Efeitos da metodologia aplicada na simulação energética de edifícios Luis Roriz , Onésimo Silva 1. Introdução A simulação energética é uma ferramenta de elevado interesse no projecto e na análise do funcionamento de um edifício. É também uma imposição regulamentar quando da realização do projecto do sistema de climatização dum grande edifício de serviços. O efeito da utilização de diferentes programas de simulação já foi referido em diversos artigos (Roriz e Gonçalves) e levou a ADENE a considerar que um perito, ao efectuar a certificação dum dado projecto, deverá utilizar o mesmo programa de simulação que foi utilizado pelo projectista. No entanto, esta imposição não é suficiente. Como será demonstrado, deverá ainda ser seguida a mesma metodologia para a determinação das cargas térmicas, sob risco de obtenção de resultados distintos que poderão levar a uma situação em que o edifício possa estar, ou não, regulamentar. Complementarmente é demonstrada a deficiente formulação da correcção climática imposta pelo RSECE, pelo que, esta deveria ser urgentemente reformulada. 2. Métodos de cálculo de cargas térmicas Nas últimas décadas existiu uma rápida evolução na metodologia utilizada para o cálculo de cargas térmicas, resultante em grande parte, da evolução do uso de computadores. Se nas décadas de 1960-1970 o uso de computadores se limitava a “grandes computadores” com entrada de dados por fita ou cartões perfurados, a partir da década de 1980 começou a incentivar-se o uso de computadores pessoais, situação generalizada na década de 1990, com velocidades de processamento elevadas. Desta forma foi possível tornar mais complexa a determinação da carga térmica, dado deixar de ser necessário efectuar o seu cálculo manualmente ou utilizar modelos muito simplificados que permitiam, através de tabelas, gráficos e ábacos, determinar cargas térmicas através de superfícies opacas e transparentes, calcular sombreamentos e determinar a quantidade de calor acumulada na estrutura do edifício. Os métodos iniciais utilizavam valores tabelados de uma diferença de temperatura equivalente (∆Teq) para um reduzido número de situações, como era o caso das tabelas apresentadas pela Carrier (1965) ou da ASHRAE (1977), ou da diferença de temperatura sol-ar (∆Tsa), metodologia proposta pelo IHVE (1971) e para a qual foram desenvolvidas tabelas para paredes, terraços e telhados com diferentes tipos de telha e de telhão (Roriz, 1976/1977). O valor da carga térmica através da estrutura à hora H (QH) era dada por QH = A U ∆TeqH (1) QH = AU [Tsam –Ti + f (TsaH-φ –Tsam)] (2) onde Tsam é a temperatura sol-ar média diária, f o factor decremental e φ o desfasamento. Os valores de ∆Teq dados pela Carrier eram tabelados para diferentes horas do dia, diferentes orientações e diversas espessuras de parede e para coberturas. No caso dos valores apresentados pela ASHRAE apenas algumas tipos de estruturas eram indicados. No caso do cálculo através da temperatura sol-ar, a equação apenas considerava a 1ª harmónica de uma série trigonométrica, o amortecimento da onda de calor era considerado como sendo função da espessura e densidade do material e o atraso apenas função da espessura do material. O não ter em conta a orientação do elemento estrutural originava erros nos atrasos da onda de calor, embora o seu efeito no valor calculado da carga térmica não fosse elevado. As deficiências relativas a estes 3 tipos de cálculo foram analisadas por Roriz (1986). As componentes radiativa e convectiva eram tratadas apenas para a radiação solar e iluminação, utilizando um factor de acumulação, embora pudessem ser utilizados 2 coeficientes para uma resolução mais precisa (Branco et al, 1996). A carga térmica dissipada por equipamentos era considerada ser do tipo convectivo, não existindo portanto diferenciação entre a energia libertada e a carga térmica. A posterior alternativa proposta pela CIBSE designada por método da admitância, utilizava o coeficiente global de transmissão de calor (U) e a admitância (Y) para os diferentes elementos construtivos, em que o primeiro permite o cálculo para condições estacionárias e o segundo permite contabilizar a energia armazenada nos elementos estruturais. A resolução, considerando uma parede simples, baseava-se em (3) onde Ti é a temperatura, Rsi a