Reflexões iniciais sobre a transição ao socialismo em Cuba Aline

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Reflexões iniciais sobre a transição ao socialismo em Cuba
Aline Fardin Pandolfi1
Resumo
O texto que segue é parte de estudos e reflexões mais abrangentes realizadas no “Grupo
de Estudos Críticos do Desenvolvimento”, coordenado pelo professor Paulo Nakatani,
acerca do processo de transição ao socialismo. Este grupo é composto ainda por
professores e estudantes do Programa de Pós-graduação em Política Social da
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) que estejam desenvolvendo pesquisas
afins. O texto que segue é parte de pesquisa em andamento que irá se somar a tese de
Doutorado a ser apresentada ao Programa supracitado em 2017. Neste texto, pretende-se
esboçar a visão que vem sendo constituída neste grupo de pesquisa sobre a
complexidade de um processo de transição ao socialismo, bem como se apontará
algumas mudanças particulares nas relações de produção de Cuba a partir dos
Lineamientos de la Política Económica y Social del Partido y la Revolución (2011).
Palavras Chave: transição ao socialismo; Cuba; relações de produção.
1. Do capitalismo ao socialismo
O capitalismo ao longo se seu percurso histórico tem deixado cada vez mais
evidente seus limites estruturais. Mesmo que sua organização ocorresse da maneira mais
“harmônica” possível – com os trabalhadores recebendo um salário correspondente a
uma qualificada cesta de consumo – a desigualdade se manteria, evidenciando a relação
de exploração própria do modo de produção capitalista. Longe de pretender um
funcionamento harmonioso e, considerando a sua lógica estrutural, o capitalismo,
exatamente por se tratar de uma sociedade dividida em classes com interesses
1
Doutoranda em Política Social pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) (2013-2017), sob
orientação do Prof. Dr. Paulo Nakatani. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES). Mestre em Política Social pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
(2010).
1
antagônicos, mantém o aprofundamento da exploração do trabalho, altas taxas de
desemprego, o achatamento dos salários ao máximo, a reprodução da miséria e,
condições de vida mais e mais precárias para os/as trabalhadores/as em geral.
O conflito de classes presente na sociedade capitalista e as contradições na
própria estrutura de produção e reprodução do capital foram apontadas pela teoria
crítica marxista, com a perspectiva de que veríamos o aprofundamento de suas
contradições e do próprio processo de luta de classes, culminando na tomada do poder
político pelos/as trabalhadores/as do mundo, no desmonte da sociabilidade capitalista e
na construção de outra forma de sociabilidade que negasse a exploração do homem pelo
homem através do trabalho. A compreensão da relação entre a estrutura econômica e a
superestrutura em Marx é basilar dessa reflexão. No campo da estrutura econômica
encontram-se as relações de produção, todo processo de produção econômica real que
sustenta a reprodução da vida humana. Já no âmbito da superestrutura, está composto
todo o aparato ideológico, legal, político e a estrutura de poder que direciona e orienta
as relações sociais, e que, ao fim, são construídas à luz do modo como a produção está
organizada (MARX, 2008).
Faz-se imprescindível a compreensão desse movimento, pois, a medida que as
contradições nas relações de produção se aprofundam e a classe espoliada da riqueza
levanta suas indignações e se organiza coletivamente, há a possibilidade de tomada do
poder político e de alteração de toda a estrutura econômica e da superestrutura.
Sobre o processo de superação da sociedade capitalista e a passagem para uma
nova sociabilidade, Marx e Engels não construíram uma teoria do processo de transição
ao comunismo, mas em diversos textos e fragmentos sinalizaram elementos que nos
permitem pensar esse processo. Em um deles, se prevê dois períodos distintos de
constituição da sociedade comunista. O primeiro momento registraria distorções
inevitáveis devido a originar-se da sociedade anterior e herdar dela várias
características. Segundo o autor, “[...] essas distorções são inevitáveis na primeira fase
da sociedade comunista, tal como ela surge, depois de um longo trabalho de parto, da
sociedade capitalista”, Marx (2012, p.31). Nesse estágio inicial, seria construída a
“ditadura revolucionária do proletariado”, e se instituiria mudanças no sentido de
socializar os meios de produção existentes e sua distribuição.
2
Na denominada fase superior da sociedade comunista, estaria eliminada a
escravização dos indivíduos à divisão social do trabalho, seria eliminada também a
oposição entre trabalho manual e intelectual, nesse cenário, o trabalho teria deixado de
ser mero meio de vida e tornar-se-ia “[...] a primeira necessidade vital”, Marx (2012,
p.31).
