DA INTERPRETAÇÃO À CONSTRUÇÃO DE SIGNIFICADOS NA PSICANÁLISE INFANTIL Guiomar Papa de Morais1 Breve histórico da técnica de Psicanálise Infantil: Freud desenvolveu um importante corpo teórico a partir da sua tese de que a base do funcionamento psíquico é o inconsciente, presente e em atividade todo tempo, quer tenhamos consciência de sua participação e influência na nossa vida ou não. É importante ressaltar que Freud não descobriu o inconsciente, pois inconsciente já era referido por filósofos, mas desenvolveu um método de acesso a ele, a técnica psicanalítica. A técnica psicanalítica – a psicanálise - constitui-se numa metodologia na qual o paciente na sala de análise, junto ao seu analista, é estimulado a fazer associações livres, ou seja, deixar a mente o mais livre possível e expressar em palavras, pensamentos, sentimentos, sensações, na forma como emerge na sua mente, sejam através de lembranças, fatos ocorridos ou não na realidade, sonhos, idéias com ou sem sentido. Segundo Freud, o inconsciente se revela somente através de seus derivados, ou seja, ele atinge a consciência através de representações em diferentes níveis de simbolização. É importante ressaltar que Freud apresenta e desenvolve a técnica como uma metodologia de tratamento de doenças mentais (absolutamente inédito na época), considerando os sintomas como um sinalizador de falhas do funcionamento psíquico e ao mesmo tempo uma tentativa de busca do equilíbrio psíquico e integração do ego. O trabalho do analista, seguindo o desenvolvimento histórico da técnica, seria de tornar “consciente o inconsciente”, analisar (observar, examinar com minúcia) e comunicar ao paciente através da interpretação, o que seu inconsciente está revelando. Freud desenvolveu uma extensa teoria do desenvolvimento emocional desde o nascimento, a partir de sua acurada observação dos pacientes adultos, mas não atendeu crianças em psicanálise. O seu importante trabalho em psicanálise infantil – “O Caso do Pequeno Hans” (1909), que inspirou e continua inspirando os psicanalistas de crianças, foi baseado nas conversas que ele estabeleceu com o pai de Hans, que numa espécie de supervisão foi orientado a ajudar o filho a tomar contato com os motivos inconscientes que determinavam seu principal sintoma de fobia de cavalos. 1 Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto 1 Melanie Klein foi quem desenvolveu com mais propriedade a técnica da análise infantil – a ludoterapia - iniciando o atendimento de crianças por volta deste período da publicação do “Pequeno Hans”, transitando em conceitos da teoria das pulsões de Freud e os estágios de evolução da libido de Abraham. Em 1928 publica o livro “A Psicanálise de Crianças”, no qual faz uma descrição da técnica do brincar, que manterá até o final de sua obra e começa a explicitar seus princípios teóricos, que expandiu ao longo de toda sua vida, formando um respeitável corpo teórico (a teoria das relações de objeto, o conceito de fantasia inconsciente, as posições esquizo-paranóide e depressiva). O seu pressuposto básico para desenvolver a ludoterapia é que o inconsciente se revelava nos jogos infantis, nas brincadeiras de faz-deconta, não necessariamente e tão somente através de palavras, descortinando uma ampla possibilidade de acesso e compreensão de seus conteúdos. Citando Klein: “ As próprias diferenças entre a mente infantil e a adulta mostraram-me de imediato a maneira de chegar às associações da criança e de compreender seu inconsciente. Foram essas características especiais da psicologia da criança que propiciaram a base da técnica da análise através do brincar ... A criança expressa suas fantasias, seus desejos e suas experiência reais de um modo simbólico, através de brincadeiras e jogos. Ao fazer isso, ela emprega o mesmo modo de expressão, ... a mesma linguagem, por assim dizer, com que estamos familiarizados nos sonhos... O simbolismo é apenas uma parte dela. Se desejarmos compreender o brincar da criança corretamente em relação ao seu