filosófico unindo Foucault e Deleuze dificilmente pode ser reduzida a um denominador comum, a um núcleo essencial ou a um princípio genético compartilhado, mas, o próprio Deleuze, respondendo a uma atilada questão, circunscreve um campo comum de referências (transcreverei também a pergunta pela sua pertinência a esse contexto): – Na Chronique des idées perdues François Châtelet, ao evocar a amizade muito antiga com você, com Guattari, com Schérer e Lyotard, escreve que vocês eram do ‘mesmo time’ e tinham – marca talvez da verdadeira conivência – os ‘mesmos inimigos’. Você diria o mesmo de Michel Foucault? Vocês eram do mesmo time? – Penso que sim. Châtelet tinha um sentimento vivo disso tudo. Ser do mesmo time é também rir das mesmas coisas, ou então calar-se, não precisar ‘explicarse’. É tão agradável não ter que se explicar! Tínhamos também, possivelmente, uma concepção comum da filosofia. Não possuíamos o gosto pelas abstrações, o Uno, o Todo, a Razão, o Sujeito (Deleuze, 1992c , p. 108-109). Entre os elementos que aproximam Foucault e Deleuze certamente se encontra um descontentamento com a forma pela qual era pensado o papel do sujeito dentro da concepção filosófica dominante nos seus anos de formação, vale dizer, uma fenomenologia em estreito diálogo com o marxismo característica do horizonte cultural dos anos 50. Como afirma Foucault em uma de suas últimas 169 170 O AGENCIAMENTO FOUCAULT/DELEUZE entrevistas: “(...) eu diria que tudo que se passou em torno dos anos 60 vem bem desta insatisfação diante da teoria fenomenológica do sujeito” (Foucault, 1994, p. 437). Com efeito, um questionamento enfático acerca da soberania de um sujeito fundador, doador de sentido, transparente a si mesmo, situado no centro da perspectiva desenvolvida pela fenomenologia, levava tanto Foucault quanto a Deleuze a procurar uma escapatória ao mainstream filosófico francês do pós-guerra. E o caminho adotado por eles tem em Nietzsche a sua referência principal (outros caminhos foram abertos pela lingüística e pela psicanálise lacaniana). Quando Foucault desenvolve, em suas pesquisas, um amálgama dos métodos e preocupações da tradição epistemológica francesa, de Bachelard e Canguilhem, com o questionamento radical sobre a objetividade da razão posta em funcionamento nos discursos científicos inaugurada por Nietzsche, o alvo a atingir é a posição imperial ocupada pelo sujeito no paradigma da fenomenologia. Assim, como ele indaga, “será que um sujeito de tipo fenomenológico, trans-histórico é capaz de dar conta da historicidade da razão?” (Foucault, 1994, p. 436). A inquestionável historicidade que submete o sujeito, bem como o seu enredamento nas relações sociais e determinações psicológicas – constatação imposta pelos mestres da suspeita, Marx, Nietzsche e Freud – marcaram definitivamente a geração de Foucault e Deleuze, contribuindo para a perda de todas as prerrogativas de domínio de si próprio e do mundo que a metafísica, de Descartes a Husserl, atribuía ao sujeito. Constitui um outro elemento comum a desconfiança em face de temas como a “totalidade” e o “uno”, temas de nítidas colorações hegelianas. Este constitui outro traço caracterizador do chamado pós-estruturalismo (mais evidente nas reflexões de Deleuze, que desde sua dissertação de mestrado, aos 27 anos, procurava, com Hume, escapar dessa asfixiante atmosfera hegeliana dos anos 50). A desconfiança em face de um pensamento que funcione privilegiando um mecanismo que subsuma o diferente sob o signo do igual e do universal inspira tanto a empresa filosófica de Deleuze quanto a de Foucault. O pluralismo nietzschiano oferece uma escapatória à dialética, que, sempre, ao fim e ao cabo, apazigua o confronto e as lutas sob o signo da reconciliação. Assim, “segundo Deleuze, Hegel e outros dialéticos sustentam que a realidade se gera pela construção antagônica de fenômenos polares opostos, pelo ‘trabalho do negativo’. Esta é uma interpretação dinâmica do mundo onde as diferenças são sempre subsumidas sob uma unidade subjacente, onde as contradições buscam sempre uma síntese mais Antonio Cavalcanti Maia alta e o movimento se resolve em último termo em ‘estaticidade’ e morte” (Quevedo, 2001, p. 114).98 Campo convergente dos interesses destes dois filósofos: repensar as relações entre teoria e prática – problema venerável