resistência térmica de convecção, mi=1,2,3 funções hiperbólicas, dependentes das propriedades térmicas do material constituinte da parede. Embora mais precisa, em termos gerais, que as anteriores metodologias, não teve grande aceitação, em parte devido à utilização de cálculo matricial e por outro lado por uma tendência, a nível de vários países da Europa Ocidental, de usarem preferencialmente as metodologias propostas pela ASHRAE. Os métodos actualmente mais utilizados são os propostos pela ASHRAE a partir do final da década de 1990: o método da diferença de temperatura (CLTD ou CLTD/SCL/CLF - Cooling Load Temperature Difference / Solar Cooling Load factor / Cooling Load Factor) em 1997, o método diferença de temperatura diferencial (TETD/TA – Total Equivalent Temperature Differential / Time Averaging) também em 1997, o método das séries temporais radiativas (RTS - Radiant Time Series Method) em 2001 e o método do balanço energético (HB - Heat Balance Method) também em 2001. A contribuição dos diferentes corpos geradores de cargas internas considera a parte convectiva e radiativa. Estes últimos métodos revestem-se de uma complexidade que não permite uma resolução manual ou através de simples folhas de cálculo. Dos diferentes métodos, o do balanço energético é o mais correcto para estimar a carga térmica, já que os restantes métodos correspondem a simplificações do princípio de balanço energético. Com este método é possível calcular a carga térmica considerando a zona a temperatura constante, ou com temperatura variável devido a não existir arrefecimento local, ou devido ao tipo de controlo da temperatura do local. No entanto os outros métodos são também utilizados, dado que a resolução pelo método HB, sendo de elevada complexidade, obriga a uma informação muito completa sobre os elementos constituintes do edifício: o balanço energético é efectuado considerando a superfície exterior, as superfície interiores e o espaço climatizado, sendo as equações de balanço acopladas às funções de transferência (conduction transfer functions - CTF) dos elementos estruturais (paredes, pavimento, tecto) de forma a poderem ser determinadas as temperaturas superficiais desses elementos e a carga térmica, enquanto que para os envidraçados é considerada a radiação absorvida e calculadas as trocas de calor entre as superfícies interior e exterior do vidro, de forma a determinar as suas temperaturas superficiais, sendo a radiação transmitida (directa e difusa) também determinada. Os métodos CLTD e TETD apresentam semelhanças aos métodos anteriores apresentados pela Carrier e pelo IHVE, respectivamente, enquanto que o método RTS pode ser considerado uma simplificação do método HB. É portanto natural que num programa de simulação, a utilização de um ou outro método de cálculo de cargas térmicas conduza a valores do consumo energético dum edifício distintos. 3. Caso estudo De forma a determinar o efeito no valor do consumo energético dum edifício, usando diferentes metodologias, foi utilizado o programa TRACE 700 aplicado a um edifício existente, tendo em atenção a verificação da limitação de consumo energético imposto pelo RSECE (valor de IEE nominal). No caso em estudo, foram alteradas algumas das situações que ocorrem no edifício real, de forma a garantir a confidencialidade dos resultados obtidos para o mesmo, e permitir dar melhor relevo ao efeito da utilização de diferentes metodologias. A geometria genérica do edifício é o de uma torre de secção, aproximadamente quadrangular, de 8 pisos (piso 2 a 9), e de uma base constituída por 4 pisos (pisos –2 a 1), em que os 2 pisos inferiores estão enterrados. Destes, o piso –2 não é climatizado. As plantas dos diferentes pisos superiores e inferiores, embora apresentando ligeiras diferenças, são semelhantes às indicadas nas figuras 1 e 2. A figura 3 apresenta a planta do piso 0. O edifício insere-se num edifício do tipo ensino universitário, possuindo salas de aula, gabinetes, laboratórios, biblioteca e anfiteatros. Possui ainda um restaurante. Deve notar-se que a actual legislação não distingue os edifícios do sector de educação em função do tipo de ensino, em termos do valor limite do consumo global específico (IEE), o que é incorrecto. De salientar, que também é omissa em relação aos valores de IEE que devem ser