Reflexões iniciais sobre a transição ao socialismo em Cuba Aline Fardin Pandolfi1 Resumo O texto que segue é parte de estudos e reflexões mais abrangentes realizadas no “Grupo de Estudos Críticos do Desenvolvimento”, coordenado pelo professor Paulo Nakatani, acerca do processo de transição ao socialismo. Este grupo é composto ainda por professores e estudantes do Programa de Pós-graduação em Política Social da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) que estejam desenvolvendo pesquisas afins. O texto que segue é parte de pesquisa em andamento que irá se somar a tese de Doutorado a ser apresentada ao Programa supracitado em 2017. Neste texto, pretende-se esboçar a visão que vem sendo constituída neste grupo de pesquisa sobre a complexidade de um processo de transição ao socialismo, bem como se apontará algumas mudanças particulares nas relações de produção de Cuba a partir dos Lineamientos de la Política Económica y Social del Partido y la Revolución (2011). Palavras Chave: transição ao socialismo; Cuba; relações de produção. 1. Do capitalismo ao socialismo O capitalismo ao longo se seu percurso histórico tem deixado cada vez mais evidente seus limites estruturais. Mesmo que sua organização ocorresse da maneira mais “harmônica” possível – com os trabalhadores recebendo um salário correspondente a uma qualificada cesta de consumo – a desigualdade se manteria, evidenciando a relação de exploração própria do modo de produção capitalista. Longe de pretender um funcionamento harmonioso e, considerando a sua lógica estrutural, o capitalismo, exatamente por se tratar de uma sociedade dividida em classes com interesses 1 Doutoranda em Política Social pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) (2013-2017), sob orientação do Prof. Dr. Paulo Nakatani. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Mestre em Política Social pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) (2010). 1 antagônicos, mantém o aprofundamento da exploração do trabalho, altas taxas de desemprego, o achatamento dos salários ao máximo, a reprodução da miséria e, condições de vida mais e mais precárias para os/as trabalhadores/as em geral. O conflito de classes presente na sociedade capitalista e as contradições na própria estrutura de produção e reprodução do capital foram apontadas pela teoria crítica marxista, com a perspectiva de que veríamos o aprofundamento de suas contradições e do próprio processo de luta de classes, culminando na tomada do poder político pelos/as trabalhadores/as do mundo, no desmonte da sociabilidade capitalista e na construção de outra forma de sociabilidade que negasse a exploração do homem pelo homem através do trabalho. A compreensão da relação entre a estrutura econômica e a superestrutura em Marx é basilar dessa reflexão. No campo da estrutura econômica encontram-se as relações de produção, todo processo de produção econômica real que sustenta a reprodução da vida humana. Já no âmbito da superestrutura, está composto todo o aparato ideológico, legal, político e a estrutura de poder que direciona e orienta as relações sociais, e que, ao fim, são construídas à luz do modo como a produção está organizada (MARX, 2008). Faz-se imprescindível a compreensão desse movimento, pois, a medida que as contradições nas relações de produção se aprofundam e a classe espoliada da riqueza levanta suas indignações e se organiza coletivamente, há a possibilidade de tomada do poder político e de alteração de toda a estrutura econômica e da superestrutura. Sobre o processo de superação da sociedade capitalista e a passagem para uma nova sociabilidade, Marx e Engels não construíram uma teoria do processo de transição ao comunismo, mas em diversos textos e fragmentos sinalizaram elementos que nos permitem pensar esse processo. Em um deles, se prevê dois períodos distintos de constituição da sociedade comunista. O primeiro momento registraria distorções inevitáveis devido a originar-se da sociedade anterior e herdar dela várias características. Segundo o autor, “[...] essas distorções são inevitáveis na primeira fase da sociedade comunista, tal como ela surge, depois de um longo trabalho de parto, da sociedade capitalista”, Marx (2012, p.31). Nesse estágio inicial, seria construída a “ditadura revolucionária do proletariado”, e se instituiria mudanças no sentido de socializar os meios de produção existentes e sua distribuição. 