da tradição filosófica, requestionado no tempestuoso e animado clima dos anos 60 e 70. Emblemática desse esforço a reflexão teórica exposta no diálogo “Os Intelectuais e o Poder” Recusar as grandes totalizações, reconhecer a positividade dos dados e não submetê-los, sabe-se pagando que preço, aos imperativos da teoria, estar atento à complexidade e à singularidade dos fenômenos delineiam a agenda de uma nova proposta teórica. As investigações inspiradas nesse ideário assumem seu caráter parcial e fragmentário, esforçando-se para estar atento àquilo que é local, relativo a um pequeno domínio. Sublinha-se, também, o caráter pragmático: ela tem que servir para algo, tem que mudar nossa forma de entender alguma coisa. Como afirma Deleuze: É preciso que sirva, é preciso que funcione. E não para si mesma. Se não há pessoas para utilizá-la, a começar pelo próprio teórico que deixa então de ser teórico, é que ela não vale nada ou que o momento ainda não chegou. Não se refaz uma teoria, fazem-se outras; há outras a serem feitas. E curioso que seja um autor que é considerado um puro intelectual, Proust, que o tenha dito tão claramente: tratem meus livros como óculos dirigidos para fora e se eles não lhes servem, consigam outros, encontrem vocês mesmos seu instrumento, que é forçosamente um instrumento de combate (Deleuze, 1979, p. 71). Um outro aspecto onde convergem estas duas referências do pensamento francês contemporâneo encontra-se na curiosa definição de filosofia adotada por Deleuze. Ele identifica como desiderato da filosofia incomodar a besteira (nuire à la bêtise99). Tal definição é estabelecida a partir da referência aos trabalhos de Também nesse sentido: “E mais: apreendemos aquilo que é o ponto de partida de todo o Deleuze, e que neste volume se vinca com uma nitidez clamorosa: que precisamos (contra Hegel, ou melhor, depois de Hegel) de pensar uma ontologia da diferença pura, que é algo que vai além da contradição dialéctica, porque é a diferença daquilo que difere em si mesmo: nem alteridade, nem contradição, mas alteração (ou, como Deleuze dirá nas esplêndidas análises do seu mestre Bergson, uma ‘duração’)” (Coelho, 2004, p. 213-214). 98 A palavra bêtise não é de fácil tradução para o português. Ela significa asneira, tolice, disparate, arvoice, necedade, estultícia. Lidando com a dificuldade de traduzir essa palavra, um comentador americano de Foucault explica: “Eu estou traduzindo a palavra francesa bêtise, nesse contexto, como ‘animalidade muda’ (mute) – em outros contextos poderia ser mais apropriadamente traduzida por estupidez (stupidity) e insensatez (folly)” (Miller, 1994, p. 438). 99 171 172 O AGENCIAMENTO FOUCAULT/DELEUZE Foucault e Nieztsche. Assim, Deleuze afirma que Foucault “suscitava medo, isto é, só com sua existência impedia a impudência dos imbecis. Foucault preenchia a função da filosofia, definida por Nietzsche, ‘incomodar a besteira’” (Deleuze, 1992d, p. 188). Tal afirmação, ao oferecer uma inusitada definição das tarefas da filosofia, está em perfeita consonância com a forma como Deleuze se situa em relação a uma das grandes questões presentes no nosso horizonte de cogitações desde o fim da metafísica, principalmente a partir da deflacionista empresa teórica de Wittgenstein: para que serve ainda a filosofia? Ao posicionar-se em face desta tormentosa pergunta, Deleuze se situa ao lado do pequeno grupo de “filósofos que nunca sentiram qualquer atração por rituais apocalípticos – Putnam, Deleuze, Goodman, por exemplo” (Carrilho, 1994, p. 96). E este posicionamento se estriba na idéia de que a filosofia permanece insubstituível no seu papel de incomodar, de pôr obstáculos a, de impedir a besteira, a tolice, a estupidez, os clichês. Afinal, de acordo com Deleuze, “aos que mal intencionados perguntam: para que serve a filosofia? Há que responder segundo um conselho de Nietzsche: ela serve, pelo menos, para envergonhar a estupidez, para fazer da estupidez qualquer coisa de vergonhoso” (Deleuze, 1992e, p. 143). Desta forma, deixam-se de lado os inúmeros rituais de despedida, incessantemente evocando o fim da filosofia, incapaz de subsistir em um quadro de abandono das pretensões fundamentacionalistas e totalizantes caras à tradição metafísica e insustentáveis no cenário contemporâneo do pensamento pós-metafísico. Pode-se entender