considerados para o caso de laboratórios. Para a resolução do problema, e de forma a determinar o consumo em condições nominais, foram consideradas que as condições dos diferentes tipos de espaços correspondiam ao tipo de áreas indicadas no RSECE, de acordo com a tabela 1. As características gerais dos elementos estruturais do edifício são as indicadas na tabela 2. Figura 1 - Planta genérica dos pisos superiores Figura 2 - Planta genérica dos pisos enterrados Figura 3 - Planta do piso 0 Tipo de área % da área do edifício Salas de aula Estabelecimento de Ensino Superior 6,0 Anfiteatros Estabelecimento de Ensino Superior 5,0 Vestíbulos Estabelecimento de Ensino Superior 9,0 Laboratórios Sedes de Bancos e Seguradoras 38,0 Restaurante Pronto-a-comer 2,5 Gabinetes Escritórios 36,2 Biblioteca Bibliotecas 3,3 Tabela 1 – Equivalência entre o tipo real de utilização e o considerado para verificação do RSECE Tipo de Envolvente Parede Exterior Correspondência considerada Descrição Piso betão armado c/ 0,3 m / dupla, tijolo furado de -1 / 0, 1 U (W/m2.ºC) 2,1 / 1,0 0,15+0,20 m, s/isolamento Parede Interior simples, tijolo furado de 0,15 / betão armado -1 / 0, 1 1,9 / 2,1 de 0.3 m Parede Exterior Parede + fachada de vidro de 6 mm c/ 2a9 0,25 isolamento de 100 mm Parede Interior Divisória interior de pladur com estrutura 2a9 0,7 metálica e isolamento 2a9 2,71 Vãos Vidro Duplo temperado de 6mm com espaço Envidraçados de ar de 13 mm, estores metálicos interiores de cor média Cobertura Horizontal de laje de betão de 0.2 m c/ 2a9 0,4 isolamento Tabela 2 – Características dos principais elementos estruturais do edifício Tipo de área Iluminação Artificial Piso 2 (W/m ) Salas de aula 15 / 11 -1/2 Anfiteatros 20 0 Laboratórios 15 / 11 -1/2 a 9 Restaurante 22 -1 Gabinetes 20 / 11 0/2 a 9 Biblioteca 13 1 Vestíbulos 10 0, 1 Tabela 3 – Níveis de iluminação artificial (em W/m2) O nível de iluminação considerado para os diferentes espaços é indicado na tabela 3. O sistema de climatização considerado é um sistema centralizado, servido por UPAR com condensador arrefecido a água (uso de torre de arrefecimento) e caldeira utilizando gás natural. A localização do edifício para o caso em estudo é Caldas da Rainha, que corresponde a uma zona I1, V1, pelo que o resultado obtido para o valor do IEE não necessita de correcção climática, de acordo com o RSECE. Os valores do consumo energético desagregado pelos principais tipos são indicados na tabela 4, para as diferentes metodologias de cálculo das cargas térmicas consideradas. Método Arrefec. Aquec. Ventilação Iluminação Outros TETD-TA 246,93 72,40 181,76 214,59 388,78 CLTD 227,70 72,00 141,27 214,59 388,78 RTS 255,16 72,15 174,13 214,59 388,78 Tabela 4 – Consumo anual (em MWh) desagregado consoante o método de cálculo Tendo em atenção a relação de áreas dos diferentes tipos de espaços, indicada na tabela 1, o valor limite do IEE regulamentar é de 50 kgep/m2.ano. Face aos valores indicados na tabela 4, convertidos a energia primária, os valores do IEE que resultam da simulação efectuada, utilizando os diferentes métodos de cálculo, são os indicados na tabela 5. Como se pode observar, enquanto que a utilização do método CLTD conduz a um IEE que cumpre o limite regulamentar, a utilização dos métodos TETD-TA e RTS conduz a um IEE que não cumpre este limite. Método IEE (kgep/m2.ano) TETD-TA 51,0 CLTD 48,0 RTS 51,0 Tabela 5 – Valores de IEE consoante o método de cálculo (Caldas da Rainha) No caso do edifício não se situar numa zona I1, V1, é necessário proceder a uma correcção do valor do consumo obtido por simulação numérica, de acordo com o disposto no RSECE. Considerando agora que o edifício se situa em Faro (zona climática I1, V2), os resultados obtidos por simulação numérica, aplicando a metodologia anteriormente indicada, são apresentados na tabela 6. Método IEEI (kgep/m2.ano) IEEV (kgep/m2.ano) IEE (kgep/m2.ano) TETD-TA 2,5 21,6 53,0 CLTD 2,2 18,8 50,0 RTS 2,4 22,0 53,4 Tabela 6 – Valores de IEE consoante o método de cálculo (Faro) No caso de ser aplicada a metodologia descrita no RSECE (Anexo IX), os factores de correcção a aplicar a um edifício localizado em Faro são apenas referentes ao Verão (Fcv = NV2/NV1), sendo o valor do IEE final dado por: IEE = Qaq/Ap + Fcv Qarref/Ap + Qout/Ap (3) onde os dois primeiros termos do 