III Simpósio de Ciências Sociais: Cidade e Democracia

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III Simpósio de Ciências Sociais:
Cidade e Democracia
Anais
Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
Instituto de
Ciências Sociais
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Grão-Chanceler • Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Reitor • Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães
Vice-Reitora • Patrícia Bernardes
Assessor Especial da Reitoria • José Tarcísio Amorim
Chefe de Gabinete do Reitor • Paulo Roberto de Sousa
Pró-reitorias e Secretarias • Extensão - Wanderley Chieppe Felippe; Gestão Financeira Paulo Sérgio Gontijo do Carmo; Graduação - Maria Inês Martins; Logística e Infraestrutura
- Rômulo Albertini Rigueira; Pesquisa e de Pós-graduação - João Francisco de Abreu;
Planejamento e Desenvolvimento Institucional - Carlos Barreto Ribas; Recursos Humanos Sérgio Silveira martins; Arcos - Jorge Sundermann; Barreiro - Renato Moreira Hadad; Betim
- Eugênio Batista Leite; Contagem - Robson dos Santos Marques; Poços de Caldas - Iran
Calixto Abrão; São Gabriel - Alexandre Rezende Guimarães; Serro - Eustáquio Afonso Araújo;
Guanhães - Ronaldo Rajão Santiago
III Simpósio de Ciências Sociais
Coordenação Geral
Rachel De Castro Almeida
Regina De Oliveira Coeli
Coordenação Comissão Científica
Ciências Sociais • Cristina Almeida Cunha Filgueiras
Serviço Social • Andréa Branco Simão
Relações Internacionais • Leonardo César Souza Ramos
Arquitetura e Urbanismo • Rita de Cássia Lucena Velloso e Adriane de Almeida
Coordenação Comissão Executiva
Serviço Social • Maria Raquel Lino de freitas
Relações Internacionais • Geraldine Marcelle Moreira Braga Rosas Duarte
Arquitetura e Urbanismo • Tatiana Soledade Delfanti Melo
Ciências Sociais • Cristina Almeida Cunha Filgueiras e Ricardo Ferreira Ribeiro
Funcionária técnica responsável • Daniele Batemarque Guimarães
Ficha Catalográfica
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Simpósio de Ciências Sociais
S612
III Simpósio de Ciências Sociais: cidade e democracia: anais /
Instituto de Ciências Sociais. Belo Horizonte: PUC Minas, 2014.
624 p. ; il.
ISBN: 978-85-8239-012-2
1. Cidades e vilas – Aspectos sociais. 2. Planejamento urbano.
3. Espaços públicos. 4. Sociologia urbana. 5. Democracia. 6. Participação social. I. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Instituto de Ciências Sociais. II. Título.
CDU: 711.432
III Simpósio de Ciências Sociais: Cidade e Democracia
Instituto de
Ciências Sociais
Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
APRESENTAÇÃO
A jovem democracia brasileira e as várias tensões vivenciadas na e pela
cidade são temas recorrentes no debate contemporâneo nas Ciências Sociais.
O III Simpósio de Ciências Sociais – Cidade e Democracia – promovido
pelo Instituto de Ciências Sociais da PUC Minas, realizado entre os dias 08 e 10
de Setembro de 2014, abordou os desafios e as possibilidades das cidades e da
democracia, incluindo diversas perspectivas interdisciplinares que perpassam a
Arquitetura e o Urbanismo, as Ciências Sociais, as Relações Internacionais e o
Serviço Social.
As desigualdades sociais manifestas na díspar distribuição dos direitos
– saúde, educação, habitação, infraestrutura, segurança – desafiam os atores
sociais e as formas de governança.
Neste contexto, como identificar os novos sujeitos políticos e os novos atores sociais? Como observar suas relações locais/pontuais e/ou internacionais/em
rede e seus impactos tanto para atores estatais quanto supraestatais? De que modo
estes atores ressignificam as metodologias e práticas de planejamento urbano?
Essas questões foram amplamente abordadas nos quatro grupos de
trabalho que dão origem a este Anais:
Grupo de Trabalho 1 - Metrópoles: problemas,
arcabouço institucional e interações sociais
Neste GT serão acolhidos trabalhos que discutam as questões centrais
da convivência metropolitana: mobilidade, meio-ambiente, relação entre os
entes federados, cooperação e conflito. Atores envolvidos nos processos metropolitanos e suas interações.
Grupo de Trabalho 2 - Cidades: diálogos interdisciplinares
Neste GT serão acolhidos trabalhos que discutam questões relacionadas à vida cotidiana nos grandes centros urbanos do Brasil. De particular
interesse serão aqueles trabalhos que incorporam reflexões relativas aos limites e possibilidades que emergem na vida dos sujeitos que vivem nas grandes
cidades brasileiras.
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Grupo de Trabalho 3 - Democracia e
produção do espaço urbano
Neste GT serão acolhidos trabalhos que discutam as possibilidades e
os desafios das novas formas contra-hegemônicas de planejamento que procuram afirmar a democracia, ressignificando tanto as metodologias quanto as
práticas da ação planejadora. De particular interesse serão os trabalhos que
incorporam os processos de luta encerrados na participação de moradores
e a constituição de novos sujeitos políticos, que coletivamente se constroem
como novos sujeitos planejadores.
Grupo de Trabalho 4 - Democracia e governança global:
o papel dos atores do nível local
O GT4 busca explorar as diversas dimensões de expressão de atores do
nível local em processos da política internacional. Neste sentido, destacam-se
as relações e ações de atores subnacionais e não-estatais e seus impactos tanto
para atores estatais quanto supraestatais.
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Sumário
Metrópoles: problemas,
arcabouço institucional e interações sociais
Grupo de trabalho 1
O flanelinha no cenário urbano
de belo horizonte: Entre a discriminação
e o reconhecimento, entre a informalidade
e a regulação estatal ..................................................................11
Humberto Leandro de Melo e Sousa
JUSTICEIROS: UM RETRATO DO USO
COTIDIANO DA VIOLÊNCIA PRIVADA
COMO GARANTIA DA ORDEM SOCIAL...............................................34
­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­Fernando Xavier Pereira
O COTIDIANO FEMININO NAS
METRÓPOLES E A SUB-REPRESENTAÇÃO
POLÍTICA DAS MULHERES................................................................. 47
Renata Adriana Rosa
Banksy, política e concepção de arte
contra parede: uma análise de suas contribuições
para a sociedade contemporânea ...........................................66
Fábio Júnio Mesquita
Luiz Fernando Moreira da Silva Melo
A emigração dos haitianos para
cidades brasileiras: desafios para políticas
públicas de integração...............................................................78
Maria da Consolação Gomes de Castro
Duval Fernandes
O AEROPORTO DA PAMPULHA COMO VETOR
DE ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA NA REGIÃO....................................93
Nilma Barbosa da Conceição Dias
INTERVENÇÕES URBANAS E ESPAÇO PÚBLICO.............................104
Eliana Fonseca Stefani
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O PODER LOCAL, A POLÍTICA HABITACIONAL
E O MERCADO IMOBILIÁRIO: TRAJETÓRIA DE
ASSUNÇÃO DE ATRIBUIÇÕES E MCMV.......................................... 122
Gabriella Caroline Rodrigues Beltrame
Espaço público e mobilidade urbana:
Uma análise comparada do papel do espaço
público nas políticas de mobilidade urbana
de Bogotá e do Rio de Janeiro:
o caso dos projetos de BRT.................................................... 139
Ana Marcela Ardila Pinto
Leticia Parente Ribeiro
O monitoramento de projetos públicos de mobilidade
urbana e infraestrutura rodoviária: contribuições e
desafios para o desenvolvimento democrático...............162
Karen Christine Dias Gomes
Cidades: diálogos interdisciplinares
Grupo de trabalho 2
O TRABALHO NO CONTEXTO URBANO:
percepções de usuárias do Programa
Bolsa Família................................................................................ 182
Amanda do Carmo Amorim Nadú
Laiene Joyce Pereira Torres
Andréa Branco Simão
As dinâmicas lúdicas e os processos de
museificação do Museu histórico Abílio Barreto
(Belo Horizonte, Minas Gerais).............................................. 200
Leonardo Gonçalves Ferreira
Lagoinha – Bonfim: seus copos,
seus corpos, seus caminhos tortos.....................................218
Denise Pirani
CIDADES, PERCEPÇÃO AMBIENTAL E EDUCAÇÃO
DE JOVENS E ADULTOS: ALGUNS HORIZONTES
TEÓRICOS E METODOLÓGICOS A PARTIR DE TIM INGOLD ......... 235
Carolina Rezende de Souza
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FRONTEIRAS NA CIDADE: CAMINHADAS
PELA RUA GUAICURUS EM BELO HORIZONTE............................... 250
Talitha Couto Moreira Lara
Tão perto e tão longe: os mapas de movimento
como representação espacial das barreiras de acesso
ao bairro da Lagoinha em Belo Horizonte.......................... 265
Janaina Maquiaveli Cardoso
Ritmo de trabalho, ritmo da cidade:
a vigência da teoria do valor na
organização do tempo nas metrópoles..............................281
Mônica Hallak Costa
SOCIALIDADES: CONFLITO E COOPERAÇÃO
ENTRE OS JOVENS MEMBROS DA TORCIDA
ORGANIZADA GALOUCURA............................................................. 298
Flavia Cristina Soares
Circuito Cultural Praça da Liberdade:
turismo e narrativas..................................................................312
Clarissa dos Santos Veloso
Luciana Teixeira de Andrade
TENDÊNCIAS ESPACIAIS DO MERCADO IMOBILIÁRIO
DA REGIÃO METROPOLITANA DE BELO HORIZONTE..................... 333
Renan Pereira Almeida
Democracia e produção do espaço urbano
Grupo de trabalho 3
Participação dos moradores e desafios no
processo de democratização de decisões na cidade
- a experiência do Orçamento Participativo
Digital 2011 em Belo Horizonte............................................. 353
Ana Maria Rodrigues de Oliveira
VENDEDORES AMBULANTES DE BETIM:
A CIDADANIA CONSTRUÍDA PELA PRÁTICA
DEMOCRÁTICA DE ASSOCIAR-SE................................................... 367
Geisiane Andreia Fonseca
Maria Carolina Tomás
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Desigualdade, exclusão e segregação espacial
em Belo Horizonte: antigos personagens e novas
distinções no bairro de Lourdes.......................................... 382
Alexandra Nascimento Passos
Wânia Maria de Araújo
Democracia, urbanismo e estratégia
underground Black bloc: uma análise das
transformações do espaço urbano de
Belo Horizonte, sua afirmação política,
democrática e subjetiva........................................................... 408
Fábio Júnio Mesquita
Luiz Fernando Moreira da Silva Melo
Controvérsias e contradições democráticas
no processo construção do Plano de Preservação
do Conjunto Urbanístico de Brasília – PPCUB:
Um estudo empírico-crítico segundo a Teoria
do Agir Comunicativo de Jürgen Habermas. ......................421
Alceu Fernandes da Costa Neto
EDUCAÇÃO PARA CIDADANIA E POLÍTICAS PÚBLICAS PARA
UMA CIDADE EDUCADORA: desafios para repensar o
papel da educação de crianças e adolescentes nas
cidades e o papel dos diversos atores sociais................. 443
Marisaura dos Santos Cardoso
O direito à mobilidade urbana
e o direito à cidade.................................................................... 460
Marcos Fontoura de Oliveira
Ronaldo Guimarães Gouvêa
QUANDO O DESENHO URBANO NÃO É...........................................477
Adriane de Almeida Matthes
Viver e Lutar no Sertão das Geraes:
Mulheres Líderes em um contexto
de destradicionalização.......................................................... 489
Elizabeth Maria Fleury Teixeira
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PARTICIPAÇÃO EM CONSELHOS LOCAIS DE SAÚDE
DE BELO HORIZONTE: CINCO TENSÕES........................................ 502
Diogo Neves Pereira
Democracia e governança global: o papel dos atores do nível local
Grupo de trabalho 4
A Lei de Mudanças Climáticas do Estado do Amazonas
e o seu Regime Internacional................................................. 525
Douglas Nascimento Evangelista
Cosmopolitismo Urbano
e as Relações Internacionais..................................................541
João Pedro Silveira Martins
Um estudo comparativo sobre a
cooperação descentralizada em
Minas Gerais e Rio Grande do Sul......................................... 556
Luciana Leal Resende Paiva
PARTICIPAÇÃO POLÍTICA ELEITORAL DAS MULHERES:
UMA ANÁLISE SOBRE A ADOÇÃO DE POLÍTICAS DE COTAS PARA
MULHERES NO BRASIL E NA ARGENTINA......................................576
Thais Reyna Infanzón Vargas
A entrada da Venezuela no MERCOSUL e a participação
do Poder Legislativo: uma análise sobre as atuações
das oposições e situações nos Legislativos
do Brasil e Paraguai.................................................................. 584
Deborah Silva do Monte
A Relação Global-Local
no campo das Políticas Públicas........................................... 603
Marcia Guedes Vieira
Metrópoles: problemas,
arcabouço institucional e interações sociais
Grupo de Trabalho 1
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O flanelinha no cenário urbano
de belo horizonte: Entre a discriminação
e o reconhecimento, entre a informalidade
e a regulação estatal.
Humberto Leandro de Melo e Sousa1
1. Bacharel em Ciências Sociais pela UFMG e em Direito pela PUC Minas. Mestre em Direito
pela PUC Minas. Professor de Direito Penal na UEMG (Unidade Diamantina) e na PUC
Minas (Umidade Barreiro). O presente artigo parte de uma monografia desenvolvida sob a
orientação da Profa. Dra. Yumi Garcia dos Santos (UFMG) durante o ano de 2012.
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Considerações iniciais
É notório que as metrópoles brasileiras já contam com uma imensa frota
de automóveis. Também não há dúvida de que a maior parte dessas cidades não
foi projetada para abrigá-la e, ao mesmo tempo, permitir a fluidez do trânsito.
Desse problema comum às grandes cidades decorre, entre outros, um fenômeno
curioso: a gestão particular das vagas de estacionamento em vias públicas.
Qualquer cidadão que empreenda uma travessia de veículo pelas principais ruas ou avenidas de Belo Horizonte e intencione estacioná-lo por algum
motivo não terá dificuldade em observar um aspecto intrigante, embora não exclusivo, da capital mineira: há poucas vagas de estacionamento em vias públicas
– seja na região do hipercentro, nas concentrações de estabelecimentos comerciais e instituições políticas localizadas nos bairros situados na área englobada
pela região da Avenida do Contorno, ou mesmo em áreas mais periféricas com
grandes aglomerações promovidas por eventos culturais e/ou esportivos – que
não estejam sendo “geridas” pelos já conhecidos flanelinhas, na forma de lavadores ou de guardadores autônomos de veículos, atuando de forma legal ou de
forma clandestina.
A profissão de guardador e lavador autônomo de veículos automotores foi
reconhecida pela Lei Federal n.º 6.242/75 e se encontra na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO/2002), sendo precariamente regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 79.797/77.
No primeiro semestre do ano de 2012, a Câmara de Vereadores de Belo
Horizonte aprovou, em dois turnos e por unanimidade, um projeto de lei que
regulamentava de forma mais específica o exercício da profissão. No entanto, o
Executivo vetou o projeto de lei na íntegra no mês de julho do mesmo ano.
Atualmente em Belo Horizonte, a Lei n° 6.482/93, regulamentada pelo
Decreto Municipal n° 7.809/94, trata apenas dos requisitos para o cadastramento
dos lavadores de carro que trabalham nas vias públicas, além de descrever deveres e penalidades.2
A representação do senso comum nos indica, em um primeiro momento,
que as ruas e avenidas seriam de uso da coletividade, devidamente obedecidas
as regras de trânsito; em um segundo momento, tais espaços acabaram sendo
2. Como exigência, o interessado deve apresentar documento de identidade, atestado de
bons antecedentes, certidão negativa em cartórios criminais e prova de que cumpriu com suas
obrigações militares e eleitorais. Também prevê que o pagamento pelo serviço do flanelinha deve
ser opcional e que eles são responsáveis pelo automóvel e pelos objetos deixados dentro dele. A
lei, porém, carece de maior eficácia – e o que prevalece é a informalidade.
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SOUSA, H. L. M. • O flanelinha no cenário urbano de Belo Horizonte...
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gradativamente ocupados e, por vezes, geridos pelos flanelinhas, que mormente
solicitam determinadas quantias (variáveis de acordo com o lugar, com o evento
e, por vezes, com a marca do veículo “vigiado” e com a “aparência” de seu proprietário) pela utilização das vagas onde seriam permitidas a parada e o estacionamento de veículos.
Mas qual o significado que os flanelinhas atribuem ao espaço e como eles
o organizam nas diferentes localidades de Belo Horizonte? Quais seriam os aspectos mais controversos da relação cotidiana entre flanelinhas, usuários de vagas
de estacionamento e agentes públicos locais?3
Várias perguntas podem ser feitas e demandam certamente uma análise
mais detalhada do fenômeno socioespacial que se nos apresenta, conquanto sejam possíveis algumas breves reflexões que nos permitiriam um debate franco
e aberto sobre a ocupação das vagas de estacionamento em vias públicas pelos
chamados flanelinhas, sem descuidar das implicações socioeconômicas das políticas urbanas institucionais4 relacionadas ao citado fenômeno.
Cabe-nos ressaltar que nesta pequena abordagem o termo flanelinha será
utilizado em sentido mais amplo, isto é, abrange tanto aqueles indivíduos que se
dispõem, por determinada quantia em dinheiro, a lavar os veículos estacionados,
quanto aqueles que se oferecem, pela mesma benesse, a simplesmente vigiá-los
contra eventuais furtos. Interessa-nos ao longo do trabalho estabelecer as diferenças essenciais entre os flanelinhas que atuam legalmente e os flanelinhas
clandestinos, aqueles que são lavadores de veículos e aqueles que são apenas
guardadores.
Os trechos de ruas e avenidas são repartidos e muito bem delimitadas
– como se fossem zonas de atuação – entre os flanelinhas, que se fixaram em
regiões com grande concentrações de veículos e ali constituíram o seu local
de trabalho.
3. Neste ponto, nos aproximamos do raciocínio de Roberto DaMatta para outro problema social
correlato: “Se descobríssemos esses motivos, poderíamos chegar a um conjunto de sugestões eventualmente
normativas e disciplinadoras de maior alcance e profundidade, porque tais medidas ultrapassariam o
nível das receitas (que chegam por meio da experiência de outros países) e do legalismo, que, como tenho
indicado sistematicamente em minha obra, crê que todas as questões sociais podem ser resolvidas pela
polícia ou pela lei – por meio de protocolos jurídicos, repressão policial e fórmulas legais, sem o concurso
paralelo da conduta de todos os atores que atuam nesse espaço” (DaMatta, Roberto. Fé em Deus e pé
na tábua, ou, Como e por que o trânsito enlouquece no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2010. p.39)
4. Segundo Castells, “O âmago da análise sociológica da questão urbana está no estudo da
política urbana, isto é, da articulação específica dos processos designados como ‘urbanos’ no
campo da luta de classes e, por conseguinte, na intervenção da instância política (aparelho de
Estado) – objeto, centro e mecanismo da luta política” (CASTELLS, Manuel. A questão urbana.
Trad. Arlene Caetano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. p. 351).
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SOUSA, H. L. M. • O flanelinha no cenário urbano de Belo Horizonte...
III Simpósio de Ciências Sociais: Cidade e Democracia
Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
O monopólio do “ponto” pode acontecer pelos motivos mais variados e se
consolidar pelos critérios de antiguidade, de poder coercitivo (traduzido na coação física ou moral) e de credibilidade/aceitação pelos moradores, comerciantes
e frequentadores do local.
Alguns flanelinhas pedem para lavar o veículo, outros vendem as folhas do
talão rotativo (chamado em Belo Horizonte de “Faixa Azul”) por um preço pouco
mais caro5, além daqueles que simplesmente combinam determinada quantia em
dinheiro para que o veículo seja vigiado (“tomadores de conta”).
Portanto, a vaga de estacionamento na via pública estaria sendo gerida
pelo flanelinha e sua ocupação não estaria mais condicionada tão somente à ausência de outro veículo e/ou uso do talão-rotativo. Agora haveria outras regras
de reprodução daquele espaço (vaga de estacionamento) que não coincidiriam,
necessariamente, com a ideia de uso coletivo dos bens públicos.
Na relação entre capital e trabalho, expressões como flexibilização das
leis de trabalhistas e terceirização ganham amplo espaço, refletindo as novas
transformações no mundo do trabalho. Este, a bem dizer, desvincula-se do emprego estável e seguro.
Em não poucos países, especialmente naqueles em notável desenvolvimento, cresce a cada dia a economia informal. Desemprego, subemprego e deslocamento de trabalhadores para os centros urbanos encaixam-se neste cenário
de novas relações entre capital e trabalho.
Assim também o flanelinha, à margem de uma sociedade que o rejeita e,
ao mesmo tempo, o recebe como gestor informal (mesmo quando cadastrado
pela Prefeitura como “lavador de carro”) das vagas de estacionamento disponíveis em vias públicas. Sua estratégia de sobrevivência tem nome: a rua.
Notas metodológicas
A nossa pesquisa se dividiu em três etapas de pesquisa: a) na primeira, a
análise da legislação pertinente à gestão e ocupação das vagas de estacionamento
em perímetro urbano, bem como a pesquisa histórico-documental dessa legislação; b) na segunda, o levantamento bibliográfico, em especial a compilação de
artigos de periódicos e da literatura relacionada à questão da cidade (da metrópole, do urbano e sua contiguidade), além de reportagens dos jornais locais; c)
5. Desde abril de 2006, foi extinto o convênio que a BHTrans mantinha com o Sindicato de
Trabalhadores, Lavadores, Guardadores, Manobristas e Operadores de Automóveis Autônomos
em Estacionamentos Particulares e Lavajatos do Estado de Minas Gerais (SINTRALAMAC), que
autorizava a venda da folha do talão do rotativo pelos flanelinhas.
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SOUSA, H. L. M. • O flanelinha no cenário urbano de Belo Horizonte...
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Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
na terceira, a pesquisa de campo propriamente dita: a observação participante
em pontos estratégicos, de caráter vivencial (acompanhamento dos flanelinhas
com especial atenção à interação com os proprietários de veículos, comerciantes locais e agentes públicos pertencentes às instituições direta e indiretamente
relacionadas com a prática urbana em análise) e entrevistas em profundidade.6
Interessou-nos, a partir daí, estabelecer as diferenças essenciais entre os
flanelinhas que atuam legalmente e os flanelinhas clandestinos, aqueles que são
lavadores de veículos e aqueles que são apenas guardadores, reconhecendo-os enquanto personagens já inseridos (em razão do descaso das instituições públicas, do
processo natural de segregação e urbanização da metrópole, bem como da diluição
dos mecanismos tradicionais de controle social) no cotidiano de Belo Horizonte.
O fenômeno da gestão privada das vagas de estacionamento em vias
públicas é por demais abrangente, multifacetado. Os fenômenos sociais são
totais e têm implicações, ao mesmo tempo, em diversos níveis e em diferentes
dimensões do real, sendo por isso mesmo motivo de interesse de diversas áreas
das ciências sociais.
Qualquer enfoque que adotássemos deixaria naturalmente de contemplar
alguma dimensão do fenômeno, de modo que a escolha pela abordagem essencialmente qualitativa fundamentou-se na concepção de que este deve ser estudado
a partir dos seus aspectos subjetivos, na tentativa pretensiosa de elucidar alguns
significados das ações e das relações que estariam ocultas na prática da flanelagem.
O fenômeno em análise está diretamente relacionado a uma tendência
cada vez maior de uso privado do espaço público e, em especial por esse motivo, suscita debate acalorados e opiniões diversas dos atores envolvidos. Com
expressa Rigatti:
O tema não é nem um pouco confortável, na medida em que lida com
uma problemática espacial profundamente vinculada a efeitos perversos
do atual estágio do desenvolvimento capitalista, ao menos em sua versão
terceiro-mundista. Esse desconforto tem produzido uma dificuldade muito grande em tratar do assunto com um mínimo de racionalidade, muitas
vezes comparecendo de modo raso, como uma questão ideológica. No entanto, os efeitos perversos desse fenômeno sobre as possibilidades de uso e
apropriação do espaço urbano de uso público precisam ser tanto expostos
quanto discutidos, em um movimento que permita que se pondere sobre,
afinal, de qual cidade falamos e a quem pertence. (RIGATTI, 2003, p.43)
6. No decorrer do presente trabalho, tivemos a oportunidade de acompanhar a votação e aprovação,
em dois turnos, do Projeto de Lei n° 1942/2011 e do Substitutivo-emenda n° 1 ao referido projeto
de lei, na Câmara Municipal de Belo Horizonte, até o posterior veto pelo Poder Executivo Municipal
no mês de setembro de 2012. Falaremos mais a frente sobre esse episódio, mas podemos adiantar
que a falta de êxito na aprovação do projeto de lei coincidiu com a tese desenvolvida nesta pesquisa:
de que seria um equívoco a proposta de regulamentação conjunta de duas atividades distintas,
ainda que correlatas, como a de lavador e de guardador de veículos.
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SOUSA, H. L. M. • O flanelinha no cenário urbano de Belo Horizonte...
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Na fase de pesquisa de campo, delimitamos nossa observação mais detalhada à atuação dos flanelinhas nos seguintes locais: 1º) Praça localizada na
Avenida Bernardo Monteiro com Avenida do Contorno, no bairro Floresta (chamaremos Localidade 1); 2º) Rua Araguari, próximo ao nº 1692, trecho entre a
rua Matias Cardoso e Avenida Álvares Cabral, no bairro Santo Agostinho (chamaremos Localidade 2); 3º) Acesso para a rua Araão Reis, em frente a Serraria
Souza Pinto (chamaremos Localidade 3).
As três localidades apresentam características próprias, seja em relação ao
espaço disponível (quantidade de vagas de estacionamento disponíveis, existência de
rotativos, limpeza, fluxo de veículos etc.), seja em relação aos frequentadores (perfis
diferentes de usuários de vagas) e à forma de atuação dos flanelinhas (tipo de serviço
oferecido, cadastramento na Prefeitura, forma de abordagem e de cobrança, nível de
envolvimento com agentes públicos, manipulação das vagas mediante artifícios etc.).7
Na Localidade 1, situada em uma praça na Avenida Bernardo Monteiro,
no bairro Floresta, há um espaço bem amplo com várias vagas de estacionamento em paralelo e em 90º, sem cobrança de rotativo (“Faixa Azul”). Neste local, a
lavagem de veículos surge como principal atividade e encontramos flanelinhas
credenciados que ali trabalham há mais de 40 anos, com filhos e parentes que
passaram a exercer a atividade no mesmo lugar.
Na Localidade 2, situada em um trecho da rua Araguari, no bairro Santo
Agostinho, há um espaço com número reduzido de vagas de estacionamento em
45º e, no outro lado da rua, umas poucas vagas para estacionamento de veículos
em 90º, com cobrança de rotativo. À semelhança da Localidade 1, a principal
atividade seria a lavagem de veículos e encontramos flanelinhas credenciados
que trabalham ali há bastante tempo, com irmãos mais novos e parentes que
passaram também a lavar veículos.
Na Localidade 3, no acesso à rua Aarão Reis, em frente à Serraria Souza
Pinto, há um espaço para estacionamento de veículo em paralelo, sem cobrança
7. A adoção de tais localidades não foi meramente aleatória. A decisão pelo estudo do curioso
fenômeno da gestão particular das vagas públicas de estacionamento já havia sido precedida
de alguma experiência espontânea (não sistematizada) com os flanelinhas que atuavam nesses
lugares. Inicialmente, foi-nos possível frequentar as três localidades na condição de proprietário
de veículo e usuário de vagas de estacionamento, ocasiões diferentes em que fomos abordados
pelos flanelinhas, ora para a lavagem do veículo, ora para a venda de folha do “Faixa Azul”, ora
para a contribuição em dinheiro pela vigilância do veículo. A escolha de pontos específicos de
atuação dos flanelinhas se fez necessária para que o nosso estudo pudesse se debruçar melhor
sobre o modus operandi dessa atividade. Foram selecionadas três localidades de atuação dos
flanelinhas de Belo Horizonte, todas localizadas na região do hipercentro da cidade e que
contavam com a atividade dos flanelinhas há um razoável período de tempo, de modo que, em
alguns dos casos, ocorreu uma espécie de transmissão hereditária do lugar da flanelagem.
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SOUSA, H. L. M. • O flanelinha no cenário urbano de Belo Horizonte...
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Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
de rotativo. O local apresenta limpeza precária e os flanelinhas que entrevistamos são moradores de rua que estabelecem ali suas estratégias de sobrevivência.
Neste local também é oferecida a lavagem dos veículos e, em caso de negativa do
cliente, é solicitada a contribuição para vigiar o veículo. Ao contrário das Localidades 1 e 2, encontramos somente flanelinhas sem credenciamento.
