Estudo de Caso Abordagem de via aérea de difícil intubação orotraqueal em paciente com a síndrome de Schmid-Fraccaro ou síndrome do olho de gato Edmilson Bastos de Moura1 e Marcelo de Oliveira Maia2 RESUMO Introdução. A via aérea de difícil intubação é um achado incomum na rotina em emergências, unidades de terapia intensiva e centros cirúrgicos. Apesar de corresponderem a uma minoria das intubações traqueais, podem determinar complicações graves. Relato do caso. Paciente de 29 anos, com diagnóstico de síndrome de Schmid-Fraccaro, submetida a colecistectomia videolaparoscópica, apresentou dificuldade para intubação orotraqueal durante procedimento anestésico, apesar do reconhecimento prévio de sinais preditivos de via aérea de difícil intubação. Conclusão. A identificação da via aérea difícil previamente a intubações traqueais eletivas é ajudada pelo reconhecimento de antecedentes pessoais relevantes e utilização de índices preditivos, mas a utilização desses últimos é discutível. Palavras-chave. Vias aéreas; via aérea difícil; síndrome do olho de gato; síndrome de Schmid-Fraccaro ABSTRACT Approach to difficult airway in a Schmid-Fraccaro syndrome OR CAT EYE SYNDROME Introduction. Difficult airway is an uncommon finding in emergency rooms, Intensive Care Units and operation rooms. Although occurring in a minority of the endotracheal intubations, it can cause serious complications. Case report. A 29 year-old woman, with diagnosed Schimid-Fraccaro syndrome, underwent laparoscopic cholecystectomy and presented a difficult intubation during anesthesia, despite the early recognition of predictive signs. Conclusion. Identification of difficult airway prior to elective tracheal is aided by the recognition of relevant individual history and predictive indexes, but of questionable value. Key words. Airway; difficult airway; cat eye syndrome; Schmid-Fraccaro syndrome INTRODUÇÃO via aérea difícil é uma entidade incomum. Metanálises mostram que a ocorrência de dificuldade para verificar a via aérea superior à laringoscopia direta varia de 1,5 a 8,5%, e o insucesso de intubação é de 0,13% a 0,3%.1 Apesar da ausência de universalidade nos conceitos de intubação traqueal difícil, determinando via aérea difícil, aquela é identificada pela necessidade de mais de três tentativas de intubação ou quando o tempo para obtê-la supera dez minutos. No entanto, se mesmo em condições ótimas não for possível realizar a intubação traqueal, a intubação difícil estará caracterizada em apenas uma tentativa e em menos de trinta segundos.2 Apesar de ter repercussão questionável sobre a mortalidade3 e não apresentar aumento do tempo de permanência em unidade de terapia intensiva,4 a A via aérea difícil correlaciona-se com algumas complicações muito temidas, como lesão de vias aéreas superiores e parada cardiorrespiratória. Portanto, a tentativa de identificá-la precocemente é de importância fundamental. Pacientes com a síndrome de Schmid-Fraccaro, também conhecida por síndrome do olho de gato, excetuando-se aqueles minimamente afetados, podem necessitar de intervenção cirúrgica corretiva para as malformações associadas5 ou por doenças outras – no caso em questão, colelitíase. A avaliação das vias aéreas nesses pacientes, feita por meio de índices preditivos – distância esternomentoniana e tiromentoniana, extensão da cabeça, índice de Mallampati, abertura bucal –, busca antecipar a dificuldade de intubação endotraqueal. Todavia, seu valor real é questionável. Médico intensivista, Unidade de Terapia Intensiva, Hospital Santa Luzia, Brasília, DF, Brasil. Médico, coordenador médico da Unidade de Terapia Intensiva, Hospital Santa Luzia, Brasília, DF, Brasil. Correspondência: Edmilson Bastos de Moura. SQSW 306, bloco B, ap. 409, CEP 70.673-432, Brasília, DF. Internet: [email protected] Recebido em 30-10-2011. Aceito em 30-11-2012. 