2 Na denominada fase superior da sociedade comunista, estaria eliminada a escravização dos indivíduos à divisão social do trabalho, seria eliminada também a oposição entre trabalho manual e intelectual, nesse cenário, o trabalho teria deixado de ser mero meio de vida e tornar-se-ia “[...] a primeira necessidade vital”, Marx (2012, p.31). Nessa fase superior seria imprescindível o desenvolvimento das forças produtivas para estivessem dadas as condições materiais concretas de realização do comunismo, com o intuito de viabilizar o abastecimento das necessidades em abundância, onde “a sociedade poderá escrever em sua bandeira: ‘De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades!’”, Marx (2012, p.32). Contudo, a história nos trouxe um cenário diferente, visto que as lutas de classe que deflagraram processos revolucionários vitoriosos no capitalismo ocorreram em países onde ainda se desenvolviam as forças produtivas, em alguns casos em estágios bem iniciais. A Rússia, Vietnã, Cuba, China e outros, enfrentaram diversos desafios devido a este aspecto. Isso porque o movimento de luta de classes e seus rumos não são premeditados teoricamente, cabendo à reflexão teórica analisar os movimentos reais nas condições concretas em que se deslancham. Cada realidade concreta, geográfica, histórica, cultural e politicamente diferente, identificará as possibilidades e limites para realizar um processo de transição a outro modo de produção, pós-capitalista. As pesquisas de Marx e Engels também indicavam esse movimento. É por considerar as particularidades dos diversos países que Marx responderá por Carta à Vera Zasulitch em 1881, que as condições da Rússia naquele período deixava aberta à possibilidade histórica de - a partir de iminente processo revolucionário Russo juntamente com um de abrangência ao menos Continental -, serem iniciadas transformações sociais que possibilitariam a transição do capitalismo diretamente ao comunismo, sem a passagem pela transição socialista. Isso porque a Rússia apresentava relações de produção pautadas na forma de propriedade comum da terra através de comunas rurais e estava inserida em um contexto de capitalismo internacional com alto desenvolvimento das forças produtivas. Diante disto, a presença da propriedade coletiva da terra existente no país se colocava como um ponto de partida para o desenvolvimento do comunismo; desde que o país usufruísse das forças produtivas existentes nos demais países 3 capitalistas, o que só seria possível mediante a deflagração relativamente simultânea de processos revolucionários nestes2 (MARX; ENGELS, 2009). Por isso, há também a compreensão neste trabalho de que um processo de transição ao socialismo e depois ao comunismo não segue parâmetro de tempo ou forma, mas ganha materialidade a partir da vontade política daqueles que o conduzem e legitimam e ao longo do processo vão incorporando alterações necessárias a sua sustentação. Entretanto, sabe-se que para consolidar esta transição até o socialismo há a necessidade por: ser internacional; contar com determinado grau de forças produtivas e de produção que abasteça as necessidades internas (ao menos imediatas); haver formado a “ditadura do proletariado” mediante organização política de intensa participação dos membros da sociedade nas diversas decisões da sociedade como um todo, inclusive nas unidades de produção. Todos estes elementos estão imbricados um no outro, portanto, alcançá-los depende de alternativas construídas internamente, mas fundamentalmente depende do processo de luta de classes interna e internacionalmente colocada ao processo de transição. O momento de tomada do poder político é um passo inicial frente a diversos desafios que se colocarão ainda nos primeiros dias e anos de tentativa de construção da nova sociedade, este é um processo sem precedentes e que conta com alguns indicativos de autores relativos ao socialismo científico, mas que é, sobretudo, criação, inovação, tentativas daqueles que