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UNIVERSIDADE FUMEC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
MESTRADO EM INSTITUIÇÕES SOCIAIS, DIREITO E DEMOCRACIA
GINA CHAVES
SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO: por uma exegese
constitucional do conceito de “interesses públicos”
Belo Horizonte
2016
GINA CHAVES
SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO: por uma exegese
constitucional do conceito de “interesses públicos”
Dissertação apresentado no Programa de PósGraduação strictu sensu em Direito - Mestrado da
Universidade FUMEC, na Área de concentração em
Instituições Sociais, Direito e Democracia.
Linha de Pesquisa: Esfera Pública, Legitimidade e
Controle
Orientador: Professor Doutor Carlos Victor Muzzi
Filho
Belo Horizonte
2016
SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO: por uma exegese
constitucional do conceito de “interesses públicos”
Dissertação apresentada e aprovada junto ao Programa de Pós-Graduação em Direito
da Faculdade de Ciências Humanas, Sociais e da Saúde da Universidade FUMEC, visando à
obtenção do Grau de Mestre em Direito.
Belo Horizonte, ________ de ______________________ de ___________.
Componentes da Banca Examinadora:
____________________________________________________
Professor Doutor Carlos Victor Muzzi Filho (Orientador)
Universidade FUMEC
____________________________________________________
Professor Doutor Sérgio Henrique Zandona Freitas
Universidade FUMEC
______________________________________________
Professor Doutor Carlos Alberto Simões de Tomaz
Universidade de Itaúna
______________________________________________
Professor Doutor Saulo Versiani Penna
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Aos meus pais, José Vitor de Mendonça Chaves e
Maria Rita de Mendonça Chaves, e ao meu irmão
Jonas Vitor Chaves, por sonharem os meus sonhos
e tornarem o meu caminho mais fácil de trilhar,
DEDICO!
AGRADECIMENTOS
Ao Professor Doutor Saulo Versiani Penna, fonte de inspiração em minha busca
pelo conhecimento, com quem tenho a honra de dividir o dia a dia no trabalho há mais de 16
anos;
Ao Professor Doutor Carlos Victor Muzzi Filho, pelas aulas no Programa de PósGraduação em Direito e pela honra de tê-lo como meu orientador;
Ao Professor Doutor Sérgio Henrique Zandona Freitas, a quem tive a honra de ter
como orientador em minha Pós-Graduação latu sensu e grande incentivador de minha busca
pelo mestrado;
À Professora Doutora Maria Tereza Fonseca Dias, pela receptividade e tratamento
fraternal a mim dispensado durante essa caminhada;
Aos meus alunos da FEAD, por partilharem comigo, dia a dia, a busca pelo
conhecimento; e à minha coordenadora, Professora Ana Paula Chahim da Silva, por abrir
as portas da docência para mim, com a gentileza própria de sua alma;
À Cláudia Márcia Magalhães – Secretária do Programa de Pós-Graduação strictu
sensu da FUMEC, por seu auxílio inestimável durante todo o período em que estive vinculada
ao programa.
AGRADEÇO!
"el interes público es como el amor"
"um pouco do que ocorre com o interesse público
se passa com o amor: quem não se anima a dizer
que sentiu, que conhece o que é o amor, que suas
veias latiram através do amor, que o ritmo de seu
pulso se moveu através dessa coisa ancestral que é
o amor? Sem embargo, quando se quer definir o
amor, é como se desaparecesse, como se perdesse
força, como se se perdesse todo. Então, é melhor
não defini-lo"
Guillermo Andrés Muñoz
(MUÑOZ, 2010, p. 21-31
RESUMO
Este trabalho busca uma exegese constitucional do conceito de “interesses públicos” que
legitime a utilização do instituto da supremacia do interesse público sobre o privado, como
instrumento de que dispõe a Administração Pública para, no Estado Constitucional de Direito,
promover e efetivar os direitos e garantias fundamentais, mas, também, a assegurar que,
diante da necessidade prática de restrição de algum deles, seja garantida participação dos
interessados num procedimento administrativo democrático. Nos primórdios de seu
desenvolvimento, o Direito Administrativo mostrava-se dividido entre a proteção do cidadão
e a garantia da força estatal, pendendo, no entanto, para os atos de império até o início do Séc.
XX. No Séc. XX, sobretudo em sua segunda metade, o Direito Administrativo é fortemente
influenciado pelo Direito Constitucional, com a assunção pelo Estado de novas funções, num
atuar prestacional. Assim, no paradigma do Estado Constitucional de Direito, o status de
supremacia da atividade estatal é deslocado para a consecução da vontade coletiva
constitucionalmente positivada, após a profunda mutação que a atual ordem constitucional
provocou nas bases teóricas do Direito Administrativo. A supremacia do interesse público
sobre o privado é, ainda no Estado Constitucional de Direito, instituto do Direito
Administrativo constitucionalizado que justifica prerrogativas da Administração e sujeições
do cidadão. A ideia de interesse público, todavia, é entendida, a partir do sistema
constitucional vigente, como defesa dos direitos e garantias fundamentais, a vincular a
atuação dos poderes estatais. Assim, os interesses públicos são vistos como objeto de estudo
do Direito Administrativo, contextualizado às novas teorias do Centro do Direito
Administrativo, desenvolvidas pelas escolas jurídicas Italiana e Alemã. Nesse novo modelo
de gestão pública, em que a participação do cidadão é cada vez mais ampliada, a
Administração Pública passa a ser o cenário em que os vários interesses públicos, próprios do
Estado pluriclasse, são expostos em busca da consensualidade. É assim que o ato
administrativo, antes centro do Direito Administrativo, cede espaço ao procedimento
administrativo, instrumento mais adequado à busca pelo consenso. Rechaçada, então, a
afirmação de superioridade da atividade administrativa, com a mudança de perspectiva do
cidadão no Direito Administrativo, identifica-se o interesse público com a realização dos
direitos fundamentais, não apenas os defesa, mas sobretudo em sua faceta positiva que se
materializa nos direitos prestacionais.
Palavra Chave: Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular. Atividade
Administrativa. Interesse Público. Direitos e Garantias Fundamentais. Estado Constitucional
de Direito. Procedimento Administrativo. Estado Pluriclasse.
ABSTRACT
This work seeks a constitutional exegesis of the concept of “public interests” that legitimates
the use of the institute of the supremacy of public interest over private, as an instrument that
Public Administration has to, in the Constitutional Rule of Law, promote and actualize the
fundamentals rights and guarantees but, also, assure that, given the practical need for
restriction of any of them, be guaranteed the participation of the interested in a democratic
administrative procedure. In the early days of its development, the Administrative Law was
divided between the protection of the citizen and the State power warranty, but tilting to de
empire acts until the XX century. In the XX century, especially during the second half, the
Administrative Law was strongly influenced by Constitutional Law, with the assumption of
the State of new functions, on a instalment act. Thus, on the Constitutional Rule of Law
paradigm, the status of the supremacy of the State activity is shifted to the achievement of the
collective will constitutionally positively, after the profound changes that the actual
constitutional order caused on the theoretical basis of the Administrative Law. The supremacy
of public interest over private is, still on the Constitutional Rule of Law, an institute of the
Administrative Law constitutionalized that justifies the Administration’s prerogatives and the
subjection of the citizen. The idea of the public interest, however, is understood, from the
current constitutional system, as a defense of the fundamental guarantees and rights, to bind
the performance of State powers. Thus, the public interests are seen as the object of study of
Administrative Law, contextualized with the new theories of the Administrative Law Center,
developed by legal schools Italian and German. On this new model of public management,
which the citizen participation is increasingly enlarged, the Public Administration becomes
the scenario in which the several public interests, own the pluriclasse State, are exposed in the
search of consensuality. This is how the administrative act, before the center of the
Administrative Law, gives way to the administrative procedure, instrument more adequate to
the search of consensuality. Rejected, then, the assertion of the superiority of the
administrative activity, with the change of the citizen perspective in Administrative Law, it is
identified the public interests with the realization of fundamental rights, not only defending
them, but, especially on its positive aspects, materializes itself in instalment rights.
Key-words: Principle of the supremacy of the public interest over private. Administrative
activity. Public interest. Fundamental Rights and Guarantees. Constitutional Rule of Law.
Administrative Procedure. State Pluriclasse.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................
17
2 SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO .............
2.1 Supremacia do interesse público sobre o privado: um princípio ou um
postulado? ..........................................................................................................
2.2 Supremacia do interesse público sobre o privado: de sua origem histórica
no séc. XIX até o florescimento no Estado Social de Direito .....................
2.3 Supremacia do interesse público sobre o privado: uma concepção atual ....
2.3.1 Teorias desconstrutivistas da supremacia do interesse público sobre o
privado ............................................................................................................
2.3.2 Teorias reconstrutivistas da supremacia do interesse público sobre o
privado ............................................................................................................
23
3. O QUE É ESSE “TAL” INTERESSE PÚBLICO? ..........................................
3.1 Origem da ideia de bem comum: da Antiguidade clássica ao Estado
Constitucional de Direito .........................................................................
3.2 Distinção entre interesse público primário e interesse público secundário
3.3 Interesse público como objeto de estudo do Direito Administrativo: a
busca por um conceito constitucionalizado ...................................................
25
34
40
42
45
49
49
57
60
4 SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO: POR
UMA
RELEITURA
A
PARTIR
DE
UMA
EXEGESE
CONSTITUCIONAL DO CONCEITO DE “INTERESSES PÚBLICOS” ... 73
5 CONCLUSÃO ............................................................................................
87
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 89
17
1 INTRODUÇÃO
A presente pesquisa, realizada junto ao Programa de Pós-Graduação strictu sensu em
Direito – Mestrado – da Universidade FUMEC para a obtenção do título de mestre em direito,
vinculada à Área de Concentração “Instituições sociais, Direito e Democracia” e desenvolvida
na Linha de Pesquisa “Esfera Pública, legitimidade e controle”, tem por tema o estudo do
conceito de “interesses públicos” a legitimar uma exegese constitucional do instituto da
supremacia do interesse público sobre o privado.
Importante esclarecer, de antemão, a opção pela expressão “interesses públicos” no
plural, em detrimento de sua versão singular. Durante a maior parte do trabalho, a expressão
“interesse público” foi usada no singular. Assim é referido no primeiro capítulo, quando se
discute a supremacia do interesse público sobre o privado, sua origem histórica e sua
concepção atual; bem como no segundo capítulo, onde o interesse público é abordado.
Todavia, no final do segundo capítulo (item 3.3) e em todo o terceiro capítulo, toma forma a
versão plural da expressão: “interesses públicos”. Isso se deve ao fato da sociedade
contemporânea mostrar-se pluralizada, revelando uma multiplicidade de interesses igualmente
públicos, os quais devem ser levados em consideração pela Administração Pública em suas
mais diversas atividades. É esta a razão de se acreditar na melhor adequação da expressão
“interesses públicos”.
Passada essa breve explicação, ressalte-se que a delimitação do tema 1 , tem, como
ponto de partida, a tradicional visão doutrinária e jurisprudencial da supremacia do interesse
público sobre o privado como um dos pilares do Direito Administrativo, que tem buscado, ao
longo dos anos, oferecer resposta à permanente tensão que se desenvolve entre esses dois
interesses.
Para tanto, a pesquisa busca substrato teórico tanto no Direito Constitucional quanto
no Direito Administrativo, ambos ramos do que se convencionou chamar Direito Público.
O estudo desse tema, sempre atual, deve sua importância ao fato de que, na atualidade,
há uma parcela da doutrina que não encontra fundamento de validade no ordenamento
jurídico brasileiro, sobretudo após a Constituição da República de 1988, para a supremacia do
1
Esse tema foi parcialmente abordado em artigos anteriores, apresentados no XXIV Encontro Nacional do
Conpedi – UFS:
“A posição jurídica do cidadão no Direito Administrativo a partir de meados do século XX: de objeto do
direito para sujeito de direito”
“O princípio da supremacia do interesse público sobre o privado: uma reflexão à luz do Estado Constitucional
de Direito” – este escrito em conjunto com o Professor Doutor Érico Andrade.
Em ambos os ensaios, foram mostrados os primeiros passos no estudo do tema proposto a esta dissertação
dentro da academia.
18
interesse público sobre o privado, apontando como argumento para sua crítica a
impossibilidade de restrição dos direitos fundamentais por um discurso de implementação de
interesses coletivos.
Todavia, outra parcela da doutrina defende que entender o interesse público, a
prioristicamente, como superior ao interesse privado não vai de encontro às normas
constitucionais e, muito menos, implica na inferiorização dos direitos fundamentais, eis que a
busca do bem estar coletivo a delimitar o interesse público passa pela exigência à observância
dos valores constitucionalmente definidos.
Assim, diante da grande divergência a respeito da aplicabilidade constitucional da
Supremacia do Interesse Público sobre o Privado, bem como da necessidade de se definir o
que seriam esses “interesses públicos” superiores aos privados, mostra-se de grande
relevância temática a pesquisa científica ora empreendida.
Não se poderia deixar de mencionar, ainda, a importância de se revisitar um dos
pilares do Direito Administrativo e sua interpretação constitucional, o que, sem dúvida, será
de grande contribuição para a comunidade acadêmica, além de representar importante
instrumento para norteamento do atuar administrativo.
Por isso, a pergunta que orienta a pesquisa é: a supremacia do interesse público sobre
o privado é instituto do Direito Administrativo que ainda subsiste, mesmo com a forte
influência do Direito Constitucional, no paradigma do Estado Constitucional de Direito?
A resposta a esta indagação tem por hipótese inicial a afirmação de que uma exegese
constitucionalizada do conceito de “interesses públicos”, como elemento estrutural do regime
jurídico administrativo e finalidade a ser alcançada pelo Poder Público, é fundamental à
aplicabilidade da supremacia do interesse público sobre o privado no Estado Constitucional
de Direito.
Para o estudo da questão proposta, a pesquisa parte da ideia de que a atividade
administrativa deve estar pautada por todo o bloco de legalidade que constitui nosso
ordenamento jurídico, sobretudo a Constituição da República de 1988, que deslocou o núcleo
central da ordem normativa para a dignidade humana e para os direitos fundamentais.
Portanto, a pesquisa traz como objetivo geral compreender a assimilação da
supremacia do interesse público sobre o privado pelo Estado Constitucional de Direito.
Referido objetivo é pormenorizado nos seguintes objetivos específicos:
1. Estudar a evolução da noção de supremacia do interesse público sobre o privado,
sua origem histórica e sua concepção como um dos pilares do Direito Administrativo;
19
2. Discutir o enquadramento da supremacia do interesse público sobre o privado no
conceito de princípios, em confronto com o que se entende por postulados;
3. Analisar o conceito de “interesses públicos” como elemento estrutural do regime
jurídico administrativo;
4. Discutir a possibilidade de identificar os interesses públicos com a realização dos
direitos fundamentais;
5. Propor uma releitura para referido princípio, a partir de uma concepção
constitucionalizada de “interesses públicos”.
A presente pesquisa, que abrange dois ramos do Direito – Direito Constitucional e
Direito Administrativo – se vale das vertentes jurídico-teórico e jurídico-dogmático para
enfrentamento do tema proposto, com vistas, num primeiro momento, à compreensão de
aspectos conceituais, ideológicos e doutrinários relacionados à supremacia do interesse
público sobre o privado, e, num segundo momento, à investigação de sua interpretação
constitucional.
Para tanto, utiliza-se o raciocínio hipotético-dedutivo para investigação da
constitucionalidade da supremacia do interesse público sobre o privado, numa pesquisa
histórico-jurídica (evolução histórica do instituto no Direito Administrativo), descritiva /
compreensiva (decomposição de seus diversos aspectos jurídicos) e propositiva (na busca pela
reconstrução de referido instituto no paradigma do Estado Constitucional).
O trabalho está construído em três capítulos.
No primeiro capítulo, é abordado o enquadramento da supremacia do interesse público
sobre o privado no conceito de postulado, pois, embora denominado de princípio, tanto pela
doutrina, quanto pela jurisprudência, é axioma, em torno do qual se desenhou o Direito
Administrativo como ramo jurídico autônomo, empregado, ora como ferramenta justificadora
dos atos administrativos, ora como preceito interpretativo de outras normas de Direito
Público. Essa a razão de se evitar, durante toda a elaboração textual, o uso do termo
“princípio” para denominar a supremacia do interesse público sobre o privado.
É nele, também, que se discute a origem histórica do instituto da supremacia do
interesse público sobre o privado, desde século XIX até o seu florescimento no Estado Social
de Direito. Embora não seja consenso na doutrina administrativista, pois há quem a remeta ao
“bem comum” identificado já na Antiguidade Clássica, a noção de supremacia do interesse
público sobre o privado, conforme a conhecemos na atualidade, só pode ser apreendida diante
de um Direito Administrativo em construção, no fim do Séc. XVIII e início do Séc. XIX,
quando a autoridade do Estado era o viés central do regime jurídico administrativo.
20
Aborda-se, ainda, nesse primeiro capítulo, uma evolução da concepção de supremacia
do interesse público sobre o privado, desde uma visão tradicional até o que a doutrina atual
tem defendido. Nesse tópico são mostradas as duas vertentes doutrinárias que buscam
compreender o instituto: (i) as teorias desconstrutivistas e (ii) as teorias reconstrutivista.
Aqueles que censuram a adequação da supremacia do interesse público sobre o
privado, e, por isso, pregam a desconstrução do paradigma tradicional do regime jurídico
administrativo, em prol de um paradigma emergente, concentram suas críticas na
indeterminação de seu conceito, nos desvios que resultaram seu emprego ao longo da história,
na ausência de fundamento de sua validade no ordenamento jurídico brasileiro, na
impossibilidade de limitação aos direitos fundamentais, na incompatibilidade com o princípio
da proporcionalidade.
Por outro lado, os que defendem a reconstrução do instituto, com base numa
constitucionalização do regime jurídico administrativo, entendem que uma supremacia a
prioristicamente dos interesses públicos, em detrimento dos privados, não vai de encontro às
normas constitucionais, e nem, ao menos, representam um desprestígio aos direitos
fundamentais. Para estes, defender a inaplicabilidade do princípio da supremacia do interesse
público sobre o privado, ao invés de uma Administração Pública democratizada, representaria
uma inversão de posição com a supremacia do interesse privado, o que, a toda evidência, não
estaria afinado ao sistema constitucional.
A indagação que dá rumo ao segundo capítulo é: o que é esse “tal” interesse público?
Para respondê-la, a ideia de bem comum, como raiz histórica do interesse público, é analisada
desde a Antiguidade Clássica, passando pela noção de “vontade geral” de ROUSSEAU, até o
Estado Constitucional de Direito. É abordada, ainda, a distinção alessiana de interesse
público: primário e secundário, para, em seguida, pensar o interesse público como objeto de
estudo do Direito Administrativo, na a busca por um conceito constitucionalizado.
No capítulo terceiro, finalmente, é proposta a releitura da supremacia do interesse
público sobre o privado, a partir de uma exegese constitucional do conceito de “interesses
públicos”.
A atuação consensual da Administração Pública é investigada e, para isso, a assunção
do procedimento administrativo como novo centro do Direito Administrativo, instrumento
adequado à participação do cidadão na condução dos negócios públicos. O procedimento
administrativo, e a consequente participação democrática, é visto como condicionante de
legitimidade da atividade administrativa de concretização do interesse público e, também,
forma de assegurar a garantia dos direitos do cidadão.
21
A ideia de supremacia do interesse público sobre o privado é defendida, então, como
instrumento de que dispõe o Estado para, enquanto administrador da res publica, promover e
efetivar os direitos fundamentais, relegando ao passado autoritário as escolhas baseadas na
mera superioridade da vontade estatal, para buscar nas relações jurídicas democráticas o
verdadeiro interesse público a ser concretizado pela Administração Pública.
É essencial lembrar que as limitações próprias da pesquisa acadêmica não permitem
que seja esgotada a análise de todas as questões envolvendo a supremacia do interesse
público, mesmo porque o objetivo central foi compreender a atual concepção do instituto no
âmbito do Estado Constitucional de Direito. Muita coisa ainda estar por vir, muitas questões
ainda precisam ser discutidas pela comunidade acadêmica, de modo a enriquecer, cada vez
mais, o conteúdo doutrinário a respeito da conceituação constitucionalizada da expressão
“interesse público” inserida no enunciado do instituto ora estudado – supremacia do interesse
público sobre o privado.
23
2 SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO
Tradicionalmente, a supremacia do interesse público sobre o privado, juntamente com
o princípio da indisponibilidade do interesse público, foi o alicerce de edificação do regime
jurídico administrativo2, amplamente aceito por nossa doutrina, quase que sem crítica alguma
até recentemente, quando a forte influência do Direito Constitucional sobre o Administrativo,
trouxe um novo paradigma de reflexão de suas bases teóricas3.
Ainda hoje, o Direito Administrativo tem, na supremacia do interesse público sobre o
privado, uma ferramenta justificadora do regime de prerrogativas e sujeições, a que estão
inseridos Administração e administrado – uma fórmula legitimadora de todos os atos estatais4.
José Sérgio da Silva CRISTÓVAM (2014), fazendo uso da lição de Hely Lopes
Meirelles, afirma que a “noção-chave” da teoria da supremacia, no paradigma tradicional5, é a
“desigualdade jurídico-política entre o Estado e os cidadãos”:
2
O regime de direito público resulta da caracterização normativa de determinados interesses como pertinentes à
sociedade e não aos particulares considerados em sua individuada singularidade.
Juridicamente esta caracterização consiste no Direito Administrativo, segundo nosso modo de ver, na
atribuição de uma disciplina normativa peculiar que, fundamentalmente, se delineia em função da consagração
de dois princípios:
a) supremacia do interesse público sobre o privado;
b) indisponibilidade, pela Administração, dos interesses públicos. (BANDEIRA DE MELLO, 2011, p. 55)
3
CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. O conceito de interesse Público no Estado Constitucional de Direito: o
novo regime jurídico administrativo e seus princípios constitucionais estruturantes. 2014. 379 f. Tese
(Doutorado em Direito) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. 2014
4
Para certos intelectuais brasileiros mais antigos o direito administrativo tinha é que assegurar poderes ao
Estado. Para outros, que vieram depois, o que o direito administrativo devia era garanti supremacia ao
interesse público, mas sem violar direitos dos administrados. Para outros mais recentes, o importante é o
direito administrativo servir aos direitos fundamentais.
[...]
Uma descrição honesta do estágio atual do direito administrativo brasileiro tem de reconhecer que nenhum dos
três discursos – o dos poderes da Administração, o dos interesses públicos e o dos direitos fundamentais – pode
ser considerado vencedor. (SUNDFELD, 2014, pp. 121/123)
5
Necessário esclarecer que o termo “paradigma” é aqui empregado de acordo com o significado apreendido a
partir da obra de KUHN – “As estruturas das Revoluções Científicas”, malgrado referido trabalho não faça
referência expressa sobre a possibilidade de sua aplicação às ciências sociais.
Para KUHN (2013, p. 115) os paradigmas são revelados por intermédio da “investigação histórica cuidadosa
de uma determinada especialidade num determinado momento”, quando é revelado “um conjunto de
ilustrações recorrentes e quase padronizadas de diferentes teorias nas suas aplicações conceituais,
instrumentais e na observação”.
Todavia, durante o estudo científico, “fenômenos novos e insuspeitados são periodicamente descobertos pela
pesquisa científica” (KUHN, 2013, 127), chamados por Kuhn de anomalias, o que provoca uma crise no
paradigma anteriormente afirmado:
“Quanto maiores forem a precisão e o alcance de um paradigma, tanto mais sensível este será como indicador
de anomalias e, consequentemente, de uma ocasião para a mudança de paradigma. (...) Ao assegurar que o
paradigma não será facilmente abandonado, a resistência garante que os cientistas não serão perturbados sem
razão. Garante ainda que as anomalias que conduzem a uma mudança de paradigma afetarão profundamente os
conhecimentos existentes. O próprio fato de que, frequentemente, uma novidade científica significativa emerge
simultaneamente em vários laboratórios é um índice da natureza fortemente tradicional da ciência normal, bem
como da forma completa com a qual essa atividade tradicional prepara o caminho para sua própria
mudança”(KUHN, 2013, p. 143)
24
A noção-chave da teoria da supremacia do interesse público pode ser superada
naquela originária concepção de desequilíbrio e desigualdade jurídico-política entre
o Estado e os cidadãos, justificada a partir da prevalência do interesse geral
(público) sobre as aspirações individuais (privadas). Por isso, o aparato estatal
deveria estar ungido por um regime de prerrogativas e sujeições necessários à fiel
consecução das suas finalidades.
Nesse sentido, assim parecia ser o pensamento de Hely Lopes MEIRELLES, para
quem a tônica daquela desigualdade originária entre o Estado e os administrados (na
conhecida linguagem do autor) estaria assentada na “supremacia do Poder Público
sobre os cidadãos, dada a prevalência dos interesses coletivos sobre os individuais”.
(CRISTÓVAM, 2014, p. 126)
Para Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO (2011, p. 70), em sua clássica
definição:
Trata-se de verdadeiro axioma reconhecível no moderno Direito Público. Proclama a
superioridade do interesse da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o
particular, como condição até mesmo, da sobrevivência e asseguramento deste
último. É pressuposto de uma ordem social estável, em que todos e cada um possam
sentir-se garantidos e resguardados.
(...)
A posição de supremacia, extremamente importante, é muitas vezes
metaforicamente expressa através da afirmação de que vigora a verticalidade nas
relações entre Administração e particulares; ao contrário da horizontalidade, típica
das relações entre estes últimos.
Significa que o Poder Público se encontra em situação de autoridade, de comando,
relativamente aos particulares, como indispensável condição para gerir os interesses
públicos postos em confronto. Compreende, em face da sua desigualdade, a
possibilidade, em favor da Administração de constituir os privados em obrigações
por meio de ato unilateral daquela. Implica, outrossim, muitas vezes, o direito de
modificar, também unilateralmente, relações já estabelecidas. (BANDEIRA DE
MELLO, 2011, pp. 70/71)
Hely Lopes MEIRELLES (2014), já na década de 1960, ao defender que o Direito
Administrativo deveria assegurar poderes à Administração Pública, introduz a noção de
desigualdade entre interesses privados e públicos e, com isso, abre o caminho para que a
doutrina brasileira assente entendimento de que esses seriam superiores àqueles:
(...) “na interpretação do direito administrativo, também devemos considerar,
necessariamente, três pressupostos: (1º) a desigualdade jurídica entre a
Administração e os administrados; (2º) a presunção de legitimidade dos atos da
Administração; (3º) a necessidade de poderes discricionários para a Administração
atender ao interesse público. (MEIRELLES, 2014, p. 50)
Por sua vez, Maria Sylvia Zanella DI PIETRO (2004, p. 66) afirma que “as normas de
direito público, embora protejam reflexamente o direito individual, têm o objetivo primordial
de atender ao interesse público, ao bem-estar coletivo”, erigindo a supremacia do interesse
público sobre o privado ao status de “princípio que hoje serve de fundamento para todo o
direito público e que vincula a Administração em todas as suas decisões”:
Se a lei dá à Administração os poderes de desapropriar, de requisitar, de policiar, de
punir, é porque tem em vista atender ao interesse geral, que não pode ceder diante
do interesse individual. (DI PIETRO, 2004, p. 70)
25
Importante, então, compreender “a tradução jurídica” da supremacia do interesse
público sobre o privado, sobretudo porque o Direito Administrativo tem seus contornos
delineados pelo binômio “prerrogativas da Administração” e “direito dos administrados”
(BANDEIRA DE MELLO, 2011, p. 57).
