O Samâ` na Tradição Sufi Persa

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PARTE II
A Especificidade do Sama Mevlevi
Capítulo 3: O Sama na Tradição Sufi Persa
O Sama, que significa, literalmente, “audição”, designa na tradição sufi uma
audição espiritual [com o “ouvido do coração”], e, mais particularmente, a
audição da música com o objetivo de alcançar um estado de graça ou êxtase,
ou, simplesmente, a fim de meditar, mergulhar em si mesmo, ou, ainda, como
dizem os sufis, de nutrir a alma. Trata-se, então, de uma tradição de concerto
místico, de escuta espiritual de música e de cantos, sob uma forma mais ou
menos ritualizada. 1
Desde os primórdios do Islã as autoridades muçulmanas – teólogos, juristas, filósofos e
místicos sufis – discutem a legalidade da audição musical (al-sama)2. Esse interminável debate,
que durou em torno de um milênio, deu origem a três vertentes de escritores: a dos advogados
da música, defensores da audição musical; a dos adversários da música, que a consideravam
ilícita; e a dos moderados, que aceitavam a audição com algumas restrições.
Os escritores pertencentes à primeira categoria – advogados e filósofos da legalidade da
música – foram os primeiros a se manifestar. Depois vieram os sufis, ou muçulmanos místicos,
para que quem a música sempre foi “um meio de atrair a alma para Deus” 3. A presença sufi na
arena dos debates demonstra que a questão da relevância e da legalidade da música, no contexto
geral da tradição islâmica, não é apenas jurídica ou teológica, mas, sobretudo, espiritual.
Portanto, quaisquer que sejam as ambigüidades no nível jurídico, a última resposta, no que tange
à relação da música com a espiritualidade islâmica, deve ser buscada, acima de tudo, no
Sufismo.4
Entre os teólogos que apoiaram a prática do Sama e lutaram, do ponto de vista teológico
e jurídico, por sua validade, citemos o grande filósofo Abu Hamid Muhammad Al-Ghazzâlî
(1058-1111), que escreveu o oitavo dos quarenta volumes de seu célebre Tratado da
Revificação das Ciências da Religião (Ihyâ ‘ulûm al-dîn) – obra que lhe conferiu o título de
DURING, Jean. Musique et extase: L’audition mystique dans la tradition soufie. Paris: Albin Michel, 1988:
13. (Tradução: minha)
2
As origens do Sama podem ser traçadas até, pelo menos, o tempo de Abu’l-Qasim Junayd (?-910), que nasceu
próximo à cidade de Hamadan, na Pérsia Ocidental, mas que viveu a maior parte de sua vida em Bagdá, onde vários
samakhanas, locais dedicados à apresentação de concertos de música mística, estiveram ativos desde a segunda
metade do século IX (cf. SCHIMMEL, Annemarie. Mystical dimensions of Islam. Chapel Hill, NC: University of
North Carolina Press, 1975. p. 181).
3
Ver SCHIMMEL, Annemarie. The Role of music in islamic mysticism. Sufism, music and society in Turkey
and Middle East. Istanbul: Swedish Research Institute, 2001, p. 11.
4
Foram eles, os sufis, com suas cerimônias de Sama, os principais guardiões da música islâmica nos períodos da
história em que o puritanismo dominou o tecido social da sociedade muçulmana, desencorajando o cultivo da
música. É por essa razão que as músicas clássicas, persas e turcas, compostas, em grande parte, por poetas e
músicos sufis, são sempre associadas às cerimônias de Sama. Essas peças não apenas acompanham as numerosas
práticas sufis existentes como são parte integrante de seu método contemplativo e espiritual (cf. FELDMAN,
Walter. Music of the ottoman court: makam, composition and the early ottoman instrumental repertoire.
Berlin: Verlog Für Wissenschaft und Bildung, 1996).