almejam sua consolidação. A transição ao socialismo é este momento inicial de mudanças, de experenciar propostas de mudanças, de enfrentar as forças externas no processo de luta de classes internacional aliada as classes internas também opositoras, é momento de sequenciar a revolução por tempo indeterminado. É, portanto, um desses movimentos revolucionários e de transição ao socialismo, em virtude de sua trajetória, relevância e persistência histórica, foco de nossa análise. O processo de transição ao socialismo em Cuba. 2. As particularidades da Revolução Cubana 2 Esta ideia aparece nesta carta de Marx a Vera (1881) e no Prefácio a segunda edição Russa de 1882 do Manifesto Comunista de Marx e Engels (2009). 4 O processo revolucionário registrou mudanças no âmbito da estrutura social de Cuba desde 1957, a partir da oferta de serviços médicos e educacionais destinados a população pelos próprios guerrilheiros. Após a tomada do poder político em 1959, o processo revolucionário na estrutura e superestrutura de Cuba se aprofunda progressivamente e se instaura a organização de toda a sociedade a partir de uma economia planificada que realiza a estatização de praticamente todas as empresas do país até meados de 1960, estabelecendo a contratação estatal como forma preponderante de vínculo de trabalho. Desde então, as melhorias nas condições de vida da população cubana são notáveis, ao ponto de, até os dias atuais, manter Cuba em vantagem – quando comparada a países com renda per capita bem superior – no que se refere a índices como: mortalidade infantil, analfabetismo, acesso à educação e à saúde, condições de moradia, criminalidade, dentre outros. Em virtude das condições concretas enfrentadas pelo país, a transição ao socialismo em Cuba registra ao longo desses anos períodos de diferentes estratégias para sustentar este projeto de sociedade. As relações de produção e o acesso a bens de consumo é um dos campos que mais se modifica em virtude de sua relevância para manutenção da vida humana e para construção de relações sociais pautadas em novos valores. É devido a significância que possui o trabalho e sua organização para reprodução da vida humana do ponto de vista material, mas também de todas as relações sociais advindas da produção, que temos por foco deste texto apontar algumas das mudanças recentes nas relações de produção em Cuba. Nessa trajetória, Cuba tem enfrentado inúmeros desafios internos e externos. Acerca dos desafios internos, podemos elencar principalmente o baixo desenvolvimento das forças produtivas e a dependência histórica por grande parte das matérias-primas fundamentais. Sobre a relação externa, a própria condição de país economicamente dependente e o bloqueio americano, iniciado parcialmente em 1960, formalizado em 1961 pelo Presidente Dwight D. Eisenhower e mantido desde então. Ante ainda ao conjunto de países a nível global que estão sob a ordem e domínio do capital em fase imperialista, Cuba tem conseguido enfrentar os inúmeros desafios materiais e os limites no comércio exterior mantendo o projeto de sociedade em curso. Importa destacar que esses desafios têm sido enfrentados no campo político, ideológico, social e econômico, contando com a adesão e admirável criatividade do povo cubano. A legitimidade do 5 povo cubano a todo o processo está respaldada nas inúmeras conquistas da revolução e, é ratificada em espaços de participação construídos e frequentados pela população que ativamente contribui com alterações nas legislações e normativas em vigor. Frente a esse cenário, as modificações nas relações de produção, ao mesmo tempo em que têm sido fundantes da manutenção da economia, do projeto de transição e das condições de sobrevivência da população cubana (sustentando inclusive todos os serviços ofertados pelo Estado – saúde, esporte, cultura, educação, dentre outros), têm trazido outros desafios à sociedade cubana, como: a não correspondência entre a formação e qualificação de alguns trabalhadores e as vagas de trabalho existentes; a redução no número de trabalhadores que procuram a qualificação profissional, sendo a oferta de cursos e a necessidade econômica do país maior do que o número de qualificados; o