Para isso, e como forma de estabelecer as bases teóricas desta pesquisa científica, é
preciso, responder a uma primeira indagação: tratar-se-ia a supremacia do interesse público
sobre o privado de um princípio ou de um postulado6.
2.1 Supremacia do interesse público sobre o privado: um princípio ou um postulado?
Para responder a este questionamento, socorre-se da clássica obra de Humberto
ÁVILA (2008) – “Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos”,
que traz importante ensinamento, sobretudo em seu capítulo terceiro quando trata dos
postulados normativos.
Não é despiciendo lembrar, inicialmente, a distinção entre regras e princípios, para,
num segundo momento, tratar de princípios e postulados.
A ideia de princípio, na ciência jurídica, tinha “conotação essencialmente abstrata”
“com uma normatividade questionável e duvidosa”, quando prevalecia a “corrente
jusnaturalista” (CARVALHO, 2008, p. 26).
Com o juspositivismo, “os princípios definiram-se como ideias básicas e centrais que
serviam como fonte de inspiração dos operadores do direito, funcionando como alicerce das
normas subsequentes”:
Como meras linhas diretoras de conduta, teriam a função de orientar a interpretação
do ordenamento, sem que a eles próprios, necessariamente, e independentemente de
qualquer outra norma, fosse reconhecida força coercitiva. Consistiria um princípio
em fonte normativa subsidiária, com o objetivo de impedir um vazio normativo,
mantida sua condição de mera pauta programática, carente de normatividade direta.
(CARVALHO, 2008, p. 26)
Entretanto, foi somente com o pós-positivismo, que “passou-se a reconhecer (...) que
existiriam princípios de caráter não apenas pragmáticos, ou seja, princípios que, a despeito do
menor grau de determinação do comando, não se limitariam a estabelecer valores ou fins a
serem perseguidos” (CARVALHO, 2008, p. 28), a saber:
Destes resultariam diretamente direitos subjetivos. Os princípios deixam, assim, de
ser normas que se limitam a ser instrumento de conservação do status quo e passam
a funcionar ativamente, como veículo de transformação social, política e econômica.
6
Oportuno esclarecer que não se tem, aqui, a pretensão de esgotar a discussão a respeito da distinção entre
princípios e postulados. Busca-se, apenas, estabelecer uma das premissas teóricas sob a qual foi assentada essa
pesquisa.
26
Não mais se lhes atribui o caráter exclusivamente informativo. Ao contrário,
reconhece-se a possibilidade de a sua proposição incidir na realidade de modo
direito, sem a necessidade da intermediação de qualquer outra norma para que se
reconheça direito subjetivo em favor de terceiros. Os princípios, deste modo, podem
ser utilizados como fontes materiais ou formais, como elementos de interpretação ou
integração do direito, caracterizando-se como normas jurídicas de aplicação
obrigatória aptas a incidirem sobre determinados casos concretos, regulando-os
diretamente.
Tal mudança de paradigma tornou-se possível em razão do entendimento de que o
positivismo se mostra insuficiente para responder algumas questões fundamentais do
Direito atual, sendo necessária uma concepção menos formalista da ciência jurídica.
[...]
Neste contexto, “sobreveio a ascensão dos princípios, cuja carga axiológica e
dimensão ética conquistaram, finalmente, eficácia jurídica e aplicabilidade direta e
imediata. Princípios e regras passam a desfrutar do mesmo status de norma jurídica,
sem embargo de serem distintos no conteúdo, na estrutura normativa e na aplicação,
como elucida Luiz Roberto Barroso. (CARVALHO, 2008, p. 28)
O pós-positivismo surge, então, como resposta à crítica ao juspositivismo no contexto
do pós-guerra (2ª Guerra Mundial), quando passou a se buscar novas concepções jurídicas que
garantissem a segurança jurídica, mas que, ao mesmo tempo, fossem capazes de dar um
caráter mais humanitário e justo ao Direito.
Assim, conforme ensina LACOMBE (2003), o pós-positivismo foi movimento de
reação ao legalismo que se abriu em duas vertentes: (i) autores que buscaram na moral um
rompimento com o ordenamento jurídico positivo e (ii) aqueles que adotaram o pragmatismo
para avançar os limites do legalismo estrito, a saber:
O pós-positivismo, como movimento de reação do legalismo, abre-se, na realidade,
a duas vertentes. Uma delas é desenvolvida por autores que buscam na moral uma
ordem valorativa capaz de romper os limites impostos pelo ordenamento jurídico
positivo, honrando o compromisso maior que o direito tem na justiça. Suas
insuficiências seriam resolvidas mediante recurso aos valores que, apesar de
circunscritos socialmente, pretendem alcançar uma pretensão universal. Tais
iniciativas amparam-se fundamentalmente, na argumentação capaz de legitimar as
posições assumidas pelo intérprete, assim como na idoneidade dos mecanismos que
se fazem necessários. Poderíamos indicar aqui os nomes de Chaim Perelman,
Ronald Dworkin, Jurgen Habermas e Robert Alexy, ainda que uns assumam uma
postura mais analítica (Alexy) do que outros (Dworkin). Em outra banda
encontramos os autores que abraçam o pragmatismo, como é o caso de Friedrich
Muller, Peter Harbele e Castanheira Neves, cujas teorias fundamentam-se antes na
realidade do(s) intérprete(s) e nas suas condições de concretude da norma jurídica,
do que numa ordem de valores. (LACOMBE, 2003, pp. 135/136)
Na lição de Gregório Assagra de ALMEIDA (2008, p. 494), “a problemática relação
entre o direito e os valores morais tradicionais é questão permanente na história da filosofia
jurídica”, a saber:
A problemática relação entre o direito e os valores morais tradicionais é questão
permanente na historia da filosofia jurídica. A rigor, desde a filosofia grega até o fim
da Idade Media, é inquestionável a relação de dependência do direito em relação à
eticidade da comunidade. Toda a tradição da filosofia moral e jurídica da
Antiguidade e da Idade Media recorre aos valores éticos da comunidade para
justificar a legitimidade do direito. Assim, essa tradição adota um conceito forte de
virtude, necessário para se estabelecer a diferenciação entre os bons cidadãos da
27
polis, portadores do caráter moral necessário para manter a existência pacífica e
gloriosa da vida social, e os maus cidadãos, não-virtuosos, cuja simples existência é
danosa à vida coletiva. Essa é a mensagem da república platônica: a vida coletiva
deve ter como objetivo educar todos os cidadãos para viverem de acordo com as
virtudes (temperança, coragem e sabedoria) necessárias para melhor cumprir o valor
moral supremo da cidade: a realização da Ideia de Bem.
[...]
Nesse contexto, o direito deve refletir os valores éticos compartilhados pela
comunidade política, tendo por função garantir a mediação dos conflitos sociais a
partir dos valores derivados da ética compartilhada por toda a comunidade politica.
É necessário garantir a permanência dos laços orgânicos de sustentação da vida
comunitária, a partir do compartilhamento dos valores fundamentais por todos os
membros do corpo social. Para assegurar a unidade social, torna-se imperativo o uso
da coerção para impedir a possibilidade de dissenso daqueles que, por qualquer
razão, deixam de partilhar os valores da vida ética de sua comunidade. (ALMEIDA,
2008, pp. 494/495)
É por isso que se faz imperiosa a diferenciação entre princípios e valores, para, em
seguida, distingui-los das regras.
Para Robert ALEXY (2008, p. 144), princípios e valores estão intimamente
relacionados quando se verifica, de um lado, que “é possível falar tanto de uma colisão e de
um sopesamento entre princípios quanto de uma colisão e de um sopesamento entre valores”,
e de outro, que “a realização gradual dos princípios corresponde à realização gradual dos
valores”.
Entretanto, malgrado reconheça a semelhança entre princípio e valor, Robert ALEXY
(2008, p. 146) afirma que referidos institutos não podem ser confundidos, pois enquanto os
princípios são mandamentos de otimização e, portanto, pertencem ao campo dos conceitos
deontológicos, os valores somente são compreendidos no âmbito axiológico.
Assim se expressa Robert ALEXY ao apontar as diferenças entre princípios e valores:
A despeito dessas visíveis semelhanças, há uma diferença importantíssima entre
valor e princípio, que pode ser melhor compreendida com base na divisão dos
conceitos práticos proposta por von Wright.
Segundo ele, os conceitos práticos dividem-se em três grupos: os deontológicos, os
axiológicos e os antropológicos. Exemplos de conceitos deontológicos são os
conceitos de dever, proibição, permissão e de direito a algo. Comum a esses
conceitos, como será demonstrado mais adiante, é o fato de que podem ser reduzidos
a um conceito deôntico básico, que é o conceito de dever ou de dever-ser. Já os
conceitos axiológicos são caracterizados pelo fato de que seu conceito básico não é
o de dever ou de dever-ser, mas o conceito de bom. A diversidade de conceitos
axiológicos decorre da diversidade de critérios por meio dos quais algo pode ser
qualificado como bom. Assim, conceitos axiológicos são utilizados quando algo é
classificado como bonito, corajoso, seguro, econômico, democrático, social, liberal
ou compatível com o Estado de Direito. Exemplos de conceitos antropológicos, por
fim, são os conceitos de vontade, interesse, necessidade, decisão e ação. [...]
Se se aceita a tripartição aqui esboçada, fica fácil perceber a diferença decisiva entre
o conceito de princípio e o conceito de valor. Princípios são mandamentos de um
determinado tipo, a saber, mandamentos de otimização. Como mandamentos,
pertencem a eles o âmbito deontológico. Valores, por sua vez, fazem parte do nível
axiológico. (ALEXY, 2008, pp. 145/146)
28
Cediço que tanto as regras quanto os princípios são normas, por trazerem conteúdo de
dever, permissão e de proibição, sendo certo que “a distinção entre regras e princípios é,
portanto, uma distinção entre duas espécies de normas” (ALEXY, 2008, p. 87).
Segundo Robert ALEXY (2008, p. 87), o principal critério de diferenciação entre
essas duas espécies de normas é a generalidade, já que os princípios “são normas com grau de
generalidade relativamente alto, enquanto que o grau de generalidade das regras é
relativamente baixo”.
Constituem, também, critérios de distinção, a forma de surgimento da norma, ou,
ainda, o fato de serem normas de argumentação ou normas de comportamento (ALEXY,
2008).
Por isso, Robert ALEXY (2008, p. 90) defende que “o ponto decisivo na distinção
entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na
maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes”. São, portanto,
“mandamentos de otimização” e, por isso, “são caracterizados por poderem ser satisfeitos em
graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das
possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas”, estas determinadas “pelos
princípios e regras colidentes”.
Assim continua Robert ALEXY:
Princípios exigem que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das
possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Nesse sentido, eles não contêm um
mandamento definitivo, mas apenas prima facie. Da relevância de um princípio em
um determinado caso não decorre que o resultado seja aquilo que o princípio exige
para esse caso. Princípios representam razões que podem ser afastadas por razões
antagônicas. A forma pela qual deve ser determinada a relação entre razão e
contrarrazão não é algo determinado pelo próprio princípio. Os princípios, portanto,
não dispõem da extensão de seu conteúdo em face dos princípios colidentes e das
possibilidades fáticas. (ALEXY, 2008, pp. 103/104)
Então, a principal característica dos princípios, como “mandamentos de otimização”
que são, é poderem ser satisfeitos em graus variados, de acordo com o caso concreto
analisado, tendo como limitação jurídica justamente a colisão com outros princípios ou com
regras.
As regras, por seu lado, “são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas”,
na exata forma do que por ela é exigido, nem mais nem menos (ALEXY, 2008, p. 91):
O caso das regras é totalmente diverso. Como as regras exigem que seja feito
exatamente aquilo que elas ordenam, elas têm uma determinação da extensão de seu
conteúdo no âmbito das possibilidades jurídicas e fáticas. Essa determinação pode
falhar diante de impossibilidades jurídicas e fáticas; mas, se isso não ocorrer, então,
vale definitivamente aquilo que a regra prescreve (ALEXY, 2008, p. 104).
29
Ronald DWORKIN (2010), por sua vez, diz que as regras são aplicadas seguindo a
lógica do tudo ou nada, enquanto os princípios possuem uma dimensão de peso ou de
importância:
A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois
conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação em
circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que
oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo ou nada. Dados os fatos que
uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece
deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão.
[...]
Mas não é assim que funcionam os princípios ... [...]
[...] Os princípios possuem uma dimensão que as regras não tem – a dimensão do
peso ou importância. Quando os princípios se intercruzam [...], aquele que vai
resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um. (DWORKIN,
2010, pp. 39/42)
Robert ALEXY (2008) sustenta, ainda, que a diferença entre essas duas espécies de
normas fica mais clara nos casos de colisões entre princípios e de conflitos entre regras. Para
referido autor, “um conflito entre regras somente pode ser solucionado se se introduz, em uma
das regras, uma cláusula de exceção que elimine o conflito, ou se pelo menos uma das regras
for declarada inválida” (ALEXY, 2008, p. 92). Todavia, na colisão entre princípios, um deles
deverá ceder, sem, contudo, ser considerado inválido, pois, “o que ocorre é que um dos
princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições”, já que, “nos casos
concretos, os princípios têm pesos diferentes” (ALEXY, 2008, pp. 93/94).
Pode-se resumir, assim, com escólio no magistério de Humberto ÁVILA (2008) que
regras:
(...) são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com
pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação
da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos
princípios que lhe são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual
da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos. (ÁVILA, 2005, p. 70)
Enquanto que os princípios:
(...) são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com
pretensão de complementariedade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda
uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos
decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção. (ÁVILA, 2005, p.
70)
Os postulados, por sua vez, segundo Humberto ÁVILA (2008), são espécie de norma
distinta de princípios e regras e que, por isso, impossível de serem enquadrados na definição
destas, num modelo tradicionalista.
Humberto ÁVILA (2008, p. 122) expõe que os postulados situam-se num “metanível”,
acima daquele em que topograficamente se localizam as regras e os princípios, e têm a missão
de orientar a aplicação daqueles, estabelecendo as diretrizes pelas quais o intérprete se guiará
30
no exercício da exegese normativa. São, portanto, normas de comando aplicativo,
“imediatamente metódicas que instituem os critérios de aplicação de outras normas situadas
no plano do objeto da aplicação”, isto é, “normas sobre a aplicação de outras normas”.
Referido autor sustenta que: (i) se as regras demandam um comportamento do
intérprete, segundo o qual aplicam-se sob a ótica do tudo ou nada, isto é, na exata extensão do
seu mandamento e, diante de uma antinomia, a solução do conflito passa pela exclusão de
uma delas em detrimento da outra; (ii) e, por outro lado, se os princípios são “mandamentos
de otimização”, segundo o qual o dever ideal estabelecido pode ser implementado em
diversos graus a depender do caso concreto apreciado; para os postulados haveria de se
atentar para definição diversa, pois não estariam confortáveis dentro desta noção de
princípios, seja por não trazerem em si um dever ideal de conduta, ou mesmo porque seu
conteúdo não estaria à disposição do aplicador para adequação circunstancial, e, muito menos,
se encaixariam no limitado conceito de regras. Veja-se, nas palavras do autor:
Os postulados funcionam diferentemente dos princípios e das regras. A uma, porque
não se situam no mesmo nível: os princípios e as regras são normas objeto da
aplicação; os postulados são normas que orientam a aplicação de outras. A duas,
porque não possuem os mesmos destinatários: os princípios e as regras são
primariamente dirigidos ao Poder Público e aos contribuintes; os postulados são
frontalmente dirigidos ao intérprete e aplicador do Direito. A três, porque não se
relacionam da mesma forma com outras normas: os princípios e as regras, até
porque se situam no mesmo nível do objeto, implicam-se reciprocamente, quer de
modo preliminar complementar (princípios), que de moto preliminarmente decisivo
(regras); os postulados, justamente porque se situam num metanível, orientam a
aplicação dos princípios e das regras sem conflituosidade necessária com outras
normas.
Os postulados não se enquadram na definição nem de regras nem de princípios
segundo o modelo tradicional. Se as regras forem definidas como normas que
descrevem um comportamento a ser observado (ou reservam parcela de poder,
instituem procedimentos ou estabelecem definições, sempre sendo cumpridos por
meio de comportamentos), devendo ser cumpridas de modo integral e, no caso de
conflito, podendo ser excluídas do ordenamento jurídico se houver uma outra regra
antinômica, os postulados não são regras: eles não descrevem um comportamento
(nem reservam poder, instituem procedimento ou estabelecem definições), não são
cumpridos de modo integral e, muito menos, podem ser excluídos do ordenamento
jurídico. Em vez disso, estabelecem diretrizes metódicas, em tudo e por tudo
exigindo uma aplicação mais complexa que uma operação inicial ou final de
subsunção. Se os princípios forem definidos como normas que estabelecem um
dever-ser ideal, que podem ser cumpridas em vários graus e, no caso de conflito,
podem ter uma dimensão de peso maior ou menor, os postulados não são princípios:
eles não estabelecem um dever-ser ideal, não são cumpridos de maneira gradual e,
muito menos, possuem peso móvel e circunstancial. Em vez disso, estabelecem
diretrizes metódicas, com aplicação estruturante e constante relativamente a outras
variáveis.
Seja qual for a denominação preferida, os postulados funcionam de forma diferente
relativamente a outras normas do ordenamento jurídico. Esta razão é suficiente para
tratá-los de forma separada. Sua função e seu conteúdo serão melhor evidenciados.
Embora a sua denominação seja secundária, a exigência científica de
compatibilidade sintática não abona a sua denominação como princípio, se o autor
define princípio como normas imediatamente finalísticas, como normas de
otimização a serem realizadas em graus segundo as possibilidades fáticas e
31
normativas ou como normas fundamentais com elevado grau de abstração e
generalidade. Nessas hipóteses, o problema não é de nomenclatura, é de
inconsistência científica. Especialmente porque os postulados não são normas
imediatamente finalísticas, mas metódicas; não são normas realizáveis em vários
graus, mas estruturam a aplicação de outras normas com rígida racionalidade, e não
são normas com elevado grau de abstração e generalidade, mas normas que
fornecem critérios bastante precisos para a aplicação do Direito. (ÁVILA, 2008, pp.
122/123)
Para Humberto ÁVILA (2008), os postulados também não se confundem com os
chamados sobreprincípios, já que estes estão no mesmo nível de aplicação normativa e,
malgrado tenham influência na interpretação das regras e princípios, somente orientam seu
conteúdo semântico e axiológico, ficando alheio ao campo metódico, este lugar próprio dos
postulados:
Isso porque esses sobreprincípios situam-se no próprio nível das normas que são
objeto de aplicação, e não no nível das normas que estruturam a aplicação de outras.
Além disso, os sobreprincípios funcionam como fundamento, formal e material, para
a instituição e atribuição de sentido às normas hierarquicamente inferiores, ao passo
que os postulados normativos funcionam como estrutura para aplicação de outras
normas. (ÁVILA, p. 135)
Oportuno lembrar, mais uma vez sob o escólio de Humberto ÁVILA (2008, p. 137),
sem embargo daqueles que preferem utilizar o termo “princípio” para designar também o que
ora denomina-se “postulados”7, a importância da utilização da nomenclatura própria para cada
uma das espécies de normas – regras, princípios e postulados – diante das hipóteses próprias a
que cada uma delas se refere. Todavia, embora cada uma dessas espécies normativas
mereçam “uma caracterização à parte e, por consequência, também uma denominação
distinta”, “a denominação é secundária”, pois o “decisivo é constatar e fundamentar sua
diferente operacionalidade”.
Voltando-se ao questionamento inicial deste tópico, de acordo com todas estas
considerações, seria, a supremacia do interesse público sobre o privado, um princípio ou um
postulado normativo?
E, mais uma vez, é Humberto ÁVILA (2008) que vem acudir, trazendo o passo a
passo para se identificar um postulado, segundo o qual é preciso investigar a jurisprudência
para saber como determinada norma é tratada pelos tribunais:
A investigação dos postulados normativos inicia-se com a análise jurisprudencial. É
preciso encontrar casos que tenham sido solucionados mediante a aplicação dos
postulados em análise.
(...) o exame do acórdão permite verificar os elementos analisados e as relações
exigidas entre eles.
(...) é preciso, depois de desveladas as hipóteses de aplicação típica dos postulados,
refazer a pesquisa dessa feita não mediante a busca do postulado como palavra7
“A maior parte da doutrina enquadra-os [postulados], sem explicações, na categoria dos princípios” (ÁVILA,
2008, p. 135)
32
chave, mas por meio da busca dos elementos e das relações que servem de suposto à
sua aplicação. (ÁVILA, 2008, pp. 139-141)
Assim, e num recorde de 10 (dez) anos, a jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal 8 e do Superior Tribunal de Justiça 9 foi consultada, resultando, com a busca pela
expressão “supremacia do interesse público sobre o privado”, respectivamente em 2 (dois)10 e
em 78 (setenta e oito) acórdãos.11
Em todos, foi empregada a denominação de “princípio da supremacia do interesse
público sobre o privado”. Todavia, o enunciado foi utilizado como diretriz de compreensão
das demais normas incidentes no caso concreto, sempre subsidiando o raciocínio do julgador
na solução das questões objeto de julgamento, o que coincide com o que se mencionou,
anteriormente, como concepção de postulado.
Saliente-se que, não obstante a utilização do termo “princípio”, tanto o Supremo
Tribunal Federal quanto o Superior Tribunal de Justiça não aplicaram a supremacia do
interesse público como “mandamento de otimização”, mas sim, como orientação
interpretativa das normas (princípios e regras) sub judice.
Flávio Quinaud PEDRON (2009), ao pesquisar a supremacia do interesse público
sobre o privado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal concluiu que a prevalência do
interesse público sobre o privado é tomado como um dogma.
É de se concluir, então, após a verificação procedimental sugerida por Humberto
ÁVILA (2008), que a supremacia do interesse público sobre o privado vem sendo tratado pela
jurisprudência, como postulado normativo que norteia a interpretação e a aplicação de todas
8
Consulta realizada em 04/06/2016 no site www.stf.jus.br
Consulta realizada em 04/06/2016 no site www.stj.jus.br
10
STF: RMS 28487/DF e RMS 22665/DF
11
STJ: A propósito, confira-se, por exemplo: REsp nº 960.239/SC (recurso repetitivo); AgRg no REsp nº
1.148.294/SP; AgRg no REsp nº 1.551.323/RS; AgRg na SLS nº 2.076/SP; MS nº 19396/DF; AgRg nos EDcl
no REsp nº 40.803/DF; MS nº 20.432/DF; EDcl no REsp nº 1.506.600/PR; EDcl no REsp nº1.418.189/RJ;
AgRg no REsp nº 1.453.357/RN; EDcl no AREsp nº 497.776/RS; EDcl no AgRg no AREsp nº 438.485/SP;
MS nº 12.576/DF; RMS nº 32.151/PR; RHC nº 37.626/ES; AgRg no AREsp nº 372.264/MG; AgRg no REsp
nº 208.805/AP; REsp nº 1.305.040/RJ; REsp nº 1.272.272/AL; AgRg no REsp nº 1.260.423/CE; RMS nº
26.023/ES; Pet nº 7.933/DF; REsp nº 1.183.266/PR; RMS nº 27.428/GO; EDcl no AgRg no REsp nº
1.121.306/SP; RMS nº 31.046/BA; RMS nº 20.178/RR; RMS nº 27.759/SP; RMS nº 30.982/PR; RMS nº
31.948/MA; AgRg na Pet nº 7.933/DF; AgRg na Pet nº 7.961/DF; AgRg no REsp nº 921.429/RJ; RMS nº
18.488/ RS; EDcl no AgRg no REsp nº 1.108.628/PE; AgRg nos EDcl no REsp nº 799.250/MG; RMS nº
22.082/GO; REsp nº 1.135.715/RJ; REsp nº 1.137.216/SP; EDcl no CC nº 89.288/AC; AgRg no REsp nº
734.413/MG; QO no REsp nº 746.487/RS; RMS nº 23.445/MG; REsp nº 841.173/PB; REsp nº 839.111/MG;
HC nº 45.462/PI; REsp nº 637.146/SE; REsp nº 653.740/PB; RMS nº 20.100/SC; REsp nº 795.613/MG; AgRg
na SS 1.485/ES; AgRg no Ag nº 800.898/MG; RMS nº 20.264/RO; REsp nº 492.905/MG; REsp nº
846.367/RS.
9
33
as normas de Direito Público12. À supremacia do interesse público sobre o privado tem cabido
o conceito retirado, mais uma vez, da lição de Humberto ÁVILA (2008, p. 135), segundo o
qual os postulados “estruturam a aplicação do dever de promover um fim; de outro, não
prescrevem indiretamente comportamentos, mas modos de raciocínio e de argumentação
relativamente às normas que indiretamente prescrevem comportamentos”.
A tradicional doutrina administrativista brasileira, por sua vez, malgrado também
denomine a supremacia do interesse público como princípio, acaba por confirmar a conclusão
de que, na verdade, trata-se de postulado normativo em torno do qual gravita o Direito
Público, pois é com ele que se justifica toda a atividade administrativa e se resolvem os
conflitos porventura existentes entre Administração e administrados.
José Sérgio da Silva CRISTÓVAM (2014, p. 131), ao abordar a construção jurídica da
supremacia do interesse público, diz que “é apresentada e difundida como ‘verdadeiro
axioma’ do Direito Público, uma proposição normativa autoevidente e aceita por todos,
inclusive não sujeita ao debate jurídico ou qualquer tipo de argumentação demonstrativa”.
Para José Sérgio da Silva CRISTÓVAM (2014, p. 36) a noção de supremacia do
interesse público é verdadeiro postulado do Direito Público na atualidade, a partir do qual
toda a atividade administrativa, e todo exercício de exegese jurídica de Direito Público, se
justifica. Segundo ele (2014, p. 37), a supremacia do interesse público representa um
postulado que “tudo explica e tudo justifica, inclusive escamoteando toda sorte de
arbitrariedades, autoritarismos e ofensas a princípios constitucionais (mormente a
impessoalidade e a moralidade administrativa)” numa “retórica frouxa e órfã de
racionalidade” ávida por tudo legitimar, se fazendo valer de um conceito vago de interesse
público.