também com mais acuidade essa máxima de “incomodar a besteira” no sentido dado por um dos principais comentadores de Foucault e Deleuze, John Rajchman: “A filosofia adquire um novo adversário: o seu fito é combater a estupidez, a qual consiste naquele triste estado de nós e do mundo em que já não podemos ou já não queremos mais fazer ligações (conexões)” (Rajchman, 2002, p. 16).100 É importante sublinhar que essa interpretação de Rajchman lança luz no sentido de apontar uma tarefa positiva para “incomodar a besteira”. Ora, prima facie, a definição da filosofia como a tarefa de incomodar a besteira parece se situar em um sentido mais negativo, reativo, crítico, de defesa em face de uma realidade, por um lado, no âmbito político, marcada pelo exaurimento de qualquer proposta significativa de transformação social, e, por outro, no âmbito cultural, marcada por um horizonte saturado de marketing e consumismo. Desta forma, temos como tarefas positivas da filosofia o esforço de estabelecer conexões Também sobre essa problemática, como observa em outro texto, destacando a tarefa filosófica “(...) de exercer a função do pensamento que ele admirava em Foucault: a de prejudicar a tolice” (Rajchman, 2000, p. 401). 100 Antonio Cavalcanti Maia e relações entre diferentes perspectivas filosóficas (e tradições nacionais) e entre a filosofia e o seu exterior: as ciências, as artes, a literatura, a cultura. O exercício dessa tarefa exige a consciência de que tal esforço implica um constante processo de aprendizagem, submetido ao rigor e à exigência próprios do trabalho filosófico, e se baliza pelo constante cuidado de se evitar as articulações superficiais e as sínteses amorfas. Nesse esforço positivo, a filosofia empenha-se em manter viva a capacidade de fazer conexões (como também destacado por Adorno e explicado no item seguinte deste trabalho), liquidificar as fronteiras entre as diversas disciplinas, exercitar o poliglotismo próprio do discurso filosófico – mestre de muitas linguagens, capaz de escapar ao quadro de especialização e segmentarização próprio de nosso mundo de especialistas. II Este tema da filosofia como esforço de incomodar a besteira encontra solo fértil no âmbito da crítica da cultura de massas. Terreno reivindicado para o discurso filosófico, sobretudo a partir desta obra capital do século XX, Dialética do Esclarecimento, de Adorno e Horkheimer. Assim, ao subsumir Foucault à sua inusitada definição do desiderato da filosofia, Deleuze complementa e clarifica um dos principais esforços realizados por aquele nos últimos anos de sua vida: a definição de um campo legítimo de reflexões filosóficas sob o título de ontologia do presente. Rastreando as inúmeras referências de Foucault, a partir de 1978, ao opúsculo de Kant intitulado “O que é o Iluminismo?”, vê-se emergir uma original interpretação desse breve texto de Kant que culminou com a publicação de Foucault de suas duas lições (uma nos Estados Unidos e outra na França) também intituladas “O que é o Iluminismo?”.101 Um mote importante desses textos, sobretudo na versão francesa, consiste na identificação de duas vertentes do discurso filosófico contemporâneo inauguradas por Kant: a analítica da verdade e a ontologia do presente. Como sintetiza Miguel Morey: Na sua lição ‘O que é o Iluminismo?’, Foucault vai repetir essa distinção entre uma filosofia ‘universal’ e a análise crítica do mundo em que vivemos, mediante a qual situa sua tarefa no seio da filosofia contemporânea, contrapondo, por um lado, a filosofia entendida como uma analítica da verdade (na qual se incluiria a maior parte da filosofia anglo-saxônica e de mais tendência fortemente epistemologizantes) e a ontologia do presente (que se referenciaria, no domínio da Desenvolvi uma série de considerações sobre essa discussão no texto “A questão da Aufklärung: mise au point de uma trajetória” (2000, p. 264-295). 