1 2 440 Brasília Med 2011;48(4):440-442 Via aérea de difícil intubação RELATO DO CASO Mulher, 29 anos, natural e procedente de Brasília. Internada para realização de colecistectomia videolaparoscópica eletiva para tratamento de colecistopatia calculosa, recebeu visita pré-anestésica. Seus antecedentes patológicos revelaram o diagnóstico citogenético de síndrome de Schmid-Fraccaro, doença congênita com grande variabilidade fenotípica, que habitualmente se manifesta por coloboma de íris, micrognatia, depressões pré-auriculares, malformações anorretais e cardíacas entre outros. Não há relato de comorbidades. A paciente apresentou alguns desses estigmas (apêndices e fossetas pré-auriculares, micrognatia, coloboma de íris com epicanto) ao exame físico, além da presença de elementos preditivos, como distância esternomentoniana inferior a doze centímetros, distância tiromentoniana inferior a seis centímetros (figura), escore de Mallampati IV e abertura bucal inferior a três centímetros. Recebeu a classificação ASA 1. A hipótese de diagnóstico de via aérea difícil suspeitada na avaliação pré-anestésica foi confirmada durante a intubação orotraqueal, necessária para a anestesia inalatória que foi sugerida. Houve grande dificuldade para o exame visual da orofaringe (classificada com o índice de Mallampati IV anteriormente), sendo submetida a algumas tentativas de inserção do tubo orotraqueal sob laringoscopia direta, sem sucesso, mesmo após troca de lâminas do laringoscópio. As manobras causaram leve trauma local, dificultando ainda mais a inspeção visual da orofaringe e suas estruturas. Durante o procedimento, foi mantida ventilação satisfatória por intermédio do dispositivo máscara-reservatório facial e suplementação de oxigênio, sem a ocorrência de dessaturação periférica inferior a 85%, cianose, hipotensão arterial relevante ou arritmias cardíacas. Não houve ventilação difícil sob máscara. A via aérea definitiva foi obtida às cegas, após cerca de dez minutos de tentativas, por um segundo médico anestesista chamado ao local. Caso houvesse nova falha de intubação, seria reavaliada a conduta anestésica com introdução de máscara laríngea ou intubação sob fibroscopia, ou adiado o ato cirúrgico, despertando-se a paciente. A enferma foi submetida à cirurgia inicialmente proposta, sem incidentes transoperatórios, sendo extubada ainda na sala cirúrgica, por precaução. Teve leve estridor laríngeo, relacionado ao trauma e ao edema de glote e subglote, que cedeu ao uso de corticosteroide venoso. Diante do diagnóstico de via aérea difícil, foi encaminhada à unidade de terapia intensiva para acompanhamento pós-operatório e monitorização ventilatória rigorosa. Teve alta no primeiro dia pós-operatório, sem episódios adicionais de desconforto ventilatório. Figura. Fotografia mostra distância tiromentoniana inferior a seis centímetros DISCUSSÃO O diagnóstico da via aérea de difícil intubação pode ser sugerido pela coleta de dados pessoais e pelo exame físico direcionado. Apesar de apresentarem baixa sensibilidade e especificidade,1 são utilizados como diretrizes no exame para avaliação da via aérea do paciente.6 Alguns autores consideram que predizer uma via aérea de difícil intubação orotraqueal é um mito,7 mas que considerar essa possibilidade é um exercício benéfico para seleção de estratégias na intubação.6 Entre as informações, podemos observar desde a forma do palato e do comprimento dos incisivos, à largura do pescoço. Tal direcionamento é conhecido na prática anestésica, sendo feita rotineira e eletivamente. Contudo, as nuances desse exame muitas vezes são impraticáveis em situações emergenciais e desfavoráveis. Ao anestesista pode restar desfazer a indução anestésica e o adiamento do ato cirúrgico. Já ao intensivista ou emergencista, podem não sobrar opções, senão o estabelecimento da via aérea permeável. A via aérea de difícil intubação tem sido objeto de muito debate e de padronização em relação às condutas. Foram criadas associações, como a Difficult Airway Society, que produz boletins com relato de casos auditados na Grã-Bretanha.8 A American Society of Anesthesiologists encoraja a descrição de cada caso de via aérea difícil por meio de formulários Brasília Med 2011;48(4):440-442 441 Edmilson Bastos de Moura e Marcelo de Oliveira Maia próprios, além de seu acompanhamento, visando a orientar futuras intervenções.6 Durante a intubação traqueal, qualquer obstáculo à extensão da cabeça (espondilite anquilosante, trauma raquimedular cervical, síndrome de Madelung9) ou à abertura