Entretanto, as três localidades da pesquisa apresentavam um ponto semelhante que seria fundamental em nosso trabalho: a lavagem de carros. Nossa
hipótese de pesquisa estava assentada na ideia de que a atividade de lavagem de
carros se constituiria como elemento fulcral do processo de formação da identidade profissional do flanelinha, sendo que a atividade de guardador (“tomador
de conta”) seria mera decorrência da atividade principal, além de estar essencialmente vinculada à sua condição de flanelinha credenciado ou clandestino.
Mais do que saber quais eram as motivações que orientavam a conduta
dos entrevistados, nossa intenção era ouvir suas ideias a respeito de sua própria
conduta em relação ao espaço público, no esforço de trazer à tona os valores que
norteavam o seu comportamento, aliando o tema às teorias que tratam do “espaço como campo político”, as estratégias (legais, políticas e discursivas) acionadas
pelos flanelinhas para a gestão das vagas de estacionamento e as especificidades
do trabalho na rua, bem como a concepção de urbanização e de cidade que perpassa a atuação dos órgãos estatais envolvidos com o fenômeno.
Consideramos que, ao nos envolvermos com as atividades cotidianas dos
autores, com a ajuda da observação participante, asseguramos uma maneira
mais exitosa de perceber as práticas e interações dos flanelinhas, como também
de interrogá-los durante a ação (POUPART, 2008).
O contexto do flanelinha no cenário
da cidade e o fenômeno da informalidade
no mundo do trabalho
A forma como o espaço é apropriado em Belo Horizonte, tal como nas
grandes metrópoles, deixa claro que existe uma ideologia do espaço (LEFÈBVRE, 2003), que o espaço é um produto histórico e social do qual os grupos
particulares se apropriaram para o gerir, para o explorar.
Observamos que o cotidiano de Belo Horizonte, a exemplo de outras metrópoles brasileiras, apresenta descontinuidades, descompassos, realidades construídas (e desconstruídas) pelo processo negativo da dispersão e da segregação
social, pois
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O urbano, isto é, a sociedade urbana, ainda existe e, contudo, existe virtualmente; através das contradições entre o habitat, as segregações e a
centralidade urbana que é essencial à prática social, se manifesta uma
contradição plena de sentido. (LEFÈBVRE, 2003, p.56)
É exatamente neste cenário conflituoso, da disputa no e pelo espaço, que
nos defrontamos com um dos personagens urbanos mais curiosos – e indesejados – da metrópole: o flanelinha:
Como reflexo das disparidades sociais historicamente existentes na sociedade local e então agravadas, a cidade se viu diante de um fenômeno em
evidência, o crescimento no número de “flanelinhas”. Eles exercem uma
atividade que tem registrado um aumento significativo, engrossando as
fileiras da discriminação social que se verifica pela exclusão do mercado
formal de trabalho e inclusão na informalidade, que marca seus destinos
socialmente. (IDALINO, 2012, p.19)
É nesse ponto que podemos discutir, ainda que sucintamente, o papel da
informalidade também como constituinte de representações sociais:
Apesar do seu alto grau de insegurança e aleatoriedade, o trabalho informal
inaugura formas alternativas de sociabilidade. Os mecanismos de entrada
e permanência, o reconhecimento e a utilidade social de várias atividades,
bem como mesmo os necessários intercâmbios com os segmentos formais,
ensejam um manancial de códigos e simbolismos, de ampla aceitação pública, que relativizam a marginalidade social de um conjunto representativo de
trabalhos informais. (DALBOSCO, KUYUMJIAN, 1999, p.217)
Com o aumento do desemprego e as dificuldades de inserção no mercado
de trabalho em razão da falta de qualificação profissional, muitos trabalhadores
buscaram na informalidade a alternativa de geração de renda, formando uma
variada rede de atividades de sobrevivência:
O trabalho informal é um fenômeno global que aumentou consideravelmente nos últimos anos, especialmente, a partir da reestruturação produtiva que modificou a relação de assalariamento típica da organização
urbano- industrial do trabalho. Com o crescimento do desemprego, o fechamento de postos de trabalho e, portanto, a dificuldade de incorporação
dos trabalhadores ao processo produtivo, as atividades informais assumem novas características no espaço urbano das metrópoles. (NEVES,
JAYME, ZAMBELLI, 2009, p.106)
Nessa esteira, a nova informalidade abrange tanto o universo de trabalhadores desempregados com acesso dificultado ao emprego formal quanto aqueles
que vivem em meio a dificuldades extremas, valendo-se de estratégias de sobrevivência que mormente se encontram no limiar entre a legalidade e a ilegalidade:
Essa nova definição de informalidade é constituída a partir da junção
de dois critérios: ilegalidade e/ou atividades e formas de produção não
tipicamente capitalistas. Assim, abrange tanto as atividades e as formas
de produção não tipicamente capitalistas (legais ou ilegais) quanto as relações de trabalho não registradas, mesmo que tipicamente capitalistas
(assalariados, sem carteira assinada). Nessa perspectiva, a informalidade
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se identifica com todas as formas e relações de trabalho não fordistas, também identificadas como precárias em virtude da falta de proteção das leis
sociais e trabalhistas reguladas pelo Estado. (NEVES, JAYME, ZAMBELLI,
2009, p.109)
Conforme nos aponta Idalino (2012), os flanelinhas vivem no limiar da
informalidade de pequenos trabalhos que chamamos de “bicos”, possuem formas de trabalho não classificadas como emprego e, normalmente, oferecem seus
serviços em condições precárias, representando o trabalho “uma necessidade material, uma forma de estruturar suas vidas produtivamente, além da sobrevivência”
(IDALINO, 2012, p.62).
A rigor, não poderíamos tipificar a conduta dos flanelinhas como ilícito penal (crime ou contravenção penal), pois a ameaça (explícita ou implícita)
mediante a qual se dá a exigência ou “solicitação” de determinada quantia ao
usuário da vaga de estacionamento se refere, normalmente, ao veículo, e não ao
seu proprietário.
Alguns flanelinhas pedem para lavar o veículo, outros vendem as folhas
do talão rotativo (chamado em Belo Horizonte de “Faixa Azul”) por um preço
pouco mais caro 8, além daqueles que simplesmente combinam determinada
quantia em dinheiro para que o veículo seja vigiado (“tomadores de conta”).
Caso diverso, destaquemos, seria aquele no qual o flanelinha ameaçasse
a integridade física, a vida ou a liberdade individual do usuário da vaga com o
objetivo de auferir vantagem patrimonial indevida (crime de extorsão, previsto
no art. 158 do Código Penal) ou viesse, efetivamente, a danificar, de qualquer
modo, o veículo automotor (crime de dano, previsto em art. 163 do Código
Penal). Na hipótese de o flanelinha impedir que um motorista venha a estacionar em uma vaga, valendo-se, para tanto, de grave ameaça ou violência, estará
8. Desde abril de 2006, foi extinto o convênio que a BHTrans mantinha com o Sindicato de
Trabalhadores, Lavadores, Guardadores, Manobristas e Operadores de Automóveis Autônomos
em Estacionamentos Particulares e Lavajatos do Estado de Minas Gerais (SINTRALAMAC), que
autorizava a venda da folha do talão do rotativo pelos flanelinhas.
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configurado o crime de constrangimento ilegal (previsto em art.146 do Código
Penal).
Para os flanelinhas que trabalham sem o devido cadastramento seria possível a configuração da contravenção penal pelo exercício ilegal de profissão ou
atividade (art. 47 do Dec.Lei n.º 3.688/419).
Em contexto de extremismos ameaçadores, diversos projetos de lei federal
estão em tramitação no Congresso Nacional e preveem a tipificação da conduta
do flanelinha de cobrar pelas vagas de estacionamento em vias públicas10. Além
disso, delineiam-se novas formas de controle embutidas em projetos de revalorização de espaços urbanos que não estariam comprometidos com o desafio da
inclusão social e acabam por combinar a lógica punitiva, em perfeita sintonia com
o modelo neoliberal, e a governamentalização11 das populações e situações submetidas ao que logra ser definido como risco do crime e da violência (TELLES,
HIRATA, 2007).
Os flanelinhas de Belo Horizonte, a exemplo dos de outras cidades, seriam
um exemplo de organização social espontânea que, em certo ponto, replica a
estrutura do mercado formal de trabalho. Alguns criam laços de confiança com
seus clientes, proprietários de veículos, funcionando como peças-chave na logística urbana caracterizada pelo grande número de veículos e pelo pequeno número de vagas. Por esse motivo, a questão dos flanelinhas pode e deve ser analisada
para além da mera permissividade legal, com exame de suas implicações para o
conjunto da cidade e da cidadania.
9. Art. 47 do Decreto-Lei n.º 3.688/41. Exercer profissão ou atividade econômica ou anunciar
que a exerce, sem preencher as condições a que por lei está subordinado o seu exercício:
Pena – prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de quinhentos mil réis a cinco
contos de réis. Desde 2010, o Código de Posturas (Decreto Municipal n° 10.060/10) prevê
multa de 1532 reais para os flanelinhas clandestinos que atuam dentro dos limites da Avenida
do Contorno e de 563 reais para os que se encontram fora deste perímetro, conquanto um
número inexpressivo de multas tenha sido aplicada pela Secretaria Adjunta de Fiscalização da
Prefeitura de Belo Horizonte.
10. Referimo-nos, neste aspecto, à preocupante expansão do Direito Penal como
instrumento redutor de criminalidade nas sociedades complexas. A respeito do Projeto de
Lei n° 4501/2008, que inclui a vigilância de carros em locais públicos como modalidade
de extorsão indireta, o interessante artigo de GUEDES, Oneir Vitor Oliveira. A necessária
criminalização da conduta dos guardadores clandestinos de veículos (flanelinhas). Jus Navigandi,
Teresina, ano 14, n. 2231, 10 ago. 2009 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/
texto/13272>. Acesso em: 30 jan. 2013.
11. Segundo Telles (2010, p.159), na governamentalidade liberal a que se referiu Michel
Foucault e que os autores atuais identificam como sociedade pós-disciplinar encontramos “formas
de gestão do social regidas pelo primado da gestão dos riscos, administração das urgências;
clivagens entre indivíduos governáveis, governamentalizados, de um lado e, de outro, os que não
se ajustam, se recusam ou são incapazes de se integrarem às ‘comunidades´”.
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O guardador e o lavador autônomo
como personagens urbanos da cidade de
Belo Horizonte: nas fronteiras incertas
do informal, ilegal e ilícito12
Para efeito da nossa pesquisa, entendemos o trabalho como situado no
cerne da vida social e pessoal dos sujeitos, sendo fundamental para que eles se
definam socialmente, proporcionando-lhes reconhecimento e possibilitando a
construção de suas identidades. O básico, em nossa pesquisa observacional, seria recolher as razões e as teorias dos entrevistados sobre o modo como dirigem,
julgam e, sobretudo, justificam suas condutas.
O discurso dos atores sociais – os flanelinhas – seria o dado mais cristalino e puro que nos permitiu não só ver como eles se veem, mas também compreender quem são e como, através da atividade que desempenham, constroem
sua identidade profissional.
Nas três localidades da nossa pesquisa13, encontramos apenas uma mulher desempenhando a atividade de lavadora (na localidade da rua Araguari),
sendo o universo de trabalhadores majoritariamente do sexo masculino. Encontramos indivíduos de variada faixa etária, perfazendo idades que vão dos
20 (vinte) aos 60 (sessenta) anos, sendo que a grande maioria possui baixa ou
nenhuma instrução no ensino formal.
Os flanelinhas mais novos (entre 20 e 40 anos) são, em sua maioria, naturais da cidade de Belo Horizonte e de municípios da Região Metropolitana, ao
passo que os flanelinhas com idade mais avançada (entre 40 e 60 ou mais) tem
origens em cidades do interior de Minas Gerais.
No caso da trajetória dos flanelinhas que trabalham nas localidades 1 e
2, foi-nos possível perceber ainda os vínculos de parentesco entre aqueles que ali
atuam. Na localidade 1, o entrevistado A trabalha em conjunto com seu filho e
sobrinhos, enquanto na localidade 2 o entrevistado R desempenha a função de
lavador em conjunto com outros dois irmãos e uma irmã. Nas duas localidades,
o estabelecimento de um dos parentes no local de atuação permitiu a “entrada
autorizada” de outros naquele mesmo espaço.
12. A expressão “fronteiras incertas do informal, ilegal e ilícito” é empregada por (TELLES;
HIRATA, 2007, p.173) para expressar “...uma zona cinzenta que torna incertas e indeterminadas
as diferenças entre o trabalho precário, o emprego temporário, expedientes de sobrevivência e as
atividades ilegais, clandestinas ou delituosas”.
13. Praça localizada na Avenida Bernardo Monteiro com Avenida do Contorno, no bairro
Floresta (chamamos Localidade 1); Rua Araguari, próximo ao nº 1692, trecho entre a rua Matias
Cardoso e Avenida Álvares Cabral, no bairro Santo Agostinho (chamamos Localidade 2); Acesso
para a rua Araão Reis, em frente a Serraria Souza Pinto (chamamos Localidade 3).
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Observamos que todos os entrevistados têm na atividade da flanelagem
a sua única fonte de renda, de que depende sua sobrevivência e de sua família,
sendo relatado por alguns deles o exercício anterior de outras atividades.
Alguns flanelinhas criam laços de confiança com seus clientes, proprietários de veículos, funcionando como peças-chave na logística urbana caracterizada pelo grande número de veículos e pelo pequeno número de vagas. Forçoso
lembrarmos que o trabalho dos flanelinhas, ao contrário do que afirma o senso comum, não é desestruturado, como podemos constatar da divisão interna
de demarcação das vagas de estacionamento para atuação e, especificamente,
o acordo feito em torno da forma de abordagem dos clientes e do trabalho de
lavagem oferecido.
Os trechos de ruas e avenidas são repartidos e muito bem delimitadas
– como se fossem zonas de atuação – entre os flanelinhas, que se fixaram em
regiões com grande concentrações de veículos e ali constituíram o seu local de
trabalho. O monopólio do “ponto” pode acontecer pelos motivos mais variados
e se consolidar pelos critérios de antiguidade, de poder coercitivo (traduzido na
coação física ou moral) e de credibilidade/aceitação pelos moradores, comerciantes e frequentadores do local.
Alguns flanelinhas pedem para lavar o veículo, outros vendem as folhas do
talão rotativo (chamado em Belo Horizonte de “Faixa Azul”) por um preço pouco
mais caro14, além daqueles que simplesmente combinam determinada quantia
em dinheiro para que o veículo seja vigiado (“tomadores de conta”).
Também foi relatado pelos flanelinhas o desafio inicial no desempenho
da atividade e a importância de se construir uma relação de confiança com os
clientes que utilizam as vagas de estacionamento.
Encontramos semelhanças no valor de cobrança pela lavagem nas localidades 1 e 2, embora estivesse evidente a estipulação livre de preço em relação a
cada um dos lavadores:
Pesquisador: “E como é que o Sr. combina o preço da lavagem? Olha o
perfil do cliente, ou é um preço tabelado, depende da época?”
Entrevistado A (Localidade 1): “Olha, é o seguinte, aqui não tem nada
tabelado, cada um aqui... Tem uns dois aqui que cobram seu preço, Eles
cobram 15, 20 reais. A minha lavada aqui, e mais um quatro, nós cobramos 25. Quando o cliente não paga 25 nós fazemos por 20, para não ir
embora duro.”
14. Desde abril de 2006, foi extinto o convênio que a BHTrans mantinha com o Sindicato de
Trabalhadores, Lavadores, Guardadores, Manobristas e Operadores de Automóveis Autônomos
em Estacionamentos Particulares e Lavajatos do Estado de Minas Gerais (SINTRALAMAC), que
autorizava a venda da folha do talão do rotativo pelos flanelinhas.
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Pesquisador: “E como você estabelece o preço do pagamento...?”
Entrevistado R (Localidade 2): “Não, meu preço é fixo. Eu cobro 15 reais
pra lavar o carro só por fora e 25 pra lavar por dentro e por fora. Tem um
ou outro cliente que tá sempre me dando moral, lavando duas, três vezes
comigo, o preço dele pode sim, ser diferenciado. Posso cobrar 10 reais pra
lavar só por fora, 20 pra lavar dentro e fora. Mas, eu não costumo abaixar
minha mão de obra, não. Porque a minha mão de obra é de qualidade! Se
eu fizesse uma coisa mal feita, poderia até cobrar barato, mas minha mão
de obra é de qualidade. Então, eu me valorizo, não tem esse negocio de
olhar pra cara do cliente e dar o preço, não. O preço já é fixo.”
Nas localidades 1 e 2, encontramos um maior grau de organização dos
flanelinhas para enfrentarem os desafios naturais da atividade, destacando-se,
nesse aspecto, o uso da água para a lavagem e o uso do banheiro:
Pesquisador: “Quais os desafios maiores que você encontra por trabalhar
na rua? O ponto de água, banheiro, como é esse tipo de dificuldade?”
Entrevistado R (localidade 2): “Pra mim, hoje, (...) é uma parceria. A gente,
por estar estabilizado, estar muito tempo, a pessoa te ver e te conhecer, portas abrem pra você e portas se fecham. Graças a Deus, comigo muitas abriram. Então, aqui tem a academia, eu trabalho com o dono da academia, que
é esse rapaz aí. A gente tem uma parceria: eu ajudo ele, e ele me ajuda. Então
é assim, ele me cede a água e eu ajudo todos os clientes dele, e a parte de
segurança da empresa dele, eu faço. Então aqui na porta, no quarteirão, não
tem carro quebrado, não tem rouba de rádio, toca fitas, nada, sabe? Graças
a Deus, a estatística de roubo aqui é zero.(...). Então, assim, banheiro, esses
negócios assim, eu não tenho problema não, posso usufruir da academia.”
Entrevistado A (Localidade 1): “(...) saiu um sindicato que queria credenciar nós, nós pegamos e entramos, na época tinha um sindicato aí, a gente
tinha parte com o sindicato, mas o sindicato andou devagar. A Prefeitura
tomava nosso dinheiro, todo ano tomava 95 conto e não fazia nada, nós
pedimos eles um banheiro aqui, pedimos uns banquinho (...) uma água,
não pôs, e aí quando saiu a época da política e eles chegavam aqui toma
aqui, vota em nós que nós vamos colocar uma água pra vocês aqui e aí nós
confiava neles, duas vezes nós votamos e eles não puseram. (...) A Telemig
vieram pra aqui e fizeram essa torre aqui e aí nós pedimos eles, por que
não era parte deles, isso era serviço da Prefeitura (...) fizeram um quartinho dali outro de lá e puseram água pra nós: agora vocês se virem aí, a conta
de água vocês pagam, o quartinho está aí, vocês guardam o material”
Na Localidade 3, embaixo do Viaduto Santa Tereza, a existência de moradores de rua e a falta de controle para o uso da água e do banheiro trouxeram
maiores dificuldades para a lavagem de carros:
Entrevistado L (Localidade 3): “Tem um ponto d’água ali, mas teve tanto abuso, que lacraram ali. Fez um permanente ali. Não é questão de ter
como arrombar, arrumar uma chave... Igual, eu já falei com o pessoal ali,
‘pegar água aqui, você não vai mais não! Falta de respeito, de tanta sujeirada que vocês fizeram chegou a esse ponto aí’. Nós tínhamos um banheiro
aqui também, até chuveiro nós tínhamos aqui. Mas roubaram os metais, o
chuveiro, a fiação e hoje em dia o banheiro é ali. E poderia estar bem até
hoje, mas por causa de um ou dois, muitos param... O que eu posso dizer?
(...) O próprio ditado popular diz que malandro demais vira bicho”.
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Os entrevistados das Localidades 1 e 2 relataram com orgulho a boa relação que estabeleçam com os agentes públicos (policiais militares, guardas municipais e agentes da BHTrans), destacando-se a atuação em conformidade com a
lei e a regularização do cadastro junto ao órgão público competente:
Entrevistado R (Localidade 2): “Hoje, graças a Deus, hoje eu posso falar.
Hoje é 18/06/2012. Hoje, os guardas municipais, os agentes da BHtrans,
os policiais militares são parceiros dos lavadores de carro que andam certo. Agora, o lavador de carro que anda errado, ele tem problema com todas
essas entidades. Agora, o que anda certo, não tem. Por que? Porque, todo
ano, é feito um curso, na prefeitura, para renovar a credencial. E a gente
tem essas presenças, da guarda municipal, da BHtrans e da Policia Militar.
Então, você tem que fazer, no mínimo, uma hora de curso, nesse programa, pra você poder pegar sua credencial e trabalhar na via pública. Então,
hoje em dia, de um jeito ou de outro, você tem um aprendizado. Chega lá
e eles falam o que quer o que não quer. Agora, cabe a você, depois, quando
sair de lá, você fazer aquilo na rua, no quarteirão.”
Entrevistado A (Localidade 1): “Minha credencial está aqui, novinha,
agora mesmo teve uma reunião, nós fomos lá, sobre uns papéis lá, eles
indicando nós como nós faz pra tratar dos clientes: quando o cliente
chegar, fala ‘Boa tarde, boa noite, bom dia doutor, como é que vai o Senhor,
o Senhor vai dar uma geral no carro, o Senhor vai dar um trato no carro? Se
o Sr. vai fazer pode estacionar bonitinho aí, mesmo se não for nós olha pro Sr,
tudo bem, entendeu?’”
Um aspecto interessante do relato do entrevistado R foi de que alguns
clientes insistem na estratégia de se estacionar o veículo na vaga sem o rotativo,
deixando para este ser colocado na iminência de multa por parte de agente público. Durante nossa pesquisa na Localidade 2, observamos, de fato, que todos
os veículos estacionados faziam uso de rotativo:
Entrevistado R (Localidade 1): Por que o que é o problema? O problema
é você chegar perto do cliente e falar que não precisa colocar o rotativo.
Porra, bicho, qualquer um que tira uma carteira de motorista hoje, sabe
que o estacionamento é regulamentado e precisa colocar. Se ele confiar no
lavador, se ele acreditar naquela pessoa que tá ali na rua, que não precisa
por, o risco é ele que tá correndo, porque o carro tá no CPF dele. Não é?
Eu deixo bem claro pra todo mundo, que estaciona no meu quarteirão,
falo: ‘Meu amigo, não acredito que você está discutindo isso comigo! De não por!
Fica por sua conta, se você quiser deixar sem, o veiculo é seu! E tá no seu nome!’
Eu prefiro colocar. Por que eu prefiro colocar? Porque eu prefiro colocar,
porque eu não quero problema com BHtrans, com a Guarda Municipal e
nem tão pouco com a Polícia Militar! Por que inclusive, eu trabalho aqui
e faço questão de ser amigo da polícia militar. Porque hoje em dia, se não
tiver segurança, tá perdido (...) então, é muito bom, uma hora ou outra,
passar um policial, te cumprimentar.(...). Então, quer dizer, pô, hoje quase
todos os policiais que trabalham no bairro me conhecem pelo meu nome!
Completo! E, falam: ‘Ali não tem problema!’”
Noutro aspecto, quando perguntamos ao entrevistado A sobre a delimitação de uma das vagas na rua por meio do uso de um cone, obtivemos o
seguinte relato:
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Entrevistado A (Localidade 1): “Isso ali não pode fazer, eu sei que não
pode fazer, colocar cone aqui, que falam que ninguém pode fazer, mas
acontece que é o seguinte, isso aqui virou estacionamento, não tem lugar
de lavar carro e eu venho de longe pra mim ficar sem lavar meus carros?
Como é que eu vou fazer, aí eu peguei e coloco meus cones para segurar
minhas vaguinhas (...) e na hora que eles chegarem aqui, vou falar mesmo,
não posso ficar sem trabalhar. Então você vai me prender que eu vou ter
que continuar segurando a minha vaga”.
De fato, a falta de estipulação de rotativo (“Faixa Azul”), nas vagas de estacionamento da Localidade 1, impede o lavador de atender um número maior
de carros ao longo do dia de trabalho. O relato do Entrevistado R, da Localidade 2, onde é cobrado o rotativo nas vagas de estacionamento, deixa evidente a
necessidade de uso alternado das vagas por diferentes proprietários de veículos:
Entrevistado R (Localidade 2): “...a partir do momento, que a pessoa
vem, você se apresenta, você oferece seu serviço, se ela quiser bem, senão quiser, amém. Se você tiver ao menos uma vaga pra oferecer pra ela,
colocar o rotativo no carro da forma certinha, sem rasura, correto! Da
forma que tem que ser! E receber ele bem? Ele vai aonde tem que ir e vai
voltar e ver que o carro tá tudo certinho e vai sair e dizer: ‘Puta merda,
o tratamento nesse quarteirão foi diferenciado!’ Eu falo pra você que acontece porque tem gente que quer que eu vigie mensal, e eu falo pra ele:
“Não posso! Porque eu tenho um documento assinado falando que eu
não posso fazer esse tipo de trabalho! Então, assim se você chegar aqui,
um dia ou outro, pra ir ao banco, médico, dentista, pode me procura,
porque estou aqui pra te servir. Agora, se você quiser exclusividade, o
mês inteiro, o ano inteiro, a semana toda, aí já não é comigo! Porque eu
não estou sendo sem educação com a pessoa e estou colocando pra ela
que eu não posso fazer esse tipo de serviço. E é prejudicial pro lavador
de carro, que se preza, pegar o compromisso com a pessoa da semana
inteira, do mês inteiro, do ano inteiro. Porque já até reuni com meus irmãos e a gente conversa: Ninguém ganha nada com o carro parado não!
Sabe porque? Porque o carro parado é prejuízo! O carro parado tem que
ficar, no máximo, dentro da casa da pessoa! Porque o carro parado em
uma via pública pequena como a nossa aqui, atrapalha a gente trabalhar
o dia inteiro! (...) Agora se tiver uma rotatividade, na mesma vaga, você
consegue colocar até 10 carros no mesmo dia. (...)
A quantidade veículos parados nas vagas em via pública pode variar de
acordo com a modalidade de estacionamento (em paralelo, 45°, 90° etc.) e refletem diretamente no rendimento diário dos flanelinhas. Nesse sentido, a lógica
da rotatividade – também abraçada pelo Poder Público – coincide com a lógica
do lavador de carros nas três localidades pesquisadas.
Um ponto importante para o nosso debate foi a constatação de que os
flanelinhas, em especial aqueles credenciados que atuam nas Localidades 1 e 2,
se reconhecem prioritariamente como lavadores e não como guardadores de veículos, destacando a “tomação de conta” como mero desdobramento da lavagem
dos carros:
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Pesquisador: “O Senhor se considera mais lavador ou guardador de carros?”
Entrevistado A (Localidade 1): “Lavador, que é por que o cliente tá pagando o quilo, tá pondo a carro pra lavar, tá pagando e a gente tem direito
de olhar ele direitinho né, mesmo aquele que nós não estamos lavando
que estacionou nós tem de olhar por que se acontece alguma coisa, um
vagabundo chega e quebra o vidro do carro dele, rouba um carro desses aí,
eles vem em cima de mim e eu não estou aqui pra pagar nada pros outros.”
Pesquisador: “Agora, pela sua fala, parece que você se coloca mais como
lavador de carro do que guardador autônomo, é isso mesmo?”
Entrevistado R (Localidade 2): É... eu gosto mais de lavar carro, mas tomar conta dele é minha obrigação.(...).Então, eu tenho que entregar o carro
limpo, do jeito que ele me pediu. Tenho que entregar com todos os objetos
lá dentro do carro, do jeito que ele me pediu. (...) Eu procuro entregar o
carro limpinho e certinho! (...)
Aqui um ponto de destaque para o desdobramento de nossa hipótese
inicial da pesquisa: os flanelinhas encontram no trabalho, mesmo discriminado
socialmente, fonte de construção de suas identidades e, essencialmente, no caso
dos lavadores, meio de se diferenciarem dos marginais. Sobre o processo identitário dos trabalhadores:
(...) como as trajetórias profissionais constituem parte de expressivo significado no processo de viver dos trabalhadores, seja pelo tempo a elas
dedicado, seja pela sua importância, fragmentações neste percurso laboral
se mesclam, inevitavelmente, à própria trajetória de construção identitária, que precisará ser retomada. (COUTINHO, KRAWULSKI, SOARES,
2007, p.35)
No plano concreto, contudo, verificamos que o autoreconhecimento15
como trabalhador, lavador autônomo de veículos, não garante, por si, uma identidade reconhecida, não configura uma vida valorizada, conforme nos explica
Milton Santos:
As sociedades, ao se fundarem na mercantilização, monetarização e no
consumo, criam ‘não cidadãos’: cada homem vale pelo lugar onde está. O seu valor como produtor, consumidor, cidadão depende de sua localização no território
(...) A possibilidade de ser mais ou menos cidadão depende, em larga proporção,
do ponto do território onde se está. (SANTOS, 1987, p.81)
O Presidente do SINTRALAMAC, Sr.Martim Santos, que também trabalhou muitos anos como lavador de carros e enfrentou as agruras do trabalho
na rua, explica a dimensão simbólica da flanela e discorre sobre o processo de
conscientização do flanelinha e de construção de sua identidade profissional:
15. Claude Dubar (2009) denomina de “identidade para si” o que nos referimos como
autoreconhecimento (o que sou/o que gostaria de ser), e de “identidade para outrem” o que nos
referimos como identidade reconhecida ou social (como sou definido/ o que dizem que sou).