101 173 174 O AGENCIAMENTO FOUCAULT/DELEUZE filosofia da cultura, a uma tradição que remonta a Hegel e Nietzsche e passa através de Weber e da Escola de Frankfurt). Vale dizer, que retomando uma noção implícita no pensamento nietzschiano (...), teríamos de um lado a pergunta entre que é isto? aplicada a estabelecer (os protocolos necessário para determinar) a verdade do que são as coisas, e de outro a pergunta que (nos) acontece?, dedicada a dirimir o sentido e o valor das coisas que (nos) acontecem em nosso presente. A direção que abre esta segunda pergunta é a que, caracterizada como ontologia histórica de nós mesmos, marca finalmente todo o trabalho de Foucault (Morey, 1995, p. 22). No âmbito desta análise crítica do mundo em que vivemos, objeto da ontologia da atualidade, tal como o Foucault tardio define a empresa genealógica, salta aos olhos a necessidade de a filosofia, em sua dimensão de diagnóstico do tempo presente (bem como de incomodar a besteira), tematizar a onipresença dos meios de comunicação de massa na conformação do imaginário contemporâneo. Tal problema, tema de cogitações filosóficas desde a formulação por Adorno do célebre conceito de “indústria cultural”, coaduna-se claramente com as preocupações de Foucault e Deleuze. Não foi à toa que, a par das reflexões sobre o Iluminismo, Foucault constantemente se referiu à Escola de Frankfurt.102 Ademais, o próprio Deleuze aproxima seu projeto do filósofo frankfurtiano quando afirma: “Creio que à filosofia não falta nem público nem propagação, mas ela é como um estado clandestino do pensamento, um estado nômade. A única comunicação que poderíamos desejar, como perfeitamente adaptada do mundo moderno, é o modelo de Adorno, a garrafa atirada ao mar, ou o modelo nietzschiano, a flecha lançada por um pensador e colhida por outro” (Deleuze, 1992d, p. 192, grifo meu). E quanto à convergência entre os modelos de Adorno e Nietzsche, Deleuze não destaca nada pouco ortodoxo. Embora a matriz hegeliana/marxista informe o trabalho originário da Escola de Frankfurt (em especial quando esta tradição estava, nos anos trinta, capitaneada por Max Horkheimer), a Dialética do Esclarecimento impõe uma virada no percurso da “teoria crítica” com a ousada tentativa de integrar divergentes tradições filosóficas: Schopenhauer com Nietzsche e Klages, Quanto às relações entre Foucault e Adorno, elaborei uma aproximação desses autores no texto “Foucault e Adorno: Mapeando um Campo de Convergências”, 2002, p. 63-84. Posso sintetizar o argumento deste artigo através da seguinte passagem de Habermas: “De qualquer modo, está na natureza das coisas que os efeitos históricos das idéias não podem ser previstas. Hoje, a Dialética do Esclarecimento é lida diferentemente. Alguns a lêem com os olhos do pósestruturalismo francês. Como Axel Honneth mostrou, há de fato similaridades, por exemplo, entre Adorno e Foucault” (Habermas, 1986, p. 213). 102 Antonio Cavalcanti Maia por um lado, e a venerável linhagem inspiradora da teoria crítica, de outro, Hegel, Marx, Weber e o jovem Lukács. As relações entre Adorno e Deleuze já foram objeto de considerações em trabalho recente de Olgária Matos, “As Humanidades e sua Crítica à Razão Abstrata”, situando-se em diapasão semelhante à tese aqui sustentada.103 Apontando as ressonâncias entre essas duas démarches, sublinha que ambos tratam da unidimensionalização da língua e da crescente ameaça às mais elevadas obras do pensamento (a arte, a literatura e a filosofia) levada a cabo pelos meios de comunicação de massa – submetidos à lógica mercantilista, privilegiando sempre, na busca de um maior mercado consumidor, a quantidade em detrimento da qualidade. Afinal, “(...) mídia transmite uma cultura iletrada, agramatical e desortográfica, contorcendo reflexão em entretenimento, pesquisa em produção, qualidade em quantidade – dado o imperativo primeiro e último do mercado consumidor”104 (Matos, 2001, p. 120). A lógica sistêmica dos meios de comunicação de massa lida com dificuldade com tudo aquilo que escapa aos padrões garantidores de rápida aceitabilidade por parte do mercado consumidor, reforçando os clichês e os lugares comuns. Em outra contundente passagem, Olgária Matos, ao expor o ponto de vista de Adorno (que poderia muito bem ser atribuído a Deleuze), afirma acerca da mídia: O espírito e a prática da mídia têm sua lei: O da novidade, mas de modo a não perturbar hábitos e expectativas, de ser imediatamente legível e compreensível pelo maior número de expectadores ou leitores. Evita a complexidade, oferecendo produtos à interpretação literal, ou melhor, minimal. Espécie de caça à polissemia, ela se impõe na demagogia da facilidade – fundamento do sistema midiático de comunicação. Portadores de dogmatismo e preconceito, a