desinteresse pelo trabalho marcado pelo desestímulo aos vínculos de trabalho e suas respectivas remunerações; dentre outros. Diante deste cenário, é especialmente nos anos 2000 que ocorrem alterações nas legislações e documentos oficiais do Governo como em prol de alterar aspectos nas relações de produção do país. Cabe destacar que as mudanças contam com a participação do povo cubano e visam enfrentar as dificuldades concretas do processo de transição. Cuba tem contribuído imensamente no processo de sustentação da necessidade pelo socialismo, diante das contradições e prejuízos sociais e humanos advindos da organização capitalista e aprofundados em período de internacionalização do capital na esfera produtiva, financeira e comercial. 2.1. As mudanças atuais nas relações de produção em Cuba Atualmente Cuba passa por uma atualização do modelo econômico, com o objetivo de “[...] garantir [...] o desenvolvimento econômico do país e a elevação do nível de vida da população, conjugados com a necessária formação de valores éticos e políticos [...]” da população, Cuba (2011, p.6, tradução nossa). Este objetivo está previsto no documento aprovado3 no VI Congresso do Partido Comunista Cubano 3 O referido documento foi aprovado no VI Congresso do Partido após seu projeto de texto ter sido submetido a amplo debate popular em várias instâncias de Cuba, como as Assembleias Nacionais do Poder Popular. O projeto inicial sofreu alterações após esses debates, as quais foram incorporadas em sua versão final (CUBA, 2011). 6 (PCC) denominado Lineamientos de la Política Económica y Social del Partido y la Revolución (2011). O mesmo documento aponta que a forma de propriedade sobre os meios de produção em Cuba é a “propriedade social”, perante a qual toda a população cubana é proprietária e também produtora. Contudo, com o intuito de ampliar a produtividade do trabalho no país, além das empresas estatais, vem sendo fortalecidas outras formas do que denominam de “gestão da propriedade social”, como: “[...] as modalidades de investimentos estrangeiros, as cooperativas, os pequenos agricultores, os arrendatários, os trabalhadores por conta própria e outras”, Cuba (2011, p.6). Sendo que as empresas estatais seguem sendo as que possuem maior presença na economia cubana e nas quais estão empregados o maior número de trabalhadores/as. A expansão de outras formas de gestão da propriedade social está autorizada para alguns ramos específicos da economia, especialmente a oferta de serviços, como cabeleireiros e restaurantes e não para todos indiscriminadamente. Mantém-se a forma de propriedade estatal sobre os ramos fundamentais da produção econômica do país, o que é um elemento determinante nos rumos da econômica nacional. As mudanças estão sendo implantadas com vistas a manter o acesso aos serviços e bens de consumo por toda a população. Pretende-se ainda eliminar o denominado “igualitarismo” e manter a máxima do período de trânsito ao socialismo “de cada qual segundo sua capacidade a cada qual segundo seu trabalho”, sendo que o trabalho deverá ser um direito e um dever, a forma principal de renda da população, e, ainda, parte da realização pessoal em sociedade (CUBA, 2011). Entretanto, uma outra forma de aumento da renda presente na realidade cubana é a transferência de divisas do exterior para o país, especialmente de cubanos residentes nos EUA. Atualmente já se acredita que a transferência de divisas possa ser a segunda maior fonte de renda da população cubana, considerando a expansão do item “outros ingressos”, que passa de 1.993,3 milhões de pesos cubanos em 1990 para 12.286,8 em 2011, segundo dados do Banco Central de Cuba. Esta forma de receber recursos pelos cubanos, através da entrada do dólar, poderá se expandir em virtude das notícias recentes (de março de 2016) sobre a quebra da taxação do dólar no país. A planificação continua sendo a principal forma de organizar a direção da sociedade e abarca principalmente as empresas estatais, as unidades orçamentárias e as associações econômicas internacionais. Mas neste cenário, a planificação da economia 7 cubana também sofre alterações, tendendo a concessão de maior autonomia, tanto entre as empresas