Nessa fase superior seria imprescindível o desenvolvimento das forças
produtivas para estivessem dadas as condições materiais concretas de realização do
comunismo, com o intuito de viabilizar o abastecimento das necessidades em
abundância, onde “a sociedade poderá escrever em sua bandeira: ‘De cada um segundo
suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades!’”, Marx (2012, p.32).
Contudo, a história nos trouxe um cenário diferente, visto que as lutas de classe
que deflagraram processos revolucionários vitoriosos no capitalismo ocorreram em
países onde ainda se desenvolviam as forças produtivas, em alguns casos em estágios
bem iniciais. A Rússia, Vietnã, Cuba, China e outros, enfrentaram diversos desafios
devido a este aspecto. Isso porque o movimento de luta de classes e seus rumos não são
premeditados teoricamente, cabendo à reflexão teórica analisar os movimentos reais nas
condições concretas em que se deslancham. Cada realidade concreta, geográfica,
histórica, cultural e politicamente diferente, identificará as possibilidades e limites para
realizar um processo de transição a outro modo de produção, pós-capitalista. As
pesquisas de Marx e Engels também indicavam esse movimento. É por considerar as
particularidades dos diversos países que Marx responderá por Carta à Vera Zasulitch em
1881, que as condições da Rússia naquele período deixava aberta à possibilidade
histórica de - a partir de iminente processo revolucionário Russo juntamente com um de
abrangência ao menos Continental -, serem iniciadas transformações sociais que
possibilitariam a transição do capitalismo diretamente ao comunismo, sem a passagem
pela transição socialista. Isso porque a Rússia apresentava relações de produção
pautadas na forma de propriedade comum da terra através de comunas rurais e estava
inserida em um contexto de capitalismo internacional com alto desenvolvimento das
forças produtivas. Diante disto, a presença da propriedade coletiva da terra existente no
país se colocava como um ponto de partida para o desenvolvimento do comunismo;
desde que o país usufruísse das forças produtivas existentes nos demais países
3
capitalistas, o que só seria possível mediante a deflagração relativamente simultânea de
processos revolucionários nestes2 (MARX; ENGELS, 2009).
Por isso, há também a compreensão neste trabalho de que um processo de
transição ao socialismo e depois ao comunismo não segue parâmetro de tempo ou
forma, mas ganha materialidade a partir da vontade política daqueles que o conduzem e
legitimam e ao longo do processo vão incorporando alterações necessárias a sua
sustentação. Entretanto, sabe-se que para consolidar esta transição até o socialismo há a
necessidade por: ser internacional; contar com determinado grau de forças produtivas e
de produção que abasteça as necessidades internas (ao menos imediatas); haver formado
a “ditadura do proletariado” mediante organização política de intensa participação dos
membros da sociedade nas diversas decisões da sociedade como um todo, inclusive nas
unidades de produção. Todos estes elementos estão imbricados um no outro, portanto,
alcançá-los depende de alternativas construídas internamente, mas fundamentalmente
depende do processo de luta de classes interna e internacionalmente colocada ao
processo de transição.
O momento de tomada do poder político é um passo inicial frente a diversos
desafios que se colocarão ainda nos primeiros dias e anos de tentativa de construção da
nova sociedade, este é um processo sem precedentes e que conta com alguns indicativos
de autores relativos ao socialismo científico, mas que é, sobretudo, criação, inovação,
tentativas daqueles que almejam sua consolidação. A transição ao socialismo é este
momento inicial de mudanças, de experenciar propostas de mudanças, de enfrentar as
forças externas no processo de luta de classes internacional aliada as classes internas
também opositoras, é momento de sequenciar a revolução por tempo indeterminado.
É, portanto, um desses movimentos revolucionários e de transição ao socialismo,
em virtude de sua trajetória, relevância e persistência histórica, foco de nossa análise. O
processo de transição ao socialismo em Cuba.
2. As particularidades da Revolução Cubana
2
Esta ideia aparece nesta carta de Marx a Vera (1881) e no Prefácio a segunda edição Russa de 1882 do
Manifesto Comunista de Marx e Engels (2009).