Gustavo BINENBOJM (2005) reforça esta conclusão ao afirmar que, se a supremacia
do interesse público constitui uma norma que traz consigo uma prevalência apriorística,
revela-se contraditório chamá-la de princípio:
(...) uma norma que preconiza a supremacia a priori de um valor, princípio ou
direito sobre outros não pode ser qualificado como princípio. Ao contrário, um
princípio, por definição, é norma de textura aberta, cujo fim ou estado de coisas para
o qual aponta deve sempre ser contextualizado e ponderado com outros princípios
igualmente previstos no ordenamento jurídico. A prevalência apriorística e
12
A discussão a respeito da dicotomia Direito Público / Direito Privado, e suas consequentes críticas, não serão
abordadas neste trabalho por fugir do problema a que se pretende responder. Todavia, para um maior
aprofundamento sobre a questão, confira-se:
MURTA, Antônio Carlos Diniz; LEAL, André Cordeiro (orgs.). A tensão entre o público e o privado:
ensaios sobre os paradoxos do projeto Democrático Constitucional Brasileiro. Belo Horizonte: Arraes Editores,
2012.
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. São Paulo: Malheiros, 2000.
34
descontextualizada de um princípio constitui uma contradição em termos.
(BINENBOJM, 2005, p. 166)
Em suma, depreende-se, tanto da jurisprudência dos tribunais superiores quanto da
doutrina, que a supremacia do interesse público, embora denominada princípio, é postulado
normativo em torno do qual se desenhou o Direito Administrativo como ramo jurídico
autônomo, seja como ferramenta justificadora dos atos administrativos, seja como preceito
interpretativo de outras normas de Direito Público.
Mas, qual a origem da noção de supremacia do interesse público sobre o privado?
Qual a concepção jurídica de que foi dotada?
2.2 Supremacia do interesse público sobre o privado: de sua origem histórica no séc.
XIX até o florescimento no Estado Social de Direito
A indagação sobre a origem da ideia de supremacia do interesse público sobre o
privado, como não podia deixar de ser, não é respondida de maneira unânime pela doutrina
administrativista.
Existem aqueles, como José Sérgio da Silva CRISTÓVAM (2014) que a relacionam
com a própria origem do Direito Administrativo, enquanto que outros, aí inseridos Maria
Sylvia Zanella DI PIETRO (2010) e Norberto BOBBIO (1976), remontam a ideia de
supremacia do interesse público à concepção de “bem comum”
13
, identificada já na
Antiguidade Clássica, e desenvolvida na Idade Média, sob a inspiração de Santo Tomás de
Aquino.
Maria Sylvia Zanella DI PIETRO (2010, p. 86) defende que a “existência de interesses
gerais diversos dos interesses individuais encontra suas origens na antiguidade grecoromana”:
Embora possa parecer que o princípio da supremacia do interesse público tenha sido
criado no âmbito do direito Administrativo, na verdade ele antecede em muitos
séculos o nascimento desse ramo do direito, que somente começou a se formar como
ramo autônomo em fins do século XVIII, com a formação do Estado de Direito. (DI
PIETRO, 2010, p. 86)
José Sérgio da Silva CRISTÓVAM (2014, pp. 127/128), ao abordar a construção
histórica da noção de supremacia do interesse público, malgrado faça referência àqueles que
não compartilham de seu pensamento 14 , a aloca historicamente no nascimento do Direito
13
14
O debate a respeito da origem da ideia de “bem comum” será retomado no capítulo 3 deste trabalho.
Diz José Sérgio da Silva CRISTÓVAM:
A doutrina que relaciona as raízes da teoria da supremacia ao surgimento oitocentista do Direito
Administrativo, enquanto disciplina autônoma e especial, derrogatória do Direito Comum, não é compartilhada
35
Administrativo15, como disciplina jurídica autônoma, a partir de final do Séc. XVIII e início
do Séc. XIX16, sem o qual “não parece que seja possível cogitar propriamente de uma ideia de
supremacia do interesse público sobre o privado, com os contornos conferidos pelo chamado
paradigma tradicional”:
(...) é seguro que se possa reconstruir (o que parece inequívoco) uma genealogia
aristotélica-tomista de bem comum como raiz política ancestral do moderno
conceito de interesse público, e até quiçá uma ideia de primado do público. Mas
disto não se retira que uma noção jurídica (mais ou menos estável e acabada) de
supremacia do interesse público tenha atravessado a História da Humanidade no
Ocidente. Até porque a histórica noção de bem comum guarda contornos políticosfilosóficos consideravelmente diversos daqueles da moderna teoria jurídico-política
da supremacia, sobretudo nos moldes consagrados já às portas do regime
administrativo comum ao Estado social de direito, marcada por um modelo de
Estado prestacionista e intervencionista sem precedentes históricos comparativos.
(CRISTÓVAM, 2014, p. 128)
Como ensina Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO, o Direito Administrativo
nasce como o “Direito novo”, necessário a regular as relações entre Estado e administrados,
já que o Direito Comum não possuía normas adaptadas a regular esse novo vínculo jurídico:
Sobrevindo a Revolução Francesa, como o período histórico precedente era o da
Monarquia Absoluta, inexistiam disposições que subjugassem ao Direito a conduta
Soberana do Estado em suas relações com os administrados. Daí que era preciso
aplicar um Direito “novo”, ainda não legislado (ou que mal iniciava a sê-lo). É que
as normas do Direito até então existente disciplinavam as relações entre particulares,
inadaptadas, pois, para reger vínculos de outra índole, ou seja, os intercorrentes
entre o Poder Público e os administrados, já que agora submissos todos a uma ordem
jurídica. Tais vínculos, consoante se entendia, demandavam uma disciplina
específica, animada por outros princípios, que teriam que se traduzir em normas que
viriam a ser qualificadas como “exorbitantes” – porque exorbitavam dos quadros do
Direito até então conhecido, o “Direito Comum”. (BANDEIRA DE MELLO, 2011,
p. 39)
por Maria Sylvia Zanella DI PIETRO. Para ela, as bases dessa teoria da supremacia seriam muito mais
ancestrais e remontariam à própria concepção aristotélica de que o todo vem antes das partes (concepção
organicista), pelo que a totalidade teria fins não reduzíveis ao somatório dos fins dos membros singulares que a
compõem e o bem da totalidade.
Na mesma senda, a administrativista pátria procura relacionar a noção de supremacia do interesse público com
a ideia tomista de bem comum, pela qual o homem (ser social) procuraria não somente o seu bem, mas também
aquele do grupo a que pertence, cabendo ao Estado perseguir o bem comum, aquilo que justifica a própria
reunião da comunidade política. Segundo adverte DI PIETRO, esta noção de bem comum vinculada a um
contexto de solidariedade social sofreria um profundo abalo com o triunfo do individualismo e das teses
contratualistas e liberais do século XVIII, que teve seu ápice com a Revolução Francesa. (CRISTÓVAM 2014,
pp. 126/127)
15
Conforme chama atenção Érico ANDRADE (2010, p. 156) a decisão do Conselho de Estado francês, no caso
conhecido como “arrêt Blanco”, quando se concluiu pela existência de “dois direitos: um aplicável nas
relações entre pessoas privadas e o outro aplicável nas relações do cidadão com a Administração Pública, o
direito administrativo”, é considerada a data de nascimento do Direito Administrativo.
16
Todavia, “isto não significa [...] que inexistissem anteriormente normas que hoje comporiam esse ramo do
direito, pois onde quer que exista o Estado, existem órgãos encarregados do exercício de funções
administrativas” (DI PIETRO, 2002, p. 01). DI PIETRO (2002, p. 01) alerta, contudo, que: “Na Idade Média
não houve ambiente propício para o desenvolvimento do direito administrativo, porque era a época das
monarquias absolutas, em que todo poder pertencia ao soberano; a sua vontade era a lei e todos os cidadãos,
justificadamente chamados servos ou vassalos, o obedeciam. A vontade do monarca era a lei”.
36
Para Érico ANDRADE (2010, p. 157), citando Sabino Cassese, “a exigência de
determinar o equilíbrio entre as prerrogativas da Administração e os direitos do cidadão,
recorrendo à lei, afirmando-se que a Administração é submetida à lei (princípio da legalidade
do atuar administrativo)” foi um dos fatores que contribuíram ao aparecimento do Direito
Administrativo, dividido entre a proteção do cidadão e a garantia da força estatal17.
Essa divisão entre a autoridade e a liberdade – forças opositoras que se digladiam, ora
trazendo o Direito Administrativo para a proteção da autoridade do Estado, ora levando-o a
proteger a liberdade do cidadão – é o que Érico ANDRADE (2010) chama de movimento
pendular. Segundo ele, desde sua origem até meados do séc. XX, esse “pêndulo” do Direito
Administrativo estava voltado à autoridade do Estado, prevalecendo “a posição superior da
Administração, em que o cidadão era visto em posição inferior, de mero administrado, sujeito
ao Poder Público” (ANDRADE, 2010, p. 321).
Aliás, a subordinação do poder à lei como marco inicial do Direito Administrativo não
escapa à crítica de Gustavo BINENBOJM (2006), para quem a realidade histórica do
nascimento deste ramo do Direito, na verdade, tinha por finalidade assegurar, antes, a
sobrevivência das práticas autoritárias do Antigo Regime, agora sob a nova roupagem de
Estado de Direito, do que a sua superação:
Narra a história oficial que o direito administrativo nasceu da subordinação do poder
à lei e da correlativa definição de uma pauta de direitos individuais que passavam a
vincular a Administração Pública. Essa noção garantística do direito administrativo,
que se teria formado a partir do momento em que o poder aceita submeter-se ao
direito e, por via reflexa, aos direitos dos cidadãos, alimentou o mito de uma origem
milagrosa e a elaboração de categorias jurídicas exorbitantes do direito comum, cuja
justificativa teórica seria a de melhor atender à consecução do interesse público.
(...)
Tal história seria esclarecedora, e até mesmo louvável, não fosse falsa. Descendo-se
da superfície dos exemplos genéricos às profundezas dos detalhes, verifica-se que a
história da origem e do desenvolvimento do direito administrativo é bem outra. E o
diabo, como se sabe, está nos detalhes.
(...) O surgimento do direito administrativo, e de suas categorias jurídicas peculiares
(supremacia
do
interesse
público,
prerrogativas
da
Administração,
discricionariedade, insindicabilidade do mérito administrativo, dentre outras),
representou antes uma forma de reprodução e sobrevivência das práticas
administrativas do Antigo Regime que a sua superação. A juridicização embrionária
da Administração Pública não logrou subordiná-la ao direito; ao revés, serviu-lhe
apenas de revestimento e aparato retórico para sua perpetuação fora da esfera de
controle dos cidadãos.
O direito administrativo não surgiu da submissão do Estado à vontade heterônoma
do legislador. Antes, pelo contrário, a formulação de novos princípios gerais e novas
regras jurídicas pelo Conseil d’Etat, que tornaram viáveis soluções diversas das que
17
No Brasil, onde o estatismo foi forte desde o início – e só fez aumentar com o tempo –, as ideias liberais
sempre foram vistas com muita desconfiança.
Nesse prisma ideológico, o público é o bem, o privado é o mal (que, aliás, cabe ao público consertar). O Estado
é o bem; os particulares, o mal. O direito administrativo é o direito do interesse público, o direito privado é o
direito do egoísmo privado, o direito do dinheiro. O direito administrativo é o direito do bem, o direito privado
é o direito do mal. (SUNDFELD, 2014, p. 139)
37
resultariam da aplicação mecanicista do direito civil aos casos envolvendo a
Administração Pública, só foi possível em virtude da postura ativista e insubmissa
daquele órgão administrativo à vontade do Parlamento.
(...)
Assim, como assinala Paulo Otero, “a ideia clássica de que a Revolução Francesa
comportou a instauração do princípio da legalidade administrativa, tornando o
Executivo subordinado à vontade do Parlamento expressa através da lei, assenta
num mito repetido por sucessivas gerações: a criação do direito administrativo pelo
Conseil d’Etat, passando a Administração Pública a pautar-se por normas diferentes
daquelas que regulavam a actividade jurídico-privada não foi um produto da vontade
da lei, antes se configura como uma intervenção decisória autovinculativa do
Executivo sob proposta do Conseil d’Etat. BINENBOJM (2006, pp. 9/12)
De acordo com Gustavo BINENBOJM (2006, p. 11) “a criação de um direito especial
da Administração Pública resultou não da vontade geral, expressa pelo Legislativo, mas de
decisão autovinculativa do próprio Executivo”.
É por isso que José Sérgio da Silva CRISTÓVAM defende que a noção de supremacia
somente é possível de se apreender diante de um Direito Administrativo em construção, onde
a autoridade do Estado é viés central desse regime jurídico derrogatório do Direito Comum:
De fato, a noção jurídica de supremacia do interesse público sobre o privado decorre
da construção do Direito Administrativo sob o signo da autoridade. Mais do que
uma disciplina normativa de defesa da liberdade do indivíduo em relação ao Estado
e de instrumentos de limitação dos poderes estatais, já na sua origem o moderno
Direito Público foi forjado sob o pálio da autoridade, com a construção de um
regime normativo derrogatório do Direito Comum e fundado em prerrogativas em
muito aniquiladoras do primado da igualdade das relações jurídicas (gênese
autoritária).
Essa genética autoritária vinha justificada a partir da ideia de imperiosa necessidade
para o cumprimento das finalidades do Estado liberal-abstencionista (garantia das
liberdades individuais instrumentais à tutela do bem-estar geral). (CRISTÓVAM,
2014, p. 128)
E, se o Estado liberal de direito foi “o terreno fértil para a teoria da supremacia”, a
“construção do Estado social de direito, com a notável ampliação das finalidades materiais do
aparato estatal, resultou a correspondente hipertrofia” desta teoria (CRISTÓVAM, 2014, p.
128).
Sustenta Érico ANDRADE (2010, p. 168) que “o segundo pós-guerra muda
incisivamente o papel do Estado, que passou a assumir novas funções, novas tarefas” que
“leva à efetiva pluralização da Administração, aberta a novas formas de atuação, diversas do
seu anterior estágio monolítico e unitário”:
O fenômeno da ampla constitucionalização do direito em geral, e do direito
administrativo em especial, se iniciou com o término da Segunda Guerra Mundial: o
pós-guerra viu florescer uma nova e direta fundação constitucional de todo o direito
administrativo, quando se introduziu o Estado social, com os novos pontos de
equilíbrio das democracias constitucionais, em que se busca conduzir o poder estatal
para o provimento das necessidades essenciais dos cidadãos. (ANDRADE, 2010, p.
221)
38
José Sérgio da Silva CRISTÓVAM (2014, p. 128) vê nessa “ampliação das finalidades
materiais do aparato estatal” um agigantamento da noção de supremacia do interesse público
sobre o privado:
Consolidado o Estado como o tutor máximo e absoluto do interesse público, com a
exponencial ampliação das suas finalidades prestacionais, consequentemente, a
noção de supremacia do interesse público sobre o particular também se agigantou,
tomando feições de síntese fundamental e verdadeira pedra de toque de todo o
moderno Direito Público. (CRISTÓVAM, 2014, pp. 128/129)
E, nessa ampliação das finalidades materiais do Estado se apegam aqueles que
defendem a teoria tradicionalista da supremacia, concebendo-se o Estado Social de Direito
como o lugar de humanização do interesse público, fortemente ligado à ideia de bem comum:
(...), em sua fase inicial, o interesse público a ser protegido pelo direito
administrativo era aquele de feição utilitarista, inspirado nas doutrinas
contratualistas liberais do século XVIII e reforçadas pelas doutrinas de economistas
como Adam Smith e Stuart Mill. O direito administrativo tinha que servir à
finalidade de proteger as liberdades individuais como instrumento de tutela do bemestar geral.
Com o Estado Social, o interesse público a ser alcançado pelo direito administrativo
humaniza-se na medida em que passa a preocupar-se não só com os bens materiais
que a liberdade de iniciativa almeja, mas com valores considerados essenciais à
existência digna; quer-se liberdade com dignidade, o que exige maior intervenção do
Estado para diminuir as desigualdades sociais e levar a toda a coletividade o bemestar social. O interesse público, considerado sob o aspecto jurídico, reveste-se de
um aspecto ideológico e passa a confundir-se com a ideia de bem comum. (DI
PIETRO, 2010, pp. 93/94)
Contudo, José Sérgio da Silva CRISTÓVAM (2014, p. 129) não deixa passar uma
crítica à “defesa apaixonada” de alguns autores à teoria da supremacia, “pensando que assim
defende[m] um modelo social e democrático de Estado”:
Na verdade, uma atenta e realista análise da teoria da supremacia e do Estado social
de direito jamais admitirá os avanços do Estado social como relacionados, ainda que
indiretamente, à teoria da supremacia, ou mesmo que esta tenha destacado relevo
instrumental à consecução daquele.
Realmente, a aplicação do princípio da supremacia do interesse público não tem
lugar destacado na teoria do Estado e na política, como justificativa instrumental à
ampliação de direitos sociais e coletivos. A justificação dessas políticas
prestacionais sempre foi construída com base em uma sutil e instável composição de
interesses entre as classes de comando (político e econômico) e as massas. A teoria
da supremacia sempre foi mais usada, isso sim, como princípio de plantão, a
justificar aquelas “práticas injustificáveis” do Estado, a evitar o constrangimento e o
controle político e jurídico-judicial de setores da classe estatal dirigente e seus
infiltrados, a conferir uma aparente racionalidade jurídica a desmandos estatais
(quase sempre) setorizados e pouco, ou quase nada, relacionados a razões (pautas)
de efetivo interesse público. (CISTÓVAM, 2014, p. 129)
Insiste que não é possível “relacionar e (muito menos) atribuir quase que
romanticamente os avanços do Estado social na concretização dos direitos sociais ao
paradigma tradicional da teoria da supremacia” (CRISTÓVAM, 2014, p. 130).
39
Emerson GABARDO e Daniel Wunder HACHEM (2010), entretanto, refutam a ideia
de que a eventual origem autoritária do Direito Administrativo justifique a tese de uma
redução da “força legitimadora” da supremacia do interesse público, sob o argumento de que
mesmo a compreensão tímida da noção de interesse público própria do séc. XIX, e,
consequentemente, de sua supremacia em relação ao interesse privado, importou em
imensurável avanço à proteção do cidadão, se levada em consideração as práticas adotadas
pelo Antigo Regime:
Não há como negar que mesmo a peculiar noção de interesse público tecida no
século XIX e os instrumentos disponibilizados pelo ferramental do Direito
Administrativo típico da ilustração constituíram inobjetável avanço no que tange à
proteção do cidadão, se comparados às práticas arbitrárias do Antigo Regime. A
submissão estrita da Administração Pública aos trilhos da lei, a responsabilização do
Estado pelos danos causados aos indivíduos, o dever de prestação de serviços
públicos e a possibilidade de controle do Poder Público em razão de suas
exorbitâncias no exercício do poder político são exemplos claros dessa
transformação. (GABARDO e HACHEM (2010, p. 60)
Chamam atenção (GABARDO e HACHEM, 2010, p. 16), ainda, para o fato de que o
autoritarismo ligado à história brasileira e, com isso, o “uso e abuso do interesse público
como fundamento retórico de legitimação do poder”, não tem razão de ser nas bases
originárias do Direito Administrativo na França. Ao contrário, devem-se muito mais à própria
história brasileira de desenvolvimento jurídico-republicano:
As possíveis origens autoritárias da aplicação do Direito brasileiro em geral (não só
do Direito Administrativo) e, como não poderia deixar de ser, do uso e abuso do
interesse público como fundamento retórico de legitimação do poder não estão [sic]
na França o na Itália, mas na sua própria história personalista e carente de um real
espírito republicano, que aos tropeços e solavancos redundou na efetiva construção
de um espaço (mas nem tanto...). As ideias típicas do Direito Administrativo do final
do século XVIII e início do século XIX, mesmo aquelas inerentes ao proclamado
“autoritário” contencioso administrativo (que nunca existiu no Brasil), ou ao
“autoritário” interesse público governamental (totalmente privatizado pelas práticas
sociais brasileiras – muito mais do que pelo Estado), produziram de forma intensa
um efeito libertador, e não o contrário. Se não fosse tal herança recebida na esfera
das ideias – a de um “Direito Administrativo libertador”, fruto da ilustração –, talvez
a mutação da mentalidade então característica das novas terras resistisse de forma
mais intensa e dramática.
Nestes termos, não convencem as críticas a essa visão da história, que seria falsa,
pois a teoria do interesse público teria representado “antes uma forma de reprodução
e sobrevivência das práticas administrativas do Antigo Regime que sua superação”,
ou seja, embora para alguns possa ser aparentemente lógica, é historicamente
insustentável a afirmação de que o Direito Administrativo possuiria raízes
autoritárias, em razão das quais o princípio da supremacia do interesse público não
teria nada de liberal ou emancipador. (GABARDO e HACHEM, 2010, p. 16)
Entretanto, embora o embate doutrinário sobre o autoritarismo originário do Direito
Administrativo e suas possíveis influências, nefastas ou prodigiosas, na supremacia do
interesse público, seja produtivo, certo é que o que se entendia por supremacia no séc. XIX
não é mais admitido nos dias atuais, e isso é o ponto de convergência de todas as teorias que
40
subsidiaram esta pesquisa, sejam aqueles que propõem sua releitura à luz do Estado
Constitucional do Direito18, ou os que defendem a desconstrução do paradigma tradicional.
2.3 Supremacia do interesse público sobre o privado: uma concepção atual
Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO (2011, p. 96) afiança que, malgrado não
esteja radicado “em dispositivo específico algum da Constituição”, o [princípio] da
supremacia do interesse público é “pressuposto lógico do convívio social”, que norteia toda a
atividade da Administração Pública. Adverte, ainda, que a supremacia do interesse público
não é instrumento que a Administração Pública possa manejar conforme queira. Antes, pelo
contrário, é-lhe vedado sacar desta ferramenta de forma divorciada do que estabelece a ordem
jurídica: “juridicamente, sua dimensão, intensidade e tônica são fornecidas pelo Direito posto,
e só por este ângulo é que pode ser considerado e invocado” (BANDEIRA DE MELLO,
2011, p. 97).
Para Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO (2011), a supremacia é poder da
Administração cujo manejo só se mostra legítimo quando houver um dever correlato a ser
perseguido e sua utilização estiver limitada pela finalidade a ser alcançada:
Ora, a Administração Pública está, por lei, adstrita ao cumprimento de certas
finalidades, sendo-lhe obrigatório objetivá-las para colimar interesse de outrem: o da
coletividade. É em nome do interesse público – o do corpo social – que tem de agir,
fazendo-o na conformidade da intentio legis. Portanto, exerce “função”, instituto –
como visto – que se traduz na ideia de indeclinável atrelamento a um fim
preestabelecido e que deve ser atendido para o benefício de um terceiro.
(BANDEIRA DE MELLO, 2011, p. 98)
Essa finalidade a legitimar o uso da supremacia é, para Celso Antônio BANDEIRA
DE MELLO (2011), o interesse da coletividade, assim qualificado pelo ordenamento jurídico,
isto é, constitui interesse público a ser dotado de supremacia aquele assim disposto pela
Constituição e pelas leis infraconstitucionais a partir dela.
Hely Lopes MEIRELLES (1996, p. 81) também é firme em dizer que o objetivo da
Administração Pública é orientado para “o bem comum da coletividade administrada.
18
A evolução do direito administrativo é nitidamente marcada por essas três passagens sequenciais, como anota
Giulio Napolitano: “A segunda metade do século XX é assim assinalada pelo advento do ‘Estado
constitucional’, que se coloca em sequência natural com a experiência do Estado de direito e do Estado social”
No original: NAPOLITANO, Rivista trimestrale di diritto pubblico, 2010, p. 6: La seconda metà del XX secolo
è così segnata dall’avvento dello “Stato costituzionale”, che si pone pertanto in sequenza naturale con le
esperienze dello Stato di diritto e dello Stato sociale. (NAPOLITANO, G. Sul futuro delle scienze del diritto
pubblico: variazioni su una lezione tedesca in terra americana. Rivista Trimestrale di Diritto Pubblico, Milano,
n. 1, p. 1-20, 2010).
41
Vê-se, portanto, que a doutrina clássica, aqui representada por Celso Antônio
BANDEIRA DE MELLO (2011) e Hely Lopes MEIRELLES (1996), põe no sistema
normativo a responsabilidade de dizer o que é interesse público e, somente esse interesse
legalmente qualificado como público há de ter prevalência sobre o privado.
Entretanto, e com a devida vênia à doutrina clássica do Direito Administrativo,
interesse público é conceito jurídico indeterminado, necessariamente determinável na hipótese
concreta da atividade administrativa, não sendo possível extrair do sistema normativo, de
forma prévia, seus contornos e limitações19.
Assim, e em razão de “alguns desvios históricos no emprego da supremacia do
interesse público por determinados governos, inclusive ditaduras” (CARVALHO, 2008, p.
64), bem como diante da constitucionalização cada vez maior do Direito Administrativo, o
que tem exigido uma reconstrução dos tradicionais institutos administrativistas, tem surgido,
nos últimos tempos, críticas à supremacia do interesse público sobre o privado, sobretudo por
considerarem, alguns teóricos, que se trata de ideia dissonante da ordem constitucional, vista
sob a ótica dos princípios da dignidade humana e da teoria dos direitos fundamentais20.
Raquel Melo Urbano de CARVALHO (2008, p. 64), destaca que, com as divergências
doutrinárias a respeito do conceito de interesse público, aliada à centralidade constitucional
do cidadão, e de seus direitos individuais, “vem ganhando espaço uma visão crítica sobre o
tema, a qual discute a própria viabilidade de se falar em princípio da supremacia do interesse
público sobre o particular”:
Haveria na Constituição, destarte, uma valoração abstrata e relativa do indivíduo,
incluindo-se seus interesses, o que impediria falar-se em princípio da supremacia do
interesse público que surgiria em absoluta contradição com outras normasprincípios, sobretudo com os postulados normativos da proporcionalidade.
Outrossim, a indeterminabilidade empírica a ele inerente iria de encontro ao
postulado da explicitude das premissas, decorrente da própria segurança jurídica.
Ademais, seria necessária previsão normativa de tal princípio, como ocorre com
qualquer intervenção estatal, mormente em se considerando a ausência de
significado autônomo da expressão interesse público e a falta de reflexibilidade
constitucional.
Neste sentido, a superioridade do interesse público em relação ao privado não
poderia ser reconduzida à normatividade própria da Constituição Federal, a qual
protegeria, precipuamente, os interesses do indivíduo como no preâmbulo e nos seus
artigos 1º, 3º a 17, 170, 196, 201, 206, 220, 226 e 227. Também Alexandre Santos
Aragão assevera que “no marco de uma Constituição pluralista, não pode mais ser
visto como garantido do ‘interesse público’ titularizado pelo Estado, mas sim, como
o instrumento da garantia, pelo Estado, dos direitos fundamentais positivos ou
negativos”. (CARVALHO, 2008, p. 64)
19
20
A propósito da conceituação do interesse público, veja-se o capítulo 3 deste trabalho.