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Martim Santos (Presidente do SINTRALAMAC): Ele tem que saber o
que é uma flanela. Uma flanela, pra muita gente, não vale nada. Mas, ele
tem que entender que é dali que ele leva o sustento, ali ta o pão da família
dele, o bem-estar da família dele, ta ali. É aquele pano ali, aquele pedaço
de pano ali. Aquilo ali vale ouro pra ele. Quando ele chega de manhã,
ele tem que orar a Deus e abrir o local de trabalho dele como se estivesse
abrindo a maior empresa do mundo. Ele tem que estar conscientizado que
ele chegou numa grande em presa e que ele é o dono daquela grande empresa. Agora vamo dentro da matemática. Seu ponto cabe quantos carros?
– Fulano, quanto carros cabem no seu ponto? ‘Ah, cabe 20’, ‘ Ah, o meu
cabe 30’. – 30 carros. Quanto vale cada carro que ta lá? ‘Ah, no meu, um
piloto vale 30 mil’. Então, vamo lá, 30 mil vezes 30, 900 mil. Então você
tem 900 mil na sua responsabilidade, durante o tempo que você chega até
a hora que você sai.
Observamos, outrossim, o simbolismo do credenciamento (cadastramento) junto a Prefeitura de Belo Horizonte e a posse da carteira de lavador autônomo, como se a distinção social e, por conseguinte, a construção da própria identidade profissional, passasse necessariamente por um ato de reconhecimento por
parte do Estado.
Atualmente, a situação dos flanelinhas em Belo Horizonte continua sem
definição pelo Poder Público. Segundo a Regional Centro-Sul, responsável pelo
programa Guardadores e Lavadores de Carro, existem, na região, mais de mil
lavadores e guardadores autônomos que obtiveram licença para o exercício de
suas atividades anteriormente à entrada em vigor da proibição legal (Código de
Posturas de 2010).
No primeiro semestre do ano de 2012, a Câmara de Vereadores de Belo
Horizonte aprovou, em dois turnos e por unanimidade, um projeto de lei que
regulamentava de forma mais específica o exercício da profissão. No entanto, o
Executivo vetou o projeto de lei na íntegra no mês de julho do mesmo ano.
Acompanhamos a votação do Projeto de Lei n° 1942, de autoria do então Vereador João Bosco Rodrigues (PT), conhecido como “João da Locadora”,
e de seu Substitutivo-emenda, também assinado pelo Vereador Daniel Nepomuceno (PSB).
Naquela ocasião, achávamos curioso o fato de que a aprovação de um
projeto de lei eivado de questões polêmicas tinha sido unânime em primeiro
turno na Câmara dos Vereadores, fato este que se repetiria em segundo turno.
Considerávamos, desde o momento que a pesquisa de campo se iniciara
e que tivemos maior proximidade com os sujeitos de estudo, a necessidade, para
efeito de qualquer reivindicação de direitos por parte dos flanelinhas, de serem
abordadas de forma distinta a atividade do lavador e a atividade do guardador de
veículos em vias públicas.
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Conforme expusemos em debate anterior, a identidade profissional do
flanelinha se construiria antes, e essencialmente, pela atividade de lavagem de
veículos, e não pela mera guarda e vigilância dos veículos.
Dessa forma, já apontávamos para o equívoco a propositura de uma lei
municipal que regulamentasse a profissão do flanelinha, no âmbito municipal,
sem distinguir a atividade de lavagem – na qual encontramos a maioria dos trabalhadores de rua credenciados e que desempenham a função há bastante tempo
em suas localidades – da atividade de guarda e vigilância de veículos:
Pesquisador: “Como é que o Sr. imagina a receptividade dos seus eleitores
com relação a esse projeto de lei?”
Vereador João da Locadora: “(...) Muito bem vista. Bem num primeiro momento eu tentei legislar sobre as causas do comércio, por que eu sou oriundo
do comércio, mas pouco a pouco eu fui vendo que, o comércio da cidade é
importantíssimo, não tem dúvida, eu não abandonei legislar pro comércio,
o comércio é importantíssimo, mas eu percebi além do comércio formal que
tem nos seus quadros o profissional registrado, carteira assinada, legalizado,
existia, por outro lado, um comércio entre aspas, informal, não vou dizer
ilegal, mas, informal, na cidade e que talvez precisava de mais atenção até,
ou de tanta atenção quanto a que eu estava voltando para o comércio formal,
voltar para o comércio informal. E o comércio informal, na sua maioria das
vezes, ele existe, não é por que o cara quer ir pra rua para trabalhar pra
vender água na rua é por que a cidade não tem emprego formal para todo
mundo, então uma parcela dos trabalhadores da cidade tira das ruas o seu
sustento. Então acredito que de uma lado o meu eleitor, talvez uma parte
dele que estava preocupado com o meu trabalho de forma a legislar para o
comércio formal, ao me ver legislando para o comércio informal e na medida em se legisla para o comércio informal tenta organizar esse comércio
na cidade, organizar as categorias que representam esse comércio, dar mais
condição de trabalho e claro até de vida por que é no trabalho que vem o seu
sustento e do seu sustento é que vem a sobrevivência, então eu acredito que
eles, entendem, que indiretamente ou até diretamente, por que todo mundo,
quem vai às ruas convive com esses trabalhadores percebe que melhorando
a vida deles, dando mais oportunidade pra eles, a gente vai estar tirando a
pessoa da marginalidade, dar estar dando renda, emprego, emprego e renda
para pessoas que antes dependiam, às vezes, de pedir uma cesta básica, uma
coisa ou outra, ou até mesmo onerando o Estado. Eu acredito que o eleitor, o
meu eleitor, reconhece o trabalho que nós fazemos com esses setores menos
favorecidos na sociedade.”
Pesquisador: “Quais são as dificuldades na tramitação do Projeto?”
Vereador João da Locadora: “ (...) primeiro, construir um consenso com o
Executivo né, que foi superado. O primeiro projeto foi levado ao Executivo, nós conversamos bastante, fizemos um Substitutivo, nós mesmos assinamos esse substitutivo, eu mesmo assinei o Substitutivo e o projeto então,
de uma certa forma já tem uma concordância com o Executivo, inclusive,
o ponto principal que é retirada o flanelinha do Código. Então isso seria
o principal desafio que já foi superado. Agora, o consentimento dos pares.
Pesquisador: “Especialmente com relação aos guardadores autônomos,
qual seria a relação desses trabalhadores com os cidadãos, usuários de
estacionamento em via pública?”
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Vereador João da Locadora: “(...) eu vejo que em muitos dos casos existe
uma relação de confiança, muitos dos casos, muitos. Tem, claro, aquela
parte da sociedade que abomina, por causa, talvez, dos maus exemplos,
mas eu não acredito que os maus exemplos sejam a regra. Para mim, a
regra que eu percebo mais, é o flanelinha que trata o seu cliente pelo
nome, em alguns lugares que eu vou. Eu acho que a lei tem que vir para
isso, para poder separar o joio do trigo, reconhecer quem de verdade faz
um trabalho que deve ser reconhecido, que é sério, que é honesto, que é
para o sustento da família e daqueles que querem somente se infiltrar e
encontram na brecha pela falta da legislação o caminho mais fácil, por que
ele não precisa de ter carteira, não precisa de ter registro, não precisa de
ter convênio, não precisa estar sindicalizado, uniformizado, não tem que
uma vez por ano se reportar ao órgão público. Então por aí é que o cara
encontra uma brecha para que no anonimato fazer, dar o mau exemplo
e, talvez, o mau exemplo é que vende jornal, né? (...) Então acaba que
talvez na nossa sociedade exista uma compreensão de que todo lavador e
guardador sejam flanelinhas e flanelinha tem que ser abolido. Mas o que
eu vejo na prática em muitos casos é que na maioria dos casos isso não
é verdade e em boa dos casos o lavador de veículos e o guardador tem o
reconhecimento da sociedade.”
De certa forma antecipamos, durante a realização da entrevista retromencionada, um desdobramento da aprovação unânime do referido projeto de lei e
de seu substitutivo-emenda na Câmara Municipal, pois acreditávamos, em dissonância com o vereador autor do projeto de lei, que a regulamentação conjunta
das duas atividades dos flanelinhas seria mal recebida pela opinião pública16
como também iria encontrar obstáculo no momento da sanção pelo Poder Executivo de Belo Horizonte:
Pesquisador: “O Projeto de Lei vai ao encontro da opinião pública ou traz
à tona um debate pouco discutido e polêmico?”
Vereador João da Locadora: “Pela primeira vez, talvez uma das primeiras
capitais ou a primeira capital, que tem a oportunidade de fazer a diferenciação ao regulamentar a matéria, fazer a diferenciação entre flanelinhas e
os verdadeiros guardadores de veículo automotor e, feito isso, a experiência
vai apontar que nós temos razão que a maior parte dessa turma é gente honesta e trabalhadora. Eu acho que vai ser fundamental criar parâmetro para
16. Acompanhamos as matérias sobre os flanelinhas na mídia impressa local, desde o momento
que passamos a nos interessar pelos flanelinhas como objeto de estudo, e encontramos reportagens
majoritariamente críticas à atuação do flanelinha, a maioria delas acentuando a atividade do
guardador clandestino, afeito ao achaque dos proprietários de veículos. Nestas reportagens,
não encontramos qualquer esforço em se diferenciar os lavadores autônomos daqueles que são
meramente guardadores, os trabalhadores de rua credenciados daqueles que são clandestinos.
O jornal Estado de Minas realizou uma vasta quantidade de matérias nesse perfil – algumas em
série especiais – posicionando-se no espaço editorial: “Em lugar de reconhecer a necessidade do
tomador de conta e até institucionalizá-la como profissão, não seria mais adequado erradicar aquilo
que ameaça a propriedade do cidadão? Além de pagar uma das cargas de impostos sobre a compra e a
propriedade do carro mais altas do mundo, o brasileiro tem ainda que se submeter ao achaque dos donos
donos da rua, patrocionados ou consentidos pelas autoridades. É como se fosse uma punição pelo fato de
o trabalho honesto, o esforço ou mesmo a sorte do cidadão terem lhe propiciado a posse de um automóvel
num país pobre” (Editorial, Estado de Minas, 28 de janeiro de 2008).
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separar. Hoje estamos sem parâmetro, então tudo está no mesmo bojo. (...)
O jornal vende isso de uma forma negativa a imagem do lavador e do guardador colocando todos eles na mesma seara por que não tem parâmetro,
por que se tiver e a prefeitura efetivamente trabalhar com a lei e o Decreto
Regulamentador que eu acredito que venha, a mídia vai ter de entender e
vai ter de procurar e mostrar a partir da experiência da Prefeitura, o que
de fato aconteceu após a separação de uma coisa da outra, dos lavadores
e guardadores legais e dos ditos lavadores ilegais, infiltrados Aí nós vamos
desmistificar essa visão de que todos são flanelinhas e essa vai ser o grande
golpe e o exemplo que Belo Horizonte vai dar para todo o Brasil.”
Pesquisador: “Quais seriam os desafios futuros com a aprovação do Projeto para a categoria? O Sr. acredita que os órgãos responsáveis vão cumprir
com as determinações da lei, tais como, implantação de pontos de água,
banheiro, cadastramento periódico e fiscalização do trabalho irregular?”
Vereador João da Locadora: “Se a PBH se manifestou sobre o Substitutivo eu acredito, que ele se pronunciou, se ele se manifestou, na redação a
partir do projeto original e conseguiu conosco trabalhar o substitutivo, é
sinal de que ele vai cumprir com o que ele mesmo consentiu (...). Não vejo
motivo algum para que a Prefeitura não efetive o seu compromisso”
Nossa suspeita em relação à acolhida da aprovação do projeto de lei se
comprovou quando analisamos os comentários dos internautas – cidadãos belo
-horizontinos – no sítio do jornal de maior circulação na capital e no Estado de
Minas Gerais, no dia seguinte à votação em segundo turno pela Câmara Municipal, 15 de junho de 2012.
Os comentários dos internautas foram majoritariamente críticos à regulamentação da atividade dos flanelinhas, mesclando ameaças de não votação em
período eleitoral, revolta com a regulamentação da atividade de guardador e a acusação de apropriação do espaço público, destacando-se que o repúdio maior dos
internautas se dirige à atividade dos guardadores de veículos, e não dos lavadores.17
Em 30 de julho de 2012, o Poder Executivo entendeu pela impossibilidade de sanção da Proposição de Lei n° 119/12, que dispunha “...sobre o exercício
da atividade de lavador e guardador de veículo automotor, acrescentando a Seção IV-A
ao Capítulo IV do Título III da Lei nº 8.616/03, que ‘Contém o Código de Posturas do
Município de Belo Horizonte’ e dá outras providências’”, originária do Projeto de Lei
nº 1.942/11, de autoria do Vereador João Bosco Rodrigues.
As razões do veto por parte do Poder Executivo reforçaram, ainda mais
uma vez, o equívoco na propositura de uma lei municipal que regulamentasse a
17. Apesar da reação dos internautas, a matéria comentada veiculada no sítio do jornal Estado de
Minas trazia o posicionamento otimista do vereador João Bosco Rodrigues, o “João da Locadora”:
“Acredito que até a primeira quinzena de julho o prefeito tenha sancionado a lei, já que o substitutivo
é fruto de um entendimento conjunto. A regulamentação da lei deve seguir o modelo que já vem sendo
adotado pela regional Centro-Sul, em que lavadores e guardadores cadastrados atuam com coletes de
fácil identificação”.
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profissão do flanelinha, no âmbito municipal, sem antes distinguir a atividade de
lavagem da atividade de guarda e vigilância de veículos:
“A Proposição de Lei (...) tem por finalidade delimitar os contornos da
atuação desses profissionais à legítima expectativa da sociedade quanto à
fruição dos espaços públicos de uso coletivo e à necessidade de promoção
urbanística da segurança pública municipal, conciliando o direito ao exercício profissional à dinâmica de apropriação dos espaços urbanos.
É forçoso reconhecer, em que pese a intenção do autor, que ao senso comum a diferenciação proposta é inócua. Isso porque para a população em
geral, a atribuição da pecha da ilicitude aos ditos “flanelinhas” e da chancela estatal aos guardadores não teria o efeito de modificar a forma com
que são reconhecidos pela sociedade.”
De fato, qualquer esforço dos flanelinhas para se organizarem enquanto
categoria e reivindicarem a regulamentação de sua profissão deveria levar em
conta, antes de tudo, a sua identidade profissional destes trabalhadores, que
se assenta, conforme já expusemos, na atividade de lavagem de veículos, tratando-se a guarda e vigilância deste como mero desdobramento da prestação
de serviço.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A situação dos flanelinhas é paradigmática: vivem em uma situação que
varia do abandono à repressão por parte do poder público, são trabalhadores
de rua desvalorizados, estigmatizados e sujeitos à grande variedade de riscos,
mesmo que a profissão esteja prevista tanto em Lei Federal n.º 6.242/75 como no
Código Brasileiro de Ocupações de 2002.
Com o aumento do desemprego e as dificuldades de inserção no mercado
de trabalho em razão da falta de qualificação profissional, muitos trabalhadores
buscaram na informalidade a alternativa de geração de renda, formando uma
variada rede de atividades de sobrevivência. Com ela, emergiram questões importantes acerca do processo de reprodução do espaço na metrópole, dentre as
quais se incluem os flanelinhas.
Neste cenário, nos defrontamos com a necessidade de reflexão em torno
da identidade profissional desse trabalhador de rua, o flanelinha, concluindo que
ela se constrói antes, e essencialmente, pela atividade de lavagem de veículos, e não
pela mera guarda e vigilância dos veículos.
A partir da experiência desses trabalhadores de rua na cidade de Belo
Horizonte, apontamos para o equívoco na propositura de uma lei municipal que
regulamentasse a profissão do flanelinha, sem distinguir a atividade de lavagem
– na qual encontramos a maioria dos trabalhadores de rua credenciados e que
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desempenham a função há bastante tempo em suas localidades – da atividade de
guarda e vigilância de veículos
O que de fato, nos chamou a atenção e ainda nos incomoda é a lógica
estatal, legitimada pelos veículos midiáticos, que compõe a trajetória seletiva,
maniqueísta e arbitrária de uma gestão urbana que não contempla os desafios da
inclusão social.
A questão dos flanelinhas, embora pujante, ainda não mereceu o tratamento sério e comprometido por parte das autoridades. As iniciativas são meramente focalizadas – como o programas de lavadores desenvolvido pela Administração da Regional Centro-sul – mas não constituem um enfrentamento
sistêmico do problema da exclusão social, revelando preocupante comodismo
por parte do Poder Público, no sentido de controlar a vulnerabilidade social
imposta, ao não apresenta soluções que resgatem a dignidade e a cidadania dos
trabalhadores de rua.
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Instituto de
Ciências Sociais
Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
JUSTICEIROS: UM RETRATO DO USO
COTIDIANO DA VIOLÊNCIA PRIVADA
COMO GARANTIA DA ORDEM SOCIAL
­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­Fernando Xavier Pereira1
RESUMO: Os numerosos casos de violência privada no Brasil e na América
Latina, nos últimos anos, revelam uma dimensão opressiva e punitiva
presente no mundo moderno. Devido às características dos atuais eventos,
o estudo pretende destacar aspectos universais da violência e, explorar a
relação entre Estado e sociedade, violência e vigilantismo, oferecendo um
roteiro crítico para reflexão sobre os modos e os meios de atuação de pessoas
comuns, em intervenções de violência privada, no cenário social. Autores
como Adorno, Benevides, Caldeira, Cerqueira, Garland e Shecaira fornecem
referências teóricas para introduzir uma discussão que buscará interligar
estes fenômenos não apenas às ocorrências de justiça privada como também
ao investimento em segurança.
Palavras-chave: violência privada, linchamento e justiceiro.
1. Mestrando em Sociologia pelo Programa de Pós-graduação do Departamento de Sociologia
da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.
III Simpósio de Ciências Sociais: Cidade e Democracia
Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
“Não há mais diferença entre a boa e a má violência
(quando sua mistura ocorre). De fato enquanto o puro
e o impuro permanecem distintos, pode-se limpar mesmo as maiores máculas. Quando elas se confundem,
nada mais pode ser purificado.”(GIRARD, 1990)
INTRODUÇÃO
Este artigo dá ênfase à análise da construção social do uso cotidiano da violência privada e à percepção desses eventos como “cena”, dotada de visualidade e
dramaturgia próprias. A observação do contexto é útil para verificar como o efeito
deletério da ação criminosa e o crescente aumento do sentimento de medo e da
sensação de insegurança, por parte da população, tem apresentado um complexo
cenário para a proliferação de ações justiceiras que, por sua vez, substituem o papel do Estado em algumas situações em que este deveria suprir as necessidades e
anseios básicos de segurança, esperados pela sociedade.
A história de Fabiane2, embora de terrível desfecho, é ilustrativa. Em maio
de 2014, após um boato de que uma mulher estaria raptando crianças para realizar rituais de “magia negra” na cidade do Guarujá, litoral do estado brasileiro
de São Paulo, ter se dispersado pela internet, principalmente em redes sociais,
moradores do bairro confundiram uma mulher, moradora local, com a suposta
criminosa depois de esta ter oferecido uma fruta que tinha comprado, pouco
antes, para uma criança que se encontrava na rua. A mãe do menino observou
o ato e, acreditando que aquela mulher se tratava da suposta raptora infantil,
desencadeou um processo de fúria coletiva que culminou no linchamento de
Fabiane por um número expressivo de pessoas, além de outras tantas terem presenciado as violentas agressões que culminaram com a morte da mulher, dois
dias depois do fato.
Ao que tudo indica, Fabiane foi confundida com o retrato falado de uma
mulher que, supostamente, sequestrava crianças para rituais de magia. A página
de Facebook “Guarujá Alerta”, uma espécie de noticiário colaborativo realizou as
acusações sobre Fabiane. Apesar dela não ter feito nada irregular, a exposição de
um rosto idêntico ao seu nessa página de rede social fez com que fosse linchada
no meio da rua.
Pode-se dizer que a tragédia é o reflexo da falta de credibilidade das instituições democráticas, do sistema de segurança e da justiça. Esse tipo de descren2. Fabiane Maria de Jesus, morta em maio de 2014, por moradores do Guarujá, litoral de São
Paulo. Disponível em: http://g1.globo.com/fantastico/noticia. Acesso em 01 jun. 2014.
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PEREIRA, F. X. • Justiceiros: um retrato do uso cotidiano da violência privada como garantia...
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ça no processo legal de punição acabaria gerando um clima de “justiça com as
próprias mãos”. Dados do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade de São Paulo mostram que, de 1980 a 2010, foram 700 casos de linchamento
no Estado, com anos atingindo o número de 73 episódios. Ao total, 229 vítimas
fatais em trinta anos. Assim, soltos, os números podem ser ofuscados pelos tantos outros dados que temos sobre violência em nosso país. Mas, se lembrarmos
de que linchamento é a união de um número de pessoas em torno do prejuízo
de alguém, essas estatísticas se destacam.
Não sem razão, é corrente o sentimento coletivo de que os crimes cresceram, tornaram-se mais violentos, porém não são punidos. É compreensível que
esse sentimento suscite, em não poucos segmentos da sociedade, obsessivos desejos punitivos, que compreendem desde a reforma das leis penais no sentido de
suspender benefícios, que hoje parecem proteger os criminosos, até a aplicação
de medidas como a pena de morte ou a tolerância para com execuções sumárias
de suspeitos de haver cometido crimes.
Portanto, o objeto do presente estudo dar-se-á através da formulação do
seguinte questionamento: a sensação de anomia e a impunidade produzem justiceiros que se julgam acima das leis e das autoridades?
Acerca da literatura que trata do assunto até então estudada, parte dos
autores realiza uma análise dos discursos que permeiam os atos de violência
(SINGER, 2003; CERQUEIRA 2006). Outros realizaram estudos de caso para,
assim, determinar fatores mais centrados na localidade que estariam conectados
à ocorrência dessa conduta (SINHORETTO, 2002). Na bibliografia parcial analisada um dos trabalhos precursores do tema no Brasil (BENEVIDES, 1982) é o
que apresenta maiores correlações do fenômeno dos linchamentos com fatores
estruturais da sociedade moderna.
Sendo assim, pretende-se aqui abordar teoricamente aspectos estruturais
que podem estar conectados à ocorrência da violência privada em geral. O presente texto apresenta duas limitações: a de não estender amplamente a discussão para estudos voltados ao Brasil e a de não estar contrastado com materiais
empíricos próprios do autor. Limitações estas que deverão ser superadas com
trabalhos posteriores.
O estudo foi desenvolvido em três partes mais a conclusão. Para iniciarmos, primeiramente, refletiremos sobre a relação entre Estado e Sociedade. Nesse
ponto, nós temos como pano de fundo a nossa própria realidade. Algumas vezes,
temos momentos políticos de extrema relevância do ponto de vista sociológico,
mas que podem dificultar bastante a percepção para se trabalhar com a temática
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PEREIRA, F. X. • Justiceiros: um retrato do uso cotidiano da violência privada como garantia...
III Simpósio de Ciências Sociais: Cidade e Democracia
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da violência, pois esse tema está carregado não somente por estereótipos, mas
também por significados sociais.
Para enfrentar diretamente a discussão sobre o uso cotidiano da violência privada, passaremos na parte II por uma leitura sobre o status da violência,
sendo trabalhada a questão de segurança pública acompanhada de conjunturas
sociais e políticas deste setor.
Na Parte III, apresenta-se a violência privada e o vigilantismo em uma
discussão sobre o tema que emerge com força e vitalidade no debate nacional.
Por fim, far-se-á uma breve conclusão sobre os fenômenos da violência
privada e as ações dos justiceiros apresentada como uma reflexão dos modelos
convencionais de controle social no Brasil e outros países da América Latina.
A intenção é apresentar aspectos universais da violência e, consequentemente, partindo da leitura de autores especializados no tema, explorar a relação
entre Estado e sociedade, violência e vigilantismo. Evidentemente, não se pretende esgotar o assunto, algo que deve ser motivo de constante estudo e reflexão
sobre os modos e os meios de atuação de pessoas comuns, em intervenções de
violência privada, no cenário social.
ESTADO E SOCIEDADE
A década de 80 representou, para a América Latina, a transição de sistemas
políticos autoritários a governos democraticamente eleitos, que daquela época aos
tempos atuais, tem apresentado implicações profundas para o sistema de justiça e
resquícios do regime anterior.
Com a redemocratização, os novos administradores dos Estados, agora eleitos pelo voto popular, se depararam com uma situação de aumento das taxas de
criminalidade, decorrente de fatores como a grande concentração populacional
produzida pela migração do campo para as grandes metrópoles urbanas, consolidada no Brasil durante o período de governo militar que, através do arbítrio, represou bolsões de conflitualidade social emergente (ADORNO, 1994, NETO, 2006).
Observa-se também, que nas últimas décadas houve profundas mudanças
na forma como compreendemos o crime e a justiça criminal. O crime tornou-se
um verdadeiro teste para a ordem social e para as políticas governamentais, um
desafio para a sociedade civil, para a democracia e para os direitos humanos. Neste
sentido, GARLAND (2008, p.13) argumenta que essa mudança de paradigma, por
assim dizer, não deve ser compreendida apenas como uma resposta ao aumento
das taxas de criminalidade ou do medo a elas aliado. Apesar de ser parte integrante
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PEREIRA, F. X. • Justiceiros: um retrato do uso cotidiano da violência privada como garantia...
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do problema, o autor baseia sua explicação sobre a mudança, nas políticas de controle do crime e nas transformações históricas, econômicas e sociais que marcaram
as últimas décadas do século XX, originando uma sociedade globalizada, marcada
pela insegurança, pelos riscos e pelos desafios do controle social.
Dessa forma, o problema da segurança pública passou a se colocar como
uma das principais demandas da chamada “opinião pública”, muitas vezes amplificada pelo crescente aumento da percepção pública a respeito das diversas esferas
da criminalidade. Novos delitos são criados, novas áreas de criminalização aparecem, novos procedimentos são propostos, tudo na tentativa de recuperar a legitimidade perdida e um mínimo de eficácia ante uma realidade social que cada vez
mais foge dos mecanismos institucionais de controle (AZEVEDO, 2005).
Cita-se por oportuno, uma reportagem intitulada, A violência do medo3,
onde dados de uma pesquisa sobre a violência em São Paulo demonstraram que,
a população se sente insegura e desconfia das instituições que deviam protegê-la,
além de não acreditarem que as polícias são garantia de segurança. Nesta senda,
estudos confirmam que a confiança nas instituições policiais é, principalmente,
o resultado das percepções quanto à sua eficiência e adequação às funções para
as quais são idealizadas (GOLDSTEIN, 2003; MUNIZ, 2006; LARSEN; BLAIR,
2009; LOPES, 2010; JUNIOR, 2011; SANTOS, 2012; FERNANDES; OLIVEIRA,
2012; SILVA; BEATO, 2013).
Acrescenta-se que, o medo urbano no imaginário social, também, prontifica os indivíduos a uma postura defensiva que pode estar ligada diretamente aos
fenômenos de violência privada, na tentativa de reafirmar um sentimento de que
a ordem ainda se mantém. Nesse contexto, “uma pessoa que tenha interiorizado
uma visão do mundo que inclua a insegurança e a vulnerabilidade recorrerá
rotineiramente, mesmo na ausência de ameaça genuína, às reações adequadas a
um encontro imediato com o perigo, o ‘medo derivado’ adquire a capacidade de
propulsão”, defende (BAUMAN 2008).
Portanto, essa insegurança da população, junto com a negligência dos
poderes constituídos, tem se apresentado nos noticiários como pano de fundo
para a fúria popular expressa nos episódios de violência privada. O entendimento para esses atos são dispostos como uma resposta natural contra a
criminalidade, sobremaneira, pela constante retração do Estado, gerando um
quadro confuso de aumento da aprovação de medidas de repressão baseadas
em controles violentos e difusos.
3. Editoriais. A violência do medo. Folha de São Paulo. Disponível em: http://www.gov.
oaclipping.com.br/. Acesso em 12 mar. 2014.
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STATUS DA VIOLÊNCIA4
Explicar a violência, fenômeno inerente à história da humanidade e enraizada como modo costumeiro, institucionalizado e positivamente valorizado
é aqui, antes de tudo, um desafio. No Estado contemporâneo, a violência em
suas múltiplas formas de manifestação tem imperado na solução de conflitos
decorrentes das diferenças étnicas, gênero, classe, propriedade, de poder, privilégio e de prestígio. Além disso, permanece atravessando todo o tecido social e
se instalando, resolutamente, nos cidadãos que, em princípio, deveriam receber
segurança e proteção ofertadas pelos órgãos estatais.