4
O processo revolucionário registrou mudanças no âmbito da estrutura social de
Cuba desde 1957, a partir da oferta de serviços médicos e educacionais destinados a
população pelos próprios guerrilheiros. Após a tomada do poder político em 1959, o
processo revolucionário na estrutura e superestrutura de Cuba se aprofunda
progressivamente e se instaura a organização de toda a sociedade a partir de uma
economia planificada que realiza a estatização de praticamente todas as empresas do país
até meados de 1960, estabelecendo a contratação estatal como forma preponderante de
vínculo de trabalho. Desde então, as melhorias nas condições de vida da população
cubana são notáveis, ao ponto de, até os dias atuais, manter Cuba em vantagem – quando
comparada a países com renda per capita bem superior – no que se refere a índices como:
mortalidade infantil, analfabetismo, acesso à educação e à saúde, condições de moradia,
criminalidade, dentre outros.
Em virtude das condições concretas enfrentadas pelo país, a transição ao
socialismo em Cuba registra ao longo desses anos períodos de diferentes estratégias para
sustentar este projeto de sociedade. As relações de produção e o acesso a bens de
consumo é um dos campos que mais se modifica em virtude de sua relevância para
manutenção da vida humana e para construção de relações sociais pautadas em novos
valores. É devido a significância que possui o trabalho e sua organização para reprodução
da vida humana do ponto de vista material, mas também de todas as relações sociais
advindas da produção, que temos por foco deste texto apontar algumas das mudanças
recentes nas relações de produção em Cuba.
Nessa trajetória, Cuba tem enfrentado inúmeros desafios internos e externos.
Acerca dos desafios internos, podemos elencar principalmente o baixo desenvolvimento
das forças produtivas e a dependência histórica por grande parte das matérias-primas
fundamentais. Sobre a relação externa, a própria condição de país economicamente
dependente e o bloqueio americano, iniciado parcialmente em 1960, formalizado em
1961 pelo Presidente Dwight D. Eisenhower e mantido desde então. Ante ainda ao
conjunto de países a nível global que estão sob a ordem e domínio do capital em fase
imperialista, Cuba tem conseguido enfrentar os inúmeros desafios materiais e os limites
no comércio exterior mantendo o projeto de sociedade em curso. Importa destacar que
esses desafios têm sido enfrentados no campo político, ideológico, social e econômico,
contando com a adesão e admirável criatividade do povo cubano. A legitimidade do
5
povo cubano a todo o processo está respaldada nas inúmeras conquistas da revolução e,
é ratificada em espaços de participação construídos e frequentados pela população que
ativamente contribui com alterações nas legislações e normativas em vigor.
Frente a esse cenário, as modificações nas relações de produção, ao mesmo
tempo em que têm sido fundantes da manutenção da economia, do projeto de transição e
das condições de sobrevivência da população cubana (sustentando inclusive todos os
serviços ofertados pelo Estado – saúde, esporte, cultura, educação, dentre outros), têm
trazido outros desafios à sociedade cubana, como: a não correspondência entre a
formação e qualificação de alguns trabalhadores e as vagas de trabalho existentes; a
redução no número de trabalhadores que procuram a qualificação profissional, sendo a
oferta de cursos e a necessidade econômica do país maior do que o número de
qualificados; o desinteresse pelo trabalho marcado pelo desestímulo aos vínculos de
trabalho e suas respectivas remunerações; dentre outros.
Diante deste cenário, é especialmente nos anos 2000 que ocorrem alterações nas
legislações e documentos oficiais do Governo como em prol de alterar aspectos nas
relações de produção do país. Cabe destacar que as mudanças contam com a
participação do povo cubano e visam enfrentar as dificuldades concretas do processo de
transição. Cuba tem contribuído imensamente no processo de sustentação da
necessidade pelo socialismo, diante das contradições e prejuízos sociais e humanos
advindos da organização capitalista e aprofundados em período de internacionalização
do capital na esfera produtiva, financeira e comercial.
2.1.
As mudanças atuais nas relações de produção em Cuba
Atualmente Cuba passa por uma atualização do modelo econômico, com o
objetivo de “[...] garantir [...] o desenvolvimento econômico do país e a elevação do
nível de vida da população, conjugados com a necessária formação de valores éticos e
políticos [...]” da população, Cuba (2011, p.6, tradução nossa). Este objetivo está
previsto no documento aprovado3 no VI Congresso do Partido Comunista Cubano
3
O referido documento foi aprovado no VI Congresso do Partido após seu projeto de texto ter sido
submetido a amplo debate popular em várias instâncias de Cuba, como as Assembleias Nacionais do
Poder Popular. O projeto inicial sofreu alterações após esses debates, as quais foram incorporadas em sua
versão final (CUBA, 2011).