CRISTÓVAM, 2014.
42
E, parte da doutrina administrativista sustenta uma necessária transformação
paradigmática a partir da desconstrução do paradigma tradicional sobre o qual se assenta o
regime jurídico administrativo, em prol de um “renovado regime jurídico administrativo,
ainda cambiante e em movimento de (re)construção” (CRISTÓVAM, 2014, p. 123), “fundado
em uma matriz claramente personalista, centrada na dignidade humana e na defesa dos
direitos fundamentais (individuais e coletivos)”, (CRISTÓVAM, 2014, p. 130).
Por outro lado, existem autores segundo os quais entender o interesse público a
prioristicamente como superior ao interesse privado não vai de encontro às normas
constitucionais e, muito menos, implica na inferiorização dos direitos fundamentais, até
porque, como chama a atenção Emerson GABARDO (2009), os termos “interesses” e
“direitos” não se confundem, pois, enquanto o primeiro indica necessidades humanas
ilimitadas, o segundo refere-se ao dever de atendimento a estas necessidades, extraído da
normatividade jurídica.
Essa outra parcela da doutrina critica a teoria emergente, taxando-a de “neoliberal e
inconciliável ao modelo de Estado social e democrático de direito” (CRISTÓVAM, 2014, p.
130)21, e propõe uma releitura da supremacia a partir da Constituição.
2.3.1 Teorias desconstrutivistas da supremacia do interesse público sobre o privado
José Sérgio da Silva CRISTÓVAM (2014) advoga a tese de que o paradigma
tradicional não é sustentável, razão pela qual deve ser substituído por um novo regime
jurídico administrativo, que chama de paradigma emergente:
Nada obstante, a teoria que funda o regime jurídico administrativo sob o paradigma
tradicional do princípio da supremacia do interesse público (teoria da supremacia),
embora de inegável respaldo e corrente difusão doutrinária, não parece sustentável.
Isto se levados a sério os vetores basilares da Constituição e do atual Estado
constitucional de direito, sobremaneira assentados na centralidade da pessoa
humana, na prevalência dos direitos fundamentais e no modelo de ponderação
proporcional de interesses, aqui designados por paradigma emergente.
(CRISTÓVAM, 2014, p. 125)
Daniel SARMENTO (2005), chega a contestar a existência da supremacia do interesse
público sobre o privado, sob a justificativa de sua incompatibilidade com o Estado
21
Mas é recorrente, porém, o pensamento que leva parte da doutrina a qualificar (ou desqualificar, de forma
aparentemente pejorativa) as teorias do chamado paradigma emergente como concepções neoliberais, na
medida em que estariam comprometidas com o retorno do primado das liberdades individuais e com o
abrandamento daquela noção de bem comum que fundamenta o modelo de Estado social e democrático de
direito. DI PIETRO, que vê nessas teorias do paradigma emergente claros contornos de neoliberalismo, chega
a dizer que essas teorias críticas de uma dimensão de supremacia do interesse público “jamais tiveram
aplicação. Exagera-se o seu sentido, para depois combatê-lo, muitas vezes de forma inconsequente,
irresponsável e sob falsos pretextos”. (CRISTÓVAM, 2014, p. 129)
43
Democrático de Direito e da impossibilidade de se extrair do ordenamento jurídico e do
contexto do Estado Pluriclasse uma “noção homogênea de bem comum ou de vontade geral”
a definir o que seja interesse público:
Contudo, de um tempo pra cá, vozes autorizadas vêm se levantando na doutrina para
contestar a existência do princípio em pauta, ou para dar a ele uma nova formulação,
mais compatível com os direitos fundamentais do administrado e o estatuto
axiológico do Estado Democrático de Direito. E, como já afirmamos antes, nosso
propósito no presente ensaio é o de juntarmo-nos ao coro destes autores, não só
porque divisamos uma absoluta inadequação entre o princípio da supremacia do
interesse público e a ordem jurídica brasileira, como também pelos riscos que sua
assunção representa para a tutela dos direitos fundamentais. Parece-nos que o
princípio em discussão se baseia numa compreensão equivocada da relação entre
pessoa humana e Estado, fracamente incompatível com o leitmotiv do Estado
Democrático de Direito, de que as pessoas não existem para servir aos poderes
públicos ou à sociedade política, mas, ao contrário, estes é que se justificam como
meios para a proteção e promoção dos direitos humanos. Tentaremos, enfim,
demonstrar que a cosmovisão subjacente ao princípio em debate apresenta
indisfarçáveis traços autoritários, que não encontram respaldo numa ordem
constitucional como a brasileira, em cujo epicentro axiológico figura o princípio da
dignidade da pessoa humana.
Acrescente-se a isso a absoluta indeterminação do conceito de interesse público, em
profunda crise no contexto de fragmentação e pluralismo que caracteriza as
sociedades contemporâneas, nas quais se torna por vezes impossível extrair, à moda
de Rousseau, uma noção homogênea de bem comum ou de vontade geral. Neste
quadro, a profunda indeterminação semântica do conceito pode permitir às
autoridades que o manuseiam as mais perigosas malversações. O interesse público
periga tornar-se o novo figurino para a ressurreição das “razões de Estado”, postas
como obstáculo intransponível para o exercício de direitos fundamentais (...).
(SARMENTO, 2005, pp. 26/27)
Daniel SARMENTO (2005) fundamenta, ainda, sua crítica ao princípio da supremacia
do interesse público sobre o privado no questionamento da possibilidade de restrição aos
direitos fundamentais sob a justificativa de implementação de interesses coletivos. Para o
autor, partir do pressuposto de que os interesses coletivos são sempre prioritários aos direitos
fundamentais22 e, por conseguinte, recusar a qualquer ponderação entre ambos, não está de
acordo com nossa Constituição Republicana (1988), pois, embora seja possível limitar
direitos fundamentais com base no interesse público, isso não constitui regra absoluta no
Direito Administrativo constitucionalizado.
Expõe, outrossim, que o mais grave óbice à manutenção da supremacia do interesse
público sobre o privado é sua incompatibilidade com o princípio da proporcionalidade, pois
este se mostra como relevante parâmetro para a aferição, no caso concreto, da
constitucionalidade da limitação a direitos fundamentais. Para ele, mesmo que se entendesse a
supremacia do interesse público sobre o privado como mera indicação de prioridade, os
22
Relembra-se que o interesse público, seu significado e eventuais expressos correlatas, serão tratados
oportunamente neste trabalho. Todavia, e para esclarecer, SARMENTO (2005) usa a expressão “interesses
coletivos” como uma roupagem constitucionalizada para “interesse público”, da mesma maneira substitui
“interesse privado” por “direitos fundamentais”.
44
direitos fundamentais sairiam fragilizados, já que adentrariam ao processo de ponderação em
posição inferiorizada e somente a custa de muita argumentação poderia prevalecer sobre o
interesse público (SARMENTO, 2005).
Gustavo BINENBOJM (2005, p. 167) também questiona “existência de um princípio
da supremacia do interesse público” como regra de prevalência absoluta e sustenta que “o
melhor interesse público só pode ser obtido a partir de um procedimento racional (...) de
ponderação que permita a realização de todos [interesses individuais e coletivos] eles na
maior extensão possível”.
Gustavo BINENBOJM (2005, p. 166) também censura a adequação do princípio da
supremacia do interesse público à atual sistemática constitucional, sobretudo diante de uma
“imbricação conceitual entre interesse público, interesses coletivos e interesses individuais”,
que “não permite falar em uma regra de prevalência absoluta do público sobre o privado ou
do coletivo sobre o individual”.
Segundo Gustavo BINENBOJM (2005), o grande trunfo do Direito Administrativo, e
mais adequado instrumento de identificação dos interesses públicos, é o princípio da
proporcionalidade, eis que, por um lado, assegurar os direitos individuais constitui, também,
interesse público, e, por outro, o princípio da isonomia, igualmente consagrado em nossa
Constituição, não admite diferenciações, senão aquelas previstas legalmente.
Humberto ÁVILA (2007) se junta àqueles que não encontram fundamento de validade
da supremacia do interesse público sobre o privado no ordenamento jurídico brasileiro,
sobretudo porque a Constituição brasileira, chamada de Constituição-cidadã, trouxe especial
importância para a proteção dos direitos individuais23, não mais cabível uma interpretação da
supremacia como norma de prevalência:
Tal como ele é descrito - como um princípio jurídico de supremacia -, ele não
encontra fundamento de validade, simplesmente porque não pode ser descoberto no
ordenamento jurídico por meio de qualquer método (dedução ou indução, análise
das palavras ou do seu conjunto, etc.). As exceções, que a aplicação condicional
concreta de uma norma-princípio revela, devem manter-se dentro de uma quantidade
mínima, sob pena de não mais serem consideradas exceções. (…)
Trata-se, em verdade, de um dogma até hoje descrito sem qualquer reflexibilidade à
Constituição vigente. A sua qualificação como axioma bem o evidencia. Esse
nominado princípio não encontra fundamento de validade na Constituição brasileira.
Disso resulta uma importante consequência, e de grande interesse prático: a
aplicação do Direito na área do Direito Administrativo brasileiro não pode ser feita
sobre o influxo de um princípio de prevalência (como norma ou como postulado) em
favor do interesse público.” (ÁVILA, 2007, pp.18/21)
23
A Constituição brasileira, muito mais do que qualquer outra, é uma Constituição-cidadã, justamente pela
particular insistência com que protege a esfera individual e pela minúcia com que define as regras de
competência da atividade estatal. (ÁVILA, 2007, p. 11)
45
2.3.2 Teorias reconstrutivistas da supremacia do interesse público sobre o privado
Para aqueles que buscam uma releitura da supremacia do interesse público sobre o
privado, “a noção de interesse público não é invariável no tempo e espaço, adaptando-se de
acordo com a época e com o país” (GABARDO e HACHEN, 2010, p. 33), razão pela qual
não se sustentaria “o real objetivo de fazer prevalecer o interesse econômico sobre outros
igualmente protegidos pela Constituição”, sob o falso discurso de inviabilidade de uma
supremacia apriorística do interesse público sobre o privado diante dos “direitos fundamentais
constitucionalmente garantidos” ou mesmo de que a “indeterminação do conceito de interesse
público” daria ensejo a arbitrariedades promovidas pela Administração Pública (DI PIETRO,
2010, p. 85).
O primeiro expoente desta reconstrução, Fábio Medina OSÓRIO (2000), sustenta que
a supremacia do interesse público é, ao mesmo tempo, princípio implícito e regra de
prevalência, extraída daqueles dispositivos constitucionais que asseguram prerrogativas e
privilégios à Administração Pública, que, de um lado vincula o gestor em direção ao interesse
público e, com isso, permite o controle racional dos atos administrativos pelo Judiciário, e, de
outro, constitui fundamento para outras normas de direito público:
Se considerada a Teoria dos Direitos Fundamentais de ROBERT ALEXY, creio que
o princípio da superioridade do interesse público sobre o privado seria,
rigorosamente, um princípio, em numerosos casos, mas também poderia ser uma
regra constitucional de prevalência automática em tantos outros, mormente quando
essa norma definisse finalisticamente o interesse público a ser perseguido pelos
agentes públicos e não houvesse espaço para alternativas.
Em todo caso, a prevalência de um interesse público sobre o privado, na órbita
judicial, somente pode ocorrer nos casos concretos, jamais de forma abstrata
(enquanto princípio), absoluta, radical e inafastável, como, de resto, ocorre com o
fenômeno jurídico nessa esfera.
(...)
Não é, em geral, um dever-ser apenas “ideal”, tampouco um mandado de
otimização, embora se possa falar em realização do interesse público na maior
medida possível em numerosas situações. Seria uma regra constitucional presente na
norma que se encontra no sistema, uma norma vinculante que permite o controle de
validade de outras normas jurídicas, sejam regras, sejam princípios. Seria uma
norma equiparável à legalidade, à irretroatividade, ou anterioridade da tributação,
todas já classificadas alhures como “metarregras”. Assim sendo, essa norma também
seria uma “metarregra” ou uma regra à luz desses critérios.
O interessante é que, de qualquer sorte, essa mesma norma que determina fins
cogentemente públicos à atividade administrativa e legislativa tuteladas pelo Direito
Administrativo é, além de regra, também um princípio, porque fundamenta a criação
de outras normas, determina e orienta a ação infraconstitucional dos Poderes
Públicos, institui valores e atua como um dever-ser ideal em variadas hipóteses.
(...)
O interesse público não é apenas um valor, como qualquer outro, para o Direito
Administrativo. Por certo que valores podem ser inclusive instituídos pelo princípio
da superioridade do interesse público sobre o privado, mas a existência mesma desse
princípio significa uma normatividade constitucional a vincular Legislador e
Administrador Público em determinadas direções, ao mesmo tempo em que constitui
46
uma importante garantia aos “cidadãos” no sentido de que a atuação pública resulta
racionalmente controlável pelo Judiciário, seja quando se trate de coibir privilégios
abusivamente outorgados à Administração Pública, seja quando se trate de examinar
o problema do desvio de poder ou de finalidade. (OSÓRIO, 2000. pp. 102/105)
José Sérgio da Silva CRISTÓVAM (2014, p. 132) chama a atenção para o fato de que
Fábio Medina OSÓRIO, já em 2000, “a partir de uma concepção de interesse como um valor
direcionador da Administração Pública”, “reconhecia a incompatibilidade de um princípio de
prevalência radical e apriorística do interesse publico, determinante da invariável e absoluta
preponderância de interesses públicos em detrimento de interesse privado”.
Luís Roberto BARROSO (2005) resgata a distinção entre interesse público primário e
interesse público secundário 24 , e retoma a discussão para afirmar que apenas o interesse
público primário desfrutaria de supremacia apriorística:
O interesse público primário, consubstanciado em valores fundamentais como
justiça e segurança, há de desfrutar de supremacia em um sistema constitucional e
democrático. Deverá ele pautar todas as relações jurídicas e sociais – dos
particulares entre si, deles com as pessoas de direito público e destas entre si. O
interesse público primário desfruta de supremacia porque não é passível de
ponderação. Ele é o parâmetro da ponderação. Em suma: o interesse público
primário consiste na melhor realização possível, à vista da situação concreta a se
apreciada, da vontade constitucional, dos valores fundamentais que ao intérprete
cabe preservar ou promover. (BARROSO, 2005, pp. xv/xvi)
Maria Sylvia Zanella DI PIETRO (2010) refuta a crítica da teoria desconstrutivista, ao
argumento de que sofre influência dos ideais neoliberais25, e assegura a compatibilidade da
supremacia do interesse público com a teoria dos direitos fundamentais, sustentando não ser
adequada a sua substituição pelo princípio da razoabilidade, que, em verdade, é mero método
de interpretação presente na “aplicação de qualquer conceito jurídico indeterminado”:
O princípio da supremacia do interesse público convive com os direitos
fundamentais do homem e não os coloca em risco. Ele encontra fundamento em
inúmeros dispositivos da Constituição e tem que ser aplicado em consonância com
outros princípios consagrados no ordenamento jurídico brasileiro, em especial com
observância do princípio da legalidade. A exigência de razoabilidade na
interpretação do princípio da supremacia do interesse público se faz presente na
aplicação de qualquer conceito jurídico indeterminado; atua como método de
interpretação do princípio (na medida em que permite a ponderação entre o interesse
individual e o público) e não como seu substituto. (DI PIETRO, 2010. p. 102)
Alice Gonzalez BORGES (2011, p. 21), também à guisa de propor uma releitura da
supremacia do interesse público, edifica sua tese na distinção alessiana de interesse público,
24
25
O debate acerca da distinção alessiana do interesse público será retomado no item 3.2 deste trabalho.
Na realidade, grande parte da doutrina que critica esse princípio está preocupada em defender os interesses
econômicos, representados pela liberdade de iniciativa, a liberdade de competição, a liberdade de indústria e
comércio.
(...) Não há qualquer preocupação em defender direitos individuais. Esquece-se que os serviços públicos são
importantes exatamente pelo fato de que só o Estado tem condições de prestar determinadas atividades
essenciais à coletividade (mesmo com prejuízo e, muitas vezes, gratuitamente) e garantir um mínimo de vida
digna por parte do cidadão. (DI PIETRO, 2010, p. 8)
47
na afirmação de que apenas o interesse público primário goza de supremacia e na
coincidência desse interesse público com a vontade majoritária da sociedade. Borges
conceitua o interesse público, a prevalecer sobre o privado, como “um verdadeiro somatório
dos interesses dos indivíduos que nele encontram a projeção de suas próprias aspirações”.
Aduz, em crítica aos adeptos da teoria desconstrutivista, que “é preciso não confundir
supremacia do interesse público - alicerce das estruturas democráticas, pilar do regime
jurídico administrativo - com as suas manipulações e desvirtuamentos em prol do
autoritarismo retrógrado de certas autoridades administrativas. O problema, pois, não é do
princípio: é, antes, de sua aplicação prática” (BORGES, 2011, p. 3).
Como sugere Iuri Mattos de CARVALHO (2007), “defender o fim da ideia de
supremacia, ao invés de um avanço na direção de uma Administração Pública mais
democrática poderia servir de justificação jurídica para a colonização do interesse público por
interesses privados”.
Então, continua referido autor, “ao invés de negar sua existência, devemos combater a
utilização indevida do princípio da supremacia do interesse público, que ocorre quando tal
princípio é usado para justificar decisões administrativas arbitrárias, ou vinculadas à busca de
interesses pessoais” (CARVALHO, 2007).
Segundo Raquel Melo Urbano de CARVALHO (2008):
Não se pode ignorar que a própria Constituição evidencia fundamentos com base em
que pode o Estado restringir o exercício de direitos individuais em prol dos
interesses da coletividade. E se a Constituição o faz, explícita e implicitamente, é
inadmissível negar preservação à supremacia do interesse público, na hipótese de
conflito com interesses privados. Frisa-se que em nenhum momento cogita-se da
predominância dos interesses governamentais transitórios em detrimento de
legítimas prerrogativas individuais. Não se trata de fundamentar o despotismo ou de
um Estado autoritário em desfavor de uma comunidade rebaixada à condição de
súditos da Idade Média. O que se assegura é a prevalência do bem comum na
hipótese de eventual conflito com interesses individuais de determinados grupos
privados ou de um particular. (CARVALHO, 2008, pp. 66/67)
Emerson GABARDO (2009, p. 305) aponta que “a implicação de valores
constitucionais é, portanto, uma exigência, não uma possibilidade”, na busca de critérios de
bem-estar coletivo a delimitar o interesse público, distinção esta que contribui para rechaçar
as críticas à supremacia do interesse público sobre o privado.
Assim é que, o que se busca assegurar “é a prevalência do bem comum na hipótese de
eventual conflito com interesses individuais de determinados grupos privados ou de um
particular” (CARVALHO, 2008, p. 67), sem se esquecer, no entanto, que “o Estado não existe
contra o particular, mas para o particular”, pois, “a supremacia do interesse público não
48
conduz à supressão da pluralidade de interesses jurídicos tuteláveis” (JUSTEN FILHO, 1995,
p. 52).
Portanto, “excluir a contraposição pressuposta entre interesse público e interesse
privado, admitir a atividade privada que proteja o bem comum, nada disso leva à recusa da
supremacia do interesse coletivo na hipótese de confronto com a pretensão individual”
(CARVALHO, 2008, 67):
Se em alguns casos o interesse público é satisfeito exatamente quando o Estado
atende uma necessidade particular, se em outras situações é a espontânea atividade
privada que satisfaz a demanda coletiva, também se mostra possível que, em dadas
circunstâncias, as intenções privadas, se concretizadas, signifiquem grave
comprometimento do bem comum. É isto que o pilar da supremacia do interesse
público busca evitar. (CARVALHO, 2008, p. 67)
A noção de interesse público torna-se, dessa forma, figura central e condicionante da
validade da atividade administrativa, para quem defende uma leitura constitucionalizada da
supremacia do interesse público.
Portanto, essencial estudá-lo a partir do paradigma do Estado Constitucional de
Direito, tendo por ideia central a noção do que seja esse interesse26 público a se sobrepor
sobre o privado.
26
Interesse (do latim: inter – esse = estar presente, tomar parte) é uma participação (referência positiva) de um
sujeito num objeto (numa outra pessoa, numa coisa ou numa relação). O interesse surge quando um
determinado objecto (espiritual ou material) é relevante de qualquer forma para um sujeito e é, por ele próprio
ou por outro apreciador, diretamente sentido, racionalmente presumido ou reconhecido como valioso (útil,
proveitoso, válido) para ser do sujeito interessado. (WOLFF; BACHOF; STOBER, 2006, p. 425)
49
3. O QUE É ESSE “TAL” INTERESSE PÚBLICO?
A releitura da supremacia do interesse público sobre o privado, a partir de “um
conceito de interesse público compatível com essa nova engenharia constitucional,
indelevelmente marcada pelo traço humanista da 'personalização da ordem normativa
constitucional’” (CRISTÓVAM, 2013, p. 227) é defendida como forma de adequá-la aos
contornos do regime jurídico administrativo, redefinidos pelo paradigma do Estado
Constitucional de Direito.
Assim, é preciso, agora, elucidar, o que seja “interesse público”, tendo por marcos
teóricos a teoria (re)construtivista e o paradigma do Estado Constitucional de Direito, como
instrumentos adequados à conformação de sua prevalência sobre o interesse privado.
Ao tratar do sentido da expressão interesse público, Raquel Melo Urbano de
CARVALHO (2008) alerta, não só para a indeterminação do seu conceito jurídico, como
também para a pluralidade de significados a ela atribuídos:
Com efeito, interesse público não é apenas um conceito jurídico indeterminado, mas
uma expressão equívoca cujos significados variam, desde a soma de interesses
particulares, até a fixação de um interesse social específico distinto dos particulares,
passando pela soma de bens e serviços, bem como pelo conjunto de necessidades
humanas indispensáveis à realização dos diversos destinos individuais.
(CARVALHO, 2008, p. 63).
Emerson GABARDO e Daniel Wunder HACHEM (2010, p. 33) também apontam
para a abstração conceitual da noção de interesse público e sua “questionada adequação à
realidade contemporânea, o foco das críticas doutrinárias na atualidade”.
É a partir disso que este trabalho busca por um conceito constitucionalizado de
interesse público.
3.1 Origem da ideia de bem comum: da Antiguidade clássica ao Estado Constitucional
de Direito
Necessário, se mostra, recuperar a ideia de bem comum, desde a Antiguidade Clássica
até o Estado Moderno, indagando-se da “raiz política ancestral” e do “núcleo originário do
moderno conceito de interesse público” (CRISTÓVAM, 2014, p. 39), como forma de
desenhar um conceito de interesse público constitucionalizado.
Emerson GABARDO e Daniel Wunder HACHEM (2010, p. 32) defendem, citando
François Santi-Bonnet, que a noção de interesse público está ligada intrinsecamente ao
50
Direito Administrativo, sendo possível “escrever uma história de interesse público [intérét
general] que seria o fio condutor de uma história do direito administrativo”.
Entretanto, o que se entente hoje por interesse público não foi criação das Revoluções
Liberais, embora tenham sido, a partir de então, reunidos os elementos e as condições para o
desenvolvimento de sua concepção atual.
A busca pela compreensão do que hoje denomina-se “interesse público” tem início na
Antiguidade Clássica – com a ideia de “bem comum” –, passa pela Idade Média – com a
influência do pensamento cristão –, e chega ao Estado Moderno – com o conceito de “vontade
geral” de Jean-Jacques ROUSSEAU (2011).
Na Grécia Antiga, “a vida na pólis estava dividida em duas esferas: a privada (...) e a
pública, onde o cidadão grego debatia as questões políticas e as instituições sobre as quais se
fundava a pólis” (CRISTÓVAM, 2014, p. 40). Era na vida pública que se exercitava a
“convivência política (dimensão pública ou comum)”, que qualificava o grego como “efetivo
cidadão da pólis” (CRISTÓVAM, 2014, p. 41).
De acordo com o pensamento platônico, o homem tem como grande meta a ideia do
Bem, “isto é, aquilo em virtude de que tudo o que é justo, belo, etc., é proveitoso e salutar.
Sem o conhecimento dela, qualquer outro saber seria inútil” (JAEGER apud CRISTÓVAM,
2014, p. 41):
Na filosofia platônica o “bem comum é, assim, sempre, o bem máximo de cada ser
humano, mas em integração sinfonial como o bem máximo, possível e real, de todos
os outros, em acto, em cada instante”, sendo esse o “fundamento metafísico da
dimensão política da realidade humana”. A política nasce da necessidade que cada
indivíduo humano tem de bens que não pode, por si só, adquirir. (CRISTÓVAM,
2014, p.43)
A noção de bem comum também está presente na filosofia de Aristóteles, que traz a
realização da felicidade como fundamento político do Estado e desenha o homem como um
animal social que somente encontra a felicidade na vida pública:
(...) o homem se caracteriza como tal porque “somente ele tem o sentimento do bem
e do mal”, qualidade esta indispensável tanto para sua constituição privada quanto
pública. Por conseguinte, “o todo deve ter necessariamente preferência sobre as
partes”, pois um homem que não seja capaz de se integrar na cidade não é mais que
um selvagem. A contrapartida desta preferência pela comunidade é a identificação
da organização pública como efetivo meio de realização da felicidade das pessoas
que nela vivem e que, por este motivo, podem ser consideradas cidadãs.
(GABARDO, 2009, p. 345)
Norberto BOBBIO (1987, pp. 24/25) recupera o pensamento Aristotélico segundo o
qual “o todo vem antes das partes”, razão pela qual “a totalidade tem fins não reduzíveis à
soma dos fins dos membros singulares que a compõem e o bem da totalidade, uma vez
alcançado, transforma-se no bem das suas partes”. E continua afirmando que “o máximo bem
51
dos sujeitos é o efeito não da perseguição, através do esforço pessoal e do antagonismo, do
próprio bem por parte de cada um, mas da contribuição que cada um juntamente com os
demais dá solidariamente ao bem comum”.
Como lembra José Sérgio da Silva CRISTÓVAM (2014, p. 46), “o indivíduo
aristotélico não é um ser isolado (particular)”, uma vez que:
Está necessariamente vinculado aos outros homens, na busca e na realização dos
seus próprios bens, porquanto somente a organização comunitária na cidade (esfera
pública) permitiria a realização plena da vida racional legada ao homem pela própria
natureza das coisas. O homem, individualmente, jamais poderá bastar-se a si mesmo
(ideia de autarquia) e atingir sua finalidade suprema (felicidade). Isso somente
poderá ser alcançado por meio da ação política virtuosa na cidade (a autarquia do
cidadão).