estatais, como em relação aos novos setores e possibilidades de vínculos de trabalho existentes em Cuba (CUBA, 2011). As mudanças atuais estabelecem uma ampliação da autonomia nas empresas estatais. Esta significa uma elevação de suas responsabilidades sobre: a gestão, a produção, a produtividade, a contratação dos trabalhadores/as, o manejo dos recursos materiais e financeiros, os equívocos que possam ocorrer e, sobre o sistema de controle interno, de forma que os resultados respondam ao seu planejamento inicial. Após o cumprimento do pagamento dos impostos estabelecidos pelo Governo, as empresas estatais poderão criar fundos destinados ao seu desenvolvimento, a investimentos e a mecanismos de estímulo aos trabalhadores/as. As empresas também terão independência para aprovar sua planilha de cargos. A ampliação da autonomia das empresas possui um limite que são as previsões presentes em seu próprio plano, o qual também está vinculado ao plano nacional da economia (CUBA, 2011). A proposta, discussão e aprovação dos Lineamientos resultou de dificuldades enfrentadas pelo país, sendo que as principais ocorreram no denominado “Período Especial”. Este período originou-se fundamentalmente de um fator externo, que foi a queda da União Soviética e o desaparecimento do “campo socialista” em fins da década de 1980 e início de 1990, o que impôs às relações comerciais de Cuba inúmeros desafios. Cuba passou por uma contração nas importações da ordem de 80% e, por consequência, a ter que comercializar com a economia capitalista internacional. Ocorreu uma redução significativa na oferta dos produtos necessários à sobrevivência da população neste período, sendo que dos 1.560 artigos que ficavam disponíveis, apenas 11% se encontravam permanentemente no mercado racionado/ normado (DÍAZ, 2010; GARCIA; GONZÁLEZ, s/n; FERRIOL, 1998). Já nos anos 2000, Cuba enfrentou outro desafio, que foi a passagem de 16 furacões entre 1998 e 2008 na ilha, ocasionando diversas perdas, especialmente no que se refere a construção civil. Registra-se ainda o processo de envelhecimento populacional e a baixa taxa de natalidade do país, pois atualmente, quase 20% da população cubana possui mais de 60 anos, com tendência a ampliação desse grupo populacional. Já a população de 0 a 15 anos já é inferior (17%) e com tendência a redução, (ONEI, 2013). Diante diste, é 8 necessário considerar ainda que a atual geração de jovens cubanos, não vivenciou o processo revolucionário em suas origens, também não vivenciou o contexto que vigorava até 1958 e todo o processo de exploração pelo qual passou Cuba durante toda sua história, também não encarou a condição de extrema pobreza do país naquele período, especialmente da população residente no campo. Esta questão se coloca como um desafio atualmente ao processo de sustentação da ideia, do projeto de sociedade em transição ao socialismo. Conforme aponta Marcos Portal em entrevista à Isabel Rauber, “[...] durante trinta anos [criamos] valores que temos que preservar, sobretudo com a juventude que não viveu a etapa do capitalismo, que não viveu os duros anos da Revolução [...], (Rauber, 2003, p.19)”. Devido a condição de dependência externa e ao déficit de relações de comércio internacional, situação imposta pelo bloqueio e agravada pela queda do “bloco socialista”, Cuba passou a expandir os serviços e atividades na área do turismo como forma de angariar divisas que contribuem com a atividade de importação do país. Além do turismo, em 2004 expandiram-se novas possibilidades de inserção internacional através da Alianza Bolivariana para los Pueblos de Nuestra América (ALBA), o que ampliou a entrada de divisas no país, especialmente através da exportação de serviços médicos. O turismo e a exportação de serviços desta natureza são as principais formas de entrada de divisas no país, o que possibilita realizar as importações necessárias ao consumo interno (CUBA, 2011). A ampliação dos vínculos de trabalho nos setores não estatais e que estão em expansão na economia cubana, está também relacionado aos problemas enfrentados pelas empresas estatais, buscando responder principalmente às seguintes dificuldades: a baixa produtividade destas empresas, o registro de excessivo número de trabalhadores/as4, tratamentos paternalistas e lacunas na relação entre os salários e o acesso a alguns bens de consumo – este último aspecto está diretamente vinculado à dualidade monetária que vigora no país desde 19945 (ÁLVAREZ, HARNERCKER, CRUZ, 2011; CUBA, 2011). 