indústria cultural veicula uma servidão que se ignora a si mesma, pois submete o espectador ou leitor a hábitos pré-estabelecidos. Semiformação é próprio da mídia. O semiculto é hostil à cultura: anti-socrático e anti-habermasiano, a certeza Seguindo a idéia de Habermas de que “a crítica da cultura de massas de Adorno deveria ser continuada e re-escrita”, a tese desta investigação poderia ser assim resumida: continuar a crítica adorniana com elementos pós-estruturalistas. Habermas, 1987, p. 95. Saliento que essa continuação da crítica procura também abandonar o tom apocalíptico, e, por vezes, beirando o catastrófico, do filósofo alemão e se encontra mais à vontade com o espírito deleuziano sintetizado no seguinte apotegma: “Não cabe temer ou esperar, mas buscar novas armas” (Deleuze, 1992a, p. 220). 103 Para uma excelente exposição a respeito da indústria cultural nos nossos dias (Cf. Rodrigo Duarte, Teoria Crítica da Indústria Cultural, 2003). 104 175 176 O AGENCIAMENTO FOUCAULT/DELEUZE de seu saber é desproporcional ao conhecimento e a seu próprio saber (Matos, 1996, p.23). Estas últimas referências a Adorno não acarretam o abandono do foco deste trabalho, i.e., explicitar as tarefas da filosofia dentro do projeto teórico foucaultiano à luz da interpretação de Deleuze; mas sim, procuram compor – através da conexão com Adorno – um quadro explicativo mais amplo, relevando, na crítica da cultura, o papel do exame das patologias propulsionadas pelos meios de comunicação de massa. Estes, ao contribuírem para a banalização e a simplificação daquilo que circula pelos seus mecanismos de difusão, atrofiam a capacidade de estabelecer conexões, já que “(...) ‘uma cultura viva’, observa Adorno, consiste justamente em reconhecer relações, tais como aquela dada entre a filosofia do élan vital e a pintura impressionista” (Matos, 2001, p. 124). Este tema da identificação de uma cultura viva pela capacidade de estabelecer conexões e ligações irmana Deleuze e Adorno (bem como o reconhecimento do parentesco profundo entre a filosofia e as artes). Quando, por exemplo, Deleuze utiliza a idéia de cretinização em relação a uma das novas formas de arte midiática, os videoclipes, fica clara a carência, neste meio de expressão, da capacidade de curto-circuitar, de fazer conexões: A esse respeito, a questão que se coloca concerne à riqueza, à complexidade, ao teor desses agenciamentos, dessas conexões, disjunções, circuitos e curtocircuitos. Pois a maioria da produção cinematográfica, com sua violência arbitrária e seu erotismo imbecil, testemunha uma deficiência do cerebelo, não uma invenção de novos circuitos cerebrais. O exemplo dos clips é patético: poderia até ser um novo campo cinematográfico muito interessante, mas foi imediatamente apropriado por uma deficiência organizada. A estética não é indiferente a essas questões de cretinização, ou, ao contrário, de cerebralização. Criar novos circuitos diz respeito ao cérebro e também à arte (Deleuze, 1992b, p. 79). A violência arbitrária e o erotismo imbecil povoam, onipresentemente, o cinema e a tevê105 contemporâneos. Traçar estratégias capazes de resistir a esse Em resumo recente das conferências de Deleuze intituladas “Abecedário”, Alcino Leite Neto destaca: “Para Deleuze, a TV é a ‘domesticação em estado puro... em que todos concorrem para produzir a mesma nulidade’. Em ‘C, como Cultura’, define nossa época como um ‘deserto cultural’, cujas causas assim diagnostica: ‘Primeiro, os jornalistas conquistaram a forma-livro e acham muito normal escrever em livro o que simplesmente bastaria no artigo de jornal. Segundo, espalhou-se a idéia geral de que todo mundo pode escrever, desde o momento em que a escrita se tornou o pequeno problema de cada um, de arquivos familiares, de arquivos que 105 Antonio Cavalcanti Maia processo de colonização e padronização do imaginário torna o plano da cultura um campo de lutas estratégicas relevante (talvez, também, pela estreitíssima margem de manobra e horizontes de transformações possíveis no campo político, acachapado pela lógica macro-econômica). A partir de uma leitura ortodoxamente adorniana, as brechas são muito poucas; já um olhar deleuziano (e, destaque-se também, do último Foucault, que, com a estética da existência, deixa para trás o diagnóstico mais sombrio do arquipélago