6
(PCC) denominado Lineamientos de la Política Económica y Social del Partido y la
Revolución (2011). O mesmo documento aponta que a forma de propriedade sobre os
meios de produção em Cuba é a “propriedade social”, perante a qual toda a população
cubana é proprietária e também produtora. Contudo, com o intuito de ampliar a
produtividade do trabalho no país, além das empresas estatais, vem sendo fortalecidas
outras formas do que denominam de “gestão da propriedade social”, como: “[...] as
modalidades de investimentos estrangeiros, as cooperativas, os pequenos agricultores,
os arrendatários, os trabalhadores por conta própria e outras”, Cuba (2011, p.6). Sendo
que as empresas estatais seguem sendo as que possuem maior presença na economia
cubana e nas quais estão empregados o maior número de trabalhadores/as.
A expansão de outras formas de gestão da propriedade social está autorizada
para alguns ramos específicos da economia, especialmente a oferta de serviços, como
cabeleireiros e restaurantes e não para todos indiscriminadamente. Mantém-se a forma
de propriedade estatal sobre os ramos fundamentais da produção econômica do país, o
que é um elemento determinante nos rumos da econômica nacional.
As mudanças estão sendo implantadas com vistas a manter o acesso aos serviços
e bens de consumo por toda a população. Pretende-se ainda eliminar o denominado
“igualitarismo” e manter a máxima do período de trânsito ao socialismo “de cada qual
segundo sua capacidade a cada qual segundo seu trabalho”, sendo que o trabalho deverá
ser um direito e um dever, a forma principal de renda da população, e, ainda, parte da
realização pessoal em sociedade (CUBA, 2011). Entretanto, uma outra forma de
aumento da renda presente na realidade cubana é a transferência de divisas do exterior
para o país, especialmente de cubanos residentes nos EUA. Atualmente já se acredita
que a transferência de divisas possa ser a segunda maior fonte de renda da população
cubana, considerando a expansão do item “outros ingressos”, que passa de 1.993,3
milhões de pesos cubanos em 1990 para 12.286,8 em 2011, segundo dados do Banco
Central de Cuba. Esta forma de receber recursos pelos cubanos, através da entrada do
dólar, poderá se expandir em virtude das notícias recentes (de março de 2016) sobre a
quebra da taxação do dólar no país.
A planificação continua sendo a principal forma de organizar a direção da
sociedade e abarca principalmente as empresas estatais, as unidades orçamentárias e as
associações econômicas internacionais. Mas neste cenário, a planificação da economia
7
cubana também sofre alterações, tendendo a concessão de maior autonomia, tanto entre
as empresas estatais, como em relação aos novos setores e possibilidades de vínculos de
trabalho existentes em Cuba (CUBA, 2011).
As mudanças atuais estabelecem uma ampliação da autonomia nas empresas
estatais. Esta significa uma elevação de suas responsabilidades sobre: a gestão, a
produção, a produtividade, a contratação dos trabalhadores/as, o manejo dos recursos
materiais e financeiros, os equívocos que possam ocorrer e, sobre o sistema de controle
interno, de forma que os resultados respondam ao seu planejamento inicial. Após o
cumprimento do pagamento dos impostos estabelecidos pelo Governo, as empresas
estatais poderão criar fundos destinados ao seu desenvolvimento, a investimentos e a
mecanismos
de estímulo aos
trabalhadores/as. As empresas
também
terão
independência para aprovar sua planilha de cargos. A ampliação da autonomia das
empresas possui um limite que são as previsões presentes em seu próprio plano, o qual
também está vinculado ao plano nacional da economia (CUBA, 2011).
A proposta, discussão e aprovação dos Lineamientos resultou de dificuldades
enfrentadas pelo país, sendo que as principais ocorreram no denominado “Período
Especial”. Este período originou-se fundamentalmente de um fator externo, que foi a
queda da União Soviética e o desaparecimento do “campo socialista” em fins da década
de 1980 e início de 1990, o que impôs às relações comerciais de Cuba inúmeros
desafios. Cuba passou por uma contração nas importações da ordem de 80% e, por
consequência, a ter que comercializar com a economia capitalista internacional. Ocorreu
uma redução significativa na oferta dos produtos necessários à sobrevivência da
população neste período, sendo que dos 1.560 artigos que ficavam disponíveis, apenas
11% se encontravam permanentemente no mercado racionado/ normado (DÍAZ, 2010;
GARCIA; GONZÁLEZ, s/n; FERRIOL, 1998).
