AS DIFICULDADES DO INÍCIO DO SEGUNDO GOVERNO FHC Maria Cristina Mendonça de Barros O segundo governo Fernando Henrique Cardoso iniciou-se num ambiente de crise político-econômica cuja digestão ainda não foi completada. Na realidade, a perda de governabilidade vinha se gestando desde o episódio do "grampo" do BNDES, que determinou a saída de parte da equipe econômica, ganhou corpo com as derrotas sofridas junto ao Congresso Nacional no ajuste fiscal de final de 1998 e culminou com o pânico criado nos agentes econômicos com a ameaça de moratória por parte do governo de Minas Gerais no início de janeiro último. A crise de confiança que se instalou no país levou à mudança do regime cambial brasileiro, e desde então o governo FHC vem procurando encontrar um rumo de modo a iniciar, de fato, um novo período governamental. Os desafios para o governo são de duas naturezas. Em primeiro lugar, Fernando Henrique Cardoso tem de superar, no espaço de tempo mais breve possível, a desconfiança da população em geral e dos agentes econômicos em particular quanto à sua capacidade de conduzir o país a uma saída organizada da crise, sem colocar em risco a estabilidade conseguida no período anterior. Em segundo lugar, deve ser capaz de reconstruir um projeto de governo que dê conta da questão primordial de se montar uma trajetória de crescimento sustentado para o Brasil. O gerenciamento do curto prazo é essencialmente político e requer recuperação de credibilidade. A mudança intempestiva da política cambial, suas conseqüências imediatas sobre a taxa de câmbio e os reajustes em determinados preços internos abalaram a confiança da população, comprometendo o apoio político ao governo que se inicia. Do ponto de vista dos agentes econômicos, a forma como se deu a mudança do regime cambial gerou desconfianças quanto à capacidade do governo brasileiro em conduzir organizadamente a reorientação da política econômica. A fragilidade política de curto prazo impõe dúvidas quanto à possibilidade do país fugir do receituário clássico de política monetária restritiva e recessão econômica para impedir a volta de um processo inflacionário descontrolado. Na realidade, a capacidade de ação e reação do governo 10 NOVOS ESTUDOS N.° 53 MARIA CRISTINA MENDONÇA DE BARROS depende do somatório de ações positivas no sentido da governabilidade: a equipe precisa ser reconstituída; o diálogo com os organismos internacionais tem de acontecer de modo a liberar recursos e ajudar a retomar a confiança dos financiadores internacionais; o novo Congresso e os novos governadores têm de cumprir uma agenda construtiva para o país de modo que haja governo a ser conduzido no próximo período. Em termos econômicos, um curto prazo bem-sucedido significa que o fluxo cambial volte a ser positivo; que os aumentos de preços relativos que estão ocorrendo em função do câmbio não se convertam em inflação; que as taxas de juros reiniciem um movimento descendente, de modo que o ajuste pela recessão seja o menor possível. Para que o país deixe de perder reservas internacionais (desde meados do ano passado já caíram em mais de 50%) é primordial que a renegociação das metas do acordo com o FMI e organismos internacionais permita a internalização dos recursos prometidos no final de 1998. Com isso, os bancos privados internacionais, mesmo que de forma mais seletiva, deverão voltar a fornecer linhas de comércio absolutamente fundamentais para o fechamento das contas correntes do país. Recompostas as linhas de crédito, diminui a pressão sobre a taxa de câmbio e o país passa a se adequar à nova realidade dos preços relativos. Credibilidade e rapidez de movimentos são fundamentais para esta sinergia positiva. Da mesma forma, o tempo de retomada de uma taxa de câmbio de equilíbrio é fundamental para a definição da inflação do período. Embora a sociedade em geral tenha aprendido a (e gostado de) viver sem a inflação e os agentes econômicos estejam negociando fortemente reajustes de preços num quadro de economia desaquecida, quanto mais tempo a incerteza perdurar, maior a possibilidade de que repasses em alguns preços se convertam em aumentos generalizados. É claro que a manutenção dos preços públicos sem reajustes e o fato das negociações trabalhistas estarem sendo baseadas no emprego e não no salário real deverão ajudar a impedir a transformação de ajustes de preços localizados em inflação e concorrer para que a taxa anual não seja muito superior a 10%. Mas para que este cenário ocorra é fundamental que, no máximo em dois a três meses, as taxas mensais de inflação voltem a desenhar uma trajetória de queda. Com câmbio e inflação controlados, a política monetária via juros pode ser afrouxada, permitindo que a economia readquira a capacidade de crescer. E aqui entramos na questão do projeto e do desafio de vencer as lacunas existentes para passar da estabilização ao crescimento sem ter completado o processo de reforma do Estado e de reconstituição das condições de competitividade da economia do país. Durante o primeiro mandato de FHC, o reordenamento financeirofiscal do setor público caminhou lentamente, em razão da própria complexidade do quadro político interno. As reformas estruturais na administração e na previdência avançaram sem ter sido conclusivas e as privatizações e a criação de órgãos reguladores permitiram o encaminhamento da saída do Estado de algumas atividades produtivas importantes, como a telefonia, mas MARÇO DE 1999 11 AS DIFICULDADES DO INÍCIO DO SEGUNDO GOVERNO FHC ainda não se completaram. Embora as melhorias nas contas primárias das diferentes esferas de governo fossem necessariamente lentas, esta evolução não se traduzia num risco inerente ao projeto do governo. Os agentes econômicos cobravam mais a direção do que a intensidade das mudanças. O grande problema da estratégia era o impacto que a prática de uma política monetária restritiva (juros altos) exercia sobre a dívida pública, mas que devidamente gerenciada não se constituiria em um elemento excessivamente perturbador, visto que, a se seguir a estratégia gradualista de busca de melhoras nos resultados das contas primárias das diferentes esferas de governo, as taxas de juros poderiam ser adequadas. A outra questão não resolvida no primeiro mandato era a necessidade de redução do déficit em transações correntes do balanço de pagamentos brasileiro, de modo que a obtenção de maiores taxas de crescimento econômico se desse sem pressões explosivas sobre as necessidades de financiamento externo. Havia-se avançado na reestruturação produtiva, na busca de maior competitividade da produção doméstica, na diminuição do custo Brasil, mas ainda eram tão grandes as tarefas a serem executadas, que sua coordenação, no projeto original, exigia a criação de um poderoso ministério — o da Produção — para dar agilidade e efetividade à tarefa. Além da coordenação (que tantos problemas políticos gerou), o enfrentamento deste segundo desafio pressupunha um cenário internacional favorável em termos de fluxos de capitais. Foi aqui, porém, que se situou a variável explosiva capaz de alterar o projeto. Com a crise asiática e particularmente depois da moratória russa, a estratégia gradualista do plano brasileiro passou a ser questionada. Mais ainda, as perdas ocorridas no mercado financeiro internacional, somadas às dificuldades internas da política brasileira, detonaram a crise de credibilidade no país e a mudança do regime cambial. As perspectivas da economia sob o novo regime cambial também devem ser vistas em duas dimensões distintas: o curto prazo ou o período de risco (os nossos trinta a sessenta dias de travessia) em que a equipe tem de gerir a incerteza decorrente da quebra do contrato da âncora cambial, por meio de uma operação sem erros do novo Banco Central, e o médio prazo em que, para o bem do projeto, os fundamentos devem melhorar. O novo Banco Central tem uma característica mais operacional, o que, bem orientado, aumenta as chances de pilotagem do mercado de câmbio. Caso passemos por isto e consigamos convergir para um equilíbrio de moedas, teremos passado pelo olho do furacão e aí sim estaremos aptos a gerir fundamentos melhores, quais sejam: - As necessidades de financiamento externo serão reduzidas em função da melhoria da balança comercial (via crescimento de exportações e diminuição de importações) e na balança de serviços pela conta turismo. - Com a melhor situação de financiamento externo, aumenta a possibilidade de redução das taxas de juros. - Taxas de juros menores permitem maiores taxas de crescimento econômico. 12 NOVOS ESTUDOS N.° 53 MARIA CRISTINA MENDONÇA DE BARROS - J u r o s menores e crescimento econômico maior ajudam o ajuste fiscal duradouro. A melhoria de fundamentos no médio prazo deve ser acompanhada do restante da lição de casa da reforma do Estado e da estrutura produtiva do país: continuidade da reforma previdenciária, pública e privada, e do ajuste dos estados; reforma tributária no sentido de desoneração de impostos sobre a produção; reconstituição do sistema de crédito interno; e continuidade do apoio à reestruturação produtiva, que deve ter prioridade política, capacidade operativa e resultados concretos. O cenário traçado é possível de ser obtido se a pilotagem da política e da área econômica for impecável, além de respaldada por uma clareza de estratégia que garanta o apoio da sociedade. MARÇO DE 1999 13 Recebido para publicação em 1º de março de 1999. Maria Cristina Mendonça de Barros é economista, diretora da MB Associados.