comportamento como um todo durante a sessão analítica, não devemos nos contentar em pinçar o significado dos símbolos isoladamente na brincadeira, por impressionantes que sejam tão freqüentemente, mas devemos considerar todos os mecanismos e métodos de representação empregados pelo trabalho do sonho, sem nunca perder de vista a relação de cada fator com a situação como um todo. A análise de crianças... tem mostrado repetidamente quantos significados diferentes pode ter um único brinquedo ou um único segmento de uma brincadeira e que só podemos inferir e interpretar o seu significado quando consideramos suas conexões mais amplas e a situação analítica em que se inserem”. (A Psicanálise de Crianças, pág. 27). Seguindo os mesmos pressupostos de Freud, Klein considerava que a interpretação se constitui como uma decodificação de significados, e que “o analista não deveria se intimidar e furtar de dar interpretações profundas mesmo no início da análise, na medida em que o material pertencente a uma camada mais profunda da mente voltará outra vez mais tarde e será elaborado. ... “A função da interpretação ... é simplesmente abrir a porta do inconsciente, diminuir a ansiedade ... e preparar o caminho para o trabalho analítico” (“A 2 Psicanálise da Criança”, pág. 43). consciente o inconsciente”. A tônica continuava sendo “tornar A CONSTRUÇÃO DE SIGNIFICADOS . A técnica de Klein possibilitou o atendimento a crianças com diferentes funcionamentos psíquicos, neuróticos, psicóticos, autistas e lançar luz aos estratos mais arcaicos da mente, constatando-se, que a psicanálise de crianças, mais especificamente uma sessão de análise infantil, é palco de profundas manifestações de sentimentos de toda natureza que compõem o universo psíquico desde o nascimento (amor, raiva, culpa, competição, ciúme, inveja...), expressos de forma direta e/ou dramatizada nos jogos, suscitando ansiedades e angústias. É um jogo diferente, não é um brincar comum. É um trabalho psíquico de constantes elaborações de emoções evocadas das camadas mais primitivas da mente, vivenciadas na transferência, num interjogo de comunicações, que envolve dor psíquica, exigindo suportabilidade e tolerância da dupla. A Psicanálise vem se desenvolvendo fundamentalmente a partir da observação da clínica, possibilitando novos segmentos teóricos e técnicos. Em psicanálise infantil, as contribuições de Winnicott, Margareth Mahler, Bion, Meltzer, Esther Bick, Francis Tustin, Anne Alvarez, Antonino Ferro, vem ampliando nossa compreensão do universo psíquico e nossas possibilidades de contato com este universo nas sessões de análise. Penso que as idéias de Antonino Ferro congregam o que estes autores escreveram em diferentes momentos a partir da observação da especificidade da clínica que cada qual atendia, e que expressa a tendência atual do trabalho dos psicanalistas com crianças (e adultos). Os conceitos de campo bipessoal (casal Baranger) e as idéias de Bion sobre a centralidade do funcionamento mental do analista na sessão (revêrie), constituem-se nos seus pressupostos básicos, entrelaçando-se os postulados de continente e contido e as idéias sobre a constituição do pensamento. A situação analítica é definida como um campo bipessoal em que é possível conhecer a fantasia inconsciente da dupla, constituída pela contribuição de seus dois membros, intermediada por identificações projetivas cruzadas, cujo fluxo, espera-se, dadas as condições particulares da mente do analista, será maior do paciente para o analista. Assim o funcionamento mental do paciente e o do analista serão mutuamente estruturado e estruturadores. É neste contexto, que Ferro acredita que surge a matriz geradora de significados e que, embora ativada na sessão, no encontro entre analista e analisando, vai além do que pode ser imediatamente interpretado na relação. A sessão se desenvolve como uma narrativa criada pelos seus participantes, ela 3 não pertence a nenhum dos membros e depende da “participação” dos dois, na medida em