Em estudos sobre violência, faz-se necessário apresentar a ideia de controle social e de conflito social, onde o primeiro refere-se à capacidade de uma
sociedade se auto-regular de acordo com princípios e valores desejados (MICHAUD, 1989). Já os aspectos conflituosos das relações sociais, para SIMMEL
(1983, p.153) é uma forma de sociação e “é destinado a resolver dualismos divergentes; é uma forma de conseguir algum tipo de unidade, ainda que através da
aniquilação de uma das partes conflitantes”. No entanto, o problema aqui não é
o conflito, mas sim os mecanismos de controles sociais disponíveis e que estão
sendo utilizados para dirimi-lo.
Como forma de resolver conflitos, a violenta privada, tem sido naturalizada
pelas pessoas com a internalização dessas medidas no seu repertório de comportamento. Por exemplo, o linchamento, definido por MARTINS (1996, p.4) como
um ato de violência física súbito, irracional, não premeditado, vingativo, praticado
por multidões contra uma ou mais pessoas, tem se apresentado como diversão,
como um evento alegre e significativo para a comunidade. A morte de “bandidos”
aparece como uma ação banal e é qualificada pelo termo façanha, a qual expressa,
ambiguamente, tanto um ato heroico quanto uma ação perversa. Para alguns, o
desenrolar dos acontecimentos não poderia ter sido outro. Para outros, esse é o
modo “natural” e adequado de lidar com essa espécie de “dejeto” social que deve
ser extirpada do corpo social sadio (ADORNO, 1996; CERQUEIRA, 2006).
A cultura da violência tem sido reproduzida e ampliada como parte do
nosso cotidiano, através das representações constantes da criminalidade e do
criminoso que, não raras vezes, é caracterizado pelo crime cometido. Essas re4. “Desde a antiguidade, existe a preocupação entorno da violência e dos meios para evita-la,
diminui-la e controla-la. E a partir disso, diferentes formações sociais, culturais e éticos como
padrões de conduta, de correlações intersubjetivas e interpessoais, de comportamento social que
pudesse garantir a integridade física e psíquica de seus membros e conservação do grupo social”
(SPOSITO, 1998).
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presentações acabariam por estruturar o contexto onde o ódio da população,
presente nos episódios de violência privada, seria direcionado para determinados alvos e também serviriam como justificativa para reações agressivas.
Além disso, para conter o crescimento da criminalidade violenta tem
se recorrido a um controle igualmente violento, cujos resultados se espelham
no emprego, não raro, “desproporcional das forças policiais que, muitas vezes,
sob pressões da opinião pública, formulam diretrizes no sentido de conter a
violência a qualquer custo, mesmo que para isso seja necessário comprometer
vidas” (ADORNO, 1996).
Nesta senda, segundo Maria Victória Benevides, essas ações contrastam justamente com o “lado escuro da alma brasileira: a prática da violência em nome da
ordem, da moral, da religião... enfim, da própria segurança nacional. (...) Como nos
tempos bárbaros da escravidão, o brasileiro pode matar, torturar, linchar. Quando
não o faz diretamente, muitas vezes justifica e aprova” (BENEVIDES, 1982).
Se, nos anos recentes, a violência, em particular as formas mais graves e
hediondas de violação dos direitos fundamentais da pessoa humana, adquiriu
foro de questão pública no Brasil, não é por acaso que muitos brasileiros acreditam que a agressão criminal é hoje mais frequente e violenta do que no passado.
As sondagens de opinião pública têm mostrado que o crime se situa entre as primeiras e mais importantes preocupações do cidadão comum (PAIXÃO; BEATO,
1997; SHECAIRA, 2009; FERNANDES; OLIVEIRA, 2012). Trata-se, portanto,
de uma sociedade que se recusa a perpetuar infinitamente o divórcio entre o
mundo das leis e o mundo das relações pessoais.
Por outro lado, o cidadão, expectador desses acontecimentos, diante da
TV onde passivamente acompanha os noticiários ou lendo cotidianamente seu
jornal, pouco pode intervir no tratamento dispensado pela justiça aos autores de
ações criminais.
Nesse sentido, as percepções sociais da violência criminal podem ser
compreendidas enquanto “drama social”, no sentido atribuído por (TURNER
apud ADORNO, 1996), onde a sociedade desnuda-se e põe à mostra seus múltiplos cenários, os diferentes atores, protagonistas ou expectadores, que intervêm
com suas forças e fazem funcionar o aparato institucional repressivo e jurídico,
através da violência privada.
Portanto, tudo leva a crer que a dramatização da violência urbana está a
dizer algo além do mero crime. Parece dizer respeito à mudança de hábitos cotidianos, à exacerbação de conflitos sociais, à adoção de soluções que desafiam
o exercício democrático do poder, à demarcação de novas fronteiras sociais, ao
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Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
esquadrinhamento de novos espaços de realização pessoal e social, ao sentimento de desordem e caos que se espelha na ausência de justiça social (CALDEIRA,
1992; FAJNZYLBER, 1998; BRICEÑO, 2005).
VIOLÊNCIA PRIVADA E VIGILANTISMO
A discussão sobre o tema emerge com força e vitalidade surpreendente,
e colocada no debate nacional um “problema” que, pode estar refletindo uma
mudança, ora mais ora menos aguda e definida, na tolerância, aceitação ou resignação, que até então se admitia a espera por providências do aparato estatal.
Os problemas e desafios enfrentados no campo da segurança pública
constituem obstáculos de difícil transposição para as instituições, que não conseguem se adaptar na mesma velocidade com que os fatos se sucedem. Desta
forma se exige cada vez mais, da sociedade, uma capacitação na temática de segurança e uma maior participação nas medidas de prevenção criminal, de modo
a permitir um olhar crítico sobre os conflitos sociais e sobre o papel de cada
cidadão no contexto sócio/político e cultural.
Com efeito, a capacidade das polícias de realizarem o controle social tem
se mostrado reduzida. Ou seja, não são necessariamente os limites democráticos
impostos às polícias as causas da sua pouca eficiência, mas sim a forma como o
controle social é colocado (COSTA, 1997).
Muito embora a criminalidade seja socialmente desigual na sua distribuição, o crime e o medo do crime são, hoje em dia, amplamente vividos
como fatos da vida moderna. Pouco a pouco, o crime tornou-se, para as
gerações atuais, um risco cotidiano que deve ser avaliado e administrado de
forma rotineira.
Além disso, penso que se produziu, ao longo dos anos, uma série de
transformações na percepção do crime, no discurso da criminologia, nos modos
de ação do governo, na estrutura dos órgãos de justiça criminal e, finalmente, na
tolerância social ao crime.
Essas mudanças anunciam uma nova realidade de violência privada, que
assinala também um rompimento entre as diversas formas de controle social e
o sistema de justiça criminal. Este rompimento é atribuído à fragilidade e à ineficiência dos instrumentos e mecanismos de manutenção da ordem (JUNIOR,
2011). Por sua vez, emprega-se uma demonstração de força punitiva contra o
indivíduo criminoso que se apresenta como atrativo fundamental da resposta
punitiva, onde essa consiste em uma intervenção autoritária para tratar de um
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problema grave, gerador de angústia. Essa ação dá a ilusão de que “se está fazendo algo”, aqui e agora, de forma rápida e eficiente (GARLAND, 1999).
Com a apresentação de um novo cenário que apresenta um crescente
número de registros de violência privada, chama-se atenção para urgência do
debate sobre a necessidade de adoção de ações de governo e da sociedade civil
para tanto. Assim, em que pese o fato desse tipo de violência não ser afeta apenas
à realidade de uma região brasileira, sendo noticiado no âmbito da maioria dos
Estados da Federação, o que caracteriza o debate de tais realidades é a necessidade de estudos que tenham como propósito investigar quais são os elementos
circunstanciais que aumentam a probabilidade de ocorrência de tais ações por
parte da sociedade.
Ademais, na literatura sobre violência privada, mais especificamente
quando se trata de linchamento e justiça popular5, a referência ao termo vigilantismo é recorrente. Portanto, tornou-se importante conhecer a discussão a
este respeito que destaca, em diferentes ocasiões da história, episódios de ação
coletiva para punir alguém, em espaço aberto (MARTINS, 1996).
Em 1887, Bancroft definiu vigilantismo como “tribunais populares, nos
quais é tentada a administração ilegal da justiça pelo povo”. Por sua vez, BROWN
(1975, p. 6) definiu-o como o envolvimento de cidadãos com o controle do crime,
tomando-o em suas mãos, do começo ao fim, em face da percepção da inadequação do sistema de justiça criminal oficial (BANCROFT apud SINHORETTO,
2001). Em 1976, Rosembaum e Sanderberg em um estudo sobre vigilantismo,
definiram três tipos para esse fenômeno. O primeiro tipo visa o controle social
do crime e, é exercido diretamente contra pessoas que são vistas como violadoras do sistema legal. O segundo tipo é relativo ao controle de grupos sociais,
definido como violência que competem ou advogam uma redefinição de valores
no interior da sociedade. O terceiro tipo foi chamado de controle do regime,
dirigido contra dissidências políticas, sob a forma de violência de agentes privados que dão suporte ao regime. Por fim, concluíram que o vigilantismo “é uma
violência para criar, manter ou recriar uma ordem sócio-política estabelecida”
(ROSEMBAUM; SANDERBERG, 1976).
Recentemente, novas características foram agregadas a definição de vigilantismo, o que talvez seja indicativo da diversidade que assume esse tipo
de controle social, não oficial. De acordo com COSTA (1997, p. 7) “refere-se
aos movimentos extralegais, organizados para manter a ordem ou a lei pelos
próprios meios”.
5. “Justiça feita com as próprias mãos”. Definição dada por (BENEVIDES, 1982).
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Estas definições servem como linha condutora de estudos sobre justiceiros, pois basicamente, indivíduos tomam os mecanismos formais de controle
social e a administração da justiça como fraco, inadequado e insuficientes. Tais
deficiências justificariam, para determinados membros da sociedade, empregar a
violência privada como uma forma de controle social.
Fatos dessa natureza parecem cada vez mais difíceis de serem extirpados
da vida do cidadão comum. Diariamente, ações dessa ordem veiculam-se na
imprensa. Rostos singulares aparecem estampados em reportagens ou desfilam
diante dos noticiários de TV. As notícias disseminam-se com rapidez e cores
muito fortes, onde alguns cenários se repetem, dando a entender que a problemática da violência privada é uma realidade que atinge todas as sociedades e que
pode estar presente em outras áreas com características iguais ou semelhantes,
mas que de uma forma ou outra traz prejuízos para as reações sociais.
Da mesma forma que no caso brasileiro, diversas são as tentativas de explicação para este fenômeno, em outros países da América Latina. Entre elas se
destaca, em primeiro lugar, a situação de crise das instituições de segurança pública, justiça penal e sistema penitenciário. São constatados, neste âmbito, problemas que se relacionam com erros de funcionamento e desenho organizacional que dificultam a celeridade e eficiência dessas instituições; falta de recursos
orçamentários e tecnológicos ante o aumento da criminalidade; distanciamento
entre as instituições de segurança pública e a sociedade civil (LONGMIRE, 2009;
ZIZUMBO, 2010).
Em um estudo de FUENTES (2011, p. 12) são apresentados dados que
anunciam uma série de vinte atos de vigilantismo nos primeiros dez meses de
2010. Ou seja, na ausência de policiais e de confiança no sistema de justiça, alguns cidadãos tomaram a lei em suas próprias mãos. “Eles se organizaram contra
atos de violência praticados contra si mesmos, suas famílias, seus vizinhos e seus
municípios, passando a desempenhar um papel de vigilante contra o crime”
(FUENTES, 2011).
Com efeito, um Levantamento da AMERICAS BAROMETER (2010) mostra que, para graus variados, muitos cidadãos da América Latina expressam
apoio aos atos dos justiceiros. Este comportamento, muitas vezes referido como
linchamento, na América Latina, tem se apresentado corriqueiramente, nos últimos anos na Guatemala, Bolívia (KOTONIAS, 2009, PIAZZA, 2012), Peru (BBC
Mundo, 2004), e em outros países.
Por oportuno, destacamos o caso do México, que tem sofrido com o aumento da violência nos últimos anos, muita da qual decorrente da guerra contra
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os cartéis de drogas e gangues de jovens arruaceiros que querem cooperar com
essas organizações criminosas ou desencadear o caos por conta própria. Aqui
vale destacar a importância de reconhecer que o vigilantismo, nesse país, não
esta relacionada à guerra contra as drogas. Na verdade, “as pessoas estão ficando
cansadas ​​da violência relacionada às drogas, roubo e outros crimes, cansadas o
suficiente para resolver o assunto pelas próprias mãos” (GRAYSON, 2011).
Diante desse contexto, as ações de repressão ao crime por meio de práticas privadas de violência, voltadas para a segurança pública, só poderiam resultar em atitudes de intolerância, onde as pessoas suspeitas de entrar em conflito
com a lei suportam o peso das repressões a base de espancamentos, torturas, e
diversas outras formas de violência que estampam, diariamente, as manchetes
dos jornais.
Por mais diferentes que sejam os modelos de controle social, nos países
da América Latina, percebem-se pontos comuns entre eles. A procura pela sensação de segurança pode vir acompanhada de restrição de liberdade e direitos
individuais, o que nos leva de volta aos problemas que estão relacionados às
inócuas instituições, às pessoas e às tendências de mudança da sociedade. Sobretudo porque a mudança social vista através de uma sociabilidade gestada pelo medo
não aparece como resultado do aperfeiçoamento progressivo dos mecanismos de
integração social, mas sim como desagregação social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os fenômenos de violência privada não surgem repentinamente, são
constituídos de práticas e discursos, herdados, inclusive, de formas de conflitos
inerentes a períodos regressos. Tal perspectiva permite uma reflexão sobre o esgotamento dos modelos convencionais de controle social, seja no Brasil ou qualquer outro país da América Latina, sendo sugestiva a necessidade de repensá-lo,
a partir das formas de interação e sociabilidade em emergência, quer entre as
classes populares quer entre as demais classes sociais, uma vez que, a complexa
problemática do controle social não se encerra no domínio exclusivo dos aparelhos repressivos de Estado.
Conclui-se, então, que ações de justiceiros propõe um preço bem maior
do que os limites que a justiça suporta. O linchamento, a mutilação, o espancamento e, por conseguinte, a morte, pressupõe um acerto de contas bem particular entre os atores da violência, cujo objetivo não é somente fazer justiça, mas
vingar a violação de um código estabelecido por dado segmento da sociedade.
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Em suma, há uma dificuldade maior de retratar grandes teorias que possam dar conta da totalidade dos fenômenos relacionados à violência privada.
Não a impossibilidade, mas um aumento de fatores a serem levados em conta. A
complexidade, a velocidade dos fluxos de indivíduos e informações são elementos que precedentes os acontecimentos de nossa atualidade. Com esta condição,
preocupações maiores com os contextos micro estruturais deverão ser levadas
em conta. Estudos empíricos e estudos de caso que possam legitimar ou dar luz
a novos modelos explicativos sobre os fenômenos da violência privada e atuação
dos justiceiros.
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Instituto de
Ciências Sociais
Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
O COTIDIANO FEMININO NAS
METRÓPOLES E A SUB-REPRESENTAÇÃO
POLÍTICA DAS MULHERES1
Renata Adriana Rosa
RESUMO: Este trabalho apresenta uma abordagem analítica sobre os
usos, os circuitos e as trajetórias que as mulheres – ao experimentarem
diferentes contextos urbanos e condições socioeconômicas diversas – fazem
das cidades, mais especificamente na capital mineira, Belo Horizonte. Esta
abordagem parte do pressuposto de que as relações desiguais de poder
entre homens e mulheres são uma condição socialmente construída que
balizam a estrutura e as dinâmicas sociais que configuram os diferentes
contextos urbanos femininos nas metrópoles brasileiras. Neste sentido,
buscaremos compreender a relação estabelecida entre trajetórias urbanas de
mulheres e as distintas maneiras como estas percebem, usam e participam
da construção das territorialidades urbanas nas cidades. Dialeticamente,
buscaremos interpelar as distintas maneiras como as cidades percebem e se
apropriam da vida das mulheres, em seu cotidiano urbano, nas suas formas
distintas de organização e estruturação. Tratar sobre as razões da subrepresentação política e da limitada presença feminina nos espaços de poder
requer uma análise sobre o direito às cidades, sob a ótica das mulheres,
para se compreender os usos e as apropriações que as mulheres fazem
dos espaços públicos e, ao mesmo tempo, refletir sobre as formas como o
cotidiano feminino é usado e apropriado pela estrutura das cidades, com
suas fronteiras simbólicas e concretas.
Palavras-chave: desigualdades de gênero, sub-representação política, uso
do tempo
1. Trabalho apresentado na 29 Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03
e 06 de agosto de 2014, Natal - RN
III Simpósio de Ciências Sociais: Cidade e Democracia
Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
Introdução
A análise sobre a condição das representações do feminino no cotidiano
de Belo Horizonte, através dos usos e apropriação da cidade por um conjunto
variado de mulheres, é um dos eixos norteadores para o desenvolvimento deste
trabalho. Interpelaremos os processos de experimentação da cidade enquanto
um conjunto de circuitos, trajetórias e deslocamentos que orientam as formas
de usos e apropriações das mesmas, por um conjunto de mulheres na cidade de
Belo Horizonte, considerando os diferentes contextos urbanos e situações socioeconômicas em que estas vivem, a partir de um local de convergência de várias
mulheres: os equipamentos municipais de Educação Infantil (UMEI’s).
Por compreender esta política como uma ação afirmativa estatal que opera para a inserção das mulheres no mercado de trabalho e em outras instâncias
da vida pública, serão realizadas entrevistas com mulheres relacionadas a estes
equipamentos municipais, na condição de professoras-coordenadoras, monitoras e mães-usuárias dos serviços. Há ainda que se refletir sobre as formas como
a mobilidade feminina e a rede de educação infantil têm pautado as políticas
municipais nas cidades em análise.
Compreendemos que a relação tempo-espaço é ‘genderizada’, ou seja:
marcada pela questão de gênero, constituindo-se como uma dimensão chave
para a compreensão da diversidade e das desigualdades nas relações entre homens e mulheres, entre mulheres e mulheres, ao experimentarem diferentes situações socioeconômicas.
Os significados do tempo e de seu uso são igualmente referenciados pelo
gênero. E, neste sentido, pensar os tempos de deslocamentos, os circuitos possíveis a partir destas experimentações das cidades por diferentes mulheres, tornam-se fundamentais para se estabelecer um debate sobre a questão urbana e o
direito à cidade sob a perspectiva das mulheres.
Partimos do pressuposto de que mulheres e homens conferem diferentes
valores e sentidos ao uso do tempo. Quaisquer decisões tomadas sobre sua utilização – ou priorização do mesmo - envolvem a atribuição de significado ou de
valor a uma determinada atividade, num processo que é claramente condicionado pela questão de gênero – por responsabilidades, recursos, posições e estatutos
de homens e de mulheres.
As desigualdades de gênero estruturam-se na tradicional divisão sexual
do trabalho, que atribui às mulheres a responsabilidade pelas tarefas domésticas
e pelo trabalho do cuidado de outros (especialmente de filhos, idosos e doentes)
48
ROSA, R. A. • O cotidiano feminino nas metrópoles e a sub-representação política das mulheres
III Simpósio de Ciências Sociais: Cidade e Democracia
Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
desempenhadas na esfera da reprodução social, enquanto aos homens são designados os espaços de atuação na vida econômica e política da sociedade.
A relevância desta pesquisa está relacionada às contribuições teóricas e
analíticas que serão desenvolvidas sobre as relações e conexões estabelecidas
entre a produção do espaço urbano com as trajetórias das mulheres nas cidades.
Em nível internacional, tem se dado um profícuo debate analítico sobre os modos de vida nas metrópoles, relacionando os estudos de gênero com os estudos
urbanos e a questão da mobilidade.
Investigar os territórios do cotidiano das mulheres nas cidades, a forma
como estas organizam o uso do tempo, em diferentes situações e contextos socioeconômicos, implica tratar as barreiras e obstáculos relativos aos processos
de produção e reprodução dos espaços urbanos, relacionados ao desafio de compatibilizar as tarefas do cuidado e as responsabilidades com as tarefas da esfera
privada com a vida profissional e a esfera pública nas metrópoles brasileiras.
A questão da mobilidade, dos deslocamentos urbanos, nos contextos do
transporte público das cidades brasileiras também incidem como questões que
orientam os usos e vivências, as experimentações e as trajetórias das mulheres
no cotidiano urbano do Brasil.
Diferentes estudos demonstram que o processo de urbanização brasileiro
configurou-se pela ocultação das demandas socioeconômicas de grande parte
da população do país, acarretando um processo de segregação e feminização da
pobreza, associadas à ausência de uma política urbana capaz de garantir acesso
à moradia, bem como a bens e serviços de uso coletivo como transporte, lazer,
água, esgoto, coleta de lixo. Esta situação potencializou efeitos perversos que
aprofundam a exclusão social nos grandes centros urbanos e afetam de maneira
mais perversa a vida das mulheres.
A dicotomização entre esfera privada e esfera pública tem sido um dos
principais focos das críticas feministas, na tentativa de ilustrar as faces de opressão e de subordinação da mulher em ambos os espaços. Feministas como Pateman (1996) e Walby (2004) sustentam que a separação e a oposição entre o
público e o privado serviram para ofuscar a realidade patriarcal ainda presente
nas sociedades.
Os usos e apropriações que as mulheres fazem da cidade e a ordenação
territorial do espaço urbano serão abordados para compreender seus impactos
sobre a trajetória de vida das mulheres, bem como os processos por meio dos
quais os marcos culturais de comportamento são reproduzidos, naturalizados ou
modificados, no cotidiano, nas práticas referentes ao espaço urbano.
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Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
Em Belo Horizonte, o debate sobre as questões de gênero destacou-se no
contexto dos anos de 1980, quando movimentos feministas e de mulheres, se organizaram pela garantia de seus direitos e contra à violência. Como consequência
desse processo, foi inaugurada, em 1985, a primeira Delegacia Especializada em
Repressão a Crimes contra a Mulher de Belo Horizonte. No âmbito do poder público
municipal, os trabalhos para a implementação de equipamentos específicos para o
atendimento à mulher, iniciaram-se em 1993, a partir do Programa Cidadania da
Mulher (da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social).
A Delegacia Especializada em Crimes Contra a Mulher, foi criada em
1985, ano em que foi realizada a II Conferência Mundial das Mulheres, em Nairobi e se concluía o período, denominado pela ONU como Década da Mulher
–1975/1985.
Os deslocamentos, os fluxos e circuitos de diferentes mulheres e suas
inserções nas tramas de sociabilidade da cidade, enquanto campo de análise,
perspectivam uma reflexão sobre a relação das novas dinâmicas sociais em pauta
nas cidades com a manutenção de desigualdades estruturais que balizam as relações sociais entre homens e mulheres e interferem nas formas de uso, percepção
e apropriação dos espaços urbanos.
Interpelar os territórios do cotidiano das mulheres nas cidades, a forma como
estas organizam o uso do tempo, em diferentes situações e contextos socioeconômicos, implica tratar as barreiras e obstáculos relativos aos processos de produção e
reprodução dos espaços urbanos, relacionados ao desafio de compatibilizar as tarefas
do cuidado e as responsabilidades com as tarefas da esfera privada com a vida profissional e a esfera pública nas metrópoles brasileiras. Implica debater as bases estruturais da sub-representação política e participação nos espaços de poder.
Abordagem metodológica
Como demonstra Telles (2006), mais do que um conceito, a cidade é um
campo de práticas, por isso é possível e preciso analisar, prospectar as mobilidades urbanas – seus percursos e circuitos, seus espaços e territórios. A mobilidade
espacial, medida por referência aos deslocamentos na hierarquia das ocupações,
funções e profissões é apenas um lado ou uma das dimensões do que poderíamos definir como “ciclo de interligação de territórios”.
Traçaremos perfis de trajetórias e circuitos de um conjunto de quatro
mulheres em diferentes situações socioeconômicas, na cidade de Belo Horizonte,
para avaliar sua relação e conexão com o uso do tempo e as tarefas do cuidado.
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O levantamento destas informações, relacionadas aos espaços da esfera privada
da vida, possibilitarão procedimentos de análise sobre os processos e as formas
de uso, percepção e experimentações que as mulheres fazem das cidades.
Utilizaremos do recurso de entrevistas com formulários sobre a situação
socioeconômica e um questionário complementar para, em seguida, apresentar
um caderno de registro diário de uso do tempo e um roteiro de mobilidade a
serem preenchidos, diariamente, durante sete dias de um mês aleatório.
O uso do tempo será abordado como base estrutural de análise, articulado ao conceito de “trajetórias” - e suas territorialidades urbanas - enquanto
variável a ser interpretada, para nortear a reflexão proposta.
O propósito de todo este processo é estabelecer semelhanças e diferenças
nestes usos e modos de apropriação, nestes processos de experimentação das cidades, considerando a relação entre desigualdade de gênero e classe econômica.
Vários tipos de metodologias de uso de tempo vêm sendo empregados
para realizar o levantamento do cotidiano das mulheres em diferentes sociedades. Aguiar (2010), destaca que a estratégia de pesquisa com diários consiste em
pedir aos entrevistados para preencherem um protocolo de uso do tempo, com
as atividades desenvolvidas e o seu contexto, em intervalos padronizados para
posterior codificação.
A autora afirma que pesquisas de uso de tempo têm sido efetuadas, no
Brasil, bem como em outras partes do mundo, com distintos tipos de metodologia de investigação, como o emprego de diários para o registro do que é realizado
no decorrer do dia; o uso de perguntas para estimar o tempo dependido em atividades determinadas, por meio de uma espécie de diário estilizado; a utilização
de observação de atividades desenvolvidas pela amostra definida para a pesquisa, para o seu levantamento em um dado intervalo de tempo; uso de aparatos
eletrônicos para pesquisar atividades, utilizados como principais instrumentos
de registro, ou em combinação com diários e questionários.
A partir de estudos realizados na região metropolitana de Belo Horizonte
em 2001, a pesquisadora Neuma Aguiar (2010), concluiu que “a combinação de
uso de diários e posteriores entrevistas pode oferecer um retrato mais amplo e
detalhado do dia a dia, indo bem além das indicações da divisão sexual do trabalho doméstico ao especificar e situar a dimensão de cuidados com as crianças
e os idosos e as atividades mais sujeitas à redistribuição. Diários também permitem o cômputo de atividades inusitadas e dificultam o efeito de valores de gênero
que podem se apresentar como efeito de resposta no levantamento das atividades
domésticas”. (Aguiar, 2010, p. 77)
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Através do uso de diários e entrevistas estruturadas abordaremos os tempos distintos nas trajetórias urbanas das mulheres: os tempos do cuidado nos
espaços da vida privada, os tempos de consumo e de entretenimento, os tempos
de trabalho remunerado, os tempos de estudo e formação profissional, os tempos
de deslocamento e mobilidade urbana, os tempos das relações sociais, bem como
outros tempos femininos.
As Unidades Municipais de Educação Infantil serão o foco de nossa pesquisa empírica por duas razões principais. Belo Horizonte possui equipamentos
públicos de apoio à educação infantil, as UMEI’s, unidades municipais de educação infantil, descentralizadas pelas 9 regiões administrativas da cidade.
Belo Horizonte é organizada a partir de 09 unidades administrativas e possui uma rede aproximada de 67 UMEI’s, distribuídas pelas microrregiões Barreiro,
Oeste, Centro-Sul, Leste, Noroeste, Pampulha, Nordeste, Norte e Venda Nova.
Inicialmente, realizamos contatos e já obtivemos autorização para desenvolver esta pesquisa juntos a duas UMEIs, situadas na região centro-sul, porém
com realidades e contextos opostos no que se refere ao público usuário e à situação das servidoras públicas que trabalham nos referidos espaços.
Os procedimentos para análise do material coletado e produzido estão
em construção e pressupõem a operacionalização dos conceitos estruturantes do
arcabouço teórico deste processo investigativo, com o propósito de:
• identificar os processos de experimentação que as mulheres fazem das
cidades, vivendo sob diferentes situações socioeconômicas;
• a forma e as variações de circulação das mulheres nas cidades, seus
percursos, trajetos e territorialidades;
• o deslocamento e a mobilidade urbana das mulheres nas cidades;
• as trajetórias de trabalho remunerado e as experiências cotidianas junto
às tarefas do cuidado e do espaço doméstico.