carceral) abre alternativas sob o signo da conexão resistência/criação. III Os aspectos anteriormente destacados acerca da crítica da cultura de massas deixam em aberto uma angustiante questão: com base em que critérios podemos avaliar o estado de coisas existente? Quais são os parâmetros capazes de justificar uma reprovação àquilo que nos cerca? Quando Foucault reivindica um estatuto filosófico para a ontologia do presente, retomando o impulso nietzschiano que procura dirimir o sentido e o valor das coisas que nos acontecem em nosso tempo presente, ficam sem resposta as seguintes indagações: qual a referência para o correto sentido buscado e onde ancorar os valores que estabelecem a hierarquia daquilo que deve ser louvado e do que deve ser vituperado? Não há resposta trivial para essas indagações; em especial, pois, ao assumir uma posição crítico-reprobatória, o discurso filosófico pode se arvorar na pouco confortável – na atual conjuntura anti-essencialista e anti-fundacionalista – posição de árbitro da cultura. Não poderia responder categoricamente a esta objeção, posto que a modéstia imposta à filosofia no quadro de pensamento pós-metafísico a impede de reivindicar uma posição privilegiada no campo dos saberes. No entanto, no caso da filosofia de Deleuze (e, em muitos aspectos, em colaboração com Guattari), há a defesa de um certo cânone. Veja-se, por exemplo, a seguinte passagem: Que força nestas obras com pés desequilibrados, Hölderlin, Kleist, Rimbaud, Mallarmé, Kafka, Michaux, Pessoa, Artaud, muitos romancistas ingleses e americanos, de Melville a Laurence ou Miller (...). Certamente eles não fazem uma síntese de arte e filosofia. Eles bifurcam e não param de bifurcar. São gênios híbridos, que não apagam a diferença de natureza, nem ultrapassam, mas ao cada um tem em sua cabeça. Terceiro, os verdadeiros clientes mudaram: na TV não são mais os espectadores, mas os anunciantes; na edição, não são mais os leitores potenciais, mas os distribuidores’” (Leite Neto, 2004, p. 5). 177 178 O AGENCIAMENTO FOUCAULT/DELEUZE contrário, enfrentam todos os recursos de seu atletismo para instalar-se na própria diferença, acrobatas esquartejados num malabarismo perpétuo (Deleuze, 1992f, p.89). Deleuze identifica um cânone não só nesta passagem; tanto em Crítica e Clínica quanto em Diálogos, há a identificação de uma linhagem de autores – muitos deles expressões daquilo de mais sofisticado que o Modernismo europeu produziu (nesse aspecto próximo também aos autores estimados por Adorno) – exemplificativa de um padrão a ser respeitado e a partir do qual podemos reprovar o nivelamento impulsionado pelos meios de comunicação de massa. É claro que “(...) há uma ênfase na alta cultura em todos os trabalhos de Deleuze” (Colebrook, 2002, p. 47). A apologia do díspar, daquilo que sabota o senso comum, norteia os critérios elencados por Deleuze. Porém resta a indagação: não há neste posicionamento um quê de aristocratismo? Uma resposta negativa a esta questão parece difícil. Mas, pode-se sustentar, plausivelmente, que, apesar de as escolhas de Deleuze serem marcadas por um certoar aristocrático106 – sem esquecer que a aristocracia pode ser também por mérito, e não exclusivamente devida à origem de classe –, elas se situam numa tênue fronteira: aristocráticas, provavelmente, mas sem serem esnobes ou preconceituosas. O problema dos critérios de julgamento também nos leva a uma outra questão: será que certos indivíduos, bafejados pela graça aristocrática da criação, podem, a partir dos seus talentos excepcionais, se arvorar como médicos da cultura? Compartilham os grandes filósofos de dons especiais como aqueles que reconhecemos nos grandes gênios musicais ou artísticos? E a partir desses dons é possível estabelecer os padrões a partir dos quais apontamos as inadequações presentes no atual estado de coisas? Podem-se encontrar argumentos igualmente persuasivos tanto na defesa dessa tese quanto no seu rechaço107. No entanto, difiA referência a essa idéia de aristocracia mereceria uma melhor explicitação, tendo em vista as suas inevitáveis conotações anti-democráticas e anti-igualitárias. Entretanto, neste momento, só poderia dizer que o sentido aqui empregado dessa palavra vincula-se ao papel desempenhado por certos estratos sociais que por razões de mérito, talento, esforço