1
2
“Prova do Islã” – em defesa do Sama. O referido livro – Kitab âdâb al-samâ’ wa al-wajd (O
Livro dos Usos Corretos da Audição e do Transe) – em favor do concerto sufi, desempenhou
um papel central nos debates subseqüentes sobre a legalidade da música no Islã.5
Na segunda categoria de escritores – a dos oponentes da música – encontram-se os
aiatolás medievais, que se posicionaram radicalmente contra os adeptos do Sama e contra todos
aqueles que acreditavam ser a música um alimento para a alma. Entre os principais clérigos
exotéricos que se mostraram hostis à prática do Sama sufi, destacam-se os teólogos Ibn Abî alDunyâ (?-894),6 o teólogo Ash’ari, o pregador Ibn al-Jawzî (?-1200), o jurista Ibn al-Hajaj (?1336), Ibn Jama’a (?-1338) e o legalista fanático Ibn Taymiyya (1262-1328), que passou os
últimos dias de sua vida numa prisão de Damasco. Os escritos de Taymiyya, contrários ao
Sama, foram compilados pelo Sheikh al-Manbijî, sob o título Kitâb al-Samâ’ wal-Raqs (O Livro
do Sama e da Dança), do qual cito o extrato abaixo:
A audição do canto [al-sama] une duas coisas: em primeiro lugar, ela dissuade
o coração de refletir sobre a grandeza de Deus, o Mais-Alto, e de assumir Seu
serviço; em segundo lugar, ela o faz render-se aos prazeres imediatos e o
convida a embriagar-se plenamente no conjunto das paixões sensuais, das quais
a maior é a cópula. O prazer que as pessoas obtêm desta última só será
completo se os encontros forem renovados. Mas como não é possível renovar
muitos encontros a partir do que é lícito, prossegue-se com a fornicação. Entre
o canto e a fornicação, há uma correspondência, no seguinte sentido: o canto
constitui o prazer do espírito e a fornicação é o maior dos prazeres da alma. 7
No capítulo V d’A Alquimia da Felicidade (Kimiya-yi as ‘adat) – obra de peso
indiscutível no pensamento islâmico de todos os tempos – Al-Ghazzâlî equaciona a música da
seguinte maneira: são lícitas aquelas músicas que melhoram a condição interior do homem e
ilícitas as que distanciam o ser humano de sua relação com Deus:
[...] a música e a dança não põem no coração nada que não esteja previamente
nele, mas simplesmente avivam a chama das emoções adormecidas [terrenas e
sensuais ou divinas e espirituais]. Portanto, se alguém tem em seu coração
aquele amor por Deus que a lei prescreve, é perfeitamente lícito e, inclusive,
louvável, que ele tome parte nos exercícios que o incitam. Por outro lado, se o
seu coração está cheio de desejos sensuais, a música e a dança não farão senão
fomentá-los [...]. Entretanto, se [a pessoa] as escutar [a música e a dança]
apenas por diversão, estas não serão lícitas nem ilícitas, mas indiferentes, posto
que o fato, somente, de que sejam agradáveis, não as converte em ilícitas, da
mesma forma que o prazer de escutar o canto dos pássaros ou admirar o verde
da mata e o correr da água não é ilícito. 8
5
Entre os autores que reivindicaram, posteriormente, o valor dos concertos místicos, citemos o historiador e jurista
Ibn Khaldun (1332– 1406), que reconheceu ser o Sufismo a essência do Islã.
6
Ele é o autor do mais antigo tratado de oposição à música: Dhamm al-Malâhî (A Censura dos Divertimentos), do
qual se pode deduzir que o Sama foi semi-institucionalizado no séc. 9.
7
TAYMIYYA, Ibn. In: MICHOT, J. R. Musique et danse selon Ibn Taymiyya – le livre du Sama et de la danse
(Kitâb al-samâ’ wal-Raqs) compilé par le Shaykh Muhammad al-Manbiji. Études Musulmanes, XXXIII. Paris:
Librairie Philosophique J. Vrin, 199, p. 95. (Tradução: minha)
8
AL-GHAZZÂLÎ. Sobre la música e la danza – Como ayudas a la vida religiosa. In: La alquimia de la felicidad.
Madri: Editorial Sufi, 1993. (Tradução: minha)
3
As falas contrastantes de Taymiyya e Ghazzâlî – contra e a favor da audição musical (alsama) – são apenas o reflexo de diferenças bem mais amplas e profundas que sempre existiram,
e que ainda existem, entre o puritanismo islâmico e o misticismo sufi (tariqat); o primeiro,
enfatizando a transcendência divina e o papel da Lei (shariat) e o último, a experiência direta de
Deus e o sentido espiritual ou esotérico (haqiqat) das revelações.
Há registros de que por volta de 867, um samakhana (literalmente, sala de audição) foi
aberto em Bagdá, onde os sufis – naquele tempo, um pequeno grupo de homens piedosos –
costumavam encontrar-se freqüentemente. Após dias e noites de intensos exercícios religiosos, o
Sama – poesia, canto, música e dança – era a atividade que lhes permitia relaxar. A ortodoxia
opunha-se a tal prática, principalmente porque as poesias que eram recitadas nesses encontros
falavam das relações humanas de amor ao invés de restringirem-se à Grandeza e Majestade
Divinas, tal qual eram descritas no Alcorão. Além disso, poderia, ainda, acontecer de um dos
ouvintes se levantar e começar a girar no próprio eixo, num estado de arrebatamento místico.