Já nos anos 2000, Cuba enfrentou outro desafio, que foi a passagem de 16
furacões entre 1998 e 2008 na ilha, ocasionando diversas perdas, especialmente no que
se refere a construção civil.
Registra-se ainda o processo de envelhecimento populacional e a baixa taxa de
natalidade do país, pois atualmente, quase 20% da população cubana possui mais de 60
anos, com tendência a ampliação desse grupo populacional. Já a população de 0 a 15
anos já é inferior (17%) e com tendência a redução, (ONEI, 2013). Diante diste, é
8
necessário considerar ainda que a atual geração de jovens cubanos, não vivenciou o
processo revolucionário em suas origens, também não vivenciou o contexto que
vigorava até 1958 e todo o processo de exploração pelo qual passou Cuba durante toda
sua história, também não encarou a condição de extrema pobreza do país naquele
período, especialmente da população residente no campo. Esta questão se coloca como
um desafio atualmente ao processo de sustentação da ideia, do projeto de sociedade em
transição ao socialismo. Conforme aponta Marcos Portal em entrevista à Isabel Rauber,
“[...] durante trinta anos [criamos] valores que temos que preservar, sobretudo com a
juventude que não viveu a etapa do capitalismo, que não viveu os duros anos da
Revolução [...], (Rauber, 2003, p.19)”.
Devido a condição de dependência externa e ao déficit de relações de comércio
internacional, situação imposta pelo bloqueio e agravada pela queda do “bloco
socialista”, Cuba passou a expandir os serviços e atividades na área do turismo como
forma de angariar divisas que contribuem com a atividade de importação do país. Além
do turismo, em 2004 expandiram-se novas possibilidades de inserção internacional
através da Alianza Bolivariana para los Pueblos de Nuestra América (ALBA), o que
ampliou a entrada de divisas no país, especialmente através da exportação de serviços
médicos. O turismo e a exportação de serviços desta natureza são as principais formas
de entrada de divisas no país, o que possibilita realizar as importações necessárias ao
consumo interno (CUBA, 2011).
A ampliação dos vínculos de trabalho nos setores não estatais e que estão em
expansão na economia cubana, está também relacionado aos problemas enfrentados
pelas empresas estatais, buscando responder principalmente às seguintes dificuldades: a
baixa produtividade destas empresas, o registro de excessivo número de
trabalhadores/as4, tratamentos paternalistas e lacunas na relação entre os salários e o
acesso a alguns bens de consumo – este último aspecto está diretamente vinculado à
dualidade monetária que vigora no país desde 19945 (ÁLVAREZ, HARNERCKER,
CRUZ, 2011; CUBA, 2011).
4
A estimativa é de que as empresas cubanas possuem em torno de 30% a 50% mais de trabalhadores/as
do que o necessário para se obter um aproveitamento ótimo da produção destes trabalhadores
(ÁLVAREZ; HARNERCKER; CRUZ, 2011).
5
Em agosto de 1993 foi aprovado o Decreto-Ley nº140, o qual eliminou a antiga penalização pela
possessão e uso de divisas, permitindo ainda a abertura de contas em dividas nos bancos nacionais o que
facilitou o envio de remessas desde o exterior. Já em 1994, foi criada uma nova moeda com valor
9
Os Lineamientos preveem também o fim da dualidade monetária, mas até que
não se realize, prevê no item relativo à “Política para o Comércio” que se avance na
qualidade dos serviços ofertados em peso cubano e se mantenha a distribuição dos
produtos em pesos conversíveis de acordo com a qualidade e as características dos
mesmos. O objetivo principal é estabelecer uma relação entre o acesso a bens de
consumo através dos salários e o acesso aos fundos sociais de consumo6 de forma que
estimule a elevação da produtividade do trabalho, sem a qual, conforme discurso de
Raúl de Castro em 2010, “[...] es imposible elevar salarios, incrementar las
exportaciones y sustituir importaciones, crecer en la producción de alimentos y, en
definitiva, sostener los enormes gastos sociales propios de nuestro sistema [...]”
(CUBA, 2011; CASTRO, 2010).
Por isso, em 2010 foram encaminhados para outras instituições, especialmente
as denominadas orçamentárias (vinculadas a ministérios, por exemplo) mais de 1
milhão de trabalhadores, os quais foram considerados excessivos nas empresas estatais.