Instrumentos
Apresentamos três propostas de instrumentos para a efetivação da pesquisa: 1 - Formulário socioeconômico; 2 - Questionário Complementar; 3Diário de uso do tempo. As questões apresentadas nos documentos 1 e 2,
foram adaptadas a partir do questionário padrão que norteou a pesquisa “Gênero, família e trabalho em perspectiva comparada”, realizada no Rio de Janeiro, financiada pela FAPERJ e organizada pelas professoras Clara Araújo e Celi
Scalon (2005). A pesquisa, integrada a um programa internacional comparati-
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vo entre vários países, o “International Social Survey Programme”, constou de
um survey nacional de opinião sobre várias dimensões das relações de gênero
no âmbito da família e abordou percepções de homens e mulheres sobre questões como a inserção da mulher no mercado de trabalho, a divisão do trabalho
doméstico, a maternidade e o casamento, e a relação entre satisfação individual
e vida familiar.
Já o modelo de diário de uso do tempo tem como referência as pesquisas
organizadas por Neuma Aguiar (2010), cuja amostra de diário pós-codificado
possui intervalos de 10 em 10 minutos.
Outro modelo que analisamos foi o utilizado pelo IBGE em pesquisa piloto de uso do tempo em 2009 e apresentado no 12 Fórum do Sistema Integrado
de Pesquisas domiciliares que trabalha com intervalos de 15 minutos, utilizando-se de cinco colunas para elencar as atividades principais realizadas, onde foram realizadas, quem mais se envolveu na realização e quais seriam as atividades
secundárias, realizadas em consonância.
De acordo com a adaptação dos DUT (diários de uso do tempo), realizada
por Teixeira e Cruz, a partir do modelo do Eurostat (2004) o Diário de uso do
tempo é um instrumento de investigação ou um sistema de registro e de categorização de episódios e atividades realizadas, envolvendo locais e contextos
sociais de interação para recolher informações sobre o cotidiano dos indivíduos
em um período que abrange vinte e quatro horas do dia.
Nossa proposta é utilizar, primeiramente, tanto o formulário socioeconômico como o questionário complementar para que, em seguida, um caderno de
registro do uso do tempo possa ser apresentado ao universo das mulheres pesquisadas, para ser preenchido num período de sete dias seguidos, na primeira ou
última semana de um mês aleatório. Apresentamos intervalos de duas horas, no
decorrer de todo o dia e solicitamos o registro da atividade principal, na primeira
coluna e de atividades secundárias, na segunda coluna.
A questão das representações sociais e os processos de diferenciação
social dos lugares e posições, em relação às tarefas do cuidado e ao uso do
tempo das mulheres, serão problematizados para compreender como estes
processos se articulam às formas de percepção e usos dos espaços urbanos
nas cidades. Este debate pressupõe uma reflexão analítica capaz de articular
as relações de gênero, com a questão de classe social e com a mobilidade urbana nas cidades brasileiras.
Pretendemos analisar estas trajetórias, estes circuitos femininos, sob diferentes contextos socioeconômicos nas duas capitais, por compreender que as
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desigualdades de gênero, quando perpassadas por questões de classe social, explicitam ainda mais as fronteiras e os limites para o uso e apropriação dos espaços urbanos nas metrópoles brasileiras.
Falar em fronteiras estruturais não se restringe a tratar do problema sob
o ponto de vista do acesso desigual aos espaços urbanos e aos processos de interação social das cidades. Trata-se de reconhecer que as desigualdades entre
homens e mulheres atravessam a produção e reprodução das cidades e são, por
princípio, elementos constituintes das mesmas.
Esta é uma distinção importante, na medida em que estaremos interpelando os impactos da estrutura das cidades na vida das mulheres e considerando que
as desigualdades de gênero são estruturadoras e dinamizadoras dos modos de vida
nas metrópoles, principalmente no que se refere aos trajetos e circuitos, às trajetórias que as mulheres constroem, a partir de diferentes situações socioeconômicas.
O cotidiano de 4 mulheres na
cidade de Belo Horizonte
Com o propósito de compreender os circuitos e as trajetórias de quatro
mulheres em Belo Horizonte, vivendo sob diferentes contextos socioeconômicos,
a partir de suas experiências quanto ao uso do tempo e sua relação com a cidade,
identificamos dois perfis junto à UMEI A e outros dois junto à UMEI B2.
Os dois perfis acompanhados, através da UMEI A, serão identificados
como Caso 1 e Caso 2. Os perfis acompanhados através da UMEI B serão identificados como Caso 3 e Caso 4.
O cotidiano urbano do caso 1 foi acompanhado durante o dia 23 de julho
de 2014, uma quarta-feira, semana em que a entrevistada também preencheu
o diário de uso do tempo, entre os dias 21 e 27 de julho. O perfil do caso 1
pode ser identificado como o de uma jovem negra, com 30 anos de idade, que
trabalha na UMEI para arcar com suas despesas e contribuir com as de sua família. Está concluindo sua graduação em História em uma instituição de ensino
superior privada. Atriz e percussionista em um grupo cultural de renome, não
tem filhos e vive com seus familiares no bairro Cachoerinha, região Norte da
cidade. Acompanha os debates políticos da cidade e do país, embora não esteja
filiada a um partido político específico. Participou das manifestações de junho
de 2013 por acreditar na necessidade de mudanças no sistema político brasileiro.
2. Identificaremos as UMEIS como A e B com o propósito de resguardar os perfis analisados,
suas trajetórias, seu cotidiano.
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Suas práticas religiosas referenciam-se no Candomblé e sua relação com a cidade
se dá de forma fluida e diversificada. Cerca de 4 horas diárias são gastas com
deslocamento entre sua casa, seus locais de trabalho e a universidade. Os fins
de semana são reservados para ensaios, organização de trabalhos acadêmicos e
responsabilidades domésticas.
O caso 2, também referenciado na UMEI A, diz respeito a uma mulher
dona de casa, com 34 anos, mãe de três filhos com idades de 15, 9 e 3 anos de
idade e que não possui trabalho remunerado. Vive na comunidade de entorno
da UMEI há 11 anos, juntamente com seu companheiro e pai de seus dois filhos mais novos. Dedica-se aos cuidados da casa, filhos e da família e concluiu
o ensino médio há 5 anos. Deseja fazer um curso técnico para cuidar de idosos
ou trabalhar junto a alguma clínica veterinária, devido à sua afinidade com animais. Seu companheiro é porteiro em um prédio público, também no entorno
da UMEI e ambos são evangélicos. Não foi possível acompanhar o cotidiano do
caso 2, por um conjunto de impedimentos. Seu registro diário de uso do tempo ocorreu entre os dias 17 e 23 de julho. Seu cotidiano possui um certo grau
de fixidez e suas relações se orientam, prioritariamente, para o entorno de sua
moradia e convivência. Seus deslocamentos diários têm como propósito levar o
filho mais novo para a escola, bem como os compromissos religiosos com sua
igreja. Os sábados são reservados para as compras de supermercado, açougue e
cuidados como salão de beleza. Sua semana pauta-se nas tarefas de cuidado de
sua casa, filhos e familiares mais próximos.
O caso 3, referenciado na UMEI B, trata-se de uma mulher com 51 anos
de idade, funcionária pública há 23 anos, pertencente ao quadro da rede municipal de Educação da capital mineira. Graduada em Letras, possui pós-graduação em Psicopedagogia. Casada há 29 anos, reside no bairro Santo Antônio e
compõe a diretoria da Associação de Moradores de sua região. Suas filhas, com
idade de 22 anos, são gêmeas: uma cursa biologia na UFMG, a outra iniciou
o curso de arquitetura e no início de 2014 optou pelo curso de Belas Artes,
também na UFMG. Seu registro diário de uso do tempo ocorreu entre os dias
28 de julho e 03 de agosto. Sua rotina foi acompanhada no dia 14 de agosto,
quinta-feira. Rotina dinâmica, intercala tempos de cuidados relacionados ao
seu núcleo familiar – marcação de consultas médicas para marido e uma de
suas filhas - com atribuições de seu cargo público, perfazendo uma cargo horária de 9 horas de trabalho remunerado. Utiliza cerca de duas horas e meia,
diariamente, para deslocamentos entre sua casa, local de trabalho e demais
endereços de reuniões que acompanha diariamente. Católica, não possui uma
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rotina disciplinada junto à igreja. Frequenta, quinzenalmente, salas de cinema
do Circuito cultural da cidade e reserva seus fins de semana para sua casa de
sítio, situada na cidade de Caeté, quando não há compromissos profissionais
agendados para os sábados.
O caso 4 diz respeito a uma mulher de 53 anos, moradora da região de
Venda Nova, também referenciada na UMEI B. Concluiu seus estudos através
do Programa EJA, em 200. Divorciada há 17 anos possui um casal de filhos que
vivem com ela, juntamente com um neto de 4 anos que frequenta a UMEI B
há dois anos. Sua filha possui 29 anos, trabalha em uma farmácia na região de
Venda Nova e faz curso técnico de enfermagem. Seu filho, de 26 anos, trabalha
em uma montadora de veículos e está cursando Engenharia Mecânica. Cumpre
6 horas de trabalho remunerado junto à UMEI B como cozinheira. Utiliza cerca
de 3 horas e meia diárias para deslocar-se entre sua casa e o trabalho. Aproveita para levar seu neto e assim contribuir para os estudos de sua filha, mãe do
mesmo. Em sua rotina, há cerca de 20 anos, levanta-se às 5:30 da manhã para
agilizar suas tarefas domésticas, embora sua entrada no trabalho remunerado se
dê às 12 horas. Católica praticante, reserva parte de seu tempo para acompanhar
as ações sociais da Igreja que frequenta assim como organiza festas dançantes
e viagens turísticas trimestrais para cidades como Caldas Novas, Aparecida e
Porto Seguro. Já participou das caravanas do Orçamento Participativo em sua
região, para a execução de obras para melhoria de seu bairro. Seu registro diário
de uso do tempo ocorreu entre os dias 04 e 10 de agosto. Sua rotina foi acompanhada no dia 18 de agosto, segunda-feira. Sua rotina apresenta um grau de
fixidez mas percebe-se um certo dinamismo potencializado pelas relações estabelecidas através dos grupos que organiza para as viagens e as diversas ações
ligadas à sua igreja.
As mulheres e o seu movimento permitido, possível ou constrangido em
diversos lugares e contextos específicos conformam uma experiência a ser investigada pelas Ciências Sociais, uma vez que, embora as mulheres circulem nas cidades, seu movimento não se dá de forma livre, sendo restringido por regulações
legais, culturais e morais que interferem nos modos destas mesmas transitarem
pela cidade – locais, meios de transporte, horários – bem como em relação às
motivações para o deslocamento.
Naturalizam-se lugares-tempos-usos exclusivos para mulheres, regulados
por regras culturais ou religiosas, envoltas no discurso de proteção frente a subordinações variadas, por diversos motivos.
A questão da sub-representação política feminina não tem somente um
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determinante que revela uma invisibilidade nas instâncias formais de decisão e
poder, levando assim a percepção de que sua sub-representação é complexa, e ao
que tudo indica, apontam para uma série de hipóteses que evidenciam sua condição social, na qual a mulher está inserida, subordinada e muitas vezes dependente
do homem (marido ou companheiro), a deixa em desvantagem para participar do
jogo político e a participar das discussões que dizem respeito às decisões políticas
e mesmo de questões que envolvem a própria condição de mulher.
Os papéis diferenciados que desempenham homens e mulheres na sociedade introjetam nas mulheres a concepção de que a arena política é um espaço
para homem, não lhes cabendo um lugar nestas esferas de discussão. A questão da dupla, tripla jornada de trabalho a qual as mulheres estão
submetidas, ao cuidado dos filhos e de suas famílias, o que toma-lhes o tempo
que seria necessário à participação em debates da vida pública, das discussões
políticas, em âmbito partidário ou não. As mulheres, no Brasil somam quase
52% de toda a população, entretanto ocupam menos de 9% dos espaços de
poder e decisão.
A questão da mobilidade urbana
e os circuitos femininos nas cidades
Na perspectiva de se problematizar as relações de gênero, enquanto instrumento teórico para a análise dos usos do espaço urbano e das condições urbanas de vida, buscaremos articular este debate à questão da mobilidade urbana
feminina e ao conceito de classe para compreender os processos de experimentação das cidades, enquanto um conjunto de circuitos, trajetos e trajetórias.
Consideramos que as desigualdades de classe econômica, quando articuladas às desigualdades de gênero impactam diretamente nos modos de uso
dos espaços urbanos nas cidades. Mais que isso: gênero e classe social são dois
princípios básicos da estratificação social.
De acordo com Pelegrino (2011), com quase duzentos milhões de habitantes concentrados, majoritariamente nas cidades (84,64%), sendo 51,3% mulheres (98,4 milhões de pessoas e 48,7 % de homens (93,4 milhões de pessoas), o
Brasil é um país profundamente desigual. Entretanto, no que se refere à situação
das mulheres, há que se destacar a queda na taxa de fecundidade, bem como o
aumento do nível de escolaridade entre as mulheres, a participação decisiva no
mercado de trabalho e a prevalência nas chefias de família, sobretudo entre as
mulheres de baixa renda.
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Na ausência de dados que permitam realizar uma leitura do acesso aos
meios de transporte, a partir da perspectiva de gênero, fica a constatação de que
a precariedade do transporte urbano é geral para o conjunto dos trabalhadores.
No caso das mulheres, essa precariedade reforça não só o desgaste físico resultante do tempo de deslocamento rumo ao trabalho remunerado, como também
o dispêndio de recursos para realizar o trajeto de casa até o local de trabalho,
passando pela escola ou creche dos filhos.
As reflexões que Pires (2013) realiza sobre transportes públicos e representações sobre mobilidade social, a partir do Rio de Janeiro e de Buenos Aires,
ilustram bem esta questão e nos permitem avaliar processos de experimentação
das cidades enquanto um conjunto de circuitos, marcados por trajetos e trajetórias. O autor resgata em Magnani a perspectiva de que tais circuitos se operacionalizam não em função da interligação de territórios, mas sim pela circulação
de territorialidades, isto é, “das significações e significados que determinados
sujeitos sociais compartilham e relação aos lugares onde moram, trabalham ou
simplesmente vivenciam ao passar, no decorrer de um certo período” (Pires,
2013, p. 183)
Neste sentido, a mobilidade implica não só a possibilidade mas também
a efetividade e a eficácia dos deslocamentos no espaço, permitindo aos sujeitos
sociais se encontrarem em âmbitos sociais diferentes.
Conforme constata Pires (2013), “a cidade é, ou pelo menos pode ser, um
conjunto de circuitos que se amplia e se atualiza em função dos interesses e das
estratégias dos sujeitos, que são colocados face a face em virtude, sobretudo, das
relações que se efetivam em decorrência desses transportes de pessoas e coisas,
na busca para construir mobilidades” (Pires, 2013, p. 184).
Pensar as relações de gênero implica em refletir sobre um conjunto de
relações, atributos, papéis, crenças e atitudes que definem o que significa ser
mulher ou homem na vida social.
Segundo Scott (1999), o recurso à categoria de gênero como ferramenta
conceitual para examinar as desigualdades entre homens e mulheres coincidiu
com a turbulência epistemológica dos anos de 1970, ou seja, as tradições teóricas
disponíveis não respondiam às indagações teóricas feministas.
A contribuição da antropologia social foi crucial para essa inflexão. As
teóricas feministas dos anos de 1970, muitas delas eram antropólogas, fizeram
um retorno crítico aos clássicos como Levy-Strauss, Margareth Mead, Malinowisky e Pritchard. Esta nova produção teórica estabeleceu novos parâmetros
para examinar as lógicas de sexo e gênero, como também elaborou críticas im-
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portantes quanto ao uso de categorias ocidentais de análise ao se tratar a articulação entre gênero e população.
Deu-se, assim, a construção de uma nova moldura sobre a concepção do
masculino, do feminino e da sexualidade como construções socioculturais, contrapondo-se a concepções essencialistas que definem os homens, as mulheres e
o sexo como “naturalmente determinados”.
Matos (1995) apresenta gênero como uma nova proposta teórico-conceitual, ou seja, como uma dimensão que enfatiza traços da construção histórica,
social e sobretudo política e que implicaria em uma análise relacional frente à
necessidade de desconstrução de binarismos que facultam lugares fixos e naturalizados para os gêneros.
Em nível internacional vem se dando um profícuo debate sociológico sobre a mobilidade urbana, as desigualdades econômicas e a vida das mulheres
nas cidades.
Cresswell (2010) apresenta uma série de perguntas sobre o novo paradigma
da mobilidade e sua função política na sociedade contemporânea . Destaca duas
ressalvas que precisam ser levadas em conta nas pesquisas sobre mobilidade contemporânea: uma delas é a consciência dos processos de mobilidade do passado
em relação às do presente, sua articulação com as políticas de segurança pública,
entre outras. Propõe uma compreensão da mobilidade em termos de constelações
de movimentos, representações e práticas sociais que articulam presente e passado, presente e futuro, sem perder a noção de fixidez, ou seja das possíveis faltas de
alternativa de deslocamentos, relacionadas à estagnação, embora haja sempre uma
propensão de se pensar o mundo sob a ótica da mobilidade.
Sheller (2011), também apresenta uma visão geral do campo investigativo
sobre mobilidades, traçando seus antecedentes teóricos e contrastando-o com
as teorias da globalização, nomandismo e fluxos, combinando movimento de
pessoas, objetos e informações com o conjunto das complexas relações das dinâmicas sociais contemporâneas.
Já o livro organizado por Little, Peake e Richardson (1988), a partir do
viés da geografia urbana, apresenta um conjunto de reflexões sobre as questões de gênero, e suas relações com a cidade contemporânea, desenvolvendo
análises sobre as experiências das mulheres e a questão urbana. O livro propõe-se a examinar, a relação entre gênero e a evolução da organização espacial,
temporal e política do ambiente urbano. Os autores centram seu debate sobre
as limitações que as mulheres enfrentam em diferentes aspectos de suas vidas
nos centros urbanos.
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Problematizações teóricas relacionadas à produção do espaço serão perspectivadas a partir da abordagem de Lefebvre (1999), com sua compreensão de
que o espaço é ao mesmo tempo, percebido, concebido e experimentado pelos
indivíduos e grupos sociais.
O autor destaca ainda que o espaço está em permanente processo de
reconfiguração e, assim, ele é continuamente produzido, podendo ser resignificado. E essa condição está relacionada ao tempo, entendidos como aspectos
integrais das novas dinâmicas e práticas sociais. Dessa forma, espaço e tempo
não são apenas relacionais, mas fundamentalmente históricos, e se articulam
dialeticamente à prática social, às representações e usos do espaço e aos espaços
de representação das identidades.
Este pressuposto nos permite inferir sobre os impactos da estrutura das
cidades, experimentada na vida das mulheres, considerando que as desigualdades
de gênero são estruturadoras e dinamizadoras dos modos de vida nas metrópoles.
Uma outra reflexão que me instiga a refletir sobre os processos de experimentação das cidades pelas mulheres é apresentada por Leite (2002), para quem
os usos espacializados da cidade inspiram e demandam novas práticas sociais e
processos de interação e, assim, consolidam a manutenção das fronteiras e usos
diferenciados.
Para o autor, essa é uma tendência segundo a qual relações e seus processos de legitimação são construídos, num complexo movimento que, ao mesmo
tempo, descentra, reforça, reconfigura as identidades sociais, desencaixando-as
de seus contextos imediatos, o que pode perspectivar a revisão de fronteiras na
estrutura social e nos seus desdobramentos culturais.
Leite reitera que a construção social dos lugares politiza o espaço urbano
– qualificando-o como espaço público, na medida em que cada lugar, para se
legitimar perante o outro e a partir do qual se diferencia, precisa igualmente ser
reconhecido publicamente em sua própria singularidade. E recorre às palavras
de Arendt: “é na vida pública que as pessoas reafirmam suas diferenças e legitimam suas visões de mundo: o espaço público não se ergue na harmonia das
falas mas na comunicabilidde política do desentendimento (Leite, 2002: p. 131)
Compreendemos que as mulheres, em contextos socioeconômicos distintos, deslocam-se e situam-se no espaço urbano, experimentando, cotidianamente, fronteiras simbólicas que separam, aproximam, nivelam, hierarquizam ou
ordenam as categorias e os grupos sociais em suas mútuas relações, nas cidades.
Esta pesquisa buscará compreender como se estrutura o espaço urbano,
sob o ponto de vista das mulheres, qual a natureza das fronteiras que diferen-
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ciam representações, práticas sociais e identidades fortemente enraizadas em
determinados lugares.
Os deslocamentos espaciais, o uso do tempo são fatores explicativos da
organização do espaço urbano e do papel desse na dominação social que se processa por meio dele. Esta condição determina impactos diretos sobre a economia
familiar, o tempo de estudo, o acesso a lazer e a formação extracurricular dos
indivíduos e, obviamente, sobre sua posição social e sua localização na estrutura
estratificada de nossa sociedade.
Leite (2002) sugere a definição de lugar como uma determinada demarcação física e simbólica no espaço, cujos usos o qualificam e lhe atribuem sentidos diferenciados, orientando ações sociais e sendo por estas delimitado, flexivamente. Um lugar é assim um espaço de representação, cuja singularidade
é construída pela territorialidade subjetivada, mediante práticas sociais e usos
semelhantes.
Lefevbre (1999) apresenta-se como o ponto de partida para esta construção analítica sobre a relação entre a dinâmica sócio-espacial das metrópoles e a
vida das mulheres, esta reinvenção das tradições teóricas sobre a produção do
espaço, em direção a uma dialética tridimensional, utilizando-me, aqui, dos termos propostos por Schmid (2012). Dialética esta tridimensional, que considera o
espaço percebido, concebido e vivido.
Esta lógica pressupõe que a produção do espaço se dê a partir de três
dimensões ou processos dialeticamente interconectados, relacionados à prática
social, às representações do espaço e aos espaços de representação. Sua perspectiva desloca-se do sujeito que pensa, atua e experimenta e parte para a dimensão
do processo de produção social do pensamento, da ação e das experiências.
O espaço urbano socialmente construído é organizado e percebido não
só por todos aqueles que efetivamente a ele pertencem, mas também pelos que
aceitam e incorporam sua representação social.
Os deslocamentos espaciais, o uso do tempo são fatores explicativos da
organização do espaço urbano e do papel que ele cumpre na dinâmica da dominação social que se processa por meio dele.
Esta condição determina impactos diretos sobre a economia familiar, as
tarefas do cuidado doméstico, o tempo de estudo, o acesso a lazer e a formação
extracurricular das pessoas e, principalmente, sobre sua posição social e sua
localização na estrutura estratificada da sociedade. Interfere sobre a disposição
dos tempos gastos nos deslocamentos espaciais na cidade, bem como sobre os
usos e apropriações realizadas pelas mulheres, considerando os marcos culturais
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que determinam a concepção de sujeito feminino e suas possíveis representações
na vida urbana.
Algumas considerações
A partir das análises realizadas, podemos inferir que os usos do tempo
apreendidos em sua diversidade e, notadamente, em suas dimensões qualitativas, resultam de práticas e são postas como produtoras de relações desiguais
de poder.
Nesse sentido, a subordinação feminina repousa sobre a essencialização
da relação com o tempo: a naturalização das competências ditas femininas se
apoia sobre uma temporalidade baseada na relação com o outro; tem conotações
sociodemográficas, pois se trata de apreender as desigualdades entre homens e
mulheres nos usos do tempo, a partir da avaliação diferenciada por gênero da
inserção e distribuição no mercado de trabalho, no tipo de emprego ou de profissão, em um ou outro setor, no valor nominal do salário recebido.
Tais diferenças refletem uma distribuição desigual em relação aos afazeres domésticos e de cuidados entre homens e mulheres. Verificar essas diferenças
nas pesquisas sobre os usos do tempo permite sistematizar melhor as desigualdades e possibilita meios políticos e sociais para combatê-las.
A perspectiva metodológica, de pesquisas sobre os usos do tempo demonstram a necessidade de considerar os percursos sexuados associados aos
usos do tempo, evidenciando, por exemplo, que as categorias de idade, raça e de
sexo não se apresentam como simples variáveis; ao contrário, se articulam com
os sistemas de hierarquia e de poder.
Devemos considerar que o tempo e seus usos não são neutros, mesmo
quando apreendidos na série temporal dos diários de campo, uma vez que a objetividade da coleta não está isenta de sobrevalorizar ou de estigmatizar uma ou
outra atividade, hierarquizando um sexo frente a outro.
Como aponta Bandeira (2013), pode-se afirmar que os usos do tempo
podem se configurar como produtores de desigualdades. Nesta direção se
fazem necessárias novas posturas metodológicas que questionem esse “sistema hegemônico de gênero”, ao considerar que as pesquisas sobre os usos
do tempo devem apreender as pluralidades em suas múltiplas dimensões,
sobretudo de forma mais qualitativa, com vistas a fornecer uma base de informações para a elaboração de políticas e ações públicas mais abrangentes
e desestigmatizadas.
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Ciências Sociais
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Banksy, política e concepção de arte contra
parede: uma análise de suas contribuições
para a sociedade contemporânea.
Fábio Júnio Mesquita1
Luiz Fernando Moreira da Silva Melo2
RESUMO: O presente estudo almeja contribuir no aspecto teórico para
a discussão sobre as manifestações paisagísticas e ideológicas presentes
na pintura sob estêncil de Banksy. Entendendo suas produções e as
manifestações políticas, artísticas e urbanas, contidas em cada produção. O
principal objeto de estudos deste trabalho será as representações de Banksy,
realizadas principalmente nas cidades de Bristol e Londres (Inglaterra),
entendendo suas obras e sua ideologia por trás do que é proposto em sua
pintura, buscando a barreira entre a arte e a poluição visual, na busca de
entender como se dá a critica política em cada imagem pintada pelo autor;
bem como repensar o conceito de arte, considerando as representações
de Banksy e a pichação, perceber a aceitação por parte de quem observa,
discutindo o que é belo, o que é arte e o que aceitável conforme os
padrões criticados nas produções do autor anteriormente citado, uma vez
que exercendo a mesma democracia ambos podem pintar suas ideias em
paredes - porém, ao mesmo passo que por (também) essa democracia não
possuem o direito exclusivo de modificar o que pertence ao outro, como é
o caso das transformações do espaço privado - ou o que pertence a todos
e não tão somente ao indivíduo que provoca essa transformação urbana
por intermédio da tinta e estêncil - como é o caso de quando “marcam” um
espaço público - tanto Banksy, quanto um pichador. Levando essa discussão
para além das transformações urbanas e compreendendo o julgamento
prévio muitas vezes praticados contra a liberdade do outro, retirando-lhe o
direito de criticar, reclamar e exigir transformações através de sua pintura.
Entendendo sobre tudo Banksy, em seu aspecto artístico e sociológico, como
aquele que age em seu anonimato, transformando a paisagem urbanística
1. Graduado em Pedagogia. Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Belo Horizonte
[email protected]
2. Licenciado em Educação Artística com Habilitação em Artes Plásticas. Universidade do
Estado de Minas Gerais – Escola Guignard. [email protected]
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Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
e a mente de quem lhe observa. Para isso será executada uma análise com
total cuidado em materiais acadêmicos, jornais, revistas e também na internet
(empregando formas alternativas de coleta e observação, usando as redes
sociais, blogs e sites especializados, e de busca, como fonte de informação e
identificação tanto do autor, mesmo que anônimo, quanto de sua modificações
urbanas), buscando a partir da pesquisa bibliográfica conhecer e compreender
melhor o artista e suas obras, entendendo quando e onde acontecem suas
transformações urbanas, traçar o perfil do autor, suas motivações políticas e
perceber a ligação existente, no principio de transformação do espaço urbano
pensado pelo mesmo; e por fim, a partir da análise de fotografias e imagens
provenientes dos veículos de informação e sites de busca, entender a força
e impacto de suas produções para a sociedade contemporânea, percebendo
o legado construído por Banksy. Uma vez empregado essa metodologia de
pesquisa foi possível notar até o presente momento que mesmo com a crítica
aflorada de Banksy e com suas modificações paisagísticas, que acontecem com
mesmo teor tanto no espaço público, quanto no privado, suas representações
são bem recebidas pela sociedade, percebendo suas pinturas em estêncil como
arte, mais precisamente como arte underground, onde há a representação
conforme a concepção do artista envolta de discursos políticos e ideológicos.
Assim sendo, o trabalho de Banksy é percebido e diferenciado da pichação
pela forma como aqueles que os observam compreendem cada uma das
duas representações underground, entendem as pinturas de Banksy como
arte e as pertencentes a qualquer grupo de pichadores como vandalismo,
infelizmente estereótipos moldados e engranzados em cada indivíduo ao
passar de cada geração. Como o trabalho se encontra em fase de construção,
os dados coletados podem sofrer interferência de outras informações ao longo
do desenvolvimento da pesquisa, conforme novas aparições e/ou produções
urbanísticas dos estrategistas, noticiadas nos veículos de informação ou novas
publicações acadêmicas.
PALAVRAS-CHAVE: Banksy; Pichadores; Política; Democracia; Movimento
Underground.
ABSTRACT: The present study aims to contribute to the theoretical aspect
to the discussion on the landscape and ideological manifestations present in
the paint under the stencil Banksy. Understanding their productions and the
political, artistic and urban manifestations, contained in each production.