4 A estimativa é de que as empresas cubanas possuem em torno de 30% a 50% mais de trabalhadores/as do que o necessário para se obter um aproveitamento ótimo da produção destes trabalhadores (ÁLVAREZ; HARNERCKER; CRUZ, 2011). 5 Em agosto de 1993 foi aprovado o Decreto-Ley nº140, o qual eliminou a antiga penalização pela possessão e uso de divisas, permitindo ainda a abertura de contas em dividas nos bancos nacionais o que facilitou o envio de remessas desde o exterior. Já em 1994, foi criada uma nova moeda com valor 9 Os Lineamientos preveem também o fim da dualidade monetária, mas até que não se realize, prevê no item relativo à “Política para o Comércio” que se avance na qualidade dos serviços ofertados em peso cubano e se mantenha a distribuição dos produtos em pesos conversíveis de acordo com a qualidade e as características dos mesmos. O objetivo principal é estabelecer uma relação entre o acesso a bens de consumo através dos salários e o acesso aos fundos sociais de consumo6 de forma que estimule a elevação da produtividade do trabalho, sem a qual, conforme discurso de Raúl de Castro em 2010, “[...] es imposible elevar salarios, incrementar las exportaciones y sustituir importaciones, crecer en la producción de alimentos y, en definitiva, sostener los enormes gastos sociales propios de nuestro sistema [...]” (CUBA, 2011; CASTRO, 2010). Por isso, em 2010 foram encaminhados para outras instituições, especialmente as denominadas orçamentárias (vinculadas a ministérios, por exemplo) mais de 1 milhão de trabalhadores, os quais foram considerados excessivos nas empresas estatais. Enquanto muitos foram vinculados a instituições estatais que não cumprem a função de empresa, outros provavelmente se alocarão no setor não estatal (ÁLVAREZ; HARNERCKER; CRUZ, 2011). A partir de 1995, o setor estatal passa a responder por aproximadamente 83% dos vínculos de trabalho, porcentagem inferior ao ano de 1989, quando respondia por 95% destes vínculos. Segue em curso a redução dos trabalhadores/as vinculados/as ao setor estatal, mas as empresas estatais ainda são as instituições de maior presença na economia cubana e onde se mantém aproximadamente 80% dos trabalhadores do país até 2015 (ÁLVAREZ; HARNERCKER; CRUZ, 2011). Do total de trabalhadores considerados ocupados7 no ano de 2013, os vínculos de trabalho nas empresas estatais somavam quase cinco milhões de trabalhadores. Já aqueles inseridos nos outros setores, não chegavam a dois milhões de trabalhadores, correspondente ao dólar, o peso convertible (CUC), (CARCANHOLO, NAKATANI, 2002). Atualmente circulam no país as duas moedas: o peso convertible (CUC) e o peso cubano (CUP), sendo o cambio de $ 1,00 (peso convertible) = $MN 25,00 (pesos cubanos ou moeda nacional). 6 Os fundos sociais de consumo se referem a todos os bens e serviços ofertados a toda a população, com vistas a abastecer as necessidades fundamentais. Por exemplo, os serviços de saúde, alimentação, educação, esporte e cultura. 7 Os considerados ocupados são todos os trabalhadores vinculados a qualquer um dos setores presentes na economia. 10 podendo estes estar vinculados: as cooperativas agrárias, as cooperativas não agrárias, ao trabalho por conta própria e ao setor denominado privado. A expansão dos trabalhadores vinculados aos setores denominados não estatais visa ampliar a produtividade do trabalho da economia cubana em geral e também das empresas estatais. Esse processo é parte das mudanças instituídas a partir da atualização do modelo econômico, que visa realocar os trabalhadores dos setores estatais que excedem ao número necessário à produção de determinada empresa. Contudo, pode-se deduzir que esse processo é também motivado pela dualidade monetária e a presença de alguns bens ofertados em divisas, visto que em setores como o “contrapropista”8, por exemplo, há trabalhadores que recebem em peso conversível e não em peso