Enquanto muitos foram vinculados a instituições estatais que não cumprem a função de
empresa, outros provavelmente se alocarão no setor não estatal (ÁLVAREZ;
HARNERCKER; CRUZ, 2011).
A partir de 1995, o setor estatal passa a responder por aproximadamente 83%
dos vínculos de trabalho, porcentagem inferior ao ano de 1989, quando respondia por
95% destes vínculos. Segue em curso a redução dos trabalhadores/as vinculados/as ao
setor estatal, mas as empresas estatais ainda são as instituições de maior presença na
economia cubana e onde se mantém aproximadamente 80% dos trabalhadores do país
até 2015 (ÁLVAREZ; HARNERCKER; CRUZ, 2011).
Do total de trabalhadores considerados ocupados7 no ano de 2013, os vínculos
de trabalho nas empresas estatais somavam quase cinco milhões de trabalhadores. Já
aqueles inseridos nos outros setores, não chegavam a dois milhões de trabalhadores,
correspondente ao dólar, o peso convertible (CUC), (CARCANHOLO, NAKATANI, 2002). Atualmente
circulam no país as duas moedas: o peso convertible (CUC) e o peso cubano (CUP), sendo o cambio de $
1,00 (peso convertible) = $MN 25,00 (pesos cubanos ou moeda nacional).
6
Os fundos sociais de consumo se referem a todos os bens e serviços ofertados a toda a população, com
vistas a abastecer as necessidades fundamentais. Por exemplo, os serviços de saúde, alimentação,
educação, esporte e cultura.
7
Os considerados ocupados são todos os trabalhadores vinculados a qualquer um dos setores presentes na
economia.
10
podendo estes estar vinculados: as cooperativas agrárias, as cooperativas não agrárias,
ao trabalho por conta própria e ao setor denominado privado.
A expansão dos trabalhadores vinculados aos setores denominados não estatais
visa ampliar a produtividade do trabalho da economia cubana em geral e também das
empresas estatais. Esse processo é parte das mudanças instituídas a partir da atualização
do modelo econômico, que visa realocar os trabalhadores dos setores estatais que
excedem ao número necessário à produção de determinada empresa. Contudo, pode-se
deduzir que esse processo é também motivado pela dualidade monetária e a presença de
alguns bens ofertados em divisas, visto que em setores como o “contrapropista”8, por
exemplo, há trabalhadores que recebem em peso conversível e não em peso cubano.
Isto porque a renda em pesos cubanos recebida pelo vínculo estatal não possibilita
acessar uma parte dos bens disponíveis via o peso conversível na sociedade.
Dessa forma, as inúmeras mudanças nas relações de produção do país têm sido
realizadas com a intenção de manter o projeto societário sustentado pela sociedade
cubana, aquele que almeja a construção da sociedade socialista. Conforme dissemos no
primeiro item deste pequeno texto, as tentativas deste processo vão sendo deflagradas
frente às condições concretamente dadas ao país. No caso de Cuba, houveram avanços
indiscutíveis desde a tomada do poder político, do alcance da superestrutura. Estas
mudanças iniciaram alterações nas relações de produção (estruturais) que alteraram
desde o início as formas de propriedade existentes no país, a relação com o trabalho, o
acesso aos bens de consumo e de serviços, o Estado e a participação neste, dentre
outros.
A partir da revolução a sociedade cubana passa a obter identidade de país, de
pátria autônoma, o que era completamente novo a sua história. É o processo
revolucionário que eleva a condição de vida, de alimentação, de saúde e educação a um
nível consideravelmente superior aos registros da história cubana. Níveis estes também
estranhos aos demais países da América Latina e Caribe. Além disso, por considerarmos
que o processo de transição ao socialismo é imerso a particularidades, a condições
histórico-concretas, é suscetível a mudanças relativas as condições de determinado
período histórico, é implicada pelo contexto internacional e pelo grau de
8
Atividades por conta própria regulamentada, na qual os trabalhadores são reconhecidos socialmente e
acessam todos os bens de consumo e serviços ofertados pelo Estado.
11
desenvolvimento das forças produtivas, é que entendemos que Cuba vive esse processo,
um projeto de sociedade socialista que busca realizar a transição do capitalismo ao
socialismo. Por isso, está presente nas relações de produção cubanas elementos
vinculados a sociedade anterior, de onde se origina, ao mesmo tempo em que constrói
novas relações, que só poderão alcançar o socialismo a partir de um contexto de
transições em outros países, mesmo que em nível ao menos continental.
12
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