Isso também parecia incompatível com as regras prescritas pela ortodoxia islâmica. 9
Os verdadeiros deleites da religião, argumentou Al-Ghazzâlî n’A Alquimia da
Felicidade, não podem ser alcançados por meio da instrução formal, mas sim por uma atração e
um desejo intensamente sentidos. Se os clérigos ortodoxos condenavam a “poesia erótica” que
costumava ser recitada nas reuniões sufis era porque não compreendiam que “quando, em tais
poesias, se menciona a separação ou a união com o amado, o sufi, que é um iniciado no amor de
Deus, aplica a tais expressões à separação ou união com Ele” 10.
Poucos sufis consideraram o Sama repreensível. 11 Muhyi al-Din ibn al-Arabi (11651240), por exemplo, conhecido como o Shaykh al-Akbar, o “Sheikh Supremo”, autor de 600
livros ou tratados em Árabe sobre temas sufis, revela-se vigorosamente contra o Sama em um de
seus escritos, ao passo que em outros trabalhos, especialmente no Kitâb al-Futûhât al-Makkiyya
ou O Livro das Revelações de Meca, apresenta argumentos, aparentemente, favoráveis ao Sama.
12
Além das duas categorias de escritores citadas – defensores e adversários do Sama –
houve um terceiro grupo de escritores que se posicionou moderadamente com relação à audição
musical: Abu’l-Qazim ‘Ubayd Allah ibn Khurradahbih (?-911), que defendeu a legalidade
religiosa da audição (al-sama) em seu Kitab al-lahw wa’l-malahi ou O Livro da Diversão e dos
Instrumentos Musicais; Ibn Rajab (?-1392), em cujo livro Nuzhat al-asma’ fi mas’ alat al-samâ’
ou O prazer dos Ouvidos na Prática da Audição Musical descreveu, em estilo moderado, duas
categorias de canto, sagrado e profano, condenando o último e aceitando o primeiro, porém
considerando todo instrumento musical como proibido; e, Ibn ‘Abd Rabbihi (?-940), que,
embora tenha defendido, genericamente, a audição musical, apresentou argumentos relevantes,
também, para a compreensão da música na cultura islâmica. Rabbihi dizia que se o cantor que
recita a poesia possuir natureza e moral, espiritualmente, elevadas, sua canção será digna de
louvor. Do contrário, muito desprezível.13
9
Ver SCHIMMEL, A. The role of music in islamic mysticism, op. cit., p. 11.
Ver AL-GHAZZÂLÎ, op. cit.
11
Tais místicos, ou vinham das terras ocidentais do Islã, ou pertenciam à Ordem Naqshbandi (que era de um modo
geral, oposta à prática). Os sufis do mundo persa ou persanizado, entretanto, raramente se opunham ao Sama.
12
Tais argumentos estão, todavia, baseados em princípios teológico-cosmológicos que diferenciam o “Sama
místico” de qualquer outro tipo de Sama ou audição musical (al-sama).
13
Cf. LEWISOHN, Leonard. The sacred music of Islam: Sama in the persian sufi tradition. British Journal of
Ethnomusicology, vol. 6, 1997.
10
4
Embora o Sama seja a expressão mais amplamente conhecida do Sufismo, a via mística
do Islã – sendo praticado por quase todas as ordens sufis (especialmente a Mevlevi e a Chisti)
do mundo muçulmano – a tradução da palavra, para uma outra língua, será sempre
aproximativa.
Duncan Macdonald (1901)14, em sua tradução do Kitâb âdâb al-samâ’ wa al-wajd (O
Livro dos Usos Corretos da Audição e do Transe), de Al-Ghazzâlî, traduz a palavra Sama, ora
por listening to music and singing, ora por hearing to music and singing, ora por listening, ora
por hearing, ou, ainda, simplesmente, por music ou singing. Entretanto, em seu artigo Sama, que
está na Encyclopédie de l’Islam (1908)15, lê-se que a palavra “tem um sentido particular no
Sufismo, onde significa escutar a música, os cantos, os salmos ou a recitação rítmica, a fim de
chegar à emoção religiosa e ao êxtase (wajd), designando, também, os cantos e a música vocal e
instrumental que escutamos com este propósito.” James Robson (1938)16, na sua tradução
inglesa do tratado sobre o Sama de Majd al-Dîn Ahmad al-Tûsî, irmão de Al-Ghazzâlî, traduz a
palavra por audition. Henry George Farmer (1929)17 traduz o Sama, genericamente, por
listening to music, chegando também a traduzir, simplesmente, por music. John Spencer
Trimingham (1971)18 traduz por spiritual concert. Louis Massignon (1922)19 traduz Sama por
concert spirituel ou oratorio, palavras que foram utilizadas, mais tarde, por Mohammad Mokri
(1961)20 e Eva de Vitray-Meyerovitch (1972)21. Henry Corbin (1964)22, por sua vez, a traduz
por audition musicale, expressão compartilhada, mais recentemente, por Jean-Louis Michon
(1994)23, que utiliza também audition spirituelle. Marijan Molé (1963)24, no seu longo artigo
sobre a dança extática do Islã, utiliza constantemente a palavra Sama sem jamais traduzi-la.