Delineado, pois, o conceito de bem comum para Aristóteles como:
(...) a medida da felicidade como bem supremo, atingível por meio da ação política
virtuosa (prudência), restando indissociável a felicidade individual e a coletiva, já
que ao homem somente é dado alcançar a plenitude e a suprema felicidade pela
senda da vida política virtuosa (esfera pública). (CRISTÓVAM, 2014, p. 47)
Todavia, há que alertar para o perigo de buscar na noção de bem comum uma
conceituação para interesse público, partindo de uma concepção organicista, tal como
definida por Aristóteles, em que “o interesse da coletividade deve preponderar sobre as
aspirações particulares de cada indivíduo” (CRISTÓVAM, 2014, p. 47), sob uma perspectiva
autoritária e antidemocrática de submissão dos interesses individuais aos desígnios da
coletividade:
Ainda que de inegável sofisticação, se transportado para a atualidade, não há como
negar o componente autoritário e antidemocrático do pensamento aristotélico de
bem comum, vez que fundado em uma perspectiva claramente organicista, no
sentido de que o interesse da coletividade deve preponderar sobre as aspirações
particulares de cada indivíduo. Um conceito de bem comum que submete as
aspirações e interesses da pessoa aos desígnios da coletividade acaba por sufocar e
até suplantar uma noção personalista de dignidade humana muito presente nos
modelos de Estado constitucional de direito posteriores à Segunda Guerra Mundial.
Há uma série de direitos e interesses individuais, inerentes e constitutivos de uma
dimensão personalista da dignidade humana, que não podem estar submetidos a uma
lógica de compatibilidade ou não aos cambiantes interesses da coletividade.
(CRISTÓVAM, 2014, p. 47)
Pensar o interesse público como a noção de bem comum aristotélico “acaba por
demonstrar uma considerável dose de desprestígio à pessoa humana e ao seu valor intrínseco
enquanto indivíduo, independentemente do seu papel social ou da sua função na comunidade
política”, o que acaba por contradizer o Estado constitucional e a dignidade da pessoa humana
como fundamento e sustentáculo da ordem constitucional brasileira:
Cada pessoa traz em si um conjunto de interesses e valores próprios (dimensão
privada do indivíduo), incapazes de serem adequada e integralmente reconduzidos a
uma ideia totalizante de entidade coletiva (dimensão pública).
52
No mesmo quadrante, a ideia de que cada indivíduo somente encontra sua felicidade
(bem supremo) quando passa a integrar a comunidade política e nela desempenhar a
sua respectiva função, contribuindo para o bem comum geral, traz em si (em
potência) a genética de uma sociedade estática, organizada por castas (avessa ou,
pelo menos, pouco preocupada com a questão da mobilidade social), onde cada
indivíduo já nasceria com uma determinada função na comunidade, um modelo de
sociedade assim delineado e uma noção de bem comum capaz de tolher, ainda que
indiretamente, a dinâmica e dialética condição e posição social do indivíduo, parece
inconciliável com a ideia de dignidade humana construída a partir da Modernidade e
com a própria ordem constitucional brasileira. (CIRSTÓVAM, 2014, pp. 47/48)
A noção de bem comum também está presente na Antiguidade clássica romana, “a
partir da dicotômica definição do Direito Público (jus publicum) e do Direito Privado (jus
privatum) legada ao Ocidente”, que “se fundava na centralidade de uma ideia jurídico-política
de interesse: se vinculada aos interesses do Estado, atraia as normas comuns ao Direito
Público; se relacionada aos interesses dos indivíduos, impunha as normas de Direito Privado”
(CRISTÓVAM, 2014, p. 48):
(...) os interesses privados eram identificados como os interesses dos particulares,
enquanto os interesses públicos restavam relacionados e atribuídos às coisas do
Estado e do povo romano (condomínio de interesses). Inclusive, uma das notas
características do Estado romano era a “plena unidade da noção de poder público,
como o imperium em que se baseia do direito público”.
José Sérgio da Silva CRISTÓVAM (2014) recupera a obra de Marco Túlio CÍCERO
(106 – 43 a.C.) para abordar a noção de “utilidade comum” (utilitas communis):
(...) a justificativa para a organização dos homens em sociedade é menos uma
questão de debilidade e mais um instinto inato de sociabilidade, sendo correto
afirmar que a espécie humana não nasceu para o isolamento e para a vida errante,
“mas com uma disposição que, mesmo na abundância de todos os bens, a leva a
procurar o apoio comum”, pelo que seria “a República coisa do povo, considerando
tal, não todos os homens de qualquer modo congregados, mas a reunião que tem seu
fundamento no consentimento jurídico e na utilidade comum”. (CRISTÓVAM,
2014, p. 49)
Inadequado, também, tentar ressignificar o interesse público a partir da noção romana
de utilidade pública, eis que incompatível com o modelo de Estado brasileiro sua forma de
democracia representativa27, pois:
A noção romana de utilidade pública, que deveria prevalecer sobre as aspirações
privadas e egoísticas do indivíduo, traz em si um aspecto republicano de espaço
público e de propriedade coletiva de bens e interesses (coisa pública), totalmente
diversa daquela conhecida pela Modernidade. A perspectiva de propriedade coletiva
de determinados bens e interesses, a partir da disposição política da República
romana, estava fundada em uma clara ideia de efetiva participação do povo na
formação das decisões sobre as questões de utilidade pública (interesse público), em
um colorido muito diferente daquela dimensão estatal autoritária e monopolista
agravada com a construção do Estado moderno. (CRISTÓVAM, 2014, p. 50)
27
Não serão abordadas nesse trabalho as diferenças e semelhanças entre os termos “democracia” e “república”,
por fugirem ao tema central do que se propõe debater. Para um estudo aprofundado sobre o tema, sugere-se a
leitura de: TOURAINE, Alain. O que é a democracia? Petrópolis-RJ: Vozes, 1996.
53
Na Idade Média, a concepção de bem comum foi especialmente influenciada pelo
pensamento filosófico da Antiguidade clássica, e tem como principal expoente TOMÁS DE
AQUINO, responsável por “uma sólida doutrina teológica do poder, do Estado e uma visão
racionalista da legalidade, categorias essenciais à construção de sua teoria política”
(CRISTÓVAM, 2014, p. 52), que edificou seu pensamento sobre a filosofia aristotélica e, a
partir daí, concebeu um modelo de felicidade absoluta – destinada ao homem que alcança a
Deus / bem comum por essência –, e um modelo de felicidade relativa – bem comum visto
como as aspirações e desejos humanos / próprio de cada grupo:
(...) a filosofia tomista concebe o homem como ser intelectual (ser subsistente na
natureza racional), o mais perfeito dentre todos os que habitam a natureza criada,
que somente atingirá sua finalidade última e suprema conhecendo e amando a Deus.
O homem (enquanto ser racional) torna-se o único dentre todos os seres naturais
dotado do poder de alcançar o “bem comum perfeito” (bonum commune perfectum),
que é a felicidade ou beatitude. Porém, a noção tomista de bem comum não se
encerra sob um modelo de felicidade exclusivamente temporal (bem comum
relativamente perfeito), já que somente será possível a verdadeira felicidade
(perfeita) ao homem que alcançar o bem comum por essência, que é Deus.
Nesse sentido, pode-se dizer que a filosofia tomista “colocava o bem comum como
tudo aquilo que o homem deseja, seja de que natureza for: bem material, moral,
espiritual, intelectual. Mas, sendo o homem um ser social, ele procura não só o seu
próprio bem, mas também aquele do grupo a que pertence. Cada grupo tem o seu
próprio bem comum”.
Também o pensamento cristão de TOMÁS DE AQUINO, e a sua concepção de bem
comum, não se mostra adequado a definir o que seja interesse público, pois parte do
pressuposto de que “somente em sociedades perfeitas existem leis justas, que tem como ponto
basal o bem comum; e somente será uma comunidade perfeita aquela que ordenar e promover
a ação política dos seus cidadãos para o bem comum”. Todavia, na medida em que vê o
ordenamento jurídico como ato do conhecimento, consistente em uma noção de legalidade
ligada a “uma concepção de razoabilidade e justiça”, e não como ato da razão, não consegue
explicar como o Estado Moderno conduz a busca do cidadão pelas finalidades comuns à
sociedade, sobretudo porque “não se pode deduzir que em uma comunidade política todos os
cidadãos tenham os mesmos valores ou objetivos” (CIRSTÓVAM, 2014, pp. 53/54).
Chega-se, então, à obra de Jean-Jacques ROUSSEAU (2011, p. 41), agora já no
Estado Moderno, e à sua noção de bem comum como fim a ser perseguido pelo Estado e que
somente pode ser alcançado quando dirigido segundo a “vontade geral”, “pois que não sendo
a soberania senão o exercício da vontade geral”.
Para Jean-Jacques ROUSSEAU (2011, p. 113), “quando muitos homens reunidos se
consideram como um só corpo, têm uma única vontade que se refere à comum conservação e
54
ao bem-estar geral”, “o bem comum se mostra em geral com evidência e não exige senão bom
senso para ser reconhecido”.
José Sérgio da Silva CRISTÓVAM (2014, p. 61), para compreender a “vontade geral”
rousseauniana, aborda três “categorias laterais: a vontade particular, a vontade corporativa e
a vontade de todos”, mas que na essência não se confundem com aquela primeira:
A vontade particular é a vontade privada ou pessoal do indivíduo (cidadão), que não
pretende senão ao seu proveito particular, o desejo de alcançar e satisfazer os seus
interesses e vantagens pessoais, sem a consideração por desejos ou interesses alheios
que não possam aproveitar diretamente.
(...)
Por sua vez, a vontade corporativa é aquela que decorre dos interesses comuns de
um grupo de pessoas (corporação), que ostentam desejos comuns tanto distintos
daqueles que todas as pessoas têm como membros do Estado (sociedade civil), como
também diversos dos interesses de cada indivíduo enquanto tal (separadamente). (...)
traduzem interesses gerais em relação ao grupo e particulares se confrontados ao
Estado (todo dos cidadãos), não podendo ser confundidos com a vontade geral.
(...)
Diferente da vontade geral (interesse comum), a vontade de todos reflete interesses
privados e não passa de uma soma das vontades particulares. Conquanto possam até
coincidir, ainda que aproximadamente, com os interesses da vontade geral (interesse
comum), os interesses da vontade de todos acabam por refletir e veicular somente
desejos privados que são “comungados” de forma instável e contingencial (relativa),
pelo que o “interesse comum não é o interesse de todos, no sentido de uma
confluência dos interesses particulares, mas o interesse de todos e de cada um
enquanto componentes do corpo coletivo e exclusivamente nesta qualidade”, o que
alerta para o inegável “perigo de predominar o interesse da maioria, pois, se é
sempre possível conseguir a concordância dos interesses privados de um grande
número, nem por isso assim se estará atendendo ao interesse comum”.
(CRISTÓVAM, 2014, pp. 61/62)
Definir o que seja vontade geral para Jean-Jacques ROUSSEAU (2011) é questão
“muito menos numérica e matemática e muito mais ética e política”, “a expressão vontade
geral estará naquele conjunto de elementos de consenso ou interesses comuns para os quais
converge a sociedade” (CRISTÓVAM, 2014, pp. 62/63).
Igualmente, a ideia de que o Estado seria dirigido pela vontade geral na busca pelo
bem comum foi objeto de crítica:
(...) taxada de um modelo individualista de matriz claramente utilitarista, na medida
em que supera e afasta aquela ideia tomista de bem comum, impregnada de um
cunho moral e ideológico (solidariedade social), pela máxima da vontade geral, que
teria no viés utilitário e legalista do consentimento (contrato) o seu fundamento de
legitimação. (CRISTÓVAM, 2014, p. 63)
Discordando em parte dessa imputação da pecha de utilitarista ao pensamento de JeanJacques ROUSSEAU, José Sérgio da Silva CRISTÓVAM (2014, p. 63) afirma que não se
pode “reduzi-lo à mais acabada doutrina liberal-individualista de feições utilitaristas”, já que
a “construção de um conceito de vontade geral” é feito sob “um insuprimível componente
moral, que exige a construção da sociedade a partir de um modelo de igualdade substancial”,
55
sem o qual “o edifício teórico rousseauniano desmoronaria e sucumbiria à dinamite totalitária
e autoritária das maiorias de ocasião”.
Definidas em linhas gerais a evolução histórica, político-filosófica, do conceito de
bem comum 28 , é de suma importância investigar os contornos do conceito de interesse
público, que, não obstante deite raízes na noção de bem comum, se desenvolveu a partir do
Estado Moderno, sobretudo após as Revoluções Liberais, ocasião em que, como dito
anteriormente, foram reunidos os elementos e as condições para o desenvolvimento de sua
concepção atual: “a atual noção de Administração Pública e o conceito de interesse público
guardam visceral ligação histórica e sociopolítica com a ideia de Estado moderno, que
sucedeu o feudalismo medieval” (CRISTÓVAM, 2014, p. 67).
Há que salientar que o primeiro modelo a surgir com o Estado moderno foi o Estado
Absolutista29 – modelo de governo em que “a fonte de todo o direito é a pessoa subjetiva do
rei, representante divino na terra, sendo a sua vontade a lei suprema e a síntese de todos os
interesses do Estado enquanto comunidade política. Nesse sentido, adverte JUSTEN FILHO
(1999, p. 116) que “não seria exagero afirmar que a totalidade dos interesses públicos estava
na titularidade do Estado. Aliás, confundia-se interesse público e interesse do soberano”.
No Estado Liberal de Direito 30 vigorava a ideia de que a “satisfação do interesse
público estava muito mais vinculado a uma expressão negativa (não intervencionista),
garantidor do exercício da autonomia da vontade privada dos indivíduos que compunham o
tecido social” (CRISTÓVAM, 2014, p. 71).
Nesse contexto histórico, final do Séc. XVIII e início do Séc. XIX, o Direito
Administrativo passa a ser considerado uma disciplina jurídica autônoma. Antes disso, no
Estado Absolutista, devido à concentração de poderes nas mãos do soberano, impossível falar
em regras administrativas na concepção conhecida atualmente31.
28
Não constitui pretensão deste trabalho acadêmico esgotar todas as nuances da evolução histórica, políticofilosófica, do conceito de bem comum. Pretende-se, apenas, traçar um panorama como forma de contextualizar
a noção de interesse público, sem qualquer pretensão de aprofundamento filosófico, malgrado seja um tema
bastante instigante.
29
O Estado absolutista pode ser situado historicamente como um Estado de transição, do que decorre sua
destacada importância, na medida em que consolidou a centralização do poder político na figura do monarca,
diferentemente do modelo descentralizado característico da organização política feudal, preparando o advento
do Estado liberal, fundado no modo de produção capitalista. (CRISTÓVAM, 2014, p. 68)
30
A noção clássica do interesse público desempenha papel mais expressivo a partir da constituição do Estado de
Direito, de cujos postulados fundamentais ressai o que identifica sua função basilar, qual seja a de gerir os
interesses das coletividades almejando o bem-estar e a satisfação dos indivíduos. (CARVALHO FILHO, 2010,
p. 67)
31
DI PIETRO (2002, p.01) afirma que “isto não significa [...] que inexistissem anteriormente normas que hoje
comporiam esse ramo do direito, pois onde quer que exista o Estado, existem órgãos encarregados do exercício
de funções administrativas”. Referida autora alerta, contudo, que:
56
Nasce, então, um direito, fruto do liberalismo, dividido entre a proteção do cidadão e a
garantia da força estatal, que tem na supremacia do interesse público um valioso instrumento
de proteção do Estado:
O direito administrativo, ao menos teoricamente, quer garantir, de um lado, o espaço
público contra a invasão privada e a supremacia do interesse público, encarnado no
Estado, sobre o interesse privado; de outro, preocupado com o abuso desses
privilégios autoritários, tende a aumentar a proteção do cidadão no confronto com o
Estado.
Sobre essa contradição ou ambiguidade, se conecta o terceiro fator, como uma
espécie de equilíbrio: a submissão da Administração à lei. O princípio da legalidade,
nessa acepção original, significa que a lei, nas relações administração-cidadão,
define e limita a autoridade da primeira em confronto com o segundo.
É elemento comum do desenvolvimento inicial do direito administrativo, nos
diversos países da Europa continental, o fato de sua ciência ser filha da idade liberal.
Em todos os ordenamentos aparece constantemente a preocupação de se definir
confins entre direitos dos cidadãos e poderes do Estado, seja para garantir e proteger
o cidadão nos confrontos com o Estado, seja para garantir que o Estado não se
submeta à vontade dos privados dotados de maior poder de influência. (ANDRADE,
2010, pp. 157/158)
Com o fim da Primeira Guerra Mundial, no início do Séc. XX, o Direito
Administrativo de matriz liberal começa a ruir, provocado pelas “alterações estruturais
operadas na sociedade” que “implodem o modelo de Estado e de Administração”, e
desagregam o “modelo administrativo do século XIX”, incapaz de “representar teoricamente
toda a atividade estatal”, que não correspondia mais àquele sistema monolítico e unitário até
então vigente (ANDRADE, 2010, pp. 162/163).
Surge, então, o modelo do Estado Social de Direito, que se caracteriza “por uma
perspectiva muito mais preocupada com a pessoa humana e pela busca da satisfação das suas
necessidades por meio do aparato estatal (prestacionismo)” (CRISTÓVAM, 2014, p. 73).
A partir de meados do Séc. XX – pós Segunda Guerra Mundial – ganha forma um
modelo de Estado de Direito, chamado Constitucional, que tem na “supremacia da
Constituição” e no “caráter vinculante dos direitos fundamentais” seus “dois traços
característicos e fundantes” (CRISTÓVAM, 2014, p. 77).
O Direito Administrativo passa a ser fortemente influenciado pelo Direito
Constitucional, o que retira o status de supervalorização da Administração e desloca a atenção
para o ordenamento jurídico, que tem seu ápice na Constituição (ANDRADE, 2010).
Sustenta Érico ANDRADE (2010, p. 168) que “o segundo pós-guerra muda
incisivamente o papel do Estado, que passou a assumir novas funções, novas tarefas” que
Na Idade Média não houve ambiente propício para o desenvolvimento do direito administrativo, porque era a
época das monarquias absolutas, em que todo poder pertencia ao soberano; a sua vontade era a lei, a que
obedeciam todos os cidadãos, justificadamente chamados servos ou vassalos. A vontade do monarca era a lei.
(DI PIETRO, 2002, p. 01)
57
“leva à efetiva pluralização da Administração, aberta a novas formas de atuação, diversas do
seu anterior estágio monolítico e unitário, o que resulta em desagregação cada vez maior,
perdendo a antiga unidade”. E continua, referido autor:
O fenômeno da ampla constitucionalização do direito em geral, e do direito
administrativo em especial, se iniciou com o término da Segunda Guerra Mundial: o
pós-guerra viu florescer uma nova e direta fundação constitucional de todo o direito
administrativo, quando se introduziu o Estado social, com os novos pontos de
equilíbrio das democracias constitucionais, em que se busca conduzir o poder estatal
para o provimento das necessidades essenciais dos cidadãos.
A Constituição e o direito constitucional saem, pois, ao final da Segunda Guerra
Mundial, na vanguarda do processo de modernização jurídica, deixando o porto
tranquilo do direito do século XIX para caminhar ao desconhecido direito
democrático e social que se iniciava. A partir de então se abrem as portas para
instituição de um novo “direito público social”, livre das matrizes liberais,
individualistas, e se inicia sensível alteração no léxico jurídico com o abandono de
antigos institutos e criação de novos. (ANDRADE, 2010, pp. 221/222)
Nesse contexto, a dogmática liberal-clássica não é suficiente a regular esse novo tipo
de atuar administrativo, sobretudo porque o Estado, “ao invés de simples regulador e curador
da ordem pública” “passa a atuar diretamente para fornecer prestações para o cidadão”
(ANDRADE, 2010, p. 173).
E é toda essa mudança de perspectiva da Administração pública que propicia “o
surgimento do Estado pluriclasse, com a abertura para a participação das várias classes sociais
na gestão estatal” (ANDRADE, 2010, p. 179), o que altera, inclusive, o sentido do que seja o
interesse público a ser perseguido pelo Estado.
A Constituição assume, então, “o papel fundamental de representar as aspirações das
várias classes sociais, que agora têm acesso ao poder no âmbito do Estado pluriclasse”
(ANDRADE, 2010, p. 222), o que a coloca na função intermediadora dos valores sociais, de
modo a permitir uma convivência harmônica entre os vários interesses públicos.
Pois bem, se é certo que o Estado Constitucional de Direito muda a ótica do Direito
Administrativo e, por conseguinte, do interesse público, a partir do Direito Constitucional; se
é certo que cada um dos modelos de Estado de Direito trouxe consigo sua definição particular
do que seja interesse público, indaga-se: o que se entende por interesse público na atualidade?
3.2 Distinção entre interesse público primário e interesse público secundário
A busca pela definição da expressão “interesse público”, como limitador da
supremacia, passa pela distinção, de origem na doutrina italiana (ALESSI, 1960), do que seja
interesse público primário e interesse público secundário, que, embora pouco explorada pela
doutrina brasileira, é de importância fundamental (BARROSO, 2005).
58
Enquanto “o interesse público primário é a razão de ser do Estado e sintetiza-se nos
fins que cabe a ele promover”, “o interesse público secundário é o da pessoa jurídica de
direito público que seja parte em uma determinada relação jurídica” (BARROSO, 2005, p.
xiii).
Isabelle de BAPTISTA (2013), citando Renato ALESSI (1960), aduz que:
(...) os interesses primários decorrem da dimensão pública dos direitos de indivíduos
inseridos num dado contexto social. Os interesses secundários decorrem de toda
manifestação de vontade do Estado enquanto pessoa jurídica, “[...] interesse,
portanto, subjetivo, enquanto próprio do sujeito, e também, em sentido lato,
patrimonial” (ALESSI, 1953, p. 152, tradução nossa). (BAPTISTA, 2013, p. 62)
Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO (2011, p. 65) lembra que, malgrado já tenha
sido “reconhecido que os interesses públicos correspondem à dimensão pública dos interesses
individuais enquanto partícipes da Sociedade”, não se pode esquecer que o Estado, como
pessoa jurídica que é, tem interesses que lhe são particulares, para além daqueles que, por
essência, está encarregado de realizar:
Esta distinção a que se acaba de aludir, entre interesses públicos propriamente ditos
– isto é, interesses primários do Estado – e interesses secundários (que são os
últimos a que se aludiu), é de trânsito corrente e moente na doutrina italiana, e a um
ponto tal que, hoje, poucos doutrinadores naquele país se ocupam em explicá-los,
limitando-se a fazer-lhes menção, como referência a algo óbvio, de conhecimento
geral. (BANDEIRA DE MELLO, 2011, p. 66)
A respeito da distinção entre interesse público primário e secundário, Raquel Melo
Urbano de CARVALHO (2008, p. 61) sustenta que os interesses públicos primários são
“aqueles pertinentes à sociedade e tutelados no ordenamento jurídico, enquanto que os
secundários seriam atinentes ao governo exercido em determinada época por agentes públicos
que integram o aparelho estatal”.
A par desta distinção conceitual, Marçal JUSTEN FILHO (1995) ressalta que os
interesses secundários não são propriamente interesse público, a menos que equivalham aos
primários:
Deve-se ter em vista que nenhum interesse público se configura como conveniência
egoística da Administração Pública. O chamado interesse secundário (Alessi) ou
interesse da Administração Pública não são públicos. Aliás, nem ao menos são
interesses, na acepção jurídica do termo. São meras circunstâncias, alheias ao
Direito”. (JUSTEN FILHO, 1995, pp. 51/52)
É o que afirma Isabelle de BAPTISTA (2013), mais uma vez fazendo uso da obra de
ALESSI (1960), ao pontuar que:
(...) os interesses secundários são apenas legítimos se forem coincidentes com os
interesses primários e, assim, colocam-se como garantia “[...] de que a ação
administrativa seja efetivamente direta na realização do interesse público” (ALESSI,
1953, p. 153, tradução nossa) (BAPTISTA, 2013, p. 62).
59
Raquel Melo Urbano de CARVALHO (2008) também é firme ao afastar os interesses
públicos secundários da ideia de supremacia:
Com efeito, o interesse da Administração Pública só é legítimo se coincide com o
interesse dos cidadãos amparado no ordenamento. O único interesse público que é
lícito ao Estado perseguir é o primário, porquanto não-divergente dos interesses da
coletividade e delimitado pelos paradigmas normativos da ordem jurídica. É este
interesse coincidente com a soberania popular que deve prevalecer em todos os atos
estatais, de natureza legislativa ou executiva, porquanto vinculante, genericamente,
do Direito Público.
Destarte, sempre que o objetivo perseguido pelo administrador não corresponder ao
interesse da coletividade, não há que se falar em interesse público e muito menos em
princípio da supremacia. A única superioridade que se entende legítima é aquela
pertinente ao interesse comum do conjunto de cidadãos em relação ao interesse
individual de cada uma das pessoas que integram uma dada sociedade.
(CARVALHO, 2008, p. 62)
Para Hidemberg Alves da FROTA (2005) o interesse da Administração Pública só se
legitima diante do interesse da sociedade:
Quando predomina o interesse público, prevalece a soberania popular. A busca do
agente público pelo bem-estar geral da sociedade exalta a ânsia do povo pelo
aprimoramento do ambiente em que vive, de seus pares, de si próprio e das
instituições estatais. Fazer valer o interesse público significa priorizar a vontade do
povo. Quando o agente público deixa de visar ao interesse público, afronta a ordem
jurídica, despoja-se do dever de servir à sociedade. Incorre em ilegalidade
mancomunada com ilegitimidade. Além de fraudar o Direito – máxime o Direito
Legislativo –, trai o povo.
Enaltecendo o interesse geral da sociedade emoldado pelo Direito – mormente pelo
Direito Legislativo –, o agente público louva o axioma do princípio da soberania
popular, todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes
eleitos diretamente, nos termos da Constituição da República (dicção baseada no art.
1, parágrafo único, da CF/88). Nesse aforismo se arrima o princípio democrático,
difundindo na ordenação jurídica a parêmia de que o Governo em sentido
amplíssimo (visto como conjunto de órgãos e entidades estatais) ‘é do povo, pelo
povo e para o povo’, e o princípio da legitimidade, induzindo o Estado a respaldar
seus atos no querer popular (‘as aspirações sociais e o interesse social é que
legitimam o direito’.
(...)
Indissociável do princípio da soberania popular o princípio da supremacia do
interesse público sobre o privado. Impossível o agente público transgredir a
finalidade da norma jurídica nesta insculpida à luz do interesse público, no espírito e
sob o pálio do Estado Democrático de Direito, sem conspurcar o contrato social,
desmerecer a confiança depositada pelo povo no Poder Público e em seu empenho
de concretizar o interesse social positivado. (FROTA, 2005, pp. 53/54)
Luís Roberto BARROSO (2005, p. xiv) ressalta a importância de ambos – primário e
secundário –, pois, se o interesse público primário busca a efetivação dos direitos
substancialmente reconhecidos como públicos, o interesse público secundário impõe ao
administrador o controle dos recursos financeiros imprescindíveis para a realização do
primeiro. Ora, “sem recursos adequados, o Estado não tem capacidade de promover
investimentos sociais nem de prestar de maneira adequada os serviços públicos que lhe
tocam”.
60
Todavia, malgrado a vinculação da realização do interesse público primário à
existência de recursos fornecidos pelo exercício do interesse público secundário, o primeiro
não poderá ser sacrificado em prol da satisfação do segundo:
À vista das ideias aqui expostas, já é possível enunciar uma constatação. O interesse
público secundário – i.e., o da pessoa jurídica de direito público, o do erário – jamais
desfrutará de supremacia a priori e abstrata em face do interesse particular. Se
ambos entrarem em rota de colisão, caberá ao intérprete proceder à ponderação
adequada, à vista dos elementos normativos e fáticos relevantes para o caso
concreto. (...) Mas há uma ponte na direção da posição tradicional.
O interesse público primário, consubstanciado em valores fundamentais como
justiça e segurança, há de desfrutar de supremacia em um sistema constitucional e
democrático. (...) O interesse público primário desfruta de supremacia porque não é
passível de ponderação. Ele é o parâmetro da ponderação. Em suma: o interesse
público primário consiste na melhor realização possível, à vista da situação concreta
a ser apreciada, da vontade constitucional, dos valores fundamentais que ao
intérprete cabe preservar ou promover. (BARROSO, 2005, pp. xv/xvi).
Então, somente há que se falar em interesse público, a ser perseguido pela
Administração Pública, aquele correspondente ao que Renato ALESSI (1960) denominou de
interesse público primário, uma vez que o chamado interesse público secundário seria
verdadeiro interesse da Administração Pública.
3.3 Interesse público como objeto de estudo do Direito Administrativo: a busca por um
conceito constitucionalizado
O interesse público deve ser estudado a partir de uma análise crítica de seu
posicionamento dentro do Direito Administrativo, diante da evolução histórica deste ramo do
direito que, como já dito, sofreu profunda alteração em seus alicerces, em razão da mudança
paradigmática da estrutura estatal.
Antes de tudo, e relembrando o que foi abordado no item anterior, o interesse público
“não se constrói a partir da identidade do seu titular”, pois “nem todo interesse manifestado
pela Administração Pública é interesse público” (CARVALHO, 2007). Assim, não é
despiciendo lembrar que o interesse público secundário, por se qualificar como interesse da
Administração Pública, não é verdadeiramente o interesse público a ser dotado de prevalência
em relação ao privado.
Luís Roberto BARROSO (2005, p. 39), ao tratar da “redefinição do interesse público
sobre o interesse privado” diz que:
Em relação a este tema, deve-se fazer, em primeiro lugar, a distinção necessária
entre interesse público (i) primário – isto é, o interesse da sociedade, sintetizado em
valores como justiça, segurança e bem-estar social – (ii) secundário, que é o
interesse da pessoa jurídica de direito público (União, Estados e Municípios),
identificando-se com o interesse da Fazenda Pública, isto é, do erário. Pois bem: o
61
interesse público secundário jamais desfrutará de uma supremacia a priori e abstrata
em face do interesse particular. Se ambos entrarem em rota de colisão, caberá ao
intérprete proceder à ponderação desses interesses, à vista dos elementos normativos
e fáticos relevantes para o caso concreto. (BARROSO, 2005, p. 39)
José Sérgio da Silva CISTÓVAM (2014), na difícil missão de conceituar interesse
público, acaba por dizer o que não o é:
Realmente, “nenhum ‘interesse público’ se configura como ‘conveniência egoísta da
administração pública’”, já que o chamado interesse secundário ou interesse da
Administração Pública não é público, não sendo sequer efetivo interesse, mas mera
conveniência circunstancial. (CRISTÓVAM, 2014, p. 109)
Marçal JUSTEN FILHO (2005) também sustenta não serem públicos os interesses da
Administração Publica:
O chamado “interesse secundário” (ALESSI) ou “interesse da Administração
Pública” não é público. Ousa-se afirmar que nem ao menos são “interesses”, na
acepção jurídica do termo. São meras conveniências circunstanciais, alheias ao
Direito. A tentativa de obter a maior vantagem possível é válida e lícita, observados
os limites do direito, apenas para os sujeitos provados, essa conduta não é
admissível para o Estado, que só est[a legitimado a atuar para realizar o bem comum
e a satisfação geral. (JUSTEN FILHO, 2005, p. 39)
Excluído o que Renato ALESSI (1960) chamou de interesse público secundário,
pergunta-se: o que realmente vêm a ser “interesse público”?
Conceituar interesse público, malgrado seja de extrema fascinação no Direito
Administrativo, não é tarefa fácil, sobretudo diante da indeterminação 32 de seu conceito
jurídico, os quais, “por sua imprecisão conceitual, acabam por abarcar significações diversas
e, em certos casos, até conflitantes” (CRISTÓVAM, 2014, p. 91).
José Sérgio da Silva CRISTÓVAM (2014, p. 90) salienta que é consenso entre os
doutrinadores do Direito Administrativo brasileiro “que a expressão ‘interesse público’ situase dentre aquelas comumente aceitas como exemplo de ‘conceito jurídico indeterminado’”.
E, estar enquadrado entre os denominados conceitos jurídicos indeterminados é
característica essencial à sua concretização, pois permite à Administração Pública aplicá-lo de
maneira a melhor adequação a cada caso:
Mas isso não deveria ser entendido como “um defeito do conceito, mas um atributo
destinado a permitir sua aplicação mais adequada caso a caso. A indeterminação dos
limites do conceito permite a aproximação do sistema normativo à riqueza do
mundo real”. (CRISTÓVAM, 2014, p. 90)
E, essa concretização do “interesse público” de acordo com o “mundo real”, é a
atividade administrativa que o torna determinável concretamente, no momento em que a
32
Para um aprofundamento sobre a “discricionariedade administrativa e a valoração jurídica dos conceitos
jurídicos indeterminados”, recomenda-se a leitura da obra: Controle Jurisdicional da Administração Pública de
Germana de Oliveira Moraes (2004).
62
Administração Pública lhe atribui sentido “por meio de juízos valorativos ou prognósticos”
(CRISTÓVAM, 2014, p. 97).
Há que se atentar, contudo, que essa concretização do interesse público não é atividade
discricionária da Administração Pública, pois, como afirma José Sérgio da Silva
CRISTÓVAM (2014), a atuação administrativa é sempre vinculada à ordem jurídica, seja em
maior ou menor grau:
Não se pode admitir que a concretização prática da noção de interesse público possa
ser colonizada pelos domínios da discricionariedade administrativa. Em última
análise, todas as decisões administrativas são vinculadas (em maior ou menor
gradação) à ordem normativo-axiológica constitucional e infraconstitucional, de
onde ressaem a justificativa, o fundamento, a finalidade e a própria legitimação do
agir administrativo. (CRISTÓVAM, 2014, p. 97)
É nessa vinculação à ordem jurídica, entendida como “todo o bloco de legalidade”,
que tem por ápice a Constituição, que se deve buscar os limites e contornos do conceito
jurídico de interesse público.
Não se olvide que a noção de legalidade33 sofreu alterações ao longo do tempo, para
alcançar o que hoje chamamos de juridicidade, uma vez que:
[...] o sistema não seria legítimo se apenas cumpridas pelo Estado as regras legais
que lhe integram, sendo necessária a ampliação da legalidade para a noção de
juridicidade, em cujo bojo inserem-se valores como eficiência, moralidade,
segurança jurídica e proporcionalidade. A regra legal torna-se apenas um dos
elementos definidores da noção de juridicidade que além de abranger a
conformidade dos atos com tais regras, exige que sua produção (a destes atos)
observe – não contrarie – os princípios gerais de Direito previstos explícita ou
implicitamente na Constituição. (CARVALHO, 2008, p. 53)
A respeito do princípio da juridicidade, ensina Edilson Pereira NOBRE JÚNIOR
(2002), citando Luis Cosculluela MONTANER, que a legalidade:
“alcançou sentida evolução, traduzindo hoje, em essência, a necessidade de que
todos os Poderes Públicos se achem submetidos ao Direito, com a necessária
lembrança de que tal vinculação respeita ‘a todo o bloco de legalidade, inclusiva aos
princípios gerais do Direito, positivados ou não na Constituição e nas leis’”.
(NOBRE JÚNIOR, 2002, p. 134)
E, retomando o raciocínio sobre conceito jurídico de interesse público, Emerson
GABARDO (2009, p. 284), afirma que “a noção de interesse público adquiriu centralidade há
pouco tempo, não fazendo parte das reminiscências proto-históricas do Direito
administrativo”.
Lembra José Sérgio da Silva CRISTÓVAM (2014) que:
(...) ainda que se possa buscar a construção de uma noção de interesse público já na
antiguidade (sobretudo a partir da ideia de bem comum), como já abordado
33
(...) a consagração da ideia de que a Administração Pública só pode ser exercida na conformidade da lei e que,
de conseguinte, a atividade administrativa é atividade sublegal, infralegal, consistente na expedição de
‘comandos complementares’ à lei. (BANDEIRA DE MELLO, 2011, p. 100)
63
anteriormente, não se pode negar que a sua acentuada centralidade ocorre a partir do
advento da Modernidade, associada às construções dos ideais relacionados ao
Estado de direito, à separação de poderes, aos conceitos de interesses individuais
(privados) e coletivos (públicos), em meio ao substrato político e filosófico do qual
germinou o próprio Direito Administrativo moderno. (CRISTÓVAM, 2014, p. 117)
No início do século XX o serviço público34 era visto por parte da doutrina como objeto
e fundamento do Direito Administrativo, em função da Escola do Serviço Público 35
desenvolvida por Léon DUGUIT, que, baseada no paradigma do Estado Social de Direito,
organizou o Estado Prestacional, e aglutinou em seu redor toda a estrutura do Direito
Administrativo (DUGUIT, 1996).
Léon DUGUIT 36 apontava que o Estado “é uma cooperação de serviços públicos
organizados e controlados pelos governantes”, e definia o serviço público como:
(…) toda atividade cuja realização deve ser assegurada, regulada e controlada pelos
governantes, porque a consecução dessa atividade é indispensável à concretização e
ao desenvolvimento da interdependência social, e é de tal natureza que só pode ser
realizada completamente pela intervenção da força governante. (apud, PEREIRA,
2002, p. 2.)
E propôs que “a noção de serviço público substitui[sse] o conceito de soberania, como
fundamento do Direito Público” (DUGUIT apud CRETELLA JÚNIOR, 1966, p. 202).
Para a Escola do Serviço Público, “certas obrigações se impunham aos governantes
para com os governados” e “a realização desses deveres era ao mesmo tempo a consequência
e a justificação de sua maior firmeza” (CRETELLA JÚNIOR, 1966, p. 202), o que
demonstra, claramente, uma embrionária noção de interesse público.
Emerson GABARDO (2009, p. 285), ao abordar a importância da obra de Léon
DUGUIT, salienta que essa “noção incipiente característica da filosofia política liberal-
34
Atribui-se a Rousseau o uso originário da expressão serviço público, pela primeira vez, embora destituída de
seu significado atual, tendo-a como sinônimo de qualquer atividade estatal. (GROTTI, 2003. p.20)
35
A propósito da “Escola do Serviço Público”, confira-se lição de Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO:
“Basta dizer que, à época de seu surgimento, sob o patrocínio teórico de Léon Duguit, o genial publicista que
capitaneou a chamada ‘Escola do Serviço Público’ (onde enfileiram os nomes ilustres de Jèze, Bonnardo,
Rolland, entre outros), a noção de serviço público apareceu como fórmula revolucionadora do Direito Público
em geral e do Direito Administrativo em particular, intentando fazer substituir o eixo metodológico desta
disciplina - que dantes se constituía sobre a ideia de ‘poder' estatal - pela ideia de ‘serviço aos administrados’.
(…) Duguit propôs-se a afastar a ideia de soberania e de Poder Público como origem do Direito, repelindo a
teoria de que ‘o Estado cria o Direito, mas está regido por ele’. Para este mestre, ‘o serviço público é o limite e
o fundamento do poder governamental’. Daí haver arrematado: ‘Et par là ma théorie de l’État est achevée’
(Traité de Droit Constitutionnel, 2ª ed., v. II, Librairie Fontemoing, 1923, p. 70). Em sua esteira, passou-se a
ver o Direito Administrativo como um conjunto de princípios e normas congregados ao derredor da ideia de
serviço público. ‘A Escola do Servi;o Público acreditava poder explicar todas as particularidades do Direito
Administrativo pelas necessidades do serviço público’, disse Jean Rivero (Droit Administratif, 2ª ed., Paris,
Dalloz, 1962, p. 146). ‘A tese fundamental é a de que todo o Direito Administrativo se explica pela noção de
serviço público’, averbou Georges Vedel (Droit Administratif, 3ª ed., Paris, Presses Universitaires de França,
1964, p. 72)”. (BANDEIRA DE MELLO, 2011, pp. 679/680)
36
DUGUIT, León. Traité de Droit Constitutionnel, tomo 2, p.59. 1923 apud PEREIRA, 2002, p. 2.
64
revolucionária, ligada à vontade geral do povo; nem mesmo equivale ao interesse geral
contido no conceito de serviço público”.
Por isso, a ideia de prestação de serviço público como centro do Direito
Administrativo não foi bastante para explicar toda a complexidade de atividades inerentes ao
desenvolvimento das funções do ente estatal, o que fez a doutrina administrativista lançar mão
da teoria do ato como objeto da atuação pública.
Isabelle de BAPTISTA (2013, p. 57) explica que “atrelar o objeto do Direito
Administrativo tão somente à prestação de serviço público não foi suficiente para abarcar toda
a complexidade da atividade administrativa do ente estatal”, razão pela qual “a necessidade de
encontrar outro objeto mais adequado e que melhor sistematizasse a disciplina jurídica” fez
com que “o ato administrativo” fosse “estruturado tomando-se por base seus elementos,
atributos, competências, pela análise da vontade administrativa em torno do mérito e da
discricionariedade, finalidade e formalidades”.
Entretanto, também o ato administrativo37 , como objeto do Direito Administrativo,
não se mostrava adequado a expressar a atividade administrativa em sua essência, uma vez
que nem sempre a atuação da Administração Pública se dá por intermédio de atos.
É o que afirma Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira da SILVA (2003), no prefácio de
sua obra “Em busca do acto administrativo perdido”:
(…) a noção clássica de acto administrativo foi elaborada em função de um modelo
de Administração (meramente) agressiva, que era o do Estado Liberal, que já não
existe mais - e que se refletia num conceito de natureza autoritária, que não pode
deixar de estar desactualizado. Como também porque o acto administrativo, em
nossos dias, perdeu o seu papel de protagonista exclusivo do relacionamento dos
37
A respeito da assunção do procedimento ao status de figura central do Direito Administrativo, cabe lembrar
Érico ANDRADE (2010):
“Toda a teorização do direito administrativo foi construída em torno do ato administrativo.
Preocupava-se a doutrina clássica com o momento decisório, com a emissão do ato decisório, descurando, por
completo, do ‘iter' que levava até ele. Era o ato administrativo que ditava a especialidade do direito
administrativo, permitindo a elaboração científica em torno do então novo ramo do direito.
Entretanto, no curso da evolução do Estado, vários fatores foram contribuindo para a alteração do quadro,
conduzindo a uma nova visão do procedimento: passa a ser considerado em si mesmo, e não como acessório
do ato administrativo.
Destacam-se alguns desses fatores. Primeiro, a perda da importância do poder de autoridade, mediante abertura
para outros tipos de atividade estatal, permeadas, por exemplo, pelo consenso. Com abertura para o direito
privado, como visto supra, o ato administrativo vai perdendo a centralidade no direito administrativo.
Segundo, o aparecimento do Estado pluriclasse - em que se reconhece a existência de múltiplos interesses
públicos - importa no surgimento do papel da Administração como mediadora entre esses vários interesses em
conflito, tornando evidente a insuficiência do ato administrativo para o desenvolvimento de tal função.
Terceiro, a maio abertura para a discricionariedade administrativa exige a disposição de regras prévias por mie
das quais a Administração possa ponderar os valores em jogo, para operar a escolha e permitir, com isso, o
controle do poder discricionário.
(…)
O procedimento se coloca atualmente como ponto central do Estado, deixando-se de lado, com isso, o ato
administrativo como ponto principal e mais importante do direito administrativo” (ANDRADE, 2010, pp.
298/299).
65
indivíduos com a Administração, para passar a ter de partilhar essa posição com
outras formas de actuação, que se tornaram cada vez mais habituais (v. g.
regulamentos, contratos, actividades de caráter técnico); ao mesmo tempo que esse
conceito de acto necessitava ainda de ser integrado e entendido no quadro mais
amplo de figuras como a relação jurídica administrativa ou o procedimento, sob
pena de não conseguir explicar a integridade dos vínculos jurídicos que actualmente
se estabelecem entre os indivíduos e as autoridades administrativas. Ao que acresce,
na nossa ordem jurídica, o desafio colocado pelo legislador constituinte no sentido
de obrigar à reconstrução da noção de acto administrativo, ao afastar (expressa e
intencionalmente) as clássicas características da definitividade e da executoriedade
do domínio da recorribilidade. (SILVA, 2003, p. 5)
Assim é que o interesse público surge, por sua vez, como objeto de estudo do Direito
Administrativo38, de modo que as práticas administrativas levem em consideração os fins do
Estado, estes entendidos como a noção de bem-estar coletivo, e passa a constituir o cerne dos
principais institutos do direito público39.
Héctor Jorge ESCOLA (1989) defende, em sua obra El interés público como
fundamento del derecho administrativo, que a Administração Pública deve desenvolver seus
atos e procedimentos de forma a alcançar os seus fins, estes compreendidos não como os da
própria Administração, nem tampouco como os do Direito Administrativo, mas sim como os
fins gerais do Estado, constituídos pela noção de interesse público, extraídos do somatório da
maioria dos interesses individuais e daqueles emergentes da vida em comunidade.
Isabelle de BAPTISTA (2013, p. 58), mais uma vez, aponta que “é a vinculação com o
interesse público dos indivíduos inseridos numa comunidade que justifica a atuação estatal
garantidora e protetora dos direitos e garantias fundamentais”, o que evita, por conseguinte, o
desvirtuamento da vontade coletiva sob a forma de desvio de finalidade do atuar
administrativo.
Todavia, para uma maior compreensão do conceito constitucionalizado de interesse
público, deve-se ter em mente o que a doutrina tradicional entende a partir de referida
expressão.
Hely Lopes MEIRELLES (1996, p. 81) define interesse público como “aquelas
aspirações ou vantagens licitamente almejadas por toda a comunidade administrativa ou por
38
Para Jaime Rodríguez-Arana “es tal la relevancia que el Consejo de Estado de Francia atribuye al interés
general que rotula el segundo epígrafe de sua rapport “El interés general clave de bóveda del Derecho Público
Francés” (RODRIGUÉZ-ARANA, 2012, p. 15)
39
Como aponta Jaime Rodríguez-Arana: “Esta construcción voluntarista e inmanente del interés general es la
razón de ser, según el Conseil d’Etat, del Derecho Público. Los grandes conceptos y categorías: servicio
público, dominio público, obra pública, empleo público, entre otros, tienen una característica común: deben ser
definidos en relación con la noción primaria de interés público, que se convierte en su razón de ser”
(RODRIGUÉZ-ARANA, 2012, p. 15)
66
parte expressiva de seus membros”, o que dá a ideia de somatório de interesses privados ou,
ainda, que o interesse público é eleito pelo critério majoritário40.
Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO (2011), por sua vez, inspirado pela noção de
“vontade geral” de ROUSSEAU, sustenta que interesse público não se restringe ao somatório
dos interesses individuais, por não se reduzir à vontade da maioria, apesar de também não se
contrapor de forma absoluta ao interesse privado, ou seja, ao interesse de cada indivíduo que
compõe a sociedade.
E, Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO (2011, p. 60) indaga-se da possibilidade
de haver separação absoluta entre interesse público e privado, e chega à conclusão de que “o
interesse público, ou seja, o interesse do todo, é função qualificada dos interesses das partes,
um aspecto, uma forma específica, de sua manifestação” (itálico no original).
É assim que Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO (2011, p. 60) o conceitua como
“o interesse do todo, do conjunto social, nada mais é que a dimensão pública dos interesses
individuais, ou seja, dos interesses de cada indivíduo enquanto partícipe da Sociedade
(entificada juridicamente no Estado)”41.
40
A respeito da noção de interesse público, ARAGÃO (2005, p. 1140) traz importante reflexão sobre “as
concepções anglo-saxônicas e europeias”, que de distintas (enquanto a primeira o considera como
essencialmente ligado aos interesses individuais, a segunda defende ser noção superior à mera somatória das
vontades particulares) passaram a se aproximar sob a influência do Estado Social de Direito, que desempenha
posição de garantidor, e não limitador, dos direitos fundamentais dos cidadãos:
Com efeito, as concepções anglo-saxônicas e europeias do interesse público sempre foram bastante distintas.
Enquanto nos EUA e no Reino Unido o interesse público era considerado como intrinsecamente ligado aos
interesses individuais, sendo próximo ao que resultaria de uma soma dos interesses individuais (satisfação dos
indivíduos = satisfação do interesse público); nos Estados de raiz germânico-latina, o interesse público era
considerado superior à mera soma dos interesses individuais, sendo superior e mais perene que eles, razão pela
qual era protegido e perseguido pelo Estado, constituindo o fundamento de um regime jurídico próprio, distinto
do que rege as relações entre particulares.
A evolução liberalizante do Estado, combinada com a visão de um Estado cada vez mais garantidor, não
limitador, de direitos fundamentais, está fazendo com que a noção europeia continental de interesse público
esteja se aproximando daquela anglo-saxônica. (ARAGÃO, 2005, p. 1.140).
41
Qual a importância destas observações, por via das quais buscou-se [sic] firmar que o interesse público é uma
faceta dos interesses individuais, sua faceta coletiva, e, pois, que é, também, indiscutivelmente, um interesse
dos vários membros do corpo social – e não apenas o interesse de um todo abstrato, concebido desligadamente
dos interesses de cada qual?
Sua extrema importância reside em um duplo aspecto; a saber:
(a) De um lado, enseja mais facilmente desmascarar o mito de que interesses qualificados como públicos são
insuscetíveis de serem defendidos por particulares (salvo em ação popular ou civil pública) mesmo quando seu
desatendimento produz agravo pessoalmente sofrido pelo administrado, pois aniquila o pretenso calço teórico
que o arrimaria: a indevida suposição de que os particulares são estranhos a tais interesses; isto é: o errôneo
entendimento de que as normas que os contemplam foram editadas em atenção a interesses coletivos, que não
lhes diriam respeito, por irrelatos a interesses individuais.
(b) De outro lado, mitigando a falsa desvinculação absoluta entre uns e outros, adverte contra o equívoco ainda
pior – e, ademais, frequente entre nós – de supor que, sendo os interesses públicos interesses do Estado, todo e
qualquer interesse do Estado (e demais pessoas de direito público) seria ipso facto um interesse público.
Trazendo à balha a circunstância de que tais sujeitos são apenas depositários de um interesse que, na verdade,
conforme dantes se averbou, é o “resultante do conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm
quando considerados em sua qualidade de membros da sociedade”, permite admitir que na pessoa estatal
67
Impossível cogitar, assim, de interesse público como somatório de interesses privados,
mas, também, não se pode pensá-los como discordantes daqueles de cada um dos membros da
sociedade, pois inconcebível que o todo elegesse prioridades contrárias àquelas de cada um
dos indivíduos que o compõem42.
Assim é que, para Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO (2011) o ponto de
intersecção entre interesses privados e públicos é a Lei43, o que já significou imenso avanço
na forma de identificação do interesse público, sem, contudo, representar sua efetiva
utilização como critério de controle da atuação discricionária da Administração Pública.
A respeito da definição proposta por Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO, Iuri
Mattos de CARVALHO (2007) defende que:
(…) acaba por encobrir que são muitos os interesses públicos reconhecidos pela
Constituição como capazes de legitimar a atuação administrativa; e que existem
colisões entre os interesses públicos e os interesses individuais que devem ser
consideradas para se estabelecer os limites das escolhas da Administração Pública.
(CARVALHO, 2007)
Isso porque, com o pluralismo da sociedade contemporânea44, que acaba por revelar a
multiplicidade de seus interesses igualmente públicos, os quais devem ser levados em
consideração pela Administração Pública em suas mais diversas atividades, a legalidade
clássica não é bastante a definir o que significa “interesse público”, já que, de acordo com a
noção de juridicidade, a atividade administrativa não pode estar adstrita apenas ao que está
previsto em lei (em sentido estrito), sobretudo no que concerne aos interesses públicos. Por tal
motivo importante descrever os ensinamentos de Alice González BORGES:
Na realidade moderna atual, tão rica e complexa, tão mutante e variada, deparamos,
entretanto, com uma multiplicidade de interesses, igualmente públicos, igualmente
podem se encarnar também interesses que não possuam a feição indicada como própria dos interesses públicos.
(BANDEIRA DE MELO, 2011, p. 185)
42
Seria inconcebível um interesse do todo que fosse, ao mesmo tempo contrário ao interesse de cada uma das
partes com o compõem. Deveras, corresponderia ao mais cabal contrassenso que o bom para todos fosse o mal
de cada um, isto é, que o interesse de todos fosse um anti-interesse de cada um.
Embora seja claro que pode haver um interesse público contraposto a um dado interesse individual, sem
embargo, a toda evidência, não pode existir um interesse público que se choque com os interesses de cada um
dos membros da sociedade. Essa simples e intuitiva percepção basta para exibir a existência de uma relação
íntima, indissolúvel, entre o chamado interesse público e os interesses ditos individuais. (BANDEIRA DE
MELLO, 2011, p. 60)
43
Como chama a atenção Jaime Rodrígues-Arana, em sua obra Interés general, Derecho Administrativo e
Estado del Bienestar, “la ley como expresión de la voluntad general es un mito”. Referido autor sustenta que
a identificação do interesse público com a vontade geral “es una operación intelectual tan perfecta como
imposible de practicar”, eis que, como adverte Duguit, na realidade, “la voluntad general no existe pues (...)
es la suma de las voluntades de los parlamentarios el precipitado de la ley”. (RODRÍGUEZ-ARANA, 2012,
pp. 13/14)
44
O surgimento do Estado pluriclasse, com a universalização do sufrágio a partir de meados do século XX, traz
uma gama de “interesses públicos” diversos e conflitantes que acabam por ser acolhidos na Constituição, o que
pluraliza sua noção, “de modo que se reconhece hoje a existência de vários interesses públicos” muitos dos
quais exigem a consensualidade, “num contexto de participação do cidadão”, “para serem corretamente
atuados pela Administração” (ANDRADE, 2010, p. 205).
68
primários, igualmente dignos de proteção, porém que assumem diferentes
dimensões. Temos, por exemplo, interesses individuais, também público, no mais
elevado grau possível, porque correspondentes a direitos fundamentais; temos
interesses transindividuais, coletivos e difusos, que frequentemente entram em
conflito entre si. (BORGES, 2011)
Daí, talvez, a ideia da multiplicidade de interesses públicos representar melhor o
momento atual do direito público, cabendo à Administração, por meio do procedimento
administrativo, a identificação das várias relações jurídicas envolvidas e a melhor forma de
“costurar” os vários interesses públicos em conflito, de modo a assumir importante papel de
arena de diálogo para tentar conciliá-los.
Raquel Melo Urbano de CARVALHO (2008, p. 67), citando Alexandre Santos
Aragão e Sabino Cassese, deixa claro que é preciso abandonar a ideia de “interesse público
em necessária contraposição aos interesses privados”, pois, em muitas hipóteses, sãos eles
convergentes e “reciprocamente identificáveis”, dada a multipolaridade de relações entre o
público e o privado:
Na tentativa de estabelecer o significado da noção de interesse público, em cada
circunstância, é imperioso, antes de mais nada, deixar de tratar o interesse público
em necessária contraposição aos interesses privados. É manifesta a possibilidade de
interesses públicos serem convergentes com interesses particulares. Este o
ensinamento de Alexandre Santos Aragão ao dizer que “o interesse público e os
interesses dos cidadãos, que antes eram vistos como potencialmente antagônicos,
passam a ser vistos como em princípio reciprocamente identificáveis".
Nesta porfia, Sabino Cassese trata de um novo modo de estabelecer as relações entre
o público e o privado. Adverte que tais relações já não são apenas bipolares, mas
multicolores, com interesses que coincidem e às vezes contrapõem, sem que a linha
de distribuição passe necessariamente pelo binômio público-privado. Estado e
mercado, público e privado, que se consideravam mundos separados ou em
oposição, apresentam-se como entidades interpenetráveis, com interesses comuns e
por vezes dissonantes.
É verdade, ainda, que, em alguns casos, o interesse público é atendido em razão de
comportamentos privados. Não é o Estado o titular exclusivo da concretização do
bem comum, sendo certo que, hoje, a ideia do espaço público decorre exatamente da
intervenção conjunta estatal e particular. (CARVALHO, 2008, p. 67)
José Sérgio da Silva CRISTÓVAM (2013, p. 225), ao estudar o conceito de interesse
público no Estado Constitucional, defende que a Constituição da República de 1988, deslocou
“o epicentro da ordem normativa para a pessoa humana”, sobretudo pelo “estabelecimento de
uma prodigiosa carta de direitos fundamentais, situando a dignidade da pessoa humana como
fundamento da República Federativa do Brasil”, o que, como já observado anteriormente,
“implica a necessária revisão de uma série de institutos que povoam os mais diversos ramos
jurídicos”.
Assim é que, “em um Estado Democrático de Direito, o conceito de interesse público
somente se esclarece completamente se redefinido a partir do compromisso da Administração
Pública em realizar direitos fundamentais” (CARVALHO, 2007).
69
E continua Iuri Mattos de CARVALHO (2007):
(…) a Constituição Federal estabeleceu quais interesses, coletivos ou individuais,
merecem o status de direitos fundamentais e estão aptos a serem levados em
consideração para se avaliar as escolhas dos agentes públicos no exercício de suas
competências.
Por isso, a definição do interesse público precisa reafirmar a vinculação da atuação
administrativa aos direitos fundamentais, ao momento em que favorece o processo
de constitucionalização do Direito Administrativo. Nesse sentido, Juarez Freitas
afirma que “o princípio do interesse público exige a simultânea subordinação das
ações administrativas à dignidade da pessoa humana e o fiel respeito aos direitos
fundamentais”. (CARVALHO, 2007)
Ensina Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira da SILVA (2003, p. 236) que “o recurso
aos direitos fundamentais para justificar as posições subjectivas dos indivíduos perante a
Administração decorre do reconhecimento pela dogmática da ‘dependência constitucional do
Direito Administrativo’”. E continua fazendo referência a Peter Haeberle:
As normas de Direito Administrativo devem ser entendidas à luz das disposições
constitucionais, e desse entendimento resulta que “a realização dos direitos
fundamentais ‘no’ Direito Administrativo constitui um dos factores mais salientes
da ‘modernização’ da parte geral deste”. (SILVA, 2003, p. 237)
Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira da SILVA (2003) reconhece nos direitos
fundamentais uma pretensão negativa do indivíduo contra atuação ilegal da Administração, a
saber:
É por isso que os direitos fundamentais se projectam imediatamente nas relações
administrativas, atribuindo aos indivíduos, desde logo, uma “pretensão negativa”
(HESSE) contra actuações ilegais da Administração. Trata-se de direitos a que as
autoridades administrativas se abstenham de agredir a esfera individual protegida
através dos direitos fundamentais, que são uma decorrência necessária da
qualificação dos direitos fundamentais como direitos subjectivos públicos, e da
possibilidade da sua invocação directa no domínio das relações jurídicas
administrativas. Dessa forma, “os direitos fundamentais atribuem incontestados
direitos de defesa contra actuações estatais, não apenas contra agressões
intencionais, como também contra prejuízos incidentais da liberdade e da
propriedade das pessoas causados por atuações estaduais” (MAURER). (SILVA,
2003, p. 238)
E, a identificação dos interesses públicos com a realização dos direitos fundamentais
“de defesa” - aqueles que se definem pela abstenção do Estado de ingerências na autonomia
do cidadão -, verificada, sobretudo, “no âmbito do exercício dos poderes autoritários por parte
da Administração”, tem no princípio da proporcionalidade
45
45
, instrumento eficaz de
“Surge, também, o princípio implícito da proporcionalidade, por meio do qual, na Itália, nos termos da Lei nº
262/2005, art. 23, a administração deve exercitar o poder de forma adequada à obtenção dos fins, com o menor
sacrifício possível dos interesses dos destinatários do provimento administrativo. Trata-se de princípio
constitucional implícito, acolhido na Itália por meio de penetração da normalização comunitária, que encampa
expressamente o princípio da proporcionalidade, importado da Alemanha, país em que a teorização a respeito
da temática atingiu maior maturidade.
O princípio da proporcionalidade, assim, tem importante destaque no âmbito do exercício dos poderes
autoritários por parte da Administração, em que sua aplicação se coordena em três pontos: o uso do poder deve
ser idôneo ao atendimento dos fins para os quais é predisposto; o uso do poder deve ser efetivamente
70
determinação, no caso concreto, da medida que melhor atenda aos fins da Administração
Pública, “com o menor sacrifício possível dos interesses dos destinatários do provimento
administrativo” (ANDRADE, 2010, p. 232).
Entretanto, é preciso deixar claro que não se trata de identificar os interesses públicos
apenas com os direitos de defesa, mas principalmente com a faceta positiva dos direitos
fundamentais que se materializa nos chamados direitos prestacionais46, sejam coletivos ou
individuais, os quais têm por objeto uma conduta da Administração Pública, isto é, uma
prestação de natureza fática47.
As teorias da Relação Jurídica e do Procedimento, erigidas ao status de novo centro do
Direito Administrativo, respectivamente pelas escolas jurídicas Alemã e Italiana, mostram-se,
então, como instrumentos hábeis e precisos de que dispõe o administrador público e, também,
a coletividade, para a identificação do que sejam esses “interesses” a serem alcançados pela
atividade administrativa e, consequentemente, a serem defendidos pela sociedade.
Não se pode olvidar, outrossim, que a ideia de relação jurídica administrativa, na
forma como desenvolvida pelos alemães, rechaça qualquer tentativa de se afirmar a
superioridade, legal ou moral, da atuação estatal na realização dos fins públicos, ao alocar em
igual posição o cidadão e as autoridades administrativas e afirmar que a Constituição afasta a
noção do cidadão como administrado ou como objeto do poder (SILVA, 2003).
Importante citar, a propósito, lição de Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira da SILVA:
(…) a Administração Pública é constituída por numerosos sujeitos jurídicos (art.
202º, alínea d), que visam a prossecução do interesse público, mas no respeito pelos
direitos dos cidadãos (artigo 266º, nº 1), e cuja actuação se pauta por regras jurídicas
(artigo 266º, nº 2). Os sujeitos de direito que integram a Administração Pública não
têm assim assegurados, à partida, nenhuma posição de superioridade fáctica ou
jurídica relativamente aos sujeitos privados, e a própria ideia de uma “superioridade
moral” dos interesses visados pelas autoridades administrativas, realizadas à custa
dos interesses privados, deve ser afastada, uma vez que os interesses públicos só
podem ser prosseguidos no respeito pelos direitos dos cidadãos (artigo 266º, nº 1).
(SILVA, 2003, pp. 206/207)
necessário para atingir a finalidade; e, por último, não deve incidir sobre as situações jurídicas em medida
superior àquela indispensável para a realização da finalidade”. (ANDRADE, 2010, p. 232)
46
Robert ALEXY (2006, p. 499) define direitos prestacionais como “direitos do indivíduo, em face do Estado, a
algo que o indivíduo, se dispusesse de meios financeiros suficientes e se houvesse uma oferta suficiente no
mercado, poderia também obter de particulares”.
47
“Enquanto a função precípua dos direitos de defesa é a de limitar o poder estatal, os direitos sociais (como
direitos a prestações) reclamam uma crescente posição ativa do Estado na esfera econômica e social.
Diversamente dos direitos de defesa, mediante os quais se cuida de preservar e proteger determinada posição
(conservação de uma situação existente), os direitos sociais de natureza positiva (prestacional) pressupõem seja
criada ou colocada à disposição a prestação que constitui seu objeto, já que objetivam a realização da igualdade
material, no sentido de garantirem a participação do povo na distribuição pública de bens materiais e
imateriais”. (SARLET, 2009, p. 282)
71
E, continuando a tratar da posição jurídica do cidadão, na Constituição Portuguesa,
referido autor ressalta que se relacionam, “de igual para igual” com as autoridades
administrativas, veja-se:
O cidadão e as autoridades administrativas são, em face da Constituição, sujeitos de
direito autónomos, em identidade de posições de base, e que se relacionam
juridicamente “de igual para igual”. A Constituição afasta, sem qualquer sombra de
dúvida, o entendimento do cidadão como “administrado”, ou como “objecto” do
poder, quer na versão “pura e dura” de submissão fáctica ao poder administrativo,
quer na visão “adocicada" de subalternizarão jurídica da posição do particular, da
teoria da “relação de poder”. A Constituição portuguesa consagra, portanto, a
relação jurídica administrativa como modelo para o estabelecimento de ligações
entre a Administração e o particular. (SILVA, 2003, p. 207)
A teoria italiana, por sua vez, mostra-se como importante “estrutura de ligação entre
vários sujeitos, públicos e privados”, e, ao deslocar o centro de gravidade da atividade
administrativa do ato para o procedimento, defende que nenhuma decisão “se esgota num
único acto” 48 (SILVA, 2003, p. 303). O procedimento, portanto, torna possível a construção
colaborativa da decisão administrativa, ocasião em que será definido, no caso concreto, o
interesse público a ser buscado na situação específica, o que é importante forma legitimadora
do atuar administrativo49.
Nesse sentido é que há que se buscar uma reformulação do princípio da supremacia do
interesse público sobre o privado, em direção a uma Administração Pública mais democrática
e condizente à noção de juridicidade, sendo a teoria dos direitos fundamentais importante
ferramenta, no Estado Constitucional, que conduz o atuar administrativo, agora não mais
unilateral e monolítico, e sim procedimental, rumo aos verdadeiros interesses públicos50.
48
Lembre-se que as teorias da Relação Jurídica e do Procedimento, erigidas ao status de novo centro do Direito
Administrativo, foram desenvolvidas, respectivamente, pelas escolas jurídicas Alemã e Italiana. Essas teorias
buscam abordar uma alternativa ao ato administrativo, que, na Administração Pública atual perde cada vez
mais espaço para a consensualidade. Para maior aprofundamento sobre o tema, indica-se, mais uma vez, a
leitura da obra de Vasco Manuel Pascoal Dias Pereira da Silva: Em busca do acto administrativo perdido.
49
Importante lembrar, com o auxílio da doutrina de Jaime Rodriguéz-Arana que “el interes general no es un
cheque en blanco, no es una fórmula abierta que permita el desencadenamiento de las potestades
administrativas sin más”. E, continua referido autor:
“Necessita ser demonstrado en lo concreto, precisa ser puntualizado con detalle, debe ser específico y fácil de
aprehender por la ciudadanía. De lo contrario, el concepto se convierte en un peligroso expediente para el
autoritarismo y el ejercicio unilateral del poder.” (RODRIGUÉZ-ARANA, 2012, p. 15)
50
Até aqui, esse trabalho procurou usar a expressão “interesse público” no singular, por uma questão didática, já
que assim é encontrada na doutrina quando se estuda a supremacia do interesse público sobre o privado.
Todavia, a partir de agora, a expressão será usada no plural: “interesses públicos”, uma vez que, como
abordado, no Estado Pluriclasse, a ideia da multiplicidade de interesses públicos representa melhor o momento
atual do direito público.
73
4 SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO SOBRE O PRIVADO: POR UMA
RELEITURA
A
PARTIR
DE
UMA
EXEGESE
CONSTITUCIONAL
DO
CONCEITO DE “INTERESSES PÚBLICOS”
De tudo o que foi exposto até aqui, é possível identificar que o Direito Administrativo,
mesmo com a forte influência do Direito Constitucional, e até por causa dessa influência,
convive, entre outros paradoxos51, com a dicotomia interesse público versus interesse privado.
Maria Sylvia Zanella DI PIETRO (2010) afirma que esses paradoxos sempre existiram
e vão continuar a existir:
Todos esses paradoxos e contradições estão ligados ao paradoxo maior, que é o
binômio autoridade/liberdade, interesse público/direito individual: o direito
administrativo sempre abrigou e vai continuar abrigando institutos, teorias e
princípios que protegem o interesse público e que exigem a outorga de poderes,
prerrogativas e privilégios à Administração Pública; ao mesmo tempo, o direito
administrativo sempre abrigou e vai continuar abrigando institutos, teorias e
princípios que protegem os direitos do cidadão frente ao poder público,
especialmente o princípio da legalidade, hoje ampliado pela incorporação de
inúmeros outros princípios e valores que integram a legalidade em sentido amplo,
como a moralidade administrativa, a segurança jurídica, nos aspectos objetivos
(estabilidade das relações jurídicas) e subjetivo (proteção à confiança), a reserva do
possível, a razoabilidade, dentre tantos outros. (DI PIETRO, 2010, p. 6)
Todavia, e até em razão de uma leitura constitucionalizada dos institutos que integram
o Direito Administrativo, impõe-se uma ressignificação da supremacia do interesse público
sobre o privado, a partir de uma exegese constitucional do conceito de “interesses públicos”.
Antes, porém, é preciso rechaçar a ideia de “crise” do paradigma tradicional do Direito
Administrativo brasileiro, o que, a toda evidência, não implica em negar as transformações
operadas pelo Direito Constitucional em seus institutos centrais e, sobremaneira, na
supremacia do interesse público sobre o privado.
José dos Santos CARVALHO FILHO (2010, p. 82) é firme em defender a supremacia
do interesse público sobre o privado contra aqueles que apregoam o seu sepultamento:
Os fundamentos invocados para o sepultamento do referido princípio são despidos
de rigor lógico e sequer ameaçam o postulado, que, ao contrário, vigora em toda a
sua plenitude. O novo cenário político, social, econômico e jurídico não conduz à
ação de “desconstruir” o postulado, mas sim a reconstruir sua fisionomia mediante
processo de adequação aos novos elementos da modernidade. Elidir o princípio se
revela inviável, eis que se cuida de axioma inarredável em todo tipo de relação entre
corporação e indivíduo. A solução, destarte, está em ajustá-lo para que os interesses
se harmonizem e os confrontos sejam evitados ou superados. (CARVALHO FILHO,
2010, p. 82)
51
(…) o direito administrativo, desde as suas origens, é constituído por uma série de paradoxos. O seu regime
jurídico abrange prerrogativas que garantem a autoridade da Administração, e restrições, que protegem a
liberdade e os direitos individuais do cidadão. (DI PIETRO, 2010, p. 5)
74
Então, admitir uma leitura constitucionalizada da supremacia do interesse público
sobre o privado não sugere que o regime jurídico administrativo brasileiro esteja vivendo uma
“crise”.
Rebatendo o que chama de “concepção neoliberal” da supremacia do interesse
público, Maria Sylvia Zanella DI PIETRO (2010, p. 94) sustenta que “exagera-se o seu
sentido para depois combatê-lo, muitas vezes de forma inconsequente, irresponsável e sob
falsos pretextos”, até porque “a ideia de que o interesse público sempre, em qualquer situação,
prevalece sobre o particular jamais teve aplicação (a não ser, talvez, em regimes totalitários).”
É por isso que Maria Sylvia Zanella DI PIETRO (2010) alerta para o fato de que:
Parte da doutrina brasileira (acostumada ao estudo do direito comparado) está se
deixando influenciar pela lição de autores estrangeiros, sem levar em conta, muitas
vezes, que muitas das alterações que vem sofrendo o direito europeu não encontram
guarida no ordenamento jurídico brasileiro. Pelo menos por enquanto. (DI PIETRO,
2010, p. 2)
Segundo Maria Sylvia Zanella DI PIETRO (2010, p. 2), “os países que fazem parte da
União Europeia estão passando por uma série de transformações decorrentes do encontro
entre sistemas jurídicos distintos”, tendo por consequência “que muitos dos institutos
tradicionais do direito administrativo do sistema europeu continental vêm passando por
transformações”. Entretanto, esse não é o caso brasileiro, embora “quando lá se fala em crise
de determinados institutos, essa crise acaba repercutindo na doutrina brasileira”.
O Direito Administrativo brasileiro, como já referido, está se constitucionalizando, “a
partir da centralidade da dignidade humana e da preservação dos direitos fundamentais,
alterou-se a qualidade das relações entre Administração e administrado, com a superação ou
reformulação de paradigmas tradicionais” (BARROSO, 2005, p. 39).
Gregório Assagra de ALMEIDA e Flávia Vigatti COELHO DE ALMEIDA (2010, pp.
231/232), ao abordarem a superação da “summa diviso clássica, direito público e direito
privado”, por uma “nova summa diviso constitucionalizada” – “direito individual e direito
coletivo” –, sustentam a “reconstrução de novos princípios e diretrizes para a administração
pública, impondo-se uma atuação vinculada ao atendimento dos direitos fundamentais,
individuais ou coletivos”52.
Como ensina Jacques CHEVALLIER (2009):
A relevância conferida a partir dos anos de 1980 ao tema dos direitos do Homem,
concebidos como “direitos fundamentais”, deu uma nova dimensão a esse processo
de subjetivização: ele implica, com efeito, que os indivíduos são titulares, enquanto
52
A respeito, confira-se: ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito material coletivo: superação da sumam
diviso direito público e direito privado por uma nova summa diviso constitucionalizada. Belo Horizonte: Del
Rey, 2008
75
Homens, de direitos em face do poder e dispõem dos meios de fazê-los valer.
(CHEVALLIER, 2009, p. 135)
Entretanto, a negativa da existência da supremacia do interesse público sob o
fundamento de contraposição ao princípio da dignidade da pessoa humana não escapou à
percuciente crítica de Raquel Melo Urbano de CARVALHO (2008, p. 66) para quem “a
proteção constitucional à dignidade da pessoa humana não significa prevalência do indivíduo
em face do coletivo”. Embora, também, não seja certo falar em prevalência absoluta do
coletivo sobre o individual.
Para referida autora, “exatamente em razão do fato de o interesse da coletividade
prevalecer, como regra, em face dos interesses individuais, é mister estabelecer padrões
mínimos de garantia da proteção privada” (CARVALHO, 2008, p. 66):
(...) como os interesses da sociedade devem ter prevalência em relação aos interesses
dos indivíduos, é necessário que os direitos dos cidadãos tenham um núcleo mínimo
garantístico fixado no próprio texto constitucional. (CARVALHO, 2008, p. 66)
Aliás, como nos diz Luís Roberto BARROSO (2005), com a constitucionalização do
direito infraconstitucional, todo o ordenamento jurídico passa a ser interpretado a partir da
Constituição e para a Constituição, no fenômeno que denomina “filtragem constitucional”:
Nesse ambiente, a Constituição passa a ser não apenas um sistema em si – com a sua
ordem, unidade e harmonia – mas também um modo de olhar e interpretar todos os
demais ramos do Direito. Este fenômeno, identificado por alguns autores como
filtragem constitucional, consiste em que toda a ordem jurídica deve ser lida e
apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela
consagrados. Como antes já assinalado, a constitucionalização do direito
infraconstitucional não tem como sua principal marca a inclusão na Lei Maior de
normas próprias de outros domínios, mas, sobretudo, a reinterpretação de seus
institutos sob uma ótica constitucional. (BARROSO, 2005, p. 27)
É por isso que a atividade administrativa, voltada que deve estar para a consecução do
“interesse público”, tem na Constituição seu vetor irradiador de legitimidade e de legalidade,
em sua versão juridicidade:
À luz de tais premissas, toda interpretação jurídica é também interpretação
constitucional. Qualquer operação de realização do direito envolve a aplicação direta
ou indireta da Lei Maior.
(...)
Em suma, a Constituição figura hoje no centro do sistema jurídico, de onde irradia
sua força normativa, dotada de supremacia formal e material. Funciona, assim, não
apenas como parâmetro de validade para a ordem infraconstitucional, mas também
como vetor de interpretação de todas as normas do sistema. (BARROSO, 2005, p.
27)
Contudo, embora Luís Roberto BARROSO (2005, p. 39) fale em “superação ou
reformulação de paradigmas tradicionais”, o que ocorre com o Direito Administrativo
brasileiro não é uma mudança paradigmática, mas sim a revisão dos paradigmas tradicionais
76
sob o olhar da Constituição, razão pela qual se prefere, aqui, o termo “reformular” ao invés de
“superar”.
José dos Santos CARVALHO FILHO (2010, p. 74) aduz que a transformação operada
no modelo de Estado nos fins do século XIX, com o Estado prestacionista, realçou “os
interesses públicos que ao Estado cabia resguardar”, para o que a supremacia “não constitui
mero privilégio outorgado gratuitamente ao Estado”, mas sim “indispensável condição para
gerir os interesses públicos postos em confronto”:
É claro que a posição de supremacia do Estado não pode alvejar fins despóticos,
mas, ao contrário, tem o intuito de proteger e garantir os indivíduos no que concerne
aos interesses públicos. Diante disso, é totalmente impossível conceber o Estado,
nos moldes atuais, que não congregue a necessária autoridade para sobrepor o
interesse público aos interesses privados.
Não se pode, em sã consciência, ferir a verdade que emana de tal premissa. Não se
trata de mero privilégio outorgado gratuitamente ao Estado. “Significa que o Poder
Público se encontra em situação de autoridade, de comando, relativamente aos
particulares, como indispensável condição para gerir os interesses públicos postos
em confronto” (CARVALHO FILHO, 2010, p. 74)
Veja-se, assim, que “o núcleo do princípio não mudou; o que tem mudado – e isso
sucede com todos os institutos sociais e jurídicos – é sua aplicação para adequar-se às novas
realidades sociais” (CARVALHO FILHO, 2010, p. 75).
Como destaca Fabíola Samara Brito de CORREIA (2012), a constitucionalização do
Direito Administrativo trouxe:
(...) a redefinição da ideia de supremacia do interesse público sobre o privado, a
vinculação do administrador à Constituição e não apenas à lei ordinária, a
possibilidade de controle judicial do mérito do ato administrativo, a valorização do
elemento consensual e também a análise da adequação de políticas públicas às
normas constitucionais, dentre as principais mudanças. (CORREIA, 2012, pp.
1312/1313)
Portanto, a garantia dos direitos fundamentais não é avessa à supremacia do interesse
público sobre o privado, e, dessa forma, estar a dignidade humana no centro da ordem
constitucional, não retira referida prerrogativa da Administração Pública. Ao contrário, é esta
prerrogativa que permite, no processo de concretização do atuar administrativo, que
determinados interesses, caracterizados como públicos, se sobreponham a outros, ditos
privados, valendo-se, ora de um critério quantitativo – em favor dos interesses de um grupo
mais numeroso –, ora de um critério qualitativo – protegendo as minorias:
(...) o interesse público nasceria do processo de arbitragem entre os diversos
interesses particulares em jogo, por vezes inclinando-se em favor dos interesses de
um grupo mais numeroso de indivíduos (critério quantitativo), a exemplo de uma
desapropriação por necessidade ou utilidade pública; outras vezes, por outro lado, a
partir do respaldo qualitativo de interesses de minorias, como no caso dos sistemas
de assistência social e de saúde para determinados grupos de indivíduos das
camadas menos favorecidas da sociedade. (CRISTÓVAM, 2014, p. 103)
77
Assim, “não é pelo fato de a expressão interesse público estar presente em algumas
patologias administrativas (desvio de poder)”, ou mesmo por se tratar de conceito jurídico
indeterminado, “que se deverá sustentar o seu fim” (RIBEIRO, 2010, p. 116).
Raquel Melo Urbano de CARVALHO (2008, p. 65), aponta que a Constituição da
República (1988) tem em si “elementos indutores do princípio da supremacia” e firma
posição no sentido de que a exigência de “ponderação entre a necessidade de predomínio do
bem comum e outros princípios condicionantes da atuação estatal e protetivos dos interesses
privados não significa impossibilidade de prevalecimento do interesse público”.
O atendimento do interesse geral em detrimento de algum sacrifício do individual
pode ser extraído, então, do ordenamento jurídico, a exemplo das normas constitucionais que
estabelecem restrições aos direitos individuais e, também, daquelas infraconstitucionais que
trazem prerrogativas à Administração:
Com a devida vênia, não se entende que eventual contraposição entre o interesse
público e o interesse privado conduza à negação da supremacia do primeiro. O fato
de se exigir ponderação entre a necessidade de predomínio do bem comum e outros
princípios condicionantes da atuação estatal e protetivos dos interesses privados não
significa impossibilidade de prevalecimento do interesse público. Não se pode
olvidar, ainda, que em vários dispositivos constitucionais encontram-se elementos
indutores do princípio da supremacia, imanente ao texto da CR/88.
(…) Quando o ordenamento consagra os poderes de desapropriar, requisitar,
intervir, policiar o exercício de direitos individuais, afigura-se manifesto o objetivo
de atender o interesse geral, malgrado algum sacrifício individual decorrente de tais
atividades.