The main object of study of this work will be the representations of Banksy,
performed mainly in the cities of Bristol and London (England), understanding
their works and their ideology behind what is proposed in each painting,
seeking the barrier between art and pollution visual, in the search for
understanding how political criticism in every picture painted by the author;
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and rethink the concept of art, considering the representations of Banksy and
graffiti, realize the acceptance of the beholder, discussing what is beautiful,
what is art and what acceptable standards as criticized in the productions of
the author quoted above since both exerting the same democracy can paint
their ideas on walls - but at the same step for (also) that democracy does
not have the exclusive right to modify what belongs to another, such as the
transformation of private space - or what belongs to everyone and not solely
the individual who causes this urban transformation through the paint and
stencil - as is the case when “mark” a public space - both Banksy, as one tagger.
Taking this discussion beyond urban and comprising the prior judgment
often committed against the freedom of the other, removing him the right to
criticize, complain and demand changes through her ​​painting transformations.
Understanding all about Banksy, in his artistic and sociological aspect, as one
who acts on his anonymity, transforming the urban landscape and the minds
of those who observe it. For this analysis will be performed with total care
in academic materials, newspapers, magazines and also the internet (using
alternative forms of collection and observation, using social networks, blogs
and specialized sites and search as a source of information and identification
of both the author, even if anonymous, as their urban modifications), looking
from the literature search to know and better understand the artist and his
works, understanding when and where to place their urban transformations,
profiling the author, his political motivations and realize the link at the
beginning of the transformation of urban space designed for it; and finally, from
the analysis of photographs and images from vehicles of information and search
sites, understand the power and impact of their productions to contemporary
society, realizing the legacy built by Banksy. Once employed this research
methodology was noticeable so far that even touched on with the criticism of
Banksy and its landscape changes that happen with the same content in both
the public space and the private, their representations are well received by
society, realizing their paintings as stencil art, more precisely as underground
art, where there is a conformal representation artist’s conception of shrouded
political and ideological discourses. Thus, the work of Banksy is perceived
and distinguished from graffiti by how those who observe comprise each of
the two underground representations, understand the paintings of Banksy art
and as belonging to any group of taggers as vandalism, unfortunately molded
stereotypes and engranzados in each individual passing of each generation. As
the work is in the construction phase, the data collected can suffer interference
from other information throughout the development of the research, as new
appearances and / or productions of urban strategists, information reported in
vehicles or new academic publications.
KEYWORDS: Banksy; taggers; policy; democracy; Underground Movement.
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INTRODUÇÃO
Tornou-se rotina deparar com graffitis3 ou pichações pelos muros das
cidades. A cada madrugada dezenas destas produções transformam o espaço
urbano, algumas carregadas de amor, de ódio, de beleza, de crítica, de reivindicações e assim desenrola-se uma série de pinturas pelas paredes.
Cada pintura traz consigo um sentimento, uma ideia por trás daquilo que
pode ser visto a olhos nus pelo observador, desde a tristeza ou alegria de quem
pinta, até a mais sutil crítica pensada pelo autor.
Na arte underground4 não existe o rabisco sem intenção. Seja para afirmar
sua existência, para demarcar seu lugar ou para provocar reflexões aos observadores, existe uma finalidade tanto para a palavra pichada na parede quanto para
o desenho representado no grafitte.
Neste trabalho será abordado quem é o artista Banksy, bem como suas
representações, realizadas principalmente nas cidades de Bristol e Londres (Inglaterra), entendendo as características de suas obras e sua ideologia por trás do
que é proposto em suas pinturas.
Discutindo a barreira entre a arte e a poluição visual, na busca de entender como se dá a critica política em cada imagem pintada pelo autor; bem
como repensar o conceito de arte, considerando as representações de Banksy e
a pichação (que traz consigo escritos de ordem), perceber a aceitação por parte
de quem observa, discutindo o que é belo, o que é arte e o que aceitável conforme os padrões criticados nas produções do autor anteriormente citado, uma
vez que exercendo a mesma democracia ambos podem pintar suas ideias em
paredes - porém, ao mesmo passo que por (também) essa (mesma) democracia
não possuem o direito exclusivo de modificar o que pertence ao outro, como é o
caso das transformações do espaço privado - ou o que pertence a todos e não tão
somente ao indivíduo que provoca essa transformação urbana por intermédio da
tinta e estêncil5 - como é o caso de quando “marcam” um espaço público - tanto
Banksy, quanto um pichador.
Levando essa discussão para além das transformações urbanas e compreendendo o julgamento prévio muitas vezes praticados contra a liberdade do
3. Optou-se pela grafia em inglês devido a sua origem e por assim ser conhecido em grande
parte do mundo.
4. Normalmente atribuída à cultura que foge do modismo e não apresenta caráter midiático, não
seguindo assim padrões comerciais.
5. Na Stencil art o artista utiliza um cartão com formas recortadas que ao receber o jato spray, só
deixa vazar a tinta pelos orifícios determinados. Valorizando a cor, em detrimento da spray art,
que valoriza o desenho (GITAHY, 1999, p.39)
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outro, retirando-lhe o direito de criticar, reclamar, reinvindicar e exigir transformações através de sua pintura. Entendendo sobre tudo Banksy, em seu aspecto
artístico e sociológico, como aquele que age em seu anonimato, transformando a
paisagem urbanística e a mente de quem lhe observa.
Para isso é necessário conhecer melhor a grafitagem e a pichação sob a
ótica da democracia, antes de dar continuidade.
A Pichação e o Graffiti, a democracia no spray.
De acordo com Lopes (2011, p. 4) “[...] na década de 60, surgem também às
pichações– que vão desde a manifestação política, passando pela competição entre
aqueles que conseguem atingir os locais de acesso mais difícil (como o alto de edifícios) – até o simples ato de vandalismo [...] (LAZZARIN, 2007)6” (LOPES, 2011).
As grafias em muros tem uma história, “[...] o termo pichação remete às inscrições realizadas com piche em muros na antiga Roma. Adquiriu arbitrariamente
uma conotação pejorativa, quando se tornou uma prática de protesto social nos
bairros periféricos de Nova Iorque, na década de 1960 [...]” (Schultz, 2010).
Já o “grafite tem origem no termo italiano graffito, que deriva do latim
graphium. Inicialmente, designou um estilete utilizado para escrever sobre placas
de cera. Posteriormente, a forma plural, graffiti, nomeou as inscrições gravadas
na pré-história e na antiga Roma” (Schultz, 2010).
Assim “em 1965, a palavra graffiti foi utilizada para definir as pichações
com spray e, nos anos 70, para indicar as modernas pinturas feitas com a mesma tinta” (Schultz, 2010). Sendo que existem aqueles que afirmam que o graffiti
surge apenas na década de 70 (JARDIM, 2011) e outros que garantem que surge
na década de 60 (COSTA, 2007a e 2007b), (OLIVEIRA e TARTAGLIA, 2009).
Segundo Jardim (2011, p. 10) “o movimento do graffiti começou na década de 1970 nos Estados Unidos e teve como palco principal os muros e metrôs de
Nova Iorque”.E não demorou muito para ser percebido pela população local, “a
primeira grande exposição do gênero foi realizada em 1975, no Artist’Space, em
Nova Iorque”. (JARDIM, 2011, p. 10).
Porém “a consagração do graffiti como arte veio com a mostra New York/
New Wave, em 1981, no PS1, um dos principais espaços de vanguarda da mesma
cidade norte americana (GITAHY, 1999)7” (JARDIM, 2011, p. 10).
6. LAZZARIN, L. F. “Grafite e o Ensino da Arte”. Revista Educação & Realidade. 32(1): 59-74,
jan/jun. 2007.
7. GITAHY, Celso. O que é Graffiti. São Paulo: Brasiliense, 1999.
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A partir de então, o estilo vem conquistando status de arte, diversos autores tem surgido e tornado-se artistas, saem do anonimato e consagram-se.
“Tanto furor deve-se a crescente atenção e importância que a arte de rua vem ganhando nos grandes e médios centros urbanos de todo mundo depois de saírem
da esfera da pichação” (JARDIM, 2011, p.10). Deste modo percebe-se a distinção
entre as duas “artes”. Pois “apesar de o grafite ser uma forma de pichação ela é
vista apenas como uma contravenção legal pela justiça, uma vez que ela possui
caráter artístico e expressivo, porém, a pichação é considerada crime ambiental
e vandalismo” (LOPES, 2011. p. 09).
D’ Urso (2011) aponta que “o país deu um importante passo no combate
à pichação, ao aprovar o Projeto de Lei 706/2007, sancionado pela Presidência
da República e transformado em Lei, proibindo a venda de tintas spray os menores de 18 anos.” E continua argumentando, pensa que “O texto tem relevante
aspecto educativo, determinando a inscrição das expressões “Pichação é crime” e “Proibida à venda para menores de 18 anos” em latas de tinta aerossol”
(D’URSO, 2011).
De acordo com D’ Urso (2011) “muitos não sabem, mas a Lei dos Crimes
Ambientais (9.605/98) prevê sanções à pichação e à grafitagem, com pena de detenção de três meses a um ano e multa”. A saber, a lei apresenta a seguinte redação:
Lei nº 9.605 de 12 de Fevereiro de 1998
Art. 65. Pichar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento
urbano: (Redação dada pela Lei nº 12.408, de 2011)
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. (Redação dada
pela Lei nº 12.408, de 2011)
§ 1o Se o ato for realizado em monumento ou coisa tombada em virtude
do seu valor artístico, arqueológico ou histórico, a pena é de 6 (seis) meses
a 1 (um) ano de detenção e multa. (Renumerado do parágrafo único pela
Lei nº 12.408, de 2011)
§ 2o Não constitui crime a prática de grafite realizada com o objetivo de
valorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestação artística, desde que consentida pelo proprietário e, quando couber, pelo locatário ou arrendatário do bem privado e, no caso de bem público, com a
autorização do órgão competente e a observância das posturas municipais
e das normas editadas pelos órgãos governamentais responsáveis pela
preservação e conservação do patrimônio histórico e artístico nacional.
(Incluído pela Lei nº 12.408, de 2011). (BRASIL, 2011)
Porém existe mais a se observar, uma vez que “a nova lei vai além, descriminaliza a grafitagem que tem objetivo de valorizar o local, com a devida autorização do proprietário ou do agente público, sendo classificada como ‘expressão
artística’” (D’URSO, 2011). Descriminaliza o graffiti, porém continua-se perseguindo os pichadores. No entanto, ambos são produções realizadas a base de
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tinta spray, em muros públicos e privados e podem trazer critica social, política
e reflexões ou não. Então como determinar o que é arte urbana?
No intuito de separar a pichação do graffiti o autor dispara: “Já a pichação
é criminalizada, pois mais se assemelhada ao vandalismo gratuito ao patrimônio
público e privado, pois se centra em frases e letras desconexas, sem qualquer
dimensão estética” (D’URSO, 2011). Porém é uma afirmação perigosa.
Será que toda pichação traz frases e letras desconexas? E as palavras de
ordem gravadas por tantos jovens, durante a ditadura, as diretas já, as manifestações que ocorreram no Brasil em 2013 e 2014, como afirma Lopes (2011, p.9) “A
pichação em si era amplamente utilizada na época das ditaduras e em confrontos
sociais, normalmente mostrando a insatisfação com a sociedade da época”. Será
que de fato as frases são sempre desconexas ou existem suas exceções? E por fim
a dimensão estética não percebida pelo autor baseia-se em que? Padrões definidos pela mídia e socialmente aceitos defendidos?
Pois para alguns pensadores existiria uma nova leitura sobre as relações
entre pichações e estética, já que “em vez de ver a beleza como uma propriedade
objetiva das coisas, apreensível intelectualmente, o filósofo de Königsberg falará
de um determinado jogo de nossas faculdades, de um modo sui generis como o
sujeito contempla o objeto” e continua com seu pensamento, “o brocardo que diz
que ‘a beleza está nos olhos de quem vê’ aplica-se perfeitamente [...]” (FREITAS,
2003, p. 253).
Quanto à estética da pichação, não é possível limitá-la absolutamente a
bela ou não, muito menos retirar da pichação as propriedades estéticas, pois “o
juízo de gosto, dirá Kant, é estético, pois não existe nenhum conceito que nos permita avaliar através dele se um objeto é belo ou não, apenas nosso sentimento
de prazer ou desprazer” (FREITAS, 2003, p. 254). O que torna a pichação tão
repulsiva possivelmente é o desprazer de quem a observa.
Freitas (2003, p. 254) ainda esclarece que “esse prazer não é devido às
sensações nem ao valor de uso que vemos no objeto”. E explica: “Kant distingue
as três espécies de prazer: o do agradável, que é o derivado do contato material
dos órgãos dos sentidos com o mundo exterior; o do bom, que pode ser o moral,
absoluto, incondicional, ou o relativo, que é um simples meio para outro fim”
(FREITAS, 2003, p. 254).
Mas a pichação continua a ser vista com desprezo e ainda a quem afirme
que “na maioria das vezes, nem o argumento da liberdade de expressão a justifica, pois ‘a mensagem’ não é sequer decifrada pela população” (D’URSO, 2011).
De modo a minimizar e torná-la inutilizável como forma de arte e reivindicações.
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Desde que parta do princípio de se buscar, contestar ou criticar a realidade pode ser considerada também arte, uma vez que “o pensador húngaro Lukács
afirmou que ‘toda grande arte é realista, desde Homero, porque ‘ela reflete a
realidade, critério irrecusável de todo grande período histórico ainda que variem
infinitamente seus meios de expressão’”. (PEREIRA, [s/d], p.10)
E por fim “assim como o grafite possui a identificação do grafiteiro ou do
grupo responsável, a pichação é em si, a identificação do grupo responsável pela
área em que se encontram” (LOPES, 2011, p. 10). Indo além do simples rabisco
ou da frase “desconexa”, mas atribuindo identidade a um grupo ou a apenas um
individuo.
Banksy, o anônimo mais conhecido no mundo.
Banksy, a princípio um sujeito crítico, um artista provocante, uma mente
brilhante, um mistério. Estas são algumas das possíveis qualidades que podem
ser atribuídas a ele.
Grande artista inglês da arte urbana contemporânea, nascido na década
de 1970, em Bristol, interior da Inglaterra, “onde é considerado um herói local.
Tamanha admiração fez com que os funcionários que trabalham limpando os
trens de metrô em Bristol receberam um guia para aprender a arte do grafite e
identificar seu ao invés excluí-lo” (BABÓN, 2014). Reside atualmente em Londres, capital britânica, e mantém em segredo a sua identidade (JARDIM, 2011,
p. 25) – possivelmente para manter a cultura underground na qual está inserido,
já que a cultura tem por princípio a não midiatização da arte e nem do artista.
Jardim (2011, p.25) ressalta que o artista “não costuma dar entrevistas e faz
da contravenção uma constante em seu trabalho, sempre provocativo”. O que
reforça a hipótese de se manter afastado da mídia e ao mesmo passo permite
conhecer um pouco mais do autor, que opta sempre pela provocação ao público.
Um dos grandes questionamentos de Banksy é sobre a arte, “o mesmo
acredita que a arte é feita por poucos. Onde um pequeno grupo de pessoas com
voz ativa cria, adquire, exibe e ao mesmo tempo decide o futuro e sucesso do
trabalho” (JARDIM, 2011, p. 25). Não importa o talento que tenha o “artista”,
existem grupos de pessoas capazes de torná-lo ou não reconhecido e famoso em
seu meio.
Banksy critica também o papel do público e do atual cenário cultural,
afirmando que “quando você visita uma galeria de arte, você é apenas um
turista observando a vitrine de troféus de uns poucos milionários” (BANKSY,
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2005, p. 144). A pergunta a ser feita nesse caso é como solucionar essa falha?
Como trazer a galeria para o povo e como não fazê-los parecer turistas, mas
sim, parte do cenário?
Banksy (2005) tem uma resposta a essa pergunta, ele propõe que “imagine uma cidade onde o grafite não fosse ilegal, uma cidade onde todo mundo
pudesse desenhar onde quisesse. Onde cada rua fosse recoberta de milhões de
cores e pequenas frases”, e continua “Onde ficar parado no ponto de ônibus
nunca fosse chato. Uma cidade vivenciada como uma festa onde todos foram
convidados, não apenas os agentes estatais e barões dos grandes negócios” por
fim conclui “Imagine uma cidade como essa e pare de apoiar-se contra o muro –
tinta fresca” (BANKSY, 2005, p. 85)
Banksy traz o graffit como essa proposta, “suas obras são carregadas de
conteúdo social onde prevalece o uso do estêncil como técnica principal, expondo claramente uma total aversão aos conceitos de autoridade e poder” (JARDIM,
2011, p. 26) seu trabalho vai além de uma pintura sobre o estêncil, ele dispara reflexões e provoca críticas de quem as observa independentes de quantas vezes o
público cruzar com a sua arte, pois “ Banksy soube como impregnar um público
que discute com veemência sobre o papel do espaço público, permite que se façam contribuições sempre regulares e atribui ao individuo um lugar não formalizado dentro deste” (STAHL, 2009, p. 202). Uma pintura que mais do que cores
ou traços carrega críticas políticas e sociais, transformações urbanas e propostas.
Além da arte com as latas de spray, Banksy lançou em 2010 seu primeiro
filme, Exit through the Gift Shop, durante o festival de Sundace e concorreu ao Oscar
de melhor documentário no ano de 2011 em Los Angeles (JARDIM, 2011, p. 29).
Com todos estes acontecimentos na arte de rua, não demorou muito tempo para que Banksy, ser reconhecido como artista e receber proposta da grande
mídia, já que “a arte que não aparece nos meios de comunicação ‘não existe’”
(BARROSO, 2007). Foi convidado a criar o tema de “abertura do seriado de animação norte-americano ‘Os Simpsons’, veiculada no dia 10 de outubro de 2010
nos Estados Unidos onde em pouco menos de dois minutos as imagens mostraram a exploração da mão de obra barata na produção da própria série e de seus
produtos licenciados” (JARDIM, 2011, p. 29).
Banksy aceitou ao convite, porém sem perder a sua autenticidade crítica.
Já que “[...] embora sua visão [a do artista] particular seja afetada pelas ideias
dominantes, só o valor intrínseco da sua obra poderá ultrapassá-las [...]” (PEREIRA, [s/d], p. 7). E uma vez ultrapassada essas ideias dominantes revela a real
identidade do artista por trás da obra.
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A arte urbana e suas transformações
paisagísticas e intelectuais.
Inúmeros são os artistas espalhados mundo a fora, e em grande parte
deles se “[...] tornaram conhecidos graças à cidade. Até agora, o exemplo mais
notável do salto da obscuridade para a fama foi e é o grafiteiro britânico Banksy,
que tem várias obras em exposição nas ruas de Londres” (BABÓN, 2014). Porém
não é o único.
E a certeza que se tem ao falar da arte urbana é que ninguém consegue
ficar indiferente a ela. Seja um elogio, admiração, reflexão sobre a obra ou simplesmente desdenho, repulsa, raiva, ódio; bem como a curiosidade, despertada
pela imagem ou escrita exposta na parede.
Quando se trata do graffiti e de parcela das pichações, as percebe como
intervenções paisagísticas e urbanas, de modo que “[...] fazem parte da chamada
arte contemporânea pelo refinamento dos objetivos, referências das gravuras e
complexidade das mesmas” (JARDIM, 2011, p.10).
Difere e muito do padrão de arte que muitos estão habituados a reconhecer, foge de parâmetros impostos pela sociedade e promovem a reflexão critica
de seu publico. Normalmente “são instalações artísticas a céu aberto – nada de
tintas nobres, técnicas acadêmicas ou amenidades – que dialogam com as grandes galerias de arte” (JARDIM, 2011, p.10).
Tanto por Banksy, quanto por um pichador é possível compreender a necessidade de transformação do meio urbano, uma vez que “a paisagem não tem
um aspecto imutável – muito pelo contrário, ela está em contínua transformação,
sendo modificada nas suas formas, mas, principalmente, ressignificada em diferentes momentos” (OLIVEIRA e TARTAGLIA 2009, p. 79).
De tal modo que para Oliveira (2013) “é nessa perspectiva que o graffiti
pode ser entendido, enquanto uma “marca signica” na paisagem (NOGUEIRA,
2009)8 que a todo tempo esta se modificando” e justifica afirmando que “o graffiti
em alguns pontos tem uma duração muito rápida, que pode durar alguns dias,
devido há varias questões como a apropriação desenfreada do espaço dos muros
e out doors pela propaganda, pela pintura do muro grafitado pelo poder público
ou pelo dono do imóvel, [...]” (OLIVEIRA, 2013)
Pois percebem que como no caso de Londres “sua arte faz parte da paisagem urbana, proporcionando cores a uma cidade costumava ser descrita como
8. NOGUEIRA, C. A (im)permanência do traço: rasto, memória e contestação, PRACS: Revista
Eletrônica de Humanidades do Curso de Ciências Sociais da UNIFAP, Nº 2, dez. 2009.
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cinza e sombria.” (BABÓN, 2014). E mais do que colorir ou explicitar pensamentos no meio urbano, existe a necessidade de propor uma ruptura do conhecimento prévio, provocar a reflexão dos cidadãos. Levando a se deslocar por instantes
do local que está para a posição daquele que está pintado na parede. Resultando
na reflexão continuada sobre os temas espalhados pela cidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Faz-se de grande importância a análise do tema abordado pois foi possível perceber o preconceito existente quanto a arte. Restringindo-a apenas um
padrão e forma, justamente a imposta pela mídia e pela elite.
Foi possível identificar também que mesmo com a crítica aflorada de
Banksy e com suas modificações paisagísticas, que acontecem com mesmo teor
tanto no espaço público, quanto no privado, suas representações são bem recebidas pela sociedade, percebendo suas pinturas em estêncil como arte, mais precisamente como arte underground, onde há a representação conforme a concepção
do artista envolta de discursos políticos e ideológicos.
Assim sendo, o trabalho de Banksy é percebido e diferenciado da pichação pela forma como aqueles que os observam compreendem cada uma das duas
representações underground. Entendem as pinturas de Banksy como arte e as pertencentes a qualquer grupo de pichadores como vandalismo, infelizmente estereótipos moldados e engranzados em cada indivíduo ao passar de cada geração,
pela sociedade, pela mídia e pelo Estado, talvez um tanto quanto equivocados.
E por fim, tem-se como troféu para a arte underground “o surgimento
de programas que utilizam o grafite como meio de expressão, arte e forma de
capacitação reforça a idéia da mudança no conceito com relação ao grafite,
não mais visto como vandalismo” (LOPES, 2011, p. 21). Deixando de ser percebido como tal para ser reconhecido até mesmo no código brasileiro como
expressão de arte.
Vale ressaltar a importância e influência do alto escalão cultural, pois a
partir d’ “‘A participação dos intelectuais começou a legitimar o grafite como
arte’. (KNAUSS, 2001).9Exemplo disso foi o reconhecimento de importante corrente da comunidade artística brasileira, organizadora da Bienal de 1987, que
convida grafiteiros a expor em suas galerias” (LOPES, 2011, p. 21).
9. KNAUSS, P. Grafite Urbano Contemporâneo. In: TORRES, Sônia (org.). Raízes e rumos –
perspectivas interdisciplinares em estudos americanos. Ed.7 Letras, p. 334- 353. Rio de Janeiro,
RJ. 2001.
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Algumas perguntas que ainda ficam. Quem continua ditando a estética
da arte? O que é ou não arte nos dias de hoje? A pichação é uma modalidade de
arte underground? Quem são os artistas por trás das palavras d ordem escritas
pelas paredes? A arte é democrática? As transformações paisagísticas, são realmente aceitas? Incomodam a toda a sociedade?
REFERÊNCIAS
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Acesso em: 20 ago. 2014.
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obra de Banksy e Blek Le Rat para o período artístico-cultural contemporâneo. 2011. Capatado em: http://
www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/40153/000822757.pdf?sequence=1. Acesso em: 20 ago. 2014.
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de Nazaré, Belém-Pará: da paisagem cinza a cidade cromática. 2013. Captado em: http://www.simpurb2013.
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STAHL, Johannes. Street Art. São Paulo: H. F. Ullmann, 2009.
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Instituto de
Ciências Sociais
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A emigração dos haitianos para cidades
brasileiras: desafios para políticas
públicas de integração
Maria da Consolação Gomes de Castro1
Duval Fernandes2
RESUMO: Este artigo foi elaborado tendo como pano de fundo a parceria
entre o Programa de Pós-Graduação em Geografia e o Departamento de
Serviço Social da PUC Minas. As lições aprendidas na realização conjunta
de várias pesquisas tratando da temática da migração internacional tem
indicado a necessidade de reflexões e ações que possam contribuir para
reduzir a vulnerabilidade deste subgrupo populacional via a promoção dos
seus diretos como cidadão estrangeiro residente no Brasil, direitos estes
garantidos pela Constituição Brasileira. No caso deste artigo, abordaremos
a problemática vivenciada por imigrantes haitianos residentes nas cidades
de quatro estados brasileiros: Belo Horizonte/MG, Curitiba/SP, Porto
Velho/RO e São Paulo/SP. A pesquisa da qual participamos e que subsidia
este trabalho é fruto da parceria entre o CNIg (Conselho Nacional de
Migração) e a OIM (Organização Internacional para as Migrações) e teve
como título: “Migração dos haitianos ao Brasil e diálogo Bilateral”. A OIM
ao realizar a pesquisa apresentou como objetivo conhecer de forma ampla
o processo de migração dos haitianos em direção ao Brasil. Assim, foram
também realizados levantamentos no Haiti, na Bolívia, no Equador e
no Peru, visando contribuir nesse processo, indicando as condições dos
imigrantes no país de origem e naqueles por onde é feito o trajeto. Os
trabalhos realizados nesses países e no Brasil permitiram o intercambio de
experiências entre os pesquisadores envolvidos nas pesquisas, ampliando
o conhecimento do processo migratório em estudo. O processo de
construção da etapa brasileira da pesquisa contou com a participação
de vários parceiros, que se ocuparam dos levantamentos nas cidades
escolhidas, indicadas como as mais expressivas no processo migratório
dos haitianos para o Brasil, no momento do início do trabalho. A migração
1. Professora do Departamento de Serviço Social da PUC Minas e pesquisadora do GEDEP.
2. Professor do Programa de Pós-Graduação em Geografia da PUC Minas e Coordenador
do GEDEP.
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dos haitianos para o Brasil é um processo que teve início em 2010 e avançou
até formar um fluxo que vem se transformando em permanente. Apesar das
medidas tomadas pelo governo e do apoio da sociedade civil organizada, a
falta de instrumentos legais de uma política migratória adequada fez com que
a chegada desses imigrantes ao país se transformasse em uma situação única,
apresentando desafios para a sociedade brasileira como um todo. Os principais
resultados indicam que o grupo desses imigrantes é formado por pessoas
predominantemente jovens, com idades entre 20 e 39 anos, em sua maioria
com nível de instrução equivalente ao ensino fundamental incompleto. Para os
que não têm visto de entrada para o Brasil, o trajeto feito acontece via redes de
tráfico de imigrantes e em condições de extrema vulnerabilidade. Apesar de os
imigrantes reconhecerem que a situação que vivem no Brasil é melhor do que
a que vivenciavam no país de origem, as condições de trabalho e moradia não
permitem poupar o bastante para manter um fluxo regular de remessas para
as famílias no Haiti e indicam a necessidade do estabelecimento de um diálogo
bilateral entre o governo brasileiro e o do Haiti para combater as redes de
tráfico e fornecer informações aos candidatos à emigração sobre as condições
de vida e trabalho no Brasil.
Palavras-chave: Migração Haitiana. Cidade. Vulnerabilidade.
Introdução
Há séculos, na história do Haiti, as catástrofes naturais e os problemas políticos e sociais são vivenciados pela população. Em janeiro de 2010, o terremoto
que atingiu o Haiti não destruiu somente cidades, causando a morte de milhares de pessoas, mas também atingiu a infraestrutura econômica e habitacional.
Devido ao horário em que ocorreu e dos locais que sofreram o maior impacto, o
terremoto jogou por terra a esperança de dias melhores para o já sofrido país, ao
tirar a vida de milhares de jovens, funcionários públicos e profissionais qualificados que, de uma forma ou de outra buscavam contribuir na reconstrução do
país, que tentava sair de mais uma das inúmeras crises políticas que atingiram
aquela nação caribenha.
Um surto de cólera, no mesmo ano chegou ao país, matando mais de
8.000 pessoas. No ano de 2012, dois furacões (Issac e Sandy) atingiram o Haiti,
causando grande impacto sobre a produção agrícola do país, importante fonte de
recursos econômicos.
Diante de tantas situações adversas uma expressiva parcela da população
tem abandonado o país em busca de melhores condições de vida (CHAVES, 2008).
Dados do Banco Mundial (2011) apontam que, aproximadamente, 10% da popula-
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CASTRO, M. C. G. e FERNANDES. D.• A emigração dos haitianos para cidades brasileiras...