cubano. Isto porque a renda em pesos cubanos recebida pelo vínculo estatal não possibilita acessar uma parte dos bens disponíveis via o peso conversível na sociedade. Dessa forma, as inúmeras mudanças nas relações de produção do país têm sido realizadas com a intenção de manter o projeto societário sustentado pela sociedade cubana, aquele que almeja a construção da sociedade socialista. Conforme dissemos no primeiro item deste pequeno texto, as tentativas deste processo vão sendo deflagradas frente às condições concretamente dadas ao país. No caso de Cuba, houveram avanços indiscutíveis desde a tomada do poder político, do alcance da superestrutura. Estas mudanças iniciaram alterações nas relações de produção (estruturais) que alteraram desde o início as formas de propriedade existentes no país, a relação com o trabalho, o acesso aos bens de consumo e de serviços, o Estado e a participação neste, dentre outros. A partir da revolução a sociedade cubana passa a obter identidade de país, de pátria autônoma, o que era completamente novo a sua história. É o processo revolucionário que eleva a condição de vida, de alimentação, de saúde e educação a um nível consideravelmente superior aos registros da história cubana. Níveis estes também estranhos aos demais países da América Latina e Caribe. Além disso, por considerarmos que o processo de transição ao socialismo é imerso a particularidades, a condições histórico-concretas, é suscetível a mudanças relativas as condições de determinado período histórico, é implicada pelo contexto internacional e pelo grau de 8 Atividades por conta própria regulamentada, na qual os trabalhadores são reconhecidos socialmente e acessam todos os bens de consumo e serviços ofertados pelo Estado. 11 desenvolvimento das forças produtivas, é que entendemos que Cuba vive esse processo, um projeto de sociedade socialista que busca realizar a transição do capitalismo ao socialismo. Por isso, está presente nas relações de produção cubanas elementos vinculados a sociedade anterior, de onde se origina, ao mesmo tempo em que constrói novas relações, que só poderão alcançar o socialismo a partir de um contexto de transições em outros países, mesmo que em nível ao menos continental. 12 Bibliografia CASTRO, Raúl Ruz. Discurso: Hemos adoptado importantes decisiones que constituyen en sí mismas un cambio estructural y de concepto en interés de preservar y desarrollar nuestro sistema social y hacerlo sostenible en el futuro. Asamblea Nacional del Poder Popular, 1 de agosto, 2011. Periódico Granma. In._______.< http://www.granma.cubaweb.cu/2010/08/01/nacional/artic22.html CARCANHOLO, Marcelo; Paulo, NAKATANI. ¿Socialismo de Mercado o Planificación Socialista? Revista Economía crítica y desarrollo, Año I, 1, 2002, p.4771. CUBA. Lineamientos de la Política Económica y Social del Partido y la Revolución. 2011. DÍAZ, Julio C. Acosta. Consumo y distribución normada de alimentos y otros biens. In_______. Cincuenta años de la economia cubana. La Habana: Editorial de Ciencias Sociales, 2010. GARCÍA, Margarita Rabelo; HIDALGO, Vilma Santos (org.). Modelo económico y social cubano: nociones generales. Habana, Cuba: Editorial UH, 2013 GARCÍA, Anicia Álvarez; PIÑERO, Camila Harnecker; ANAYA, Betsy Cruz. 2011. Reestructuración del empleo en Cuba: el papel de las empresas no estatales en la generación de empleo y en la productividad del trabajo. Centro de estudios de la economía cubana, 2011. MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. 25 ed. Rio Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. _______ Crítica do programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012. MARX, Karl; ENGELS, Frederick. Carta de Karl Marx à Vera Zasulitch. In_____ Dilemas do socialismo: a controvérsia entre Marx, Engels e os populistas russos. De FERNANDES, Rubem César (org). Digitalização: Coletivo A FAVOR DA RUA. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. ONEI, Oficina Nacional de Estadística e Información de Cuba, 2013. RAUBER, Isabel. Romper el cerco. Colección Economía. La Habana: ciencias sociales, 2003. MURUAGA, Angela Ferriol. El empleo em Cuba 1980-1996. In____Cuba crisis, ajuste y situación social 1990-1996. 13