bucal (anquilose temporomandibular, sequela de queimadura de face e pescoço, neoplasia craniofacial) podem determinar dificuldades na obtenção de via aérea para procedimentos anestésicos ou ventilação mecânica. A micrognatia, presente em numerosas síndromes (Pierre Robin, Catel Manzke, Patau, Edward, Down, cri-du-chat), além daquela apresentada pela paciente,10 também dificulta a intubação. O reconhecimento precoce de características físicas possibilita a devida preparação da equipe e disponibilização de material específico para a intubação eletiva (unidade bolsa-máscara, máscara laríngea, Combitube®, fibroscópio). Considerando-se o baixo valor preditivo positivo e negativo dos índices preditivos, esses podem fazer parte do exame físico rotineiro em doentes selecionados, tentando antecipar o reconhecimento da presença da via aérea difícil de intubar. No entanto, em ambiente de unidade de terapia intensiva e de pronto-socorro, a equipe deve considerar todas as intubações como potencialmente difíceis e estar familiarizada com os algoritmos de via aérea difícil, considerando-se sua prevalência nessa unidade.11 CONFLITOS DE INTERESSES Os autores não têm conflitos de interesses a declarar. REFERÊNCIAS 1. Crosby ET, Cooper RM, Douglas MJ, Doyle DJ, Hung OR, Labrecque P, et al. The unanticipated difficult airway with recommendations for management. Can J Anaesth. 1998;45:757-76. 2. Sociedade Brasileira de Anestesiologia. Intubação traqueal difícil. Projeto Diretrizes. Associação Médica Brasileira e Conselho Federal de Medicina; 2003. 3. Wong E, Ng YY. The difficult airway on the emergency department. Int J Emerg Med 2008;1:107-11. 4. Joffe AM, Liew EC, Matioc AA, Willmann K. Unanticipated difficult intubation in the medical-surgical intensive care unit: its effect on outcome of critically-ill adults. The Internet Journal of Anesthesiology. 2010; 24(1) [acesso 1.º abril 2011]. Disponível em: http://www.ispub.com/journal/the-internet-journal-of-anesthesiology/volume-24-number-1/ unanticipated-difficult-intubation-in-the-medical-surgical-intensive-care-unit-its-effect-on-outcome-of-critically-ill-adults.html. 5. Bissonnette B. Syndromes: rapid recognition and perioperative implications. 1st edition. New York: McGraw-Hill; 2006. p. 141. 6. American Society of Anesthesiologists Task Force on Management of the Difficult Airway. Practice guidelines for management of the difficult airway: an updated report by the American Society of Anesthesiologists Task Force on management of the difficult airway. Anesthesiology. 2003;98:1269-77. 7. Yentis SM: Predicting difficult intubation: worthwhile exercise or pointless ritual? Anaesthesia. 2002;57:105-9. 8. Safe Anaesthesia Liaison GrouP. Summary of incidents reported to the Anaesthetic eForm [acesso 4 abril 2011]. Disponível em: http://www.das.uk.com/files/SALG_aug09-feb10.pdf. 9. Da Broi U, Zauli M, Bonfreschi V, Cason L, Parodi PC, Osti M, et al. Anesthesiologic problems in patients with Launois-Bensaude-Madelung disease. Clinical case. Minerva Anestesiol. 1996;62:333-7. 10. Rosa RFM, Mombach R, Zen PRG, Graziadio C, Paskulin GA. Características clínicas de uma amostra de pacientes com a síndrome do Olho do Gato. Rev Assoc Med Bras. 2010;56:462-6. 11. Lavery GG, McCloskey BV. The difficult airway in adult critical care. Crit Care Med 2008:36:2163-73. Editoração científica Uma simples conversa leva mensagens a alguns ouvintes, e alguns de seus tópicos ficam em uma ou outra pessoa e podem ser esquecidos, seus detalhes perdidos ou podem ser contestados pelo próprio autor se forem citados em um texto publicado; uma palestra pode levar mensagens a centenas de pessoas, algumas partes ficam lembradas por dezenas delas ou podem ser esquecidas por quase todas com o transcurso do tempo e sua citação pode também ser contestada; um texto publicado ou gravado leva mensagens a milhões de pessoas em todo o mundo, permanece por muitos anos ou mesmo séculos levando suas mensagens a mais pessoas enquanto existir como publicação, com todos os seus detalhes examináveis e podem ser citadas em documentos como referências. Simônides Bacelar, revisor geral, revista Brasília Médica 442 Brasília Med 2011;48(4):440-442