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ção do país tenham emigrado (1.009.400 pessoas), mas outras fontes indicam que
o deslocamento forçado de haitianos já teria ultrapassado a casa de três milhões
de pessoas (HATIAN DIÁSPORA, 2011). Os destinos escolhidos são vários, mas
o maior número de imigrantes haitianos está concentrado nos Estados Unidos,
seguido pela República Dominicana. Outros países da América e Caribe também
recebem um contingente significativo de haitianos, entre eles destacam-se o Canadá, Cuba e Venezuela. A França é o país de maior afluência na Europa.
As remessas enviadas por estes migrantes representam, aproximadamente, 25% do PIB do país e são estimadas em 1,5 bilhões de dólares (BANCO
MUNDIAL, 2011). Apesar dos recursos que aporta ao Haiti, a emigração tem
também seu lado nefasto. Em 2010, daqueles que receberam educação superior
no país, 85% encontrava-se no exterior. No caso dos médicos formados no país,
36,5% estariam, já em 2000, fora do Haiti (BANCO MUNDIAL, 2011).
A incorporação do Brasil no roteiro migratório, tendo em vista a história
migratória do Haiti, não é uma surpresa muito grande, mas chama a atenção por
se tratar de um novo destino que não era incluído nas escolhas anteriores dos
imigrantes. Segundo Jackson (2011) pode-se dizer que após o terremoto estavam
presentes no país com maior vigor os fatores de expulsão que contribuem a criação e ampliação de uma diáspora.
Para a escolha dos destinos havia de se considerar a legislação migratória
dos países desenvolvidos que, após setembro de 2001, impõem severas restrições
à imigração de uma maneira geral e, em especial, à migração irregular. As razões
para a incorporação do Brasil na rota do processo migratório dos haitianos, não
são muito claras. Fernandes (2010) e Silva (2013) indicam, em seus estudos, que
a presença das tropas brasileiras no Haiti poderia ter contribuído para disseminar a idéia do Brasil como país de oportunidades, principalmente, no momento
em que grandes obras estavam em execução e a taxa de desemprego em descenso. Estes autores citam, também, a realização do Jogo da Paz3 como fator que
contribuiu para disseminar a imagem do Brasil naquele país. Por outro lado,
dentre o leque de razões para a escolha do novo destino, há o entendimento de
que o governo brasileiro teria feito um convite explicito aos haitianos para que
emigrassem para o Brasil. Tal “convite” teria ocorrido durante a visita do Presidente Lula àquele país em fevereiro de 2010 (COSTA, 2012).
Cabe destacar que independente da razão inicial, após o terremoto iniciou-se o fluxo migratório de haitianos para o Brasil. Os fluxos são diversos
3. Partida de futebol realizada em Porto Príncipe, em agosto de 2004, entre as seleções do Haiti
e do Brasil.
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CASTRO, M. C. G. e FERNANDES. D.• A emigração dos haitianos para cidades brasileiras...
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(PATARRA, FERNANDES, 2011; SILVA, 2013) e vão se modificando no tempo
conforme as facilidades ou dificuldades decorrentes do trajeto. Importante notar
que dos países da América do Sul, somente quatro4, em 2010, não exigiam visto
para a entrada de haitianos no seu território, no caso de viagem de turismo. A
partir de 2012, sob forte pressão do governo brasileiro, o Peru passou a exigir
visto dos haitianos e no Equador houve, em 2013, uma tentativa de restringir a
entrada dos haitianos, mas a medida não foi implementada. Mesmo com estas
facilidades, nenhum destes países tornou-se o destino final da imigração haitiana, como foi o caso do Brasil. Tal fato pode indicar que esta migração não é
gestada unicamente pelas facilidades de entrada no país, como preconizam os
que criticam as medidas tomadas pelo governo brasileiro, mas é determinada
pela intenção de chegar e de se estabelecer na região de destino.
Pequenos grupos de haitianos, que não somavam duas centenas de imigrantes, durante o ano de 2010, chegaram à fronteira brasileira com o Peru. Ao
final de 2011 haviam indicativos da presença de mais de 4.000 haitianos no
Brasil (COSTA, 2012; SILVA, 2013), número este que não parou de crescer, pois
no final do ano de 2013 estimava-se que a soma ultrapassava a casa dos 20.000
imigrantes, com indicações de que o número total poderia chegar a 50.000 ao
final de 2014.
O crescimento do fluxo fez com que a percepção da presença dos haitianos fosse vista com desconfiança por uma parcela da sociedade, neste grupo
se inclui alguns órgãos da impressa nacional que comparam a chegada dos imigrantes a uma invasão5. No entanto, este movimento migratório teve também
efeito positivo, pois levou o governo e a sociedade civil a iniciar um processo
de discussão da legislação migratória, introduzindo nos debates a perspectiva
do respeito aos direitos humanos dos imigrantes. Ao mesmo tempo, foi possível
avançar no estabelecimento de laços de solidariedade entre diversos setores da
sociedade no acolhimento e atendimento aos haitianos.
Nas cidades mais afetadas pela chegada destes imigrantes, as respostas institucionais foram diversas na esfera dos governos federal, estadual e municipal. Enquanto o governo do estado do Acre se engajava em apoiar a instalação da estrutura
de atendimento aos haitianos que chegavam à cidade de Brasiléia, o governo do
estado do Amazonas, especificamente no caso das cidades de Tabatinga e Manaus,
a princípio ignorou o problema e, posteriormente, deu pequenas contribuições para
4. Argentina, Chile, Equador e Peru.
5. Jornal O Globo do dia 17/01/14 País “Tião Viana, do PT, critica governo federal após invasão de
haitianos”. Jornal O Globo 11/01/12 Capa “Brasil fecha fronteira para conter ‘invasão’ de haitianos”.
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manter as ações desenvolvidas pela sociedade civil (SILVA, 2013). As diferenças nas
respostas dos governos estaduais parecem refletir a percepção das autoridades sobre
o problema e seus compromissos com os direitos humanos dos imigrantes.
As repostas no plano federal, foram mais efetivas, ainda que pouco ordenadas, com medidas adotadas para solucionar situações pontuais extremas que
não contribuíam em um planejamento, mesmo de curto prazo, para atender às
demandas surgidas com o volume crescente de imigrantes haitianos.
Após o trajeto até a fronteira brasileira, os haitianos ainda têm de enfrentar um longo processo para a regularização da sua situação migratória. O ponto
de partida é a solicitação de refugio apresentada à autoridade migratória nas cidades fronteiriças. A abertura deste processo leva a emissão de um protocolo que
permite ao imigrante a obtenção de carteira de trabalho e de CPF6 provisórios,
enquanto a solicitação de refugio é analisada pelo CONARE7. Estes documentos
são essenciais para o ingresso do imigrante no mercado formal de trabalho e o
envio de remessas. Por tal solicitação de refúgio não se enquadrar nos requisitos
definidos em lei e convenções internacionais, ela é recusada.
Em janeiro de 2012, pela primeira vez em vários decênios, o Brasil viveu
uma situação de crise humanitária em sua fronteira Norte. Neste momento, após
meses de hesitação, o Governo, por meio do Conselho Nacional de Imigração CNIg, promulgou a Resolução Normativa nº 97/2012 que permitia aos haitianos, a
partir da data da publicação, obterem Visto Permanente, no Consulado brasileiro
em Porto Príncipe para migrar de forma regular ao Brasil. As razões desta medida
visavam evitar que os haitianos continuassem a chegar ao país sem visto, como já
vinha ocorrendo ao longo de 2010 e 2011, período pós-terremoto no Haiti.
Tímida segundo alguns, avançada de mais no pensamento de outros ou
justificada como a única solução possível naquele momento, o fato é que esta
Resolução permitiu avançar na discussão da governança migratória no país e
demonstrou a urgente necessidade de definição de uma política migratória para
Brasil, calcada no respeito aos direitos humanos dos imigrantes e respaldada em
legislação moderna e atual.
Se a aplicação de tal resolução visava contribuir para a redução das vulnerabilidades dos imigrantes haitianos que optaram por viver ao Brasil, também
colocou o tema no centro das discussões com ampla visibilidade na mídia e na
sociedade. Trouxe a discussão sobre a migração internacional para o primeiro
plano das preocupações governamentais e abriu caminho para o debate sobre o
6. CPF - Cadastro de Pessoa Física na Receita Federal.
7. CONARE – Comitê Nacional para os Refugiados.
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tema. Estas discussões aconteceram em momento impar e encontraram ressonância em vários seguimentos da sociedade, levando a um processo de debates
que, ainda em 2013, apesar da situação econômica pouco favorável no país, mobiliza interesses de setores econômicos e da sociedade civil.
A Chegada dos imigrantes haitianos
e as medidas adotadas pelo CNIg
Não se pode dizer com certeza qual teria sido o momento ou evento que
provocou o início da migração dos haitianos para o Brasil8. Os primeiros sinais
deste movimento foram detectados em 2010 e até o final daquele ano, estimava-se em algumas centenas o número de imigrantes vindos do Haiti que teriam
entrado no território nacional pela fronteira da Região Norte, utilizando como
porta de entrada em território nacional as cidades de Tabatinga, no estado do
Amazonas, Brasiléia e Epitaciolândia, no estado do Acre. Este movimento que
já dava sinais de não ser um caso episódico e sim um fluxo que pressionava os
equipamentos sociais em algumas cidades, levou o CNIg a criar, na sua reunião
de novembro de 2011, o grupo de trabalho – GT Haitianos no Brasil (CNIg,
2011). Este grupo de trabalho teria como tarefa acompanhar a evolução deste
processo migratório, analisando as demandas que chegariam ao Conselho e contribuindo para as decisões a serem tomadas pelo plenário do CNIg.
No inicio de 2011, a situação da migração haitiana tomava outro contorno
com a ampliação do número de pedidos de refugio apresentados ao Conare. Na
primeira reunião do CNIg, em março daquele ano, foi apresentado um relato no
GT Haitianos no Brasil indicando que o Conselho havia recebido do Conare, 199
processos de solicitação de refugio apresentados por haitianos, processos estes
que haviam sido suspensos por aquele Comitê e encaminhados ao CNIg, com
base na Resolução Recomendada (RR) nº 08/2006 9. Considerando que havia indicações que este fluxo tenderia a ser ampliado, o Presidente do CNIg propôs ao
plenário do Conselho analisar a possibilidade de criar um procedimento interno
único que facilitaria a análise destes processos.
8. Os censos demográficos do Brasil de 1970 em diante, identificaram a presença de estrangeiros
nascidos no Haiti residindo no Brasil. O volume é bem reduzido frente a centenas de milhares
de estrangeiros levantados nos censos (Em 1970 - 90 casos; em 1980 -127 casos; em 1991 -141
casos; 2000 – 15 casos; e em 2010 – 36 casos; Fonte IBGE censos demográficos).
9. RR nº 08/2006 refere-se aos pedidos de refúgio feitos ao CONARE, que não sejam passíveis de
concessão, mas que, a critério daquele Comitê, os estrangeiros em questão possam permanecer
no Brasil por razões humanitárias.
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Na exposição de motivos para justificar a adoção da medida, o Conselho
faz notar que tal procedimento trata de uma situação excepcional a ser analisada
caso a caso, identificando a pertinência da solicitação de refúgio com as condições de vida do solicitante e os problemas causados pelo terremoto. O mesmo
documento argui que o solicitante, implicitamente, reconhecia que o seu pleito
não poderia ser tratado como uma solicitação de refugio, pois não havia no caso
elementos que o justificassem. Foi também indicado que tal procedimento tinha
caráter humanitário e esperava-se que a chegada destes imigrantes fosse uma
situação passageira que, em não muito longo prazo, o processo tenderia a se
reduzir. O texto indicava também que o visto seria concedido com base na RN
27/199810 (CNIg, 2011). Em 2011, segundo registros do CNIg, foram concedida,
por esta modalidade, a residência permanente a 709 haitianos que haviam entrado no País pelas fronteiras terrestre e apresentado solicitação de refúgio.
Assim, o processo de concessão de visto tomava um caminho, descrito a
seguir por Milesi (2012):
“[...] Os haitianos, ao entrarem no Brasil, normalmente apresentam pedido de refúgio e, ao formularem tal pedido na Polícia Federal, recebem um protocolo que lhes dá direito de residência legal até a decisão
de seu processo, seja pelo CONARE, seja pelo Conselho Nacional de
Imigração (CNIg). Este protocolo lhes dá direito também a se deslocarem pelo Brasil, passando a residir e trabalhar em qualquer lugar
que desejarem; não há restrições de movimento no território nacional.
Mas, sublinhamos que eles devem comunicar seu local de residência à
Polícia Federal, como estabelece a lei brasileira para todos os estrangeiros que vivem no Brasil.
Os pedidos de refúgio (esclarecendo que os haitianos não se enquadram
nesta classificação da Convenção de Genebra nem na Lei brasileira n.
9474/97) são encaminhados pelo CONARE ao CNIg que, após análise do
processo, tem decidido pela concessão de Residência Permanente por razões humanitárias (com base na RN n. 27/98).
Os processos deferidos pelo CNIg são publicados no Diário Oficial da
União e, após esta publicação, remetidos ao Ministério da Justiça que publica a concessão da residência permanente. Os haitianos assim beneficiados devem fazer seu registro na Polícia Federal, passando a ter, então,
residência permanente, com direito igualmente a deslocar-se pelo país e a
residir onde desejarem”11.
10. Resolução Normativa nº 27, de 25 de novembro de 1998, que disciplina a avaliação de
situações especiais e casos omissos pelo Conselho Nacional de Imigração. Essa Resolução
considera como “situações especiais” aquelas que, embora não estejam expressamente definidas
nas Resoluções do Conselho Nacional de Imigração, possuam elementos que permitam considerálas satisfatórias para a obtenção do visto ou permanência; e como “casos omissos” as hipóteses
não previstas em Resoluções do Conselho Nacional de Imigração.
11. http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/entrevista especialcom-rosita-milesi-/505828-entrevistaespecial-com-rosita-milesi-18/02/2012 Instituto Humanitas Unisinos.
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A Resolução Normativa nº 97/2012:
alternativa do governo frente à chegada
de imigrantes às cidades brasileiras
Se a proposição aprovada no início de 2011 buscava dar solução a uma
situação que naquele momento ainda era razoável, com o passar do tempo o problema tomou dimensões incontornáveis, a ponto de se instalar na fronteira norte
do país uma situação de quase calamidade humanitária.
A pressão da sociedade civil, das autoridades locais e de governos estaduais junto a órgãos do Governo Federal fez com que houvesse a busca por
uma solução mais ampla e permanente para os problemas referentes à expressiva
chegada de imigrantes na região. Assim, após diversas denúncias sobre a precariedade das condições de atendimento aos haitianos nas cidades de Brasiléia e
Tabatinga, onde aguardavam a expedição do protocolo da solicitação de refúgio
pela Polícia Federal, e de casos veiculados pela impressa indicando a existência
de redes montadas para facilitar a chegada dos haitianos ao Brasil, o Governo,
por decisão da Presidência da República, demanda ao CNIg, no mês de janeiro
de 2012, a busca de uma solução que permitisse o mínimo de governança deste
processo por parte das autoridades. A forma encontrada foi a edição da Resolução Normativa nº 97/2012.
Em reunião extraordinária do CNIg, convocada para apreciar a matéria, o
Secretário Executivo do Ministério da Justiça apresentou as medidas discutidas
no âmbito do Governo Federal, que atuavam sobre quatro linhas.
“[...] O controle da atuação dos coiotes na fronteira norte brasileira; a abertura de um canal para a concessão de vistos de forma mais simples; a regularização da situação migratória dos cerca de quatro mil haitianos que
já se encontram em território brasileiro; e o envio de auxílio material para
alojamento, alimentação e cuidados de saúde para esses imigrantes nos
estados do Acre e do Amazonas” (CNIg, 2012).
As opções avaliadas incluíam a concessão de visto de trabalho, solução
que não seria viável uma vez que haveria necessidade da vinculação do visto a
contrato de trabalho, o que não era o caso naquele momento, nem era a necessidade de mão de obra no Brasil que motivava a vinda dos haitianos. A opção
colocada foi a concessão de um visto, com duração de cinco anos, por razões
humanitárias definidas nesta resolução como “aquelas resultantes do agravamento
das condições de vida da população haitiana em decorrência do terremoto ocorrido
naquele país em 12 de janeiro de 2010” (CNIg, 2012).
Estabeleceu-se, no entanto, um limite ao número de vistos a serem concedidos pelas autoridades diplomáticas no Haiti. Com base na Resolução era fixado
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em 1.200 por ano. As razões para este teto foram justificadas com os argumentos
a seguir referidos pelo Secretário Executivo do Ministério da Justiça e pelo Ministro Interino do Trabalho.
Para o Secretário Executivo do Ministério da Justiça,
“[...] Outro ponto é a preocupação em se limitar o número de vistos, de
modo a evitar que a concessão dos mesmos venha a fomentar uma diáspora haitiana. A própria precariedade econômica foi pesada como fator de
inibição da migração, tendo em vista que não são muitos os haitianos que
atualmente possuem condições econômicas para arcar com as próprias
despesas da viagem. Esses fatores conduziram a uma estimativa média de
cem vistos mensais, ou seja, a um limite de 1.200 vistos por ano concedidos nessas bases” (CNIg, 2012).
O Ministro Interino do Trabalho, também explicitou a sua visão sobre a
indicação da cota de 1.200 vistos.
“[...] o número de vistos estabelecido como limite foi firmado tendo por
base diversos aspectos, dentre os quais a capacidade operacional da Embaixada do Brasil no Haiti e a capacidade do mercado de trabalho brasileiro de absorver essa mão de obra sem prejuízo das vagas para trabalhadores
nacionais e o fato de que a publicação da resolução não impede que trabalhadores haitianos ingressem no Brasil por meio dos outros canais formais já estabelecidos, os quais se encontram disponíveis equanimemente
a todos os estrangeiros. Lembrou que a tendência é de que os haitianos
que aqui já se tenham estabelecidos formem comunidades e terminem por
facilitar o ingresso de seus pares através dos demais mecanismos migratórios já consagrados”. (CNIg, 2012).
Tais visões não foram unanimes no Conselho e alguns observadores presentes à reunião indicaram que tal limite de vistos, em lugar de contribuir para
a solução do problema poderia ampliá-lo, pois não havia garantias sobre o fim
da migração pela fronteira norte, uma vez aberta a possibilidade da obtenção de
visto no Consulado Brasileiro em Porto Príncipe. A Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência da República manifestou sua posição:
“Declarou-se preocupado com a possível repercussão negativa que a fixação de um número específico de vistos concedíveis venha a gerar. Declarou não vislumbrar a necessidade de que se estabeleça tal número. Propôs
que, caso se faça necessário o estabelecimento de um número restritivo,
que tal número seja calculado com base no volume de fluxo migratório até
aqui verificado. Chamou a atenção para o fato de que a abertura de um
canal migratório formal não implica necessariamente a extinção das rotas
migratórias irregulares” (SDH, CNIG, 2012).
Além da questão do limite anual de vistos, dois outros pontos merecem
destaque ao analisarmos a RN 97/2012. O primeiro diz respeito ao local para a
concessão do visto que fica restrito à cidade de Porto Príncipe, o que impedia
aqueles que já teriam iniciado a jornada migratória de conseguir obtê-lo no meio
do percurso. Tal situação obrigaria a manutenção do esquema montado para a
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recepção dos haitianos nas cidades de fronteira. O segundo ponto é a indicação
de um prazo de validade para a Resolução fixada em dois anos, ou seja, ficando
extinta em janeiro de 2014.
O que mais chama a atenção no episódio da edição desta Resolução é
que, aparentemente, os órgãos envolvidos na sua preparação acreditavam que
com a abertura deste canal legal haveria uma substancial redução do fluxo de
imigrantes haitianos pela fronteira norte. De início houve uma razoável redução,
mas logo retomou seu ritmo. A realidade se mostrou bem diversa do que fora
imaginado quando da adoção da RN 97.
As solicitações de visto no Consulado do Brasil em Porto Príncipe começaram de forma tímida e nos primeiros meses a cota de 100 vistos mensais não
foi atingida. Um fator que contribuiu para isso foi a documentação exigida pelas
autoridades brasileiras que, apesar de ser a mesma solicitada para a concessão de
outros vistos, na situação da falta de infraestrutura do país se tornava um empecilho para alguns, senão para muitos haitianos. Frente a tal situação e com a possibilidade de ainda poder chegar ao Brasil pela fronteira norte, não havia muito
interesse na busca do visto. No entanto, com o tempo o número de solicitações
de visto foi se avolumando e antes mesmo do término do ano de 2012, a lista de
agendamento do Consulado brasileiro em Porto Príncipe estava completa até o
final de 2013 e abriu-se uma lista de espera para a inclusão de novos solicitantes
em caso de desistências dos já agendados.
Uma vez bloqueada a possibilidade da obtenção do visto no Consulado,
face ao limite previsto na RN nº 97 já ter sido atingido, o percurso via os países
da América do Sul transformava-se na única forma de se chegar ao Brasil. O fluxo de imigrantes pela fronteira norte que por algum momento havia se reduzido,
voltou a crescer com a chegada de dezenas de haitianos por dia nas cidades de
Brasiléia e Epitaciolândia, no Acre. Nos primeiros meses de 2013, mais de mil
haitianos aguardavam, em Brasiléia, o atendimento pela Polícia Federal. Assim
a cidade, mais uma vez, se viu frente a uma situação de calamidade pública, o
que levou o Governo do Estado a decretar, no mês de abril de 2013, o “estado
de emergência social” na região. Frente a esta situação, o Governo Federal montou uma força tarefa, composta por representantes de diversos ministérios12 para
agilizar os procedimentos visando a regularização da situação migratória dos
haitianos naquela cidade.
12. Ministério da Justiça, Ministério do Trabalho, Ministério de Relações Exteriores e Ministério
do Desenvolvimento Social, Ministério da Saúde, Secretaria de Direitos Humanos e Defensoria
Pública da União.
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As pressões da sociedade civil, já manifestadas em outros momentos de
crise na região e agora reiteradas, fizeram-se sentir e ficou claro que não haveria
como se manter a sistemática de um limite de vistos a serem concedidos anualmente. Assim o CNIg, reconhecendo a gravidade da situação, e considerando os
argumentos por várias vezes levantados de que o limite da 1.200 vistos ao ano
era uma trava inútil e ineficaz frente à realidade e o clamor humanitário ainda
vigente no Haiti, edita a Resolução Normativa nº 102/2013, que altera a RN nº
97/2012, eliminando o limite do número de vistos que podem ser concedidos
pelo Consulado brasileiro no Haiti, em como elimina a restrição de que o só
pode ser concedido pela referida autoridade consular em Porto Príncipe. Abre,
assim, a possibilidade da obtenção do visto pelos haitianos em outros consulados brasileiros, inclusive em outros países que não somente no Haiti.
Ao final do ano 2013 é editada nova resolução normativa que altera a
vigência da RN nº 97, que passa a valer até janeiro de 2015.
O balanço dessas ações do Governo brasileiro indica que as medidas tomadas não surtiram os efeitos desejados de garantir aos imigrantes uma via regular para o deslocamento ao Brasil.
Em termos numéricos, até o final de 1º semestre de 2014, sob o amparo
da RN nº 97, haviam sido expedidos 11.666 vistos pelos consulados brasileiros
em Porto Príncipe, Quito, Lima e São Domingo. Entretanto o fluxo na fronteira
continuava intenso, estimando-se em 40 o número de imigrantes que chagavam
diariamente à fronteira do Brasil.
O CNIg, até março de 2014, havia concedido 8.539 autorizações de trabalho para os haitianos, sob o amparo legal da RN nº 27. Nesse total não estão
computados os pedidos de refúgio encaminhados ao Conare que ainda não foram enviados ao CNIg para deliberação. Estima-se que mais de 20.000 haitianos
já teriam entrado no Brasil pela fronteira norte, o que indica um contingente de
mais de 31.000 imigrantes do Haiti vivendo atualmente no país.
As razões da continuidade do fluxo pela fronteira podem ser explicadas
de várias formas. Em primeiro lugar, a impossibilidade dos consulados brasileiros em Porto Príncipe e outras cidades de aumentar o volume de vistos concedidos. Ao final de 2014 espera-se chegar a marca de 1.000 vistos por mês. Mesmo
assim, este volume se mostra insuficiente para atender a demanda. Apesar do
sistema de agendamento telefônico implantado pelos consulados, ainda formamse filas nas portas das representações brasileiras, onde, com certa frequência, se
ouvem denuncias, não comprovadas, de favorecimento no agendamento para a
solicitação do visto. Outro fator, ainda no Haiti, que concorre para a manutenção
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CASTRO, M. C. G. e FERNANDES. D.• A emigração dos haitianos para cidades brasileiras...
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deste fluxo pela fronteira é a ação de “coiotes”, que agem a margem da lei e oferecem facilidades para aqueles que buscam sair do país.
Outro fator que vem contribuindo para a manutenção deste fluxo na fronteira, são as dificuldades encontradas por aqueles que chegam ao Brasil com os
vistos concedidos pelos consulados. Nas cidades que recebem estes imigrantes,
normalmente aquelas servidas por voos que tem origem no Panamá, não há uma
estrutura bem preparada para a concessão da documentação, principalmente o
CPF e Carteira de Trabalho13, que pode tardar meses e assim impedir ao imigrante de buscar um trabalho. Por outro lado, aqueles que entram pela Região
Norte tem a sua disposição nas cidades de fronteira uma estrutura montada para
atende-los, em alguns casos precária, mas que fornecem, em poucos dias, a documentação necessária para iniciar a busca por um posto de trabalho.
Porém, o período de chuvas na Região Norte transformou a questão da
imigração em uma nova situação de calamidade pública. Mais de 2.000 haitianos e imigrantes de outras nacionalidades, principalmente senegaleses, ao final
do mês de março, se encontravam no abrigo em Brasiléia e não tinham como
chegar a outras cidades.
As autoridades governamentais, frente a uma situação que ameaçava fugir
ao controle, optaram por fazer a remoção dos imigrantes para a cidade de Rio
Branco e, dela, utilizando aviões da Força Aérea Brasileira, levaram os imigrantes
para várias cidades do Brasil, inclusive para Belo Horizonte.
Além desta medida emergencial, vários ministérios com atuação em áreas
afeitas à migração internacional, coordenados pela Casa Civil da Presidência da
República, buscaram elaborar uma matriz de responsabilidades que envolve não
só o governo federal, mas também instâncias estaduais e municipais. Dentre as
resoluções acordadas vale destacar a descentralização do acolhimento aos imigrantes, via a construção de abrigos, que passaria a ser feito não só na fronteira
Norte, mas também nas cidades de Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre, Rio
de Janeiro e São Paulo. Ao mesmo tempo, o Ministério da Justiça e o Ministério
do Desenvolvimento Social, estão desenvolvendo um protocolo de atendimento
aos imigrantes internacionais para ser aplicado a todos os Centros de Referência
da Assistência Social (CRAS) das cidades brasileiras.
A escolha de Belo Horizonte como uma das cidades para o acolhimento
dos imigrantes, levou em conta a existência de um volume de, aproximadamen13. CPF Cadastro de pessoa física. Documento necessário para qualquer transação financeira
como envio de remessas. Carteira de Trabalho documento necessário para ser contratado por
uma empresa.
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te, 3.000 haitianos na cidade e em municípios vizinhos, que chegaram às mesmas de diferentes formas.
Os primeiros, logo no início de 2011, vieram por meio de contratação
direta de empresa industrial na área de alimentação (OIM, 2014) que os buscou
na cidade de Manaus. A estes se juntaram outros, que também chegaram ao país
pela fronteira Norte e alguns que, aproveitando a ligação direta da cidade com
o Panamá e de posse de um visto emitido pelo Consulado Brasileiro de Porto
Príncipe, fizeram a opção por Belo Horizonte.
As facilidades para encontrar emprego na região e o apoio conseguido
junto a comunidade, principalmente, organizações da cidade civil ligada à igrejas, fez a cidade de Belo Horizonte se transformar em um dos pontos de destino.
A abertura do abrigo na cidade e a montagem de uma infraestrutura de acolhimento, colocam desafios para as autoridades municipais que estarão frente a
um estrangeiro, com idioma e cultura diversa da brasileira e que precisarão se
integrar na sociedade local.
Considerações finais
Ao se observar a migração dos haitianos em direção ao Brasil, pode-se
perceber que este processo está em seu estágio inicial. Os fatores de atração e
expulsão que deram início ao processo ainda estão presentes e as diferenças nas
condições de vida entre os dois países ainda tornam atrativa a migração. Além
deste aspecto, há de se considerar o quase fechamento de fronteiras, para os
haitianos, imposto por outros países. Destinos habituais como Estados Unidos,
Canadá e França a cada dia ficam mais difíceis devido aos novos empecilhos
criados para a entrada de imigrantes, principalmente de países subdesenvolvidos. Outro destino habitual para os haitianos, a República Dominicana, tem
sistematicamente tolhido os direitos dos imigrantes haitianos naquele país e o
Governo local promove clara política de desencorajamento à migração e de rechaço aos imigrantes, buscando impedir a chegada e permanência de haitianos
em seu território, chegando mesmo a suspender a nacionalidade dominicana
de imigrantes e seus descendentes, nascidos na República Dominicana, que entraram de forma irregular no país, medida esta retroativa à 1929. Estes fatores,
entre outros, transformam a opção de migrar para o Brasil como a mais lógica
e podemos dizer até a mais viável, na ótica dos migrantes, pois eles veem nosso
País como um espaço de acolhida e de oportunidades, além de expressarem sistematicamente sua simpatia pelo Brasil.