e, sem dúvida, em muitos casos graças às origens sociais provenientes dos grupos mais favorecidos sócio-economicamente, são capazes de desempenhar um papel importante na formação e reprodução do imaginário social, como, por exemplo, intelectuais, artistas, homens de imprensa, políticos, educadores, cientistas, filósofos, juristas, publicistas, politicólogos, líderes religiosos, militantes políticos e ecológicos, editores, críticos literários, dramaturgos, roteiristas etc. 106 É interessante como no quadro do pensamento contemporâneo a própria filosofia se despede dessa tradição de referência a figuras geniais (por exemplo, Heidegger e Wittgenstein). Como 107 Antonio Cavalcanti Maia cilmente discordaríamos de José Gil quando assevera: “e, como acontece sempre, os mais altos expoentes de uma época, os que mais fundo penetram nos seus sedimentos, adquiriram o poder profético de ver além dela, quer dizer, de prever o que as deslocações ínfimas, sedimentares produzirão posteriormente como movimentos macroscópicos” (Gil, 2000, p. 14).108 Não se trata de encarar o filósofo como um oráculo ou profeta, portador dos caminhos da utopia, mas, de aprender com a filosofia a desenvolver as faculdades que permitem “(...) estar atento ao desconhecido que bate à porta” (Deleuze, 1996, p. 94); e, talvez, exercendo uma certa pulsão visionária presente em alguns discursos filosóficos e literários, em especial se entendermos “o filósofo como um homem sem defesa face às visões dos grandes contextos” (Sloterdijk, 2003, p. 31). A capacidade de prognose respaldada nos conhecimentos provenientes das ciências humanas e sociais, bem como da filosofia, é diminuta. No entanto, uma teoria da sociedade embasada filosoficamente pode nos auxiliar no sentido de aguçar a nossa percepção para os potenciais ambivalentes nos desenvolvimentos contemporâneos. Enfim, quanto à questão dos critérios a partir dos quais emitimos um juízo sobre o mundo que nos cerca, dificilmente pode-se encontrar uma resposta conclusiva acerca de que hierarquia utilizar. No entanto, não parece difícil sustentar a tese de que a filosofia nos ajuda a desenvolver nossas competências cognitivas, a apurar nossa capacidade de avaliação ética ou estética e a alargar nossas perspectivas de compreensão. Sendo assim, o envolvimento com essa disciplina permite justificar melhor as nossas escolhas. Como afirma Camille Dumoulié, “(...) mais do que pensar que ‘filosofar é aprender a morrer’, como por vezes tendem a nos fazer crer, estamos mais próximos de admitir que filosofar é aprender a preferir e justificar as suas preferências” (Dumoulié, 2002, p. 5). salienta Habermas, no texto “Para que continuar com a filosofia?”, de 1971, retomando uma indagação formulada em década anterior por Adorno: “o propósito dessas considerações que seguem não é dizer adeus à filosofia, senão explorar as tarefas que legitimamente podem confiarse hoje ao pensamento filosófico, depois que a chegada ao seu fim, não só a grande tradição, senão também, como suspeito, um estilo de pensamento filosófico ligado à sabedoria individual e à representação pessoal” (Habermas, 1975, p. 16). Em sentido convergente com essa idéia, afirma Jacques Derrida: “Nesse momento eu me digo, portanto, sem ver realmente, sem o saber, que eu estava de algum modo em comunicação com acontecimentos em curso em domínios onde sou incompetente e isso não me surpreende. Não porque eu me atribuiria uma espécie de visão cega, mas porque creio que um trabalho como o meu e como outros registra necessariamente tremores, como de um certo modo os animais podem sentir um tremor de terra que se anuncia. Portanto, algumas vezes registro essa ressonância” (Derrida, 1993, p. 30) 108 179 180 O AGENCIAMENTO FOUCAULT/DELEUZE IV O cenário contemporâneo apresenta poucos sinais significativos de transformação social em um sentido progressista, isto é, redistributivo. Um capitalismo turbinado financeiramente estende sua influência por todo o globo, produzindo interdependências inteiramente novas, reduzindo em muito a área de atuação dos Estados nacionais – arena tradicional dos conflitos políticos e locus no qual os agentes sociais conseguiam articular suas influências no sentido de domesticar os impulsos selvagens do mercado. Os meios de comunicação de massa aumentam sua influência a olhos