que se criam imagens, personagens e narrativas – os agregados funcionais – que assumem o valor de ser um sonho produzido pela dupla, com características de simbolização compartilhada. As interpretações que decodificam significados pré-existentes na mente do analisando, transferenciais, que Ferro denomina como as interpretações “fortes”, tão importantes na obra de Freud e Klein, passam a ter sua importância e aplicadas quando “vestidas” com as personificações do discurso do paciente e sem referências explícitas ao “aqui e agora” da sessão. As interpretações “fracas”, fruto da natureza intersubjetiva e dialógica do trabalho analítico, vão sendo construídas “a duas mentes” (parafraseando a expressão “a quatro mãos”), como histórias cujos personagens surgem e desaparecem em função da dinâmica do campo. O texto narrativo do paciente é entendido não como algo de onde extrair um significado, mas como algo com que interagir na construção de um sentido partilhado. Com estas interpretações, o analista propicia a continuidade da capacidade narrativa do paciente, que com desenhos, jogos, sonhos e histórias, relata o que estiver ocorrendo neste intercâmbio relacional, permitindo que os elementos emocionais encontrem, pouco a pouco, a possibilidade de acesso à palavra, que é uma modalidade privilegiada de expressão. EXEMPLO CLÍNICO: Jorge tem 10 anos, veio para a primeira sessão trazido pelo pai. Parece assustado, encostado ao pai. Apresento-me e o chamo para entrar. Gruda-se mais ao pai e pede para que ele entre com ele. O pai diz que ele poderia ir, ele reluta, reluta e eu o chamo para conhecer a sala e ver o que separei para trabalharmos. Ele entra receoso, não fecho a porta e ele se dirige direto para a janela (com os vidros fechados, grandes, no 10º andar), olhou para baixo e disse: - Eu tenho medo, eu tenho de me jogar daqui de cima. – Abaixase imediatamente, ficando de bruços, com as mãos cobrindo a cabeça. Eu estava ao seu lado e me abaixo, ele agarra na minha mão e digo-lhe para irmos nos afastando devagarinho. Paramos no meio da sala, perto de uma gravura de Van Gogh. Estamos em pé e olha em volta da sala, vê o quadro e diz que é bonito. G- Você conhece? J- É da aula de artes... ele se suicidou e antes do suicídio deu um tiro na mão e arrancou ela... depois que ele se matou. [estava angustiado, com o mesmo olhar assustado] G- Hum... como ele devia estar sofrendo, não? Uma tragédia... 4 J- É mesmo... Silêncio... Sabe que eu me lembrei da Filó? G- quem? J – minha cachorrinha! Você quer ver ela? G – Claro! Mas como? Tira um celular do bolso, sentamos um de frente para o outro e mostra todas as fotos – família, animais, amigos. Está com o rosto quase que colado ao meu, captando meu interesse e atenção às suas histórias. Quase no fim da sessão avisei que iria fechar a porta. Fechei, ele se dirigiu à janela (eu do seu lado), ficou olhando, olhando... J – Não estou mais com medo, aqui é bonito. Combinamos o próximo horário. CONSIDERAÇÕES FINAIS: Finalizando, cito Meltzer em “Apreensão do Belo”, (1988), que celebra a beleza do método descoberto e desenvolvido por Freud: “Ao celebrarmos a beleza do método, estamos na realidade celebrando a beleza de um método pelo qual a mente...opera sobre as experiências emocionais de nossas vidas para lhes fornecer uma representação através da formação simbólica, que torna possível o pensar à respeito destas experiências. Fica claro que este „pensar sobre‟ gera o „aprender através da experiência‟ cujas conseqüências são as alterações e reorganizações estruturais através das quais a mente cresce”. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: FERRO, A. (1998) “Na Sala de Análise: emoções, relatos, transformações”, Rio de Janeiro, Imago Ed. Klein, M. (1928) “A Psicanálise de Crianças”, Rio de Janeiro, Imago Ed., 1997. MELTZER,D. (1988) “A Apreensão do Belo: o papel do conflito estético no desenvolvimento, na violência e na arte”, Rio de Janeiro, Imago Ed., 1994. Guiomar Papa de Morais [email protected] 5