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CASTRO, M. C. G. e FERNANDES. D.• A emigração dos haitianos para cidades brasileiras...
III Simpósio de Ciências Sociais: Cidade e Democracia
Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
As medidas adotadas pelo Governo brasileiro que visam regularizar este
fluxo migratório buscando desestimular a atuação dos “coiotes” tem se mostrado
ineficazes e, em alguns momentos, até contribuído para que a chegada pela fronteira norte seja mais atrativa e fácil do que a busca por um visto.
Nos outros países a solidariedade com os imigrantes haitianos tem como
“data de vigência” o momento do terremoto e as ações governamentais tem buscado a sintonia entre os governos da América do Sul, principalmente Brasil,
Equador e Peru, para encontrar soluções que venham a reduzir o trânsito dos
imigrantes para a fronteira norte do Brasil.
Nos contatos das autoridades brasileira com as autoridades haitianas há
indícios de pouca preocupação com a situação dos haitianos que buscam emigrar para o Brasil, o que é visto mais como um problema do Governo brasileiro.
Frente às propostas apresentadas pelo Brasil do estabelecimento de diálogo bilateral para tratar a questão, o Governo do Haiti indica que o tema é multilateral e
deverá incluir outros atores, como os países da América do Sul por onde passam
os haitianos. No entanto, o Governo haitiano reconhece que a falta de informação sobre as condições de vida e de trabalho no Brasil e sobre a documentação
necessária para a obtenção de um visto e de seu custo, transformam os candidatos à migração em presas fáceis de exploradores e traficantes.
Por fim fica clara a necessidade de se buscar soluções integradas, até mesmo regionais, que possam atuar tanto na origem, como nas áreas de transito
e destino, com políticas integradoras que tenham como ponto fundamental o
respeito aos diretos humanos dos imigrantes e a garantia de que ele possa fazer
o trajeto em segurança e liberdade.
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O AEROPORTO DA PAMPULHA COMO VETOR DE
ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA NA REGIÃO.
Nilma Barbosa da Conceição Dias1
RESUMO: O presente artigo tem como base alguns textos utilizados
na disciplina Questões Urbanas Contemporâneas do Curso de Ciências
sociais. Os textos tratam das mudanças rápidas que ocorrem ou ocorreram
nas cidades, no âmbito da infra-estrutura e suas implicações no tecido
urbano. Em específico nesse caso, busca-se fazer uma correlação da leitura
dos respectivos textos com o equipamento de uso coletivo denominado
Aeroporto da Pampulha e a abertura de novas vias, intervenções urbanas,
valorização imobiliária favorecendo a especulação das grandes construtoras
e assim urbanizando de maneira desordenada o entorno aeroportuário.
Palavras Chave: Aeroporto, especulação imobiliária, dinâmica espacial.
ABSTRACT: This article is based on some texts used in the course Urban
Contemporary Issues Course of Social Sciences. The texts deal with the
rapid changes that occur or have occurred in cities within the infrastructure
and its implications in the urban fabric. In this specific case, it seeks to
make a correlation of reading texts with collective use of equipment called
Pampulha Airport and the opening of new roads, urban interventions,
real estate valuation favoring speculation of major construction and so
urbanizing disorderly way the airport environment.
Key words: Airport, real estate speculation, spatial dynamics.
1. Graduada em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
em 2011.
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A dinâmica espacial que envolve
o Aeroporto da Pampulha
A abertura de novas vias ou a construção de metrôs, aeroportos( grifo
meu), por exemplo, são intervenções urbanas com grande poder de transformação, como a ocupação de novas áreas e /ou substituição de usos e de
moradores. (ANDRADE E MENDONÇA 2007)
O objetivo central desta pesquisa é analisar a dinâmica espacial e as estratégias políticas na consolidação do aeroporto na cidade de Belo Horizonte. Cabe
ressaltar que na visão geral da cidade, embora o aeroporto traga uma série de
benefícios para a população residente em sua área de influência, este equipamento também impõe uma serie de restrições ao aproveitamento das propriedades
localizadas no seu entorno.
Deste modo, ressalta-se a importância da atuação das prefeituras no controle da ocupação do solo na região próxima ao aeroporto. No que se refere ao
Aeroporto da Pampulha, o crescimento ultrapassou os limites permitidos para
o funcionamento total dos vôos, neste caso o controle já foi ultrapassado, tanto
assim que foi necessária a transferência de vôos do Aeroporto da Pampulha para
o Aeroporto Internacional Tancredo Neves na cidade de Confins.
Entendemos que neste aspecto a cidade é um produto social em constante
transformação, suas características e elementos por mudarem constantemente
são alvo de diversos estudos em varias áreas do conhecimento. Neste caso especifico o estudo se concentra com mais ênfase na geografia, mas pretendo nesse
estudo abordar de uma forma sociológica os fatores que proporcionaram a inoperância da maioria dos vôos no aeroporto da Pampulha.
O processo de construção do Aeroporto da
Pampulha, e os impactos gerados pelo mesmo
O Brasil por ser um país de grande dimensão territorial, o transporte aéreo desempenha um papel fundamental por representar o único meio de transporte capaz de interligar as cidades, estados e paises de ponta a ponta num
mesmo dia. Os aviões transportam passageiros, cargas, mala postal, órgãos para
transplante, vacinas, pacientes para tratamento em centro mais equipado e permite o desenvolvimento de inúmeras cadeias produtivas as que seriam inviabilizadas se não fossem a agilidade proporcionada pelo serviço.
Os aeroportos causam impactos diretos, como, renda, empregos, investimento de capital, receitas geradas pela significativa atividade econômica do
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mesmo. Causam também impactos indiretos sendo eles: o desenvolvimento do
turismo (lazer e negócios) o investimento em infra-estrutura (armazéns, filiais
de grandes empresas, melhoria na estética e estrutura urbana). Dois tipos de
impactos são gerados pelos aeroportos, em escala regional e nacional, considerando que o aeroporto pode interferir diretamente (pelos mesmos mecanismos
de receitas, impostos e geração de renda) e indiretamente (como facilitadores de
outras atividades econômicas) no desenvolvimento da região.
Guller e Guller (2002) elaboram um resumo do novo papel do aeroporto
na lógica socioeconômica das regiões:
“A situação do aeroporto dentro da área metropolitana torna indispensável o desenho de planos que compreendam tanto a ordenação territorial, como o planejamento de transportes. A criação de infra-estruturas
de transportes e o desenvolvimento imobiliário na área aeroportuária
já não podem ser considerados de forma separada” (GULLER e GULLER 2002)
Todo o perímetro aeroportuário é aproveitado não apenas para atividades específicas para o seu próprio fim, mas para a instalação de novos empreendimentos relacionados indiretamente com a aviação comercial. Sendo
eles, construção de hotéis, prédios para escritório, terminais de transbordo de
cargas e plantas industriais de médio transporte que necessitem de agilidade
de exportação de seus produtos. Esta ultima possibilidade, vem sendo explorada pela administradora estatal dos aeroportos a Empresa de Infra-estrutura
Aeroportuária INFRAERO.
Em 1933, inicia-se a construção do Aeroporto de Belo Horizonte, em
uma área de aproximadamente 200 mil metros quadrados, através de uma
desapropriação feita pelo governo de Estado, em um terreno, que embora
pantanoso, era plano, apresentando boa visibilidade. Este aeroporto, que
possuía dimensões de pista de grama de 720m por 20m, passou a servir
como ponto de escala de vôos entre Rio de Janeiro e Fortaleza, operados
pelo correio Aéreo Militar, constituindo-se meramente, num destacamento
de Aviação. Foi somente em 1936, que o aeroporto de Belo Horizonte foi autorizado pelo Governo Mineiro a receber uma linha comercial da companhia
aérea PANAIR do Brasil S/A.
Entre 1943 e 1953, o aeroporto de Belo Horizonte também conhecido
popularmente como aeroporto da Pampulha, sofreu uma série de intervenções.
Inicialmente o aeroporto teve sua pista ampliada e além de ter sido introduzido
sistema de balizamento noturno, permitindo assim, que maiores aeronaves pudessem pousar e decolar em Belo Horizonte.
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Mas foi no ano de 1961 que a pista do aeroporto de Belo Horizonte atingiu suas dimensões atuais (2540mx 45m), juntamente com o funcionamento de
seu novo pátio de manobras, permitindo que este aeroporto recebesse aeronaves
comerciais de grande porte, assim como jatos atuais. Em 1973, o aeroporto de
Belo Horizonte passou a ser administrado pela Empresa de infra-estrutura aeroportuária (INFRAERO) aumentando, assim as fiscalizações e, consequentemente
a rigidez de seus regulamentos. (INFRAERO,2007).
Atualmente o aeroporto Carlos Drummond de Andrade que está instalado numa área de dois milhões de metros quadrados, na região da Pampulha.
Com o crescimento desordenado da metrópole transformou – se em aeroporto
central, inserido no contexto urbano distante apenas oito quilômetros do centro
de Belo Horizonte.
O Projeto arquitetônico da Pampulha
modernizando a região
A Pampulha teve um vetor importante, a construção da Avenida Antonio Carlos, que fazia a principal ligação da região norte. O projeto arquitetônico da Pampulha foi projeto de modernidade realizado na década de 40,
projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer na administração de Juscelino Kubtschek. A barragem da Pampulha foi construída e ganhou belos exemplares da
arquitetura moderna: A igreja de São Francisco de Assis, o Museu de Arte, a
Casa do Baile e o Iate Tênis clube. A própria criação da Pampulha envolve um
processo de modernização ligado às classes altas, favorecendo a valorização
imobiliária da região.
“A Pampulha contem a marca de um momento específico da história e da
modernização da capital, quando as funções metropolitanas começam a ter
espaços especializados e a represa se torna área de lazer da elite. A localização
do aeroporto, da cidade universitária, do Jardim Zoológico em mais recentemente, dos estádios reforça sua identidade.” (TEIXEIRA e SOUZA 2003)
Embora em menor proporção a Pampulha teve uma ocupação semelhante ao centro de Belo Horizonte, acolhendo os estratos superiores da hierarquia social: as elites dirigente e intelectual, profissionais de nível superior,
igualmente a ele e nas mesmas proporções, acolhem a pequena burguesia e
os setores médios.diferente do centro e do pericentro, acolhe em valores ao
redor da média metropolitana membros das categorias médias, trabalhadores
manuais do terciário e do subproletariado; também conta relativamente com
poucos operários secundários.
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A especulação imobiliária e sua interferência
na operação de vôos no Aeroporto da Pampulha
A especulação imobiliária na região da Pampulha é enorme. Pois os bairros em seu entorno cresceram, como por exemplo, Ouro preto, Jaraguá, Dona
Clara, Planalto. Com a construção de Shoppings e grandes Supermercados, houve uma diferenciação na população aos arredores da Pampulha, sofrendo uma
descaracterização de moradores elititizados.
Com esse processo de diferenciação, a região da Pampulha ainda conta
com um número enorme de turistas de várias classes sociais que vem de todo
o país para conhecer a região que tem um grande espaço para o lazer. O mais
recente é o parque ecológico José Lins do Rego.
O crescimento dessa região não poupou as características no entorno do
aeroporto da Pampulha que era somente de casas, para não atrapalhar o trafego
aéreo, pois a localização do aeroporto da Pampulha tinha sido escolhida justamente por ser uma área plana e isolada, distante do grande centro.
Hoje com a especulação das imobiliárias e o crescimento desordenado
da cidade, a região da Pampulha comporta grandes prédios com mais de quatro
pavimentos. Antes a lei permitia a construção de prédios de quatro andares somente. As construtoras visando seu lucro e os compradores visando à localização
próxima a região da Pampulha colaboraram com o surgimento de grandes edifícios com mais de 15 andares. O que não é benéfico para a continuação dos vôos
no aeroporto da Pampulha. Com o grande número de casas e prédios, escolas e
comércios, ainda têm como agravante o barulho incomodo e ensurdecedor das
aeronaves provocando problemas auditivos nos moradores da região.
O aeroporto da Pampulha promoveu o desenvolvimento, e o crescimento da região, e com isso, acabou ficando quase que inoperável, as mudanças
ocorridas ao seu entorno que foi a ocupação desordenada estimulada pelas
grandes construtoras, acabou fazendo surgir mais um investimento de proporção gigantesca que foi a construção do Aeroporto Internacional Tancredo Neves. O mesmo teve a sua localização escolhida, de maneira providencial, numa
região embora não muito plana , mas afastada da urbanização mais central de
Belo Horizonte.
O Aeroporto de Confins se localiza na Região Metropolitana de Belo Horizonte, (RMBH) na cidade de Confins. Podemos inferir que essa estratégia da
escolha da região para a construção do Aeroporto Internacional, a priori, era um
dos temas já estudados.
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De acordo com Rodrigues: “O nosso novo Aeroporto Internacional deve
localizar-se em área ainda não urbanizada, com possibilidade, de lei especial
de zoneamento, para não termos, no futuro, reclamações de população urbana,
quanto ao ruído”. (RODRIGUES, 1975)
Com as restrições de tráfego impostas ao aeroporto da Pampulha em
2005, podendo operar somente com vôos regionais, o aeroporto internacional
Tancredo Neves passa a funcionar de maneira mais eficiente, e assim abrindo
mais caminhos para o desenvolvimento e fazendo crescer novos investimentos
como as obras da linha verde e a ampliação da Avenida Antonio Carlos.
Pelo estudo proposto percebe-se que realmente aeroporto transforma as
condições econômicas da região onde está instalado, mas para que isso aconteça
é preciso que o Aeroporto seja considerado como parte integrante do desenvolvimento regional e lhe sejam dadas às condições de modernização e adaptação
para as novas demandas dos usuários.
O aeroporto internacional Tancredo Neves, teve um planejamento diferenciado e suas estruturas ampliadas para não sofrer as conseqüências causadas pela
urbanização como aconteceu com o Aeroporto Carlos Drummond de Andrade.
Considerações Finais:
A discussão desenvolvida até esse momento teve o objetivo de situar os
agentes que propiciaram a diminuição dos vôos do Aeroporto da Pampulha, entre eles o crescimento exagerado no entorno do aeroporto favorecendo a especulação imobiliária na região. Com base nos pressupostos de Andrade e Mendonça
(2007) de que a abertura de novas vias ou a construção de equipamentos são
intervenções com grande poder de transformação, podemos afirmar que a construção do Aeroporto da Pampulha, foi crucial para o desenvolvimento no seu
entorno, Principalmente por estar situado na região da Pampulha, de grande
relevância para o turismo de Belo Horizonte, região que nasceu com o propósito
de valorização territorial e de modernização.
Também é viável associar a construção do equipamento aeroporto como
para Guller e Guller (2002) com a criação de infra-estrutura e desenvolvimento
imobiliário. A partir da instalação do equipamento Aeroporto, é imprescindível a
ampliação das vias de acesso para o mesmo. Com isso o interesse pela urbanização da região onde se encontra o equipamento e no seu entorno, fica acirrada, e
proporciona a valorização da região. Este processo é tão importante, que registra
nesse estudo, a necessidade de transferência das operações de vôos do aeroporto
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da Pampulha, sendo que a sua localização havia sido determinada justamente
por ser uma região isolada. O processo parece ser cíclico, a região desenvolve e
o equipamento é obrigado a diminuir suas operações ou até mesmo mudar sua
localização para outra cidade.
A especulação imobiliária transformou a paisagem na região do Aeroporto da Pampulha, antes não havia prédios altos, hoje a realidade é diferente.
Observando o seu entorno é possível perceber o grande numero de edifícios
construídos ou em construção com mais de oito andares. A prefeitura de Belo
horizonte, determinava a construção de prédios de no máximo quatro andares.
Além da região da Pampulha ser caracterizada anteriormente por suas construções de casas com lotes imensos. As construtoras popularizaram as construções,
diminuindo a área construída e facilitando a forma de aquisição do imóvel. Isso
fez com que aumentasse a procura por imóveis na região, e aumentou o oportunismo das grandes construtoras, gerando um congestionamento visual, causando riscos para as aeronaves que decolavam no Aeroporto da Pampulha.
Para Rodrigues (1975) a criação do Aeroporto internacional Tancredo Neves, necessita de uma lei especial de zoneamento, para que no futuro, também
não ocorra o mesmo processo sofrido pelo Aeroporto da Pampulha com o então
recém criado Aeroporto de Confins.
O Aeroporto de Confins foi inaugurado em 1984. E foi a primeira localidade a receber o conceito de Aeroporto Industrial, por ter sido planejado e construído numa área menos urbanizada, mas localizado na região metropolitana de
Belo Horizonte (RMBH). O Aeroporto comporta grandes aeronaves, e também
promoveu desenvolvimento na região. No momento grandes obras estão sendo
feitas para facilitar o acesso ao Aeroporto Tancredo Neves (AITN). Dentre elas a
construção da Linha Verde, ampliação da Avenida Cristiano Machado e também
a ampliação da Avenida Antonio Carlos, ambas são vias de acesso para Confins.
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PREFEITURA MUNICIPAL DE BELO HORIZONTE/SECRETARIA MUNICIPAL DA COORDENAÇÃO DE
GESTÃO REGIONAL PAMPULHA. Perfil Regional 2003: Gerência Regional de Informações Técnicas. julho/2003.
RODRIGUES, Eduardo C. Crise nos Transportes. Ed. Unidas Ltda. São Paulo, 1975.
Anexo 1
FIGURA 1- Mapa de Belo Horizonte por Regiões.
FONTE: Prefeitura Municipal de Belo Horizonte.
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ANEXO 2
FIGURA 2 - MAPA DE BELO HORIZONTE – Bairros da Região da Pampulha.
FONTE: Prefeitura Municipal de Belo Horizonte.
FIGURA 3 - MAPA DO AEROPORTO DE BELO HORIZONTE/ PAMPULHA
-MG. - Aeroporto Carlos Drummond de Andrade
PRAÇA GATELLE Nº. 204 Bairro Aeroporto.
O Aeroporto da Pampulha está localizado bem próximo à lagoa da Pampulha e
tem acesso pela Avenida Antonio Carlos e Avenida Carlos Luz, que apresentam
fluxo intenso, sendo as principais vias de ligação ao Aeroporto. A distância do
Aeroporto da Pampulha ao centro de Belo Horizonte é aproximadamente de 8 km.
FONTE: Aeroporto de Belo Horizonte/Pampulha- Carlos Drummond de Andrade.
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ANEXO 3
FIGURA 4 e 5– FOTOS AEREAS DO AEROPORTO DA PAMPULHA.
CARLOS DRUMONND DE ANDRADE.
FONTE: www.infraero.br
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ANEXO 4
FIGURAS 5e 6 - FOTOS AÉREAS DA REGIÃO DA PAMPULHA
BELO HORIZONTE.
FONTE: www.infraero.br
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INTERVENÇÕES URBANAS E ESPAÇO PÚBLICO
Eliana Fonseca Stefani1
Resumo: O objetivo deste artigo é realizar uma revisão sobre a noção de
espaço público, relacionada à dinâmica de organização e apropriação do
espaço urbano, em sociedades contemporâneas, principalmente a partir da
década de 80.
A discussão sobre espaço urbano e espaço público tem sido objeto de
interesse nas ciências sociais segundo diferentes abordagens: Richard
Sennett (1988); Jürgen Habermas (1991); Rodrigo Salcedo Hansen (2002);
Teresa Pires do Rio Caldeira (2000); Luis Vicente Baptista (1994, 2005);
Rogério Proença Leite (2007), entre outros. Neste artigo, a reflexão sobre
essa temática é restrita aos três últimos autores citados, visando comparar
alguns pontos comuns e diferenças quanto às suas análises sobre tipos
de intervenção sócio-espacial, presentes na atualidade, em metrópoles e
pequenas cidades, que vão remodelando o espaço urbano e, ao mesmo
tempo, redefinindo e resignificando o espaço público.
Nesta perspectiva foram selecionados para este artigo alguns tipos de
intervenção urbana, que surgiram nas últimas quatro décadas: os “enclaves
fortificados”, os “territórios lúdicos”, a mercantilização do patrimônio
histórico-cultural, enfocados, respectivamente, por Caldeira (2000), Baptista
(1994, 2005) e Leite (2007). É com base nas análises desses autores que
busco discutir alguns elementos de tensão entre público e privado no
contexto de intervenções urbanas na atualidade.
1. A autora é graduada em Comunicação Social/Jornalismo pela PUCMinas e mestre em
Sociologia pela UFMG. É professora da PUCMinas.
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Espaço urbano, espaço privado e espaço público
A reflexão sobre espaço público compreende uma discussão mais ampla
relacionada às noções de espaços urbano e privado. A seguir, apresento definições introdutórias sobre esses conceitos como suporte para a discussão da problemática deste trabalho.
Espaço urbano refere-se a uma área física/geográfica, cuja propriedade
e uso podem ser públicos ou privados, mas com limites fixados pelo poder público. São os diferentes usos e significados atribuídos aos espaços físicos pelas
interações entre estratos e grupos diversos, conflitantes ou não, que o tornam
objeto de estudo das ciências sociais.
Espaço privado: definido como um território de propriedade privada, cujo
uso e acesso são privados ou abertos ao público, neste último caso, sob algumas
condições. Neste sentido, shoppings, por exemplo, podem ser entendidos como
espaços semiprivados, pois são constituídos por um conjunto de propriedades
privadas com uso aberto ao público - enquanto consumidor privado de bens e
serviços – propiciando práticas de sociabilidade.
Espaço público: conforme abordado por Teresa Pires do Rio Caldeira, o
surgimento das cidades vem acompanhado por um “ideal moderno de espaço
público” relacionado “aos elementos básicos da experiência moderna de vida
pública urbana: a primazia e a abertura de ruas; a circulação livre; os encontros
impessoais e anônimos de pedestres; do uso público e espontâneo de ruas e praças (...)”; enfim, do espaço da cidade entendido como um “espaço aberto para ser
usado e aproveitado por todos”. (CALDEIRA, 2000, p 302-303).
Como pensar, então, a noção de espaço público tendo-se em vista os diversos modos de reconfiguração e de reapropriação de espaços da cidade como
resultado de intervenções públicas ou privadas?
O espaço urbano em várias metrópoles tem passado por grandes transformações através de iniciativas governamentais ou de negociações entre público
e privado para ações de intervenção em áreas significativas de cidades, visando à reestruturação do espaço físico. Trata-se de novas formas de intervenção,
orientadas tanto para a mobilidade urbana, quanto para atividades comerciais
e empreendimentos de caráter cultural ou de lazer, ou, ainda, para loteamentos
privados, tornando a reflexão sobre a diferença ou a relação entre os espaços público e privado mais complexa. Essas intervenções resultam em mudanças não
apenas no traçado físico de áreas das cidades, mas na resignificação simbólica
que os novos espaços adquirem, conforme são apropriados ou reapropriados por
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STEFANI, E. F. • Intervenções urbanas e espaço público
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grupos diversos, que fazem usos diferentes dos lugares, num processo de perda
ou criação de novas identidades. Qual é a importância dessas diversas transformações sócio-espaciais para a reflexão a respeito do espaço público? Como
entender o espaço público hoje?
“Enclaves fortificados”: o caso de São Paulo
Inicialmente se tomará como base para reflexão sobre a relação entre os
espaços público e privado a pesquisa de Teresa Pires do Rio Caldeira (2000),
enfocando o problema de segregação sócio-espacial em São Paulo.
Como mencionado anteriormente, o espaço urbano não pode ser compreendido de modo restrito, considerando-se apenas seu aspecto físico. De acordo com Caldeira, ele é demarcado por regras que expressam “padrões de diferenciação social e de separação. Essas regras variam cultural e historicamente,
revelam os princípios que estruturam a vida pública e indicam como os grupos
sociais se inter-relacionam no espaço da cidade.” (CALDEIRA, 2000, p. 211)
Analisado sob essa perspectiva, pode se afirmar que o desenvolvimento
urbano caracteriza-se historicamente por formas diversas de segregação sócio
-espacial, verificada na maioria dos países.
Tomando como exemplo a cidade de São Paulo, Caldeira aborda três formas distintas, transcorridas em momentos diferentes, que caracterizam o processo de mudanças no espaço urbano, levando ao problema da separação sócio
-espacial. Conforme a autora relata (2000), o primeiro momento, transcorrido
entre o final do século XIX e os anos 40, caracterizou-se pela concentração de
estratos e grupos sociais diversos em uma pequena área da cidade, os quais se
distinguiam uns dos outros pelo tipo de moradia. Em seguida, entre as décadas
de 40 e 80, desenvolveu-se predominantemente a forma urbana “centro-periferia”, relativa a uma nova configuração das cidades segundo a qual estratos sociais
distintos foram espacialmente separados uns dos outros: “as classes médias e
altas [mantiveram-se] nos bairros centrais, com boa infraestrutura” e os pobres
passaram a viver na “periferia”, denominação utilizada para se referir às áreas
distantes do centro, sem infraestrutura adequada. (Caldeira, 2000, p. 211). Essa
separação espacial e social redundou também em um processo de estigmatização de estratos baixos, que passam a ser identificados como os “da periferia”.
A terceira fase, ainda atual, que surge por volta da década de 80, coexistindo com a anterior, pois, como observa Caldeira, é “sobreposta ao padrão centro-periferia”, apresenta outra característica: trata-se de um processo de trans-
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formação do espaço urbano no qual estratos sociais diferentes passam a ocupar
áreas de moradias próximas, o que, entretanto, não resulta em uma sociabilidade
entre eles, pelo contrário, eles “estão separados por muros e tecnologias de segurança, e tendem a não circular ou interagir em áreas comuns.” (CALDEIRA,
2000, p. 211).
Segundo a autora, essa seria uma nova forma de segregação espacial e
social, os “enclaves fortificados”, conforme sua denominação, cujo surgimento
deu-se por volta das décadas de 80/90, como uma forma de reação de parcelas
da população brasileira, em geral das classes média e alta, que, acometidas pelo
sentimento de medo, face ao problema do aumento da criminalidade violenta no
país, começaram a buscar proteção em edificações, para moradia e para o lazer,
com barreiras físicas. Por isto a denominação “enclaves fortificados”, que abrangem tanto os centros comerciais - como os shoppings, por exemplo - quanto um
novo tipo de habitação para moradores de classe alta – os “condomínios fechados” -, em regiões distantes do centro da cidade. Esses últimos, em destaque
neste trabalho, referem-se a construções de alta qualidade, sejam casas muradas
como “fortalezas” para garantir a segurança aos moradores, sejam conjuntos de
prédios, com entrada controlada, ambos se destacando por estilos arquitetônicos
que simbolizam status e acentuam as diferenças entre classes e grupos sociais.
São edificações que demarcam fronteiras.
Esse modelo de moradia, que vem se expandindo nas metrópoles, configura-se como um problema, se pensado em relação à noção de espaço público,
pois, conforme afirma Caldeira, “em cidades fragmentadas por enclaves fortificados, é difícil manter os princípios de acessibilidade e livre circulação, que estão
entre os valores mais importantes do espaço público.” (CADEIRA, 2000, p.212).
Mesmo com a ressalva de que os diferentes usos e acesso livre de espaços
da cidade por distintos grupos e estratos sociais nunca tenham se concretizado
plenamente como expressão do exercício efetivo de cidadania, face à apropriação
desigual de espaços urbanos, o “ideal moderno” de espaço público, apresentado
anteriormente neste trabalho, permanece como um parâmetro em estudos voltados para a discussão desse tema.
O que parece ser a ênfase na interpretação de Caldeira quanto à noção de
espaço público é a ideia republicana de igualdade, segundo a qual seria garantido
a todos os cidadãos, independentemente de posição de classe, o direito à livre
circulação e usos diversos de espaços públicos da cidade.
É nessa perspectiva, portanto, que Caldeira analisa criticamente a apropriação privada de áreas do espaço urbano para a construção de “enclaves for-
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tificados” destinados ao uso privado, cujo fechamento ostensivo, visando à resguardar a segurança dos seus proprietários, demarca uma separação entre esses
moradores privilegiados dos condomínios e a vizinhança de estrato baixo, habitantes da mesma área geográfica, mas que vivem na situação de “excluídos”
(aspas nossas) devido à demarcação segregativa do espaço, não só física, mas
simbólica e social. Isto significaria uma contraposição “à circulação livre e de
encontros impessoais e anônimos de pedestres; do uso público e espontâneo de
ruas e praças”. A interdição de acesso de desconhecidos em vias de circulação dos
“condomínios fechados”, garantida pelas guaritas existentