A vida escolar como base da socializacao do homem

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A VIDA ESCOLAR COMO BASE DA SOCIALIZAÇÃO DO HOMEM
CONTEMPORÂNEO
Adir Luiz Ferreira
Margarete Ferreira do Vale Souza
Resumo: Antes da escola e além dela, a socialização dos indivíduos e a formação do
sujeito acontecem a partir da vida cotidiana, na qual interagimos com pessoas,
instituições e eventos. Progressivamente as orientações culturais, as motivações, a autoimagem, os papéis sociais e as emoções se estabilizam pela individualização e pela
personalização. Da mesma forma são definidos os esquemas sociocognitivos, as
elaborações subjetivas e as experiências sociobiográficas que fundamentam a
personalidade de cada um, o que é uma formação e construção simultaneamente pessoal
e social. Em outras palavras, as bases da personalidade do sujeito, como o que temos de
mais subjetivo e único, têm a sua formação na vida social que desenvolve o indivíduo,
expressão cultural objetiva de uma comunidade. É assim que essa socialização
definidora do indivíduo e da pessoa pode ser compreendida por três dimensões: a
aprendizagem social na experiência escolar cotidiana; a socialização, educação e
escolarização como campos de convergência e de conflitos; e, a socializaçãoescolarização como processo e fenômeno sociobiográficos.
Palavras-Chave: Socialização e educação. Sociobiografia. Experiência escolar.
Formação do indivíduo e do sujeito
Résumé: Avant et au-delà de l’école, la socialisation des individus et la formation du
sujet arrive a partir de la vie quotidienne, dans laquelle nous interagissons avec des
personnes, des institutions et événements. Progressivement les orientations culturelles,
les motivations, l’auto-image, les rôles sociaux et les émotions se stabilisent par
l’individualisation et par la personnalisation. De la même façon sont définis les schémas
sociocognitifs, les élaborations subjectives et les expériences sociobiographiques que
fondent la personnalité de chacun, ce qui est une construction et formation à la fois
personnel e sociale. En d’autres mots, les bases de la personnalité du sujet, comme ce
qui nous avons de plus subjectif et unique, tient sa formation de la vie sociale que
développe l’individu, expression culturelle objective d’une communauté. C’est ainsi que
cette socialisation qui définit l’individu et la personne peut être compris par trois
dimensions : l’apprentissage sociale de l’expérience scolaire quotidienne ; la
socialisation, l’éducation et la scolarisation comme des champs de convergence et de
conflits ; et, la socialisation-scolarisation comme processus et phénomène
sociobiographique.
Mots-Clés: Socialisation et éducation. Sociobiographie. Expérience scolaire. Formation
de l’individu et du sujet.
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A VIDA ESCOLAR COMO BASE DA SOCIALIZAÇÃO DO HOMEM
CONTEMPORÂNEO
Antes da escola e além dela, a socialização dos indivíduos e a formação do
sujeito acontecem a partir da vida cotidiana, na qual interagimos com pessoas,
instituições e eventos. Progressivamente as orientações culturais, as motivações, a autoimagem, os papéis sociais e as emoções se estabilizam pela individualização e pela
personalização. Da mesma forma são definidos os esquemas sociocognitivos, as
elaborações subjetivas e as experiências sociobiográficas que fundamentam a
personalidade de cada um, o que é uma formação e construção simultaneamente pessoal
e social. Em outras palavras, as bases da personalidade do sujeito, como o que temos de
mais subjetivo e único, têm a sua formação na vida social que desenvolve o indivíduo,
expressão cultural objetiva de uma comunidade. Essa socialização definidora do
indivíduo e da pessoa pode ser vista, assim, compreendendo três dimensões: a
aprendizagem social na experiência escolar cotidiana; a socialização, educação e
escolarização como campos convergentes e conflitivos; e, a socialização-escolarização
como processo e fenômeno sociobiográficos.
APRENDIZAGEM SOCIAL NA EXPERIÊNCIA ESCOLAR COTIDIANA
No senso comum, porém adotado sem discussão por algumas vertentes do
pensamento crítico, a compreensão de sujeito é logo associada à de sujeição e
submissão, imposta e aceita pelos homens. Assim concebida, é evidente que a noção de
sujeito seja rejeitada por educadores e pensadores que propõem diferentes pedagogias
de libertação e formas de lutar contra a opressão. Porém, contrariando o dualismo
conflitivo que opõe indivíduo à sociedade, há a concepção ambivalente do indivíduo
como sujeito inventor de si e ator social reflexivo. A ação educativa da escola
desenvolve-se, justamente, nessa intersecção entre o ensino de uma matriz cultural e
social para os indivíduos e a convivência com os saberes e as motivações dos alunos
como sujeitos.
De forma explícita ou implícita, a ação educativa na escola guia-se pela
utilização de saberes já adquiridos que possam favorecer as atividades de aprendizagem
e a aquisição de outros conhecimentos específicos. Mas, o ensino também tem que se
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apoiar no senso comum, na lógica intuitiva, nos esquemas gerais do pensamento, ainda
que tenha o sentido de propiciar a acumulação de um capital cultural que a escola
valorize. De fato, o reforço da aprendizagem do senso comum faz parte da
aprendizagem do ofício de aluno. (PERRENOUD, 1995, p. 61) Esses saberes
aprendidos que constituem o senso comum escolar, diferentemente de informações
simplórias, são aqueles considerados como partes integrantes do capital da cultura
pública que a escola pretende transmitir, ainda que esse capital esteja condicionado às
desigualdades sociais e condições históricas. Mesmo que os estudantes ainda não sejam
considerados plenamente pessoas, cidadãos e trabalhadores, a educação escolar já os
trata claramente como condicionados aos modelos sociais correspondentes a
enquadramentos culturais devidos.
Então, haveria mesmo um currículo “oculto”, sobre o qual os atores escolares
não tivessem consciência? Os sentidos implícitos da formação do sujeito não são
assumidos como objetivos escolares, mas isso não significa que os alunos e professores
não tenham consciência de que existam. Mesmo as crianças têm consciência de que o
que é ensinado na escola não se restringe aos seus aspectos cognitivos, os conteúdos
apresentados nas aulas, ou socioafetivos explícitos, identificados com fundamentos
morais práticos e de valores. Desde cedo, os alunos percebem que o comportamento e as
atitudes contam tanto (ou mais) que saber a lição dos livros didáticos. A aprendizagem
social é sempre destacada pelos professores, orientadores pedagógicos e diretores,
mesmo que isso não conste formalmente nos manuais escolares das disciplinas. Ainda
que não se veja o regimento da escola em um mural, ou na sala da direção, esse é um
documento público quase desnecessário, pois qualquer aluno sabe que ele existe na
cabeça dos professores e de outras “autoridades” escolares.
Contudo, esse senso comum ensinado na escola não é sinônimo de pensamento
simplificado ou raciocínio ingênuo, mas sim do acesso sistematizado e do domínio
efetivo de conhecimentos compartilhados com uma comunidade de convivência. Os
alunos oriundos das classes populares, que formam a maioria da clientela das escolas
públicas, sabem que não aprendem da mesma forma que nas escolas privadas,
freqüentadas pelos filhos da classe média e alta. Apesar da crítica ao determinismo
econômico dessa análise, a teoria da reprodução social através de mecanismos escolares
não é destituída de fundamento sociológico (DURU-BELLAT, Marie; ZANTEN,
1992). Porém, essa consciência da aprendizagem de um senso comum peculiar à
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escolarização faz com que a socialização seja percebida de forma crítica, indo além do
seu sentido cognitivo formal. As aprendizagens vivenciadas na vida social na escola são
reconhecidas pelos próprios professores e alunos, em seus valores culturais e práticas
cotidianas, sendo avaliados como coerentes ou não frente à realidade da vida social fora
dos muros escolares.
Socialização é o mesmo que educação? E educação é igual à escolarização?
Ainda que no mundo atual a socialização e a educação, como fenômenos sociais
cotidianos, possam não ter fronteiras rigorosas, enquanto noções teóricas elas podem
apresentar distinções claras. A mais aparente das diferenças seria a de que a socialização
é o encaminhamento do indivíduo para que eles participem com consciência reflexiva e
autonomia da vida em sociedade, enquanto a educação trataria da formação do sujeito
visando o seu desenvolvimento pessoal e peculiar. Essa definição de simples
entendimento, talvez simples demais, é bastante limitada para qualquer leitura crítica da
realidade, pois implica numa divisão artificial entre desenvolvimento pessoal e vida
social, desconhecendo as suas zonas de intersecção e sobreposição, o que é facilmente
verificável na prática social e na história de vida dos cada um. Como não perceber que a
vida coletiva é decisiva para a formação pessoal, assim como a personalidade é o
fundamento individual para qualquer tipo de convívio social? Esse, por exemplo, é o
pressuposto do interacionismo simbólico, no qual se destaca os aprendizados da autoimagem, habilidade de desempenhar papéis sociais e das emoções (TURNER, Jonathan
H., 1999).
Já a educação é um campo muito mais amplo do que a escola, porque outras
instituições também são consideradas educativas (por exemplo, grupo de pares e os
meios de comunicação). Logo, o sentido da palavra educação não deveria ser visto
como sinônimo de escolarização. Porém, como conceber no mundo contemporâneo a
educação sem a participação onipresente da escola?
SOCIALIZAÇÃO,
EDUCAÇÃO
E
ESCOLARIZAÇÃO:
CAMPOS
CONVERGENTES E CONFLITIVOS
É inegável que na representação social não existe dubiedade quanto ao sentido
equivalente entre socialização, educação e escolarização. Por exemplo, alguém que
apresenta comportamento social adequado às normas de um grupo é considerado um
indivíduo bem socializado, sendo igualmente chamado de pessoa educada. Também,
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tanto para o senso comum quanto para o especialista, não há dúvidas quando se
menciona a “educação pública” ou a “escola pública”: se está falando do todo e da parte
de um mesmo sistema. Na prática, isto é, no raciocínio natural e no discurso social
considera-se a socialização, a educação e a escolarização como indissociáveis, sendo
difícil reconhecer claramente a diferenças entre esses fenômenos. Mas, as distinções
existem e remontam as suas origens históricas e filosóficas.
Educação vem do verbo latino educare, de onde deriva educatione. Composto
pelo prefixo ex (fora) + ducere (conduzir, levar), significa “conduzir para fora”,
entendido como formar alguém para levá-lo ao mundo, estando implícita a ideia de
formação de conhecimentos necessários para se apresentar no mundo. Na língua
portuguesa, a palavra educação também significa boas maneiras, como boa conduta
moral e social. Em francês (éducation) e espanhol (educación), também há esse mesmo
sentido de educação como equivalente de comportamento adequado às normas sociais.
No inglês (education), apesar da mesma origem do latim, o termo se refere somente ao
grau de educação formal e à cultura erudita, utilizando-se a palavra polite (do latim
polire) para o comportamento social de acordo com as boas maneiras. A educação,
independentemente dessa variação, seria a preparação ou desenvolvimento pessoal de
capacidades pessoais e sociais, marcando a passagem do homem situado “dentro” de
uma dimensão ou estágio original (infância, família, ignorância), para o movimento de
ser conduzido para um estágio avançado “fora” (maturidade, mundo social, sabedoria).
Nesse caso, educação é bastante similar à noção do senso comum para socialização, que
é entendida como encaminhamento do indivíduo que já estaria preparado para o mundo
“fora” do seu berço inicial.
Entretanto, a condição lógica para que a educação atinja os seus objetivos é a de
que exista uma coerência comunicante entre o “dentro” e o “fora”, entre os
conhecimentos formados e os modos de comportamento praticados. Caso contrário, o
choque pela incongruência com a realidade de “fora” pode levar à negação do valor da
educação de “dentro”. A incapacidade em reconhecer e evitar as inconsistências
educativas entre preparação e realização estaria nas bases do desprezo pela educação,
que, contudo só se instala a posteriori e justamente por se ter sido educado. É a imagem
paradoxal da educação contra a educação, como o filho que rejeita a importância da
formação recebida na família, utilizando ele próprio a linguagem desenvolvida com os
pais e os professores. Outro exemplo é o caso de pessoas hipercríticas da sociedade, que
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como indivíduos muitas vezes portadores de uma educação apurada desenvolvem
expressões sofisticadas de desprezo social, através da literatura e das artes.
Socialização, por sua vez, deriva do vocábulo em latim socialis, que significa
camaradagem, companheirismo, o qual também se refere à palavra socius, parceiro.
Nessa acepção há um sentido de pertença, como sentimento profundo de ser membro de
um grupo social de identificação e de convívio. É a sensação percebida pelo sujeito de
fazer parte de uma estrutura societária compreendendo uma extensa rede de interações
sociais (grupo, comunidade, organização, instituições, categorias, sistemas). E nessa
rede o indivíduo socializado é aquele que se reconhece no seu grupo de referência e nele
se mantém ao longo da vida. Assim, de acordo com a origem da palavra e diferente do
entendimento comum, socialização não seria a dinâmica de formação do indivíduo para
que ele pudesse no futuro ocupar lugares sociais mais altos, mas sim a sua
referencialidade relativamente estática dentro de formas coletivas pré-estabelecidas. Ao
invés de significar a movimentação social do indivíduo, a socialização poderia ser
definida pelo seu fixismo de conformação às estruturas sociais existentes.
Nesse caso, a socialização é radicalmente conservadora, onde a mudança não é
uma alternativa individual estimulada, pois seria considerada como ameaçadora à
coesão conformista do grupo. A mudança para ser aceita, quando ocorre, configura-se
como um evento coletivo, comum e progressivo, antes de ser uma extraordinária
conquista de superação pessoal. De fato, a ascensão social isolada de indivíduos é vista
como uma “traição” ao grupo e um abandono consciente das suas origens. Noutro
sentido, como perspectiva de ascensão intencional planejada Merton propõe a noção de
uma socialização antecipatória, que é o “processo pelo qual um indivíduo aprende e
interioriza os valores de um grupo (de referência) ao qual deseja pertencer” (DUBAR,
2005, p.65). Essa socialização deveria ajudar o indivíduo tanto para ingressar no grupo
pretendido quanto a facilitar sua adaptação a sua condição “superior”.
Assim, esse processo seria vivido como uma preparação consciente de um
indivíduo para ingressar ulteriormente num grupo social de maior status. Além da
transferência abusiva de uma lógica econômica de investimento pessoal em um suposto
“mercado futuro” de posicionamento social, diante dos valores históricos e práticas
culturais do grupo originário, esse seria, no fundo, um processo de anti-socialização. A
necessária negação e suposta superação explícita da influência do grupo de
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pertencimento apagaria realmente a socialização original e inconsciente? Esse projeto
de antecipação desde a infância, como uma educação deslocada das condições objetivas
do seu grupo de referência, devido à incerteza das expectativas estimuladas, não seria
antes propício à desadaptação social e à frustração pessoal?
Como se viu com a educação, a socialização depende de um conformismo do
indivíduo à situação social vigente. O sentido conservador das estruturas sociais é
evidente, pois a preservação institucional é mais importante do que eventuais
contestações dos seus participantes. Contudo, às vezes são especialmente os indivíduos
muito bem socializados, imbuídos do sentido de coesão do grupo, aqueles mais capazes
de mobilizarem os seus camaradas para movimentos coletivos visando mudanças
sociais. Assim, a socialização baseada no controle social eficaz do conformismo pode
provocar o inverso: o sentimento compartilhado de que a força coletiva é um caminho
poderoso para difundir a insatisfação e provocar mudanças.
Contudo, o objetivo conservador dessa socialização conformista ao grupo social
tende a criar uma séria resistência à ideia de socialização transformadora. Nesse caso, a
educação divergente
da socialização pode agir como uma energia social
desestabilizadora. A socialização é o resultado concreto do convívio e experiência social
comum, sendo a educação um forte mecanismo de conformação aos valores e práticas
que sustentam a situação vigente. Ao contrário, a educação também é frequentemente o
campo sociocognitivo de construção de um imaginário social alternativo, onde se
colocam os ideais de mudança reprimidos pela socialização. Um caso notório dessa
dissonância é o choque cultural entre o misticismo de famílias religiosas e os objetivos
racionalistas e críticos do currículo escolar dos filhos. A educação imaginativa
propiciada pela escola tem, muitas vezes, pouca correspondência com a vivência
cotidiana dos indivíduos, mas pode ter um forte apelo para orientar transformações
pessoais e coletivas. É, nesse sentido, que a atuação da escola, aparentemente um vetor
submetido ao par educação-socialização, mas, de fato, marcada pelo exercício cotidiano
da especulação imaginária e pelo irrealismo dos conhecimentos propostos, justamente
se constitui no espaço privilegiado de contestação-desestabilização das forças
conservadoras de conformação e contrárias à transformação. Os horizontes pessoais
propostos pela escola são fundamentalmente simbólicos, porém são guias sociais
duradouros.
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A despeito da expectativa conservadora de muitos pais, nas suas origens a escola
está baseada na filosofia da crítica racionalista do mundo. O termo escola deriva das
palavras schola, em latim, e skholé, em grego. Ambas significam o tempo de ócio (por
oposição ao negotium), ou lazer, como ocupação do tempo livre, do trabalho e da
política, com a busca do conhecimento. Aristóteles salientou que “por natureza” todos
os homens querem saber mais, ou seja, buscam como orientação natural profunda e
permanente aumentar o seu conhecimento. E na tradição da skholé da Grécia antiga a
escola não era um prédio com salas e muros, mas sim a orientação das questões de
conhecimento que caracterizavam o círculo filosófico de discípulos e mestre.
Ironicamente, “escola”, hoje, representa para as crianças e os jovens o oposto do seu
significado clássico: o local e o tempo com menos liberdade de ação e diálogo. Além
dos controles e da disciplina, a escola moderna também é conhecida pelo sistema de
relativa clausura dos estudantes, divididos em salas de aula exclusivas. Diferentemente,
com Aristóteles, na escola do Perípato (passeio) as lições eram ensinadas enquanto
mestre e discípulos passeavam. A escola não era, então, um estabelecimento fechado
com horários rígidos, mas um encontro social em movimento, com os pés e com a
filosofia pelos caminhos do conhecimento.
Sem imaginar a escola aristotélica do ócio como uma utopia ingênua, deve-se ter
em mente que poder dedicar um grande tempo livre para o conhecimento correspondia
na verdade à visão de uma classe aristocrática numa economia baseada no trabalho
escravo. Compreende-se, portanto, porque o elogio do ócio, o ideal da contemplação, a
rejeição ao trabalho manual e o comportamento filosófico superior seriam as autênticas
atitudes da elite. Depois da filosofia de Aristóteles, o ocidente deixaria para trás essa
noção de mais de dois mil anos para dar ao trabalho o sentido de nobreza e salvação, em
detrimento do ócio, que seria associado ao pecado e à perdição. A escola moderna,
como a instituição que conhecemos, surge nos séculos XVI-XVII sob os auspícios de
uma dupla mudança ideológica: a ética protestante, que justificava o lucro e a iniciativa
privada diante do capitalismo nascente; e a racionalidade econômica da contra-reforma,
justificando as riquezas do comércio internacional pelas virtudes da evangelização. A
escola capitalista seguiria a mesma lógica, colocando a cultura escolar como a base
racionalista para a exploração do trabalhador (organização de tarefas, disciplina
coletiva, produtividade individual e controle de horários e prazos).
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Não obstante, as mudanças educacionais provocadas pelo capitalismo e pela
urbanização não extinguiram a vertente aristocrática da concepção escolar. Em seu
estudo sobre os hábitos das novas classes ociosas européias, a partir do
desenvolvimento capitalista, Thornstein Veblen viu na formação escolar moderna
destinada às classes abastadas, a exemplo do modelo clássico, a preparação para
“funções honoríficas” sem relação com a vida cotidiana do homem comum, porque os
seus ideais seriam considerados “mais altos”, “mais nobres” e “mais dignos”
(VEBLEN, 1980, p. 177). E essas classes ociosas derivadas do capitalismo
inerentemente tenderam a se estabelecer como distanciadas das ocupações do trabalho
industrial ou manual. Por sua vez, desde o início a escolarização das classes
trabalhadoras, havia o objetivo da educação para o trabalho, no sentido da educação
utilitária (organização do tempo e de tarefas) e moral (disciplina e submissão). A
educação, nessa perspectiva de preparação proativa para as práticas concretas da vida
comum em conformidade com a origem social, é semelhante ao termo latino habitus
proposto por Bourdieu (1989) para destacar as capacidades “ativas, inventivas” dos
agentes sociais em ação. E essa noção do habitus difere claramente da antiga concepção
aristotélica de hábito (hexis), que na educação social do sujeito reduzia-o a um papel
passivo, de acordo com uma filosofia idealista alheia ao conhecimento prático e ativo.
Contudo, a escolarização, compreendida no sentido da tradição da filosofia
clássica de origem, era também socialização e educação, sem que se pudesse estabelecer
uma fronteira entre elas. Logo, a escolarização, aparentemente um âmbito mais restrito
do que a socialização e a educação, não poderia, a rigor, ser desvinculada dessas duas
dimensões. Entretanto, é justamente a fragmentação o que tem caracterizado as escolas
desde os tempos modernos: criaram-se fronteiras onde antes havia um território livre. A
socialização como responsabilidade das estruturas sociais, a educação como obrigação
das famílias e da cultura originária, e a escolarização resultante da atuação do Estado
Moderno (parceiro de instituições hegemônicas, como a Igreja e a Empresa capitalista).
SOCIALIZAÇÃO-ESCOLARIZAÇÃO
SOCIOBIOGRÁFICOS
COMO
PROCESSO
E
FENÔMENO
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A socialização é sempre um processo contínuo, com ciclos, episódios e
transformações, compreendendo um desenvolvimento no tempo-espaço e no decorrer da
história de vida de cada um. A noção de processo inclui, inevitavelmente, as relações
convergentes e conflitivas entre a intencionalidade do sujeito e o projeto social sobre
ele, mesmo que isso seja uma dimensão inconsciente ou implícita. Em outras palavras, a
ideia de processo significa uma busca de objetivos relativamente pré-determinados,
onde a circularidade do raciocínio é apenas aparente, pois o sentido é claramente
progressivo, nem sempre linear, mas dinâmico: atingir um estágio superior almejado, a
partir do qual se projetariam novos avanços igualmente previsíveis. Então, processo e
determinismo não são noções contraditórias, mas, ao contrário, complementares.
Considerando-se que o Estado moderno construiu-se historicamente sobre o
planejamento racionalista-instrumental do controle social, seria difícil imaginar que a
idéia de processo não estivesse associada ao desenvolvimento com previsão de
resultados. O cidadão ideal é um conformista às leis e aos costumes, mesmo como um
indivíduo crítico e esclarecido, o inconformismo que provisoriamente isso possa gerar
resulta na construção de um novo conformismo (SPRINTHALL; SPRINTHALL, 1993).
Porém, socialização e educação podem ser profundamente antagônicas, um
campo de conflitos permanentes para o sujeito, fonte de angústias pessoais e desajustes
sociais. Com efeito, a formação da personalidade desenvolve-se através do
reconhecimento da necessidade de um Eu, simultaneamente exercitado e ameaçado pela
ação do sujeito, enquanto indivíduo em formação na sociedade. A socialização é um
processo que tem como objetivo estabelecer as bases do conformismo social, que devem
ser assimiladas pelo sujeito como conduta cotidiana normal, aceita e naturalizada como
necessária para a vida em sociedade. Já a educação escolar, baseada no princípio
filosófico da busca do conhecimento, é um fenômeno de formação que permite ao
sujeito construir-se como pessoa autônoma (pelo autoconhecimento) e indivíduo crítico
esclarecido (pelo conhecimento da cultura histórica).
A educação também pode ser vista como um fenômeno social e epistemológico,
sendo a expressão na realidade presente da experiência humana no mundo, o qual por
definição é indeterminado em si e necessariamente relativo à compreensão do homem.
Essa ideia de fenômeno deriva diretamente da palavra grega phainomenon (o que pode
ser visto), que é contrária a qualquer conhecimento metafísico baseado no nãoobservável. Desde Kant, a fenomenologia fundamenta-se, então, no sentido que o
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homem dá a sua própria experiência no mundo a partir da sua condição existencial, sem
referência antropológica a uma origem metafísica qualquer ou a um destino finalista de
caráter místico. A noção de fenômeno é estranha à de processo, pois diferente deste não
há uma lógica linear ou circular entre início-meio-fim, tampouco cabe-lhe a idéia de
projeto como resultado ideal de procedimentos adequados pré-determinados. Para a
fenomenologia, a existência humana é uma experiência aberta no mundo, ela é um arco
de possibilidades indeterminadas entre o nascimento e a morte de cada um.
Nesse sentido, como experiência biográfica e societária aberta, a marca da escola
necessariamente é maior e mais duradoura do que a instituição escolar, pois o espaço e a
vivência escolares não estão restritos à dimensão do currículo, à cultura do
estabelecimento e menos ainda à sala de aula. A narrativa autobiográfica e a história de
vida do estudante constituem-se numa experiência mais extensa, incluindo a si, aos
outros e ao contexto social e histórico, configurando, de fato, a experiência formativa de
uma sociobiografia, que é simultaneamente construção pessoal e cultura compartilhada.
O tempo livre, os intervalos, a hora do lanche, o pátio, o banheiro, a lanchonete, o
caminho da casa à escola, até mesmo as conversas secretas durante a aula, são
certamente momentos que reconciliam positivamente formação social e educação
escolar na vida dos estudantes.
Nessa divisão da busca do conhecimento pelo homem, à escola tem sido
reservado um papel esquizofrênico: instruir pessoas, que deveriam ser previamente
educadas pela família e comunidade, nas quais a escola tem pouca atuação, e formar
indivíduos que concomitantemente seriam socializados por outras instituições sociais,
sobre as quais a escola quase não tem influência, como o mercado de trabalho e os
meios de comunicação. A frustração de muitos professores se encontra nessa
dissonância inevitável, em seu duplo aspecto: o de não ter condições de mudar as
deficiências educativas das famílias; e o de pensar que o que é ensinado pode ser inútil
para a vida material fora da escola.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com as mudanças contemporâneas, no nível macro e micro, a escola passou a
ser responsabilizada, até mesmo por determinações legais, pelas carências e
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insuficiências na educação e na socialização das crianças e jovens sob a sua guarda.
Mas, o mandato público da escola foi ampliado no mundo contemporâneo, buscando
realizar também os objetivos da antiga educação familiar de valores privados e da atual
integração civil às instituições democráticas. Nesse processo, é óbvio que a escola está
sendo tensionada além da sua configuração institucional e cultural. Para muitos
governantes e especialistas, guiados por uma lógica tecnocrática, a solução é de caráter
gerencial: sob critérios da mera eficácia econômica dos resultados, se deveria
meramente adequar os equipamentos e os recursos humanos da instituição escolar para
atender aos novos objetivos educacionais.
Para alguns pais e educadores, saudosistas da antiga escola como “mundo à
parte” da família e da sociedade, a resposta às dificuldades do sistema de ensino atual
seria a de ir contra a corrente do gerenciamento otimizado, recuperando a escola como
local voltado especialmente para os conhecimentos tradicionais e para a disciplina
moral. Na vida cotidiana de estudantes e professores os embates entre os que são
favoráveis ou contrários às mudanças, ao lado daqueles que oscilam entre uma e outra
tendência, transformam os estabelecimentos escolares em focos de estresse contínuo.
Nesse conflito, não se destacam nem a antiga escola disciplinadora nem a nova escola
integradora, mas sim a escola da frustração. Aceitar que a escola deve escolher entre a
lógica econômica da eficácia ou o sentido tradicional da formação moral é legitimar um
falso dilema. Na prática seria ignorar a realidade da experiência escolar que compreende
socialização e educação: processo e fenômeno indissociáveis para a formação imbricada
do sujeito e do indivíduo.
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REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
DUBAR, Claude. A socialização. Construção das identidades sociais e profissionais.
São Paulo: Martins Fortes, 2005.
DURU-BELLAT, Marie; ZANTEN, Agnès Henriot-van. Sociologie de l’école. Paris:
Armand Colin, 1992.
PERRENOUD, Philippe. Ofício de aluno e sentido do trabalho escola. Porto Editora:
Porto, 1995.
SPRINTHALL, Norman; SPRINTHALL, Richard C. Psicologia educacional. Uma
abordagem desenvolvimentista. Lisboa: McGraw-Hill, 1993.
TURNER, Jonathan H. Sociologia, conceitos e aplicações. São Paulo: Makron Books,
1999.
VEBLEN, Thornstein. A teoria da classe ociosa. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (col.
Os pensadores)
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