(…)
Ademais, evidenciam tal supremacia prerrogativas processuais como, p. ex.,
quadruplicação do prazo para resposta e duplicação de prazos para recursos
consagradas para as pessoas jurídicas de direito público interno, que encontram
amplo fundamento nos princípios da isonomia e da proporcionalidade. (…)
(CARVALHO, 2008, p. 65)
Phillip Gil FRANÇA (2013, p, 223) sustenta que interesse público é “produto das
forças de uma dada sociedade (...) concretizadas em determinado momento e espaço que
exprime o melhor valor de desenvolvimento de um maior número possível de pessoas”:
(...) interesse público é objeto que se condiciona como concretizavelmente positivo e
produtivo, de forma proporcional, para quem carece de uma eficiente atividade
estatal, conforme objetivos e estrutura normativa, social e política definida pela
Constituição Federal. É fim a ser alcançado e promovido pelo Estado e pelos
particulares em razão do dever geral de realização do sucesso estatal, via
consolidação dos ditames constitucionais. (FRANÇA, 2013, p. 223)
Mas, falar em ponderação não implica em negar a supremacia, constituindo apenas
uma forma de concretização do interesse público, com o mínimo possível de sacrifício do
interesse privado, procedimento próprio à determinação, na prática, do conceito jurídico que,
em tese, é indeterminado:
78
(...) Porém, falar em razoabilidade não implica negar o princípio do interesse
público. A razoabilidade exige relação, proporção, adequação entre meios e fins.
Quais fins? Os que dizem respeito ao interesse público.
A exigência de razoabilidade – que está sendo apontada por alguns pretensos
inovadores – está presente desde longa data na aplicação do princípio da supremacia
do interesse público. (...)
Isso não é novidade. Isso é doutrina velha, que se conserva nova, atual, porque é
indispensável para a busca do equilíbrio entre o direito individual e o interesse
público. Isto já tem sido aplicado pela jurisprudência desde longa data, mesmo
quando não se invoca a expressão razoabilidade. (...)
Não ha dúvida de que qualquer conceito jurídico indeterminado (não apenas o de
interesse público), ao ser aplicado aos casos concretos, exige ponderação de
interesses, avaliação de custo benefício, utilização de critérios de interpretação, na
tentativa de diminuir ou mesmo de acabar com a indeterminação e encontrar a
solução mais adequada. (DI PIETRO, 2010, p. 100)
Irene Patrícia NOHARA (2010) também chega à mesma conclusão ao dizer que:
(...) não merece prosperar a tese de superação da supremacia do interesse público no
âmbito do Direito Administrativo, uma vez que a doutrina jamais defendeu que a
aplicação desse fundamento do regime jurídico público pudesse ser feita sem
ponderação de razoabilidade/proporcionalidade e, portanto, ao arrepio de direitos
fundamentais protegidos pela Constituição. (NOHARA, 2010, p. 150)
Como diz Irene Patrícia NOHARA (2010, p. 151) “o conceito de interesse público
pode ser preenchido por variados conteúdos”, e indaga:
(...) como fazer com que o discurso da supremacia do interesse público não se
converta em discurso ideológico que, por decorrência, mascare numa atmosfera de
pretensa legitimidade práxis administrativas autoritárias, isto é, sem o mínimo
respaldo no consenso social? (NOHARA, 2010, p. 151)
Ora, o pluralismo da sociedade contemporânea, que acaba por revelar a multiplicidade
de interesses dos diversos grupos que a compõem, reflete no ordenamento jurídico, que acaba
por acolher esses inúmeros interesses, por vezes antagônicos, malgrado possam ser
igualmente públicos, o que acaba por ensejar conflitos.
O interesse público, como diz Érico ANDRADE (2010, pp. 179/180) “agora se vê
subdividido em vários interesses públicos [...], de modo que a Administração [...] assume, via
procedimento administrativo, com participação dos interessados, nova função de mediação
social entre os interesses públicos das várias classes”.
Referido fenômeno, como ensina Marcel Queiroz LINHARES (2001, p. 221), “se
manifesta com maior clareza no plano constitucional”:
De fato, e como recorda ROBERT ALEXY, a maioria das constituições modernas
contêm um catálogo de direitos fundamentais que representam os mais variados
interesses vigentes na sociedade. Ocorre que, em função disto, estes direitos
fundamentais eventualmente encontram-se em oposição diante de determinadas
situações.
Como reflexo da pluralidade de ideias e concepções existentes em uma determinada
sociedade, também a Constituição assume, por meio de seus princípios, os valores e
interesses dos mais variados matizes. Portanto, pode ocorrer que tais princípios entre
em conflito diante de determinada situação fática. (LINHARES, 2001, pp. 221 e
232)
79
E, no caso de antagonismo entre Direitos Fundamentais, seria inócuo tentar solucionálo por intermédio dos critérios clássicos53, porque, em se tratando de normas constitucionais,
tais instrumentos não são de relevante contribuição. Como, mais uma vez, ensina Marcel
Queiroz LINHARES (2001, p. 232), “como não há uma hierarquia prévia e abstrata entre tais
bens, a solução destes conflitos demandará uma norma de decisão adaptada às circunstâncias
fáticas”.
Assim é que surge a ponderação como instrumento eficaz ao balanceamento entre os
Direitos Fundamentais colidentes, pois afasta a lógica do tudo ou nada, própria das regras,
para ressaltar a dimensão de peso ou de importância que cada um deles possui enquanto
princípios constitucionais que são, para possibilitar que seja adotada a conduta que traga
maior satisfação de ambos com o menor sacrifício possível.
Portanto, “o papel da ponderação é o de promover, de modo mais intenso possível, a
satisfação de todos os valores consagrados pelo ordenamento jurídico” (LINHARES, 2001, p.
233). Todavia, essa função mediadora de interesses, assumida pela Administração Pública,
não combina com uma atividade unilateral e monolítica, própria do exercício do “poder de
império”.
Hans J. WOLFF, Otto BACHOF, Rolf STOBER (2006, p. 427) sustentam que “os
verdadeiros interesses da comunidade podem colidir entre si”:
Isto é tanto mais assim e tanto mais frequente quanto mais interesses devam ser
considerados e devam ser postos em harmonia entre si. De forma especial, a
Administração moderna confronta-se com interesses plurais, em diferentes planos,
para o exterior e para o interior [...]. Um tal conflito deve ser decidido pelo princípio
jurídico da ponderação com as desvantagens dos interesses objectivos de menor
relevância. (WOLFF; BACHOF; STOBER, 2006, p. 427)
Para Érico ANDRADE (2010, p. 205), esses interesses públicos, “para serem
corretamente atuados pela Administração, exigem a substituição da atividade unilateral pela
via consensual e paritária, num contexto de participação do cidadão”, onde o “poder de
império” perde cada vez mais espaço em detrimento da consensualidade, sendo o
procedimento administrativo importante ferramenta para a ampliação da participação popular
nas decisões administrativas.
É nesse contexto, e como já afirmado anteriormente, que o procedimento
administrativo se mostra o instrumento adequado à identificação concreta do interesse
público, dentre os direitos fundamentais colidentes, que num dado instante possam se
apresentar para a Administração Pública, e à busca pelo consenso:
53
Critérios tradicionais de resolução de conflitos: hierárquico, cronológico e especialidade. A respeito, confirase a obra de Robert ALEXY (2008): Teoria dos Direitos Fundamentais
80
A Administração se torna uma espécie de arena de combate entre os vários
interesses públicos e a atividade administrativa, a fim de harmonizá-los, segue mais
a linha negocial do que a autoritária (= via poder de império). Prevalece a técnica da
consensualidade, que ganha cada vez mais importância no moderno direito
administrativo.
Daí o enorme desenvolvimento do procedimento, em cujo âmbito os interessados
são ouvidos antes da emissão das decisões administrativas, permitindo maior
participação popular na Administração. Participação que leva para a Administração
melhor possibilidade de conhecimento da realidade sobre a qual recairá sua decisão.
Passa-se do ato administrativo ao procedimento, como centro do direito
administrativo moderno. A unilateralidade torna-se exceção no exercício das
atividades administrativas: a regra é a participação procedimentalizada.
(ANDRADE, 2010, p. 206)
A procedimentalização da atividade administrativa é, no Direito Administrativo atual,
a porta de entrada e, ao mesmo tempo, de saída da “vontade estatal”, é por intermédio dela
que os vários interesses públicos entram no debate, para que, através do diálogo da
Administração Pública com a Sociedade, seja extraída a vontade geral no caso concreto e, a
partir disso, a supremacia do interesse público possa ser legitimamente aplicada no caso
concreto.
Phillip Gil FRANÇA (2013, p. 223) chama a atenção para o fato de que é essencial, à
compreensão do interesse público, o “momento” e o “lugar” em que deverá ser
implementado, pois, “o que o indivíduo precisa neste momento e lugar certamente já não será
o mesmo do que necessitará amanhã, ou em lugar diverso”:
(…) para a compreensão de interesse público, faz-se importante a definição do
momento e do espaço que se está a analisar o interesse a ser tutelado. Isto porque o
produto das relações vinculadas ao ser humano que busca definir o interesse comum
que precisa ser protegido perante o interesse individual (quando este prejudica o
desenvolvimento qualitativo da sociedade que se está a analisar) jamais será o
mesmo em momentos e espaços diversos, pois depende das demandas expressas
nessas duas variantes das atividades humanas. (FRANÇA, 2013, p. 223)
Supremacia, então, é daquele “interesse público” que se mostra mais adequado a
determinada situação concreta, após um procedimento administrativo em que os cidadãos
interessados
são
ouvidos,
numa
participação
democrática
legitimadora
do
atuar
administrativo. Esse, sim, se sobressai em relação aos demais porventura conflitantes.
Nas palavras de Phillip Gil FRANÇA (2013):
O interesse público, portanto, define a priorização dos anseios e das necessidades de
uma sociedade, a partir de critérios temporais e espaciais, para que as escolhas
possam ser tomadas para concretização de um interesse público determinado, ou
determinável, mediante um constitucional procedimento administrativo estabelecido
para o alcance deste específico desiderato. (FRANÇA, 2013, p. 224)
E, é a procedimentalização que justifica a restrição daqueles outros em prol de um,
dentre os vários “interesses públicos”, que atenda melhor ao “bem comum”.
81
Veja-se, aqui, um resgate do ideal grego de participação do cidadão, aliado ao
conceito rousseauniano de “vontade geral”, num contexto – Estado Constitucional de Direito
– em que o procedimento se torna o instrumento para que seja possível a verificação, na
situação prática, do menor sacrifício possível daqueles direitos do cidadão, fundamentalizados
na Constituição, que necessitem ser restringidos para a implementação do interesse público
prevalente na hipótese concreta.
Irene Patrícia NOHARA (2010) defende que:
(...) contribui substancialmente para o estreitamento dos canais de interlocução
comunitária no seio da Administração a processualização de sua atividade, sendo o
iter de formação da vontade estatal recheado com oportunidades de manifestação
dos administrados. (NOHARA, 2010, p. 151)
Assim, o atuar administrativo, que tenha por justificativa a supremacia do interesse
público, se legitima por ser antecedido de um procedimento em que os setores sociais são
ouvidos, “em paridade de armas discursivas e levando em consideração principalmente, a
força persuasiva dos argumentos apresentados” (NOHARA, 2010, p. 151), de modo que os
cidadãos sejam tratados como sujeitos, e não como objeto da ação pública.
Para Gregório Assagra de ALMEIDA e Flávia Vigatti Coelho de ALMEIDA (2010, p.
237), no Estado Democrático de Direito “a pessoa humana é considerada sempre uma cidadã
e deve ser chamada a participar ativamente do processo democrático de elaboração das leis,
de administração governamental e de resolução da conflituosidade social”.
João Batista Gomes MOREIRA (2010), ao fazer distinção entre o Estado Liberal e o
Estado Social, vê, na democracia, uma dimensão formal (ou processual), manifestada pela
ampla participação, e uma material:
(...) esta manifestada na redução das desigualdades sociais, no direito à diferença, no
pluralismo de ideias contra a hegemonia do pensamento único, na eliminação dos
preconceitos e na correção das discriminações históricas por meio de ações
afirmativas”. (MOREIRA, 2010, p. 130)
Assim, mesmo naquela faceta remanescente de atuação unitária da Administração
Pública, a limitação do privado, em prol do público, somente se justifica pelo procedimento.
Como afirma Érico ANDRADE (2010, p. 322), “mesmo nas hipóteses em que a
Administração atua com base no poder de autoridade para fazer prevalecer o interesse
público”, deve estar submetida “à observância da dignidade da pessoa humana e respeito aos
direitos fundamentais”, garantidos pelo princípio democrático 54 que aloca o cidadão em
posição de igualdade com a Administração Pública:
54
(…) não se pode conceber na contemporaneidade um Estado Constitucional que não seja ao mesmo tempo
democrático.
(…)
82
Os direitos fundamentais se prestam a reequilibrar a relação Administração-cidadão,
senão em termos de igualdade ao menos para garantir que os poderes de autoridade
sejam exercidos num contexto de respeito à dignidade da pessoa humana e aos
direitos fundamentais.
E assim deve ser, atualmente, porque as novas Constituições, ao acolherem o
princípio democrático de forma geral, em toda sua extensão, colocam o cidadão no
centro do sistema constitucional: tornando impensável que a posição do cidadão se
enfraqueça perante a Administração, ou seja, que o princípio democrático não valha
para permitir que o cidadão oponha à Administração seus direitos em condições de
igualdade. (ANDRADE, 2010, pp. 322/323).
Inegável, portanto, na lição de Érico ANDRADE (2010, p. 209) que “toda a
complexidade da sociedade atual se reflete no Estado e no direito administrativo”, que
procura estabelecer uma relação de equilíbrio entre “a aspiração de uma administração mais
eficiente, que sirva melhor à coletividade, com aquela outra de deixar o maior campo possível
de liberdade ao cidadão”:
Em qualquer das novas linhas evolutivas da doutrina de direito administrativo,
inclusive quando se abre maior liberdade para atuação estatal, a preocupação,
destaque-se, é sempre uma: garantir a atuação da Administração em total
conformidade com a Constituição, o que, a seu turno, significa atuação
administrativa sempre em prol do cidadão. (ANDRADE, 2010, pp. 355/356).
Essa nova perspectiva rechaça a afirmação de superioridade legal ou moral da
atividade administrativa na realização dos fins públicos, pois aloca em igual posição o
cidadão e as autoridades administrativas, sobretudo porque a Constituição afasta a noção do
cidadão como administrado ou como objeto do poder, para trazê-lo como sujeito de direito:
É certo que, como aponta Sabino Cassese, cidadão e Administração Pública são dois
polos em contínua tensão e busca de equilíbrio. Todavia, o acento atual, repita-se,
não se coloca mais, como no passado, sobre a autoridade, que perde evidentemente
terreno na Constituição, mas nos direitos do cidadão, de modo a equilibrar as
posições da Administração e do cidadão, ou seja, colocá-los em idêntico patamar
jurídico. Não se trata, pois, de sobrepor o cidadão à administração, mas sim de
equilibrar, igualar, as posições – antes desequilibradas pela doutrina administrativa
tradicional em prol da autoridade –, seja no âmbito da atuação administrativa
consensual, seja no âmbito daquela autoritária. (ANDRADE, 2010, p. 357)
Ressalte-se, do que foi discutido, que a superioridade não é da atividade
administrativa, nem do interesse da Administração Pública. Essa prevalência é característica
do interesse público que se reafirma como tal num procedimento administrativo, em que, a
dignidade humana e os direitos fundamentais são respeitados, estando a Administração
Pública submetida à Constituição e, por isso, à concretização dos direitos do cidadão nela
assegurados.
Assim, mais do que um Estado fundado em um “pacto social” (Constituição), de natureza dirigista, reclama a
sociedade um Estado de “inclusão social”, capaz de assegurar-lhe a inserção no contexto de decisão sobre os
seus destinos, mediante instrumentos processuais de interpretação e efetivação de seus direitos
fundamentalizados, o que somente será implantado com o Estado de Direito Democrático. (PENNA, 2011, 40)
83
Destaca-se, dessa forma, que “não pode o direito administrativo ser visto como
barreira ou impedimento para, protegendo o poder estatal, deixar o cidadão a descoberto da
tutela jurisdicional”, ou seja, “não pode ser lido em desfavor do cidadão” (ANDRADE, 2010,
p. 356), já que, conforme amplamente discutido, deve conferir efetividade à Constituição para
propiciar um atuar administrativo em prol dos direitos do cidadão.
É por isso que a burocracia do Direito Administrativo é abandonada em prol de uma
atuação gerencial dos negócios públicos 55, em que acordos são desejáveis no encontro de
soluções mais rápidas e eficazes56, consentâneas a esse interesse público constitucionalizado e
democratizado.
Jacques CHEVALLIER (2009) nota a participação maior do cidadão nas decisões
administrativas:
(...) reputa-se que a lógica democrática implica doravante uma presença muito mais
ativa do cidadão nos mecanismos políticos, por meio da extensão da democracia
semidireta, assim como o surgimento de novas possibilidades de intervenção na
tomada das decisões e no funcionamento do aparelho de Estado. (CHEVALLIER,
2009, pp. 227.228)
55
Direito administrativo do clipes/DAC é o da Administração de papelaria, que age por autos e atos, trata
direitos e deveres em papel, é estatista, desconfia dos privados, despreza a relação tempo, custos e resultados,
não assume prioridades.
[...]
Embora também exista em versões deturpadas, o DAC, em si, é de família boa: nasceu com e para a
burocracia, esta forma feliz de substituição do poder personalista, patrimonial.
Ao DAC se opõe o direito administrativo dos negócios/DAN, o dos que se focam em resultados e, para obtêlos, fixam prioridades, e com base nelas gerenciam a escassez de tempo e de recursos. Para esse âmbito valem
práticas opostas ao DAC: aumenta a informalidade nos procedimentos; a inação é o pior comportamento
possível do agente; soluções devem ser encontradas o mais rápido; acordos são desejáveis; evitar e eliminar
custos é fundamental; só se envolvem na decisão agentes e órgãos indispensáveis; riscos devem ser assumidos
sempre que boa a relação custo/benefício; etc. (SUNDFELD, 2014, p. 148)
56
O postulado segundo o qual a gestão pública, colocada a serviço do interesse geral, não podia ser medida em
termos de eficácia, deu lugar à ideia de que a administração é obrigada, como todas as empresas privadas, a
aperfeiçoar sem cessar o seu desempenho e a reduzir os seus custos; ela é obrigada a realizar as suas missões
nas melhores condições possíveis, velando pela qualidade de suas prestações e utilizando do melhor modo
possível os meios à sua disposição. A diferença com a empresa privada tende, então, a desaparecer.
1º Na concepção tradicional de gestão pública, a administração é investida de uma legitimidade de princípio,
que lhe é atribuída de pleno direito e que deriva de seu estatuto: porque ela é colocada do lado do público,
porque ela é instrumento de ação do Estado, reputa-se que ela age necessariamente no sentido do “interesse
geral”.
Ora, esse mecanismo de legitimação entrou em crise: a mera invocação do interesse geral não é mais
suficiente; ainda é necessário que a gestão pública comprove a sua eficácia. O interesse geral se encontra,
assim, superado, mesmo substituído, pelo tema da eficácia. Assim ocorrendo, a administração tende a passar de
uma legitimidade extrínseca, decorrente de sua pertinência do Estado, a uma legitimação intrínseca, fundada
sobre a análise concreta de sua ação: será ela julgada sobre os resultados que for capaz de obter, tal como sobre
a sua aptidão para gerir melhor os meios de que ela dispõe, visando a obter a melhor eficácia. Ela não é mais
investida de pleno direito da legitimidade; essa não é adquirida antecipadamente, mas deve ser conquistada; ela
depende da demonstração permanentemente reiterada da conveniência das operações engajadas e da qualidade
dos métodos de gestão utilizados. (CHEVALLIER, 2009, p. 84)
84
Lembra João Batista Gomes MOREIRA (2010, p. 129) que “a participação política”,
juntamente com a “justiça social”, “são os valores predominantes” “no Estado democráticosocial”.
Saulo Versiani PENNA (2011, p. 43) diz que o “exercício legítimo de qualquer das
funções estatais” está relacionado ao “devido processo legal, como canal natural de afirmação
e aplicação de políticas públicas de forma participativa. Para o que, aponta referido autor, a
“representatividade estatal” não é mais suficiente ao exercício democrático de participação
popular nas decisões administrativas:
A sociedade pós-moderna, especialmente em nações em desenvolvimento como o
Brasil, está a exigir a implementação de direitos, decorrentes de princípios
fundamentais, os quais não podem ser equacionados por intermédio de estruturas de
mera representatividade estatal ou de governo, mesmo que decorrente do voto direto
e popular. (PENNA, 2011, p. 43)
Carlos Ari SUNDFELD (2000) aponta o “devido processo legal” como o meio pelo
qual deve agir o Estado na manifestação da vontade pública:
Como a “vontade” manifestada pelo Estado, na produção de seus atos (...), traduz
sempre o exercício de função, segue-se que o processo é o modo normal de agir do
Estado. Em outras palavras: a realização do processo é indispensável à produção ou
execução dos atos estatais.
Porém, não é qualquer processo que serve à produção de atos estatais, mas
unicamente o que se convencionou chamar de devido processo, dotado de um
complexo de características fundamentais.
(...)
o devido processo é a garantia dos particulares frente ao Estado. Garantia ao mesmo
tempo passiva, isto é, dirigida à pessoa enquanto sofre o poder estatal, e ativa,
destinada a propiciar o acionamento da máquina estatal pelos membros da sociedade
e a obtenção de decisões. (SUNDFELD, 2000, pp. 173/174)
Dessa forma, a supremacia do interesse público sobre o privado não pode ser
compreendida de forma desvinculada de uma exegese constitucional do conceito de
“interesses públicos”, o que, como consequência lógica, aponta para um Direito
Administrativo constitucionalizado57 e democrático, sendo a garantia dos direitos do cidadão
figura central e condicionante da validade da atividade administrativa, somente sendo
legítimo o eventual sacrifício de direitos fundamentais após um procedimento administrativo
adequado a garantir que a restrição imposta seja a menor possível e com a finalidade de
57
“O amplo acolhimento dos princípios na Constituição, como não poderia deixar de ser, importa na
constitucionalização de leque de princípios que regem a atividade estatal, administrativa. A partir de então,
toda a disciplina da Administração deve ser extraída, antes de tudo, da própria Constituição. Avizinham-se
direito constitucional e administrativo: e se expandem em direção à Constituição, e com esta se misturam, de
modo, inclusiva, a tornar difícil a distinção entre os dois campos.
Surge a chamada constitucionalização dos princípios de direito administrativo que, pela primeira vez, afloram
explicitamente em muitas das constituições europeias do segundo pós-guerra.” (ANDRADE, 2010, pp.
227/228)
85
atender ao maior e mais adequado interesse que, numa determinada situação, se mostra
público.
87
5 CONCLUSÃO
Ao final deste trabalho de pesquisa acadêmica, chega-se à conclusão, confirmando-se
a hipótese inicial prevista já no Projeto de Pesquisa apresentado ao Programa de PósGraduação strictu sensu – Mestrado da Universidade FUMEC, que a supremacia do interesse
público sobre o privado é instituto do Direito Administrativo constitucionalizado, que, ainda
no Estado Constitucional de Direito, justifica prerrogativas da Administração e sujeições do
cidadão.
A noção de supremacia do interesse público sobre o privado, verdadeiro postulado do
Direito Administrativo, centraliza e justifica, em si, toda a atividade administrativa e a
interpretação de todas as normas jurídicas do Direito Público.
Sua origem histórica confunde-se com o nascimento do próprio Direito
Administrativo, no fim do Séc. XVIII e início do Séc. XIX, embora existam autores que
defendem uma raiz histórica na concepção de bem comum da Antiguidade Clássica.
Por mais que a ideia de bem comum, desde a visão grega, seja importante para a
acepção da expressão “interesse público”, o que compreende por supremacia, na atualidade,
com os contornos do paradigma tradicional do regime jurídico administrativo.
E, nascida com o Estado Liberal de Direito, a noção de supremacia do interesse
público sobre o privado se agigantou no Estado Social de Direito, em razão da ampliação das
finalidades materiais próprias do Estado prestacionista, e se vê, agora do Estado
Constitucional de Direito, diante de inúmeras críticas, as quais discutem, inclusive, a
viabilidade de se falar em supremacia.
A doutrina, então, se dividiu: entre aqueles que pregam uma necessária transformação
paradigmática sobre o qual se assenta o regime jurídico administrativo, por um novo
paradigma que tem sua matriz institucional na dignidade da pessoa humana e na defesa dos
direitos fundamentais; e aqueles que na dignidade da pessoa humana e na defesa dos direitos
fundamentais, não uma crise do paradigma tradicional, mas sim um olhar constitucionalizado
para os velhos institutos administrativistas.
Para estes teóricos da reconstrução, à luz de uma abordagem constitucional, a
supremacia do interesse público sobre o privado ainda permanece como pilar do Direito
Administrativo atual, mesmo porque as transformações operadas pelo Direito Constitucional
não significam rompimento com o paradigma tradicional do regime jurídico administrativo. O
regime jurídico administrativo, mesmo constitucionalizado, ainda convive com a dicotomia
interesse público versus interesse privado.
88
Todavia, à supremacia do interesse público sobre o privado, impõe-se uma releitura
que permita uma exegese constitucionalizada do conceito de “interesses públicos”,
consentânea ao princípio da legalidade, em sua versão juridicidade, a que está submetida a
Administração Pública.
E, essa releitura, própria da reformulação dos paradigmas tradicionais, sob a
inspiração das normas constitucionais, indica que a supremacia do interesse público sobre o
privado deixa de ser vista como mero privilégio do Poder Público, para importar em um dever
de gerir os diversos interesses, que se mostram igualmente públicos, no âmbito do Estado
Pluriclasse.
O pluralismo da sociedade contemporânea revela múltiplos interesses, igualmente
públicos, por vezes antagônicos, que se digladiam perante a Administração Pública, que
assume uma função mediadora dos valores sociais.
O que mudou, então, foi a forma de sua abordagem, agora não mais por uma
Administração Pública unitária e monolítica própria do “poder de império”, mas sim pela
atuação consensual, em que o procedimento administrativo, erigido ao centro do Direito
Administrativo, passa a ser o instrumento adequado para a tomada de decisão pelo Poder
Público.
Pelo procedimento é possível a identificação concreta do interesse público que, dentre
aqueles vários apresentados à Administração Pública, num determinado instante, se mostra
mais adequado para a situação concreta. Esse sim se sobressai em relação ao demais e tem,
por isso, supremacia em relação àqueles outros, mesmo quando implicar em sacrifício de
direitos fundamentais, já que o procedimento administrativo, com abertura para a participação
democrática do cidadão, legitima a atividade administrativa restritiva de direitos.
Portanto, a exegese constitucional do conceito de “interesses públicos” e a existência
de um procedimento administrativo prévio, com ampla participação democrática, que garanta
a menor restrição de direito possível e o atendimento do maior e mais adequado interesse que,
numa situação concreta, se mostra público, é condição para a releitura da supremacia do
interesse público sobre o privado, nesse atual Direito Administrativo constitucionalizado.
89
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