2º membro da equação correspondem ao IEEI e IEEV, ou seja, aos índices de eficiência energética de aquecimento e de arrefecimento. A correcção ao valor de IEEI é irrelevante. O valor de Fcv para o edifício é 0,5, dado que NV2 e NV1 são iguais a 32 e 16 kWh/m2.ano, respectivamente. Aplicando os factores de correcção aos valores indicados na tabela 6, os valores de IEE obtidos seriam os indicados na tabela 7. Da comparação dos valores constantes nas tabelas 5 e 7 é fácil perceber que o RSECE, ao aplicar correcções baseadas na metodologia do RCCTE, utiliza uma metodologia de conversão grosseira dos consumos obtidos pelo método de simulação, o que é tecnicamente inconsistente com a imposição (constante no mesmo regulamento) dum cálculo detalhado do consumo por um método que cumpre os requisitos impostos pela norma ASHRAE 140-2004. Notar que, neste caso de Faro, enquanto a aplicação directa de simulação pode levar a situações de não cumprimento regulamentar (caso fossem utilizados os métodos TETD ou RTS) se for utilizada a correcção indicada no RSECE o edifício estaria sempre em situação de cumprimento regulamentar. Método IEEI (kgep/m2.ano) IEEV (kgep/m2.ano) IEE (kgep/m2.ano) TETD-TA 2,5 10,8 42,0 CLTD 2,2 9,4 40,0 RTS 2,4 11,0 42.4 Tabela 7 – Valores de IEE aplicando a correcção climática imposta pelo RSECE O RSECE deveria propor apenas a alteração do clima no programa de simulação, uma vez que esta metodologia conduz a aproximações mais razoáveis e corresponde a um procedimento simples, em termos de simulação energética. Como é fácil depreender dos resultados obtidos, a simplificação na metodologia de correcção climática traduz-se eventualmente em conferir a edifícios de qualidade energética fraca uma boa classificação energética. 4. Conclusão A indefinição regulamentar sobre a metodologia que deve ser seguida na simulação energética dos edifícios pode conduzir a situações de cumprimento ou incumprimento regulamentar, consoante o método de cálculo utilizado para um dado programa de simulação. Agravando esta situação, a deficiente formulação imposta pelo RSECE no que respeita à correcção climática, pode levar a que edifícios com uma qualidade térmica semelhante, sejam considerados regulamentares numa zona com correcção climática, não o sejam numa zona climática sem correcção (zona I1, V1). Desta forma, deveria ser efectuada uma revisão do texto regulamentar no sentido de eliminar estas deficiências, estabelecendo a obrigatoriedade de indicação do método de cálculo de cargas térmicas utilizado e procedendo à correcção climática através do programa de simulação, considerando uma localização base I1, V1 (como é o caso das Caldas da Rainha) uma vez que esta metodologia conduz a resultados mais credíveis do que os obtidos pelo disposto na metodologia do RSECE, ao adoptar um factor de conversão baseado na metodologia do RCCTE. 5. Referências Handbook of air conditioning system design – Carrier Air Conditioning Co. (1965) IHVE Guide, Data Book A – The Inst. of Heat. Vent. Eng. (1971) Roriz L. - Elaboração de tabelas de temperatura sol-ar para paredes, para a região de Portugal continental - Técnica n. 437 (1976) Handbook and Product Directory Fundamentals – ASHRAE (1977) Roriz L. - Elaboração de tabelas de temperatura sol-ar para terraços e telhados, para a região de Portugal continental - CTAMFUTL (1977) CIBSE Guide – Volume A (Section 5 – Thermal response of buildings (1986) Roriz L - Análise dos métodos de cálculo de cargas térmicas - Técnica n. 3/4-85, 109112 (1986) Branco A., Canha da Piedade, Roriz L., Inverno A. - Térmica dos Edifícios - Ed. ISQ/Alfaprint (1996) ASHRAE Handbook - Fundamentals (1997) ASHRAE Handbook - Fundamentals (2001) Roriz L., Gonçalves A. – Os problemas da utilização de métodos de simulação de cargas térmicas e consumo energético na auditoria energética para verificação dos Requisitos Energéticos dos edifícios - Rev. O Instalador n. 91, 34-37, Novembro 2003 Roriz L., Gonçalves A. – Utilização de programas de simulação no enquadramento do novo RSECE – Ingenium n. 90, 57-58, Novembro-Dezembro 2005 Decreto-Lei n.º 79/2006 de 4 de Abril (Regulamento dos Sistemas Energéticos de Climatização em Edifícios - RSECE) Decreto-Lei n.º 80/2006 de 4 de Abril (Regulamento das Características de Comportamento Térmico dos Edifícios)