Gilbert Rouget ([1980] 1990)25, em seu livro A Música e o Transe e Jean During26, em Música e
14
MACDONALD, Duncan. B. Emotional religion in Islam as affected by music and singing being a translation of a
book of the Ihyâ ad-Din of Al-Ghazzâlî with analysis, annotation and appendices. Journal of the Royal Asiatic
Society, 1901, p. 236.
15
MACDONALD, Duncan. Samâ’. Encyclopédie de l”Islam.1908.
16
ROBSON, J. Tracts on listening to music, being Dhamm al-malâhî, by Ibn abî ‘Dunyâ, and Bowâriq al-ilmâ’,
by Majd al-Dîn al-Tûsî Al-Ghazzâlî. Coll. Oriental Translation Fund, N.S., vol. XXXIV. London: the Royal Asiatic
Society, 1938.
17
FARMER, H. G. A history of arabian music to the XIIIth century. London: Luzac and Co., 1929, p. 140.
18
TRIMINGHAM, J. S. The sufi orders in Islam. London: Oxford University Press, 1971.
19
MASSIGNON, L. Essai sur les origines du lexique technique de la mystique musulmane. Paris: Paul
Geuthner, 1922, p. 85.
20
MOKRI, M. Soufisme (Le Soufisme et la musique). Encyclopédie de la Musique, III. Paris: Fasquelle, 1961, p.
1014-1015.
21
VITRAY-MEYEROVITCH, E. de. Mystique et poésie en Islam. Djalâl-ud-Dîn Rûmî et l’Ordre des
Derviches Tourneurs. Desclée de Brouwer, 1972.
22
CORBIN, H. Histoire de la philosophie islamique, vol. I. Paris: Gallimard, 1964, p. 260.
23
MICHON, Jean-Louis. Lumières d’Islam. Milan: Arche, 1994.
24
MOLÉ, M. La Danse Extatique en Islam. Les danses sacrées (Coll. Sources Orientales, VI) Paris: Éditions du
Seuil, 1963.
25
Rouget adverte, todavia, que no contexto no qual Al-Ghazzâlî e os sufis, em geral, utilizam a palavra, a categoria
Sama é intraduzível. Por duas razões: “A primeira é que ela designa uma coisa muito particular, que não
corresponde a nenhuma outra cerimônia que não pertença ao Sufismo e que é esta cerimônia, feita de oração, de
música e de dança, reunindo os dervixes com o propósito de adorar Deus através da prática do transe [wajd]. Esta
cerimônia se chama Sama e, tomada neste sentido, a palavra está no mesmo patamar que, por exemplo, Islã: não há
equivalente em Francês. A Segunda é que o livro de Ghazzâlî é, antes de tudo, uma empreitada para justificar o
Sama e que este repousa sobre a ambigüidade da palavra, ou, antes, sobre o fato de que ela tem dois sentidos, um
sentido muito particular, que é este que nós queremos explicar, e um sentido geral, que é aquele da audition [poesia
e música]” (ROUGET, G. La musique et la transe. Esquisse d’une théorie générale des relations de la musique
et de la possession. Paris: Gallimard, 1990, p. 450 [Tradução: minha]). Como During persuasivamente argumenta:
5
Êxtase, concordam em traduzi-la por audition, embora traduzam wajd diferentemente: Rouget
por transe e During por extase. Porém, acrescenta Rouget, como a relação entre o Sama
(cerimônia) e o transe (wajd) é muito estreita, no limite da palavra, Sama significa, ainda,
“estado de transe” 27:
Nós podemos, com efeito, dizer entrer en Sama [entrar em Sama] ou être saisi
par le Sama [ser possuído pelo Sama], ou, ainda, être en Sama [estar no estado
de Sama]. No sentido prático [corporal], [...] o termo equivale a “dança
extática”. [...] No limite, ainda, Sama significa “música”, ou qualquer coisa de
equivalente, porque nós podemos dizer entendre le Sama [ouvir o Sama] – o
que é, aliás, inopinado e contrário à lógica mesmo da palavra, porque isto
equivale a dizer entendre l’audition [ouvir a audição]. Assim, repito, uma vez
que o Sama deriva da raiz s.m.’. (entendre ou écouter) [ouvir ou escutar] –
designando, no seu sentido primeiro e geral, o ato de ouvir ou escutar, sem
referência a um fenômeno sonoro particular – digamos, [então], audition
[audição]. Dito desta maneira, nos textos sufis que nos interessam, o verbo
entendre (s.m.’.) [ouvir], em suas diversas formas, comporta sempre um objeto
implícito, que é ou a poesia, ou o Alcorão, ou a música (não qualquer música
mas certo tipo de música, apenas). 28
Essa “música” é o que Ruzbahan Baqli (1128-1209), o Santo Padroeiro de Shiraz, chama
de “música espiritual”, aquela que permite a audição e a visão da Presença Divina (hudur). A
“música espiritual” ou Sama, tal qual é concebida por Baqli, é o meio através do qual o homem
é conduzido de volta à sua origem espiritual29; simbolicamente, representa a voz de Deus
chamando o homem em Sua presença: “É um adjunto no Caminho (tariqat) para Deus, e apenas
aquele que estiver disposto a submeter-se à disciplina necessária para tornar-se digno de
atravessar este Caminho tem o direito de ouvir esta música” 30.