vistos, consagrando o marketing como a referência básica de uma cultura cada vez mais submetida aos impulsos do mundo do consumo. No entanto, há de se reconhecer que o campo da cultura hoje tornou-se um lugar de luta política e que se avolumam as forças convergindo no sentido de resistir “ao entorpecimento dos sentidos, à homogeneização da percepção, à fetichização da mídia como mediador universal e distribuidor hegemônico de valores”109. Afinal, paralelamente a todo esse cenário preocupante acima descrito, constata-se a proliferação de canais de produção e circulação de cultura, propiciados, sobretudo, pelas novas tecnologias. Some-se a isto o alargamento da formação escolar e universitária, qualificando um público crescente, insatisfeito com os processos homegeneizadores impostos por uma indústria cultural que desinforma e dessensibiliza. Com efeito, como afirma Foucault: Não, não acredito nessa ladainha da decadência, da ausência de escritores, da esterilidade do pensamento, do horizonte obstruído e insípido. Acredito, ao contrário, que há uma pletora. E que não sofremos de um vazio, mas de falta de meios para pensar tudo o que acontece. É que existe uma grande abundância de coisas para se conhecer: essenciais ou terríveis, maravilhosas ou engraçadas, ou minúsculas e capitais ao mesmo tempo. E há também uma imensa curiosidade, uma necessidade ou um desejo de saber. Todo dia alguém se lamenta que a mídia entope a cabeça das pessoas. Há uma certa misantropia nessa idéia. Acredito, ao contrário, que as pessoas reagem; quanto mais se quer convencê-las, mais elas se questionam. O espírito não é uma cera mole. É uma substância reativa. E o desejo de saber mais e melhor e conhecer outras coisas cresce à medida que outros querem fazer uma lavagem cerebral (Foucault, 1990, p. 23-24).110 Convocação para a Oficina Aberta Resistência e Criação , no Fórum Social Mundial, Porto Alegre, 2003. 109 Quanto a esse otimismo de Foucault, esclarecedor o comentário de Guilherme Castelo Branco: “O otimismo de Foucault está na sua convicção de que os movimentos e as mentalidades 110 Antonio Cavalcanti Maia A filosofia, seguindo a sua vocação de promover novas inteligibilidades, pode municiar aqueles que se sentem atingidos pelo atual estado de coisas com elementos e exemplos capazes de fortalecer uma espécie de resistência vital à cultura da resignação. Neste sentido, ela pode nos auxiliar a alimentar redes contra-culturais alternativas, capazes de oferecer mecanismos de esquiva ao controle. Inspirados em Deleuze, podemos ter como mote a idéia de se pensar “contra a cultura, contra o já pensado, o já sabido, as noções estabelecidas, as posições correntes dos problemas, os valores predominantes: crítica e criação, atos de contracultura, são as faces de Janus do pensamento” (Dias, 1998, p. 23).111 Neste mesmo diapasão, as brechas que permitem escapar desse horizonte aplainado de uma cultura que se depaupera a reboque da standardização estimulada pela indústria cultural, respaldam-se também na idéia de “(...) criação – que vai contagiar outros, ser dádiva para outros, produzir alhures devires” (Caiafa, 2000, p. 36). Enfim, nada melhor para concluir do que evocar as reflexões de Foucault: Sonho com uma nova época, a da curiosidade. Já temos os meios técnicos; o desejo também está aí; as coisas por conhecer são infinitas; as pessoas que poderiam dedicar-se a esse trabalho existem. Estamos sofrendo de quê, então? De escassez: de canais estreitos, mesquinhos, quase monopolistas, insuficientes. Não adianta adotar uma atitude protecionista para impedir que a ‘má’ informação venha invadir e sufocar a ‘boa’. É preciso, isso sim, multiplicar os caminhos e as possibilidades de idas e vindas. Nada de colbertismo nesse domínio! Isso não implica, como muitas vezes se acredita, uniformização e nivelamento por baixo, mas, ao contrário, diferenciação e simultaneidade de diferentes redes (Foucault, 1990., p. 24-25). Referências BAUGH, Bruce. “How Deleuze Can Help us Make Literature Work”. In. BUCHANAN, Ian e MARKS, John (ed.) Deleuze and Literature. Edinburg, 2000, p. 34-56. BRANCO, Guilherme Castelo. “A Prisão Interior”. In. PASSETI, Edson (org.). Kafka, Foucault: sem medos. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004. CAIAFA, Janice. 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