As palavras do Santo de Shiraz sobre a significância da música, as condições sob as
quais ela é legítima, os tipos de pessoas que podem ouvir a música e o tipo de música que é
adequada para ser tocada e ouvida no Sama encontram-se no livro Risalat al-quds (Tratado
sobre o Sagrado), do qual o mestre sufi contemporâneo Seyyid Hossein Nasr, extraiu algumas
partes. No que tange ao efeito psicológico e espiritual do Sama na alma humana, diz Ruzbahan
Baqli:
“[...] o prazer desta música é diferente para cada um dos espíritos [existentes].
Pode ser desfrutada de acordo com a estação do Espírito Sagrado (ruh-i
“Se a atitude do ouvinte do Sama não for considerada inteiramente única na cultura oriental, pelo menos o rito
deveria ser considerado uma conquista original” (DURING, J., op. cit., p. 15).
26
DURING. J., op. cit.
27
Relação esta que encontra fundamento nas palavras de Ghazzâlî: “Saiba que o Sama [...] faz frutificar um estado
no coração que é chamado transe (wajd)” (MACDONALD, D., op. cit., p. 200 apud ROUGET, G., op. cit., p. 451).
28
ROUGET, G., op. cit., p. 451-452. (Tradução: minha)
29
Descrição semelhante à de Baqli é a de Jean-Louis Michon, que também escreveu um capítulo dedicado à
“audição espiritual” (Sama) em seu livro Lumières d’Islan: “escutar a música significa, em última análise, abrir-se
a uma influência, a uma vibração de origem supra-humana, ‘feita som’ a fim de despertar em nós os ecos de um
estado primeiro e de suscitar no coração a nostalgia e a união com sua própria Essência” (MICHON, J.L., op. cit.,
108).
30
Cf. NASR, Seyyid Hossein. Islamic art and spirituality. Golgonooza Press, 1987, p. 161. (Tradução: minha)
6
muqaddas). Todavia, ninguém, salvo aquele que está entre os que reinam no
domínio da gnosis (ma’rifat), pode estar preparado para ela, pois suas
qualidades espirituais estão integradas à sua natureza corpórea. Até que o
ouvinte se torne purificado [...], ele não pode tomar parte nas reuniões (majalis)
de filiação espiritual (uns). [...] A música descansa os pensamentos dos fardos
da condição humana (bashariyyat) e excita o temperamento dos homens. Ela é
o estimulante dos mistérios senhoriais (asrar-i rabbani). Para alguns, é uma
tentação, porque eles são imperfeitos. Para outros, é uma exortação (‘ibrat)
porque eles alcançaram a perfeição. Não é apropriada para aqueles que vivem
no plano [instintivo] da natureza, porque ela causará a sua destruição, mas para
aqueles cujos corações morreram ao escutar a música. É, todavia, incumbente,
para aquele cujo coração é alegre, descobrindo ou falhando em descobrir a
alma, escutar a música. Pois na música há cem mil alegrias [...]; com a ajuda de
uma delas, a pessoa pode encurtar mil anos do Caminho e atingir a gnosis de
um modo que não pode ser alcançado por nenhum gnóstico, através de
nenhuma outra forma de culto.” 31
31
BAQLI, Ruzbahan. In: NASR, S. H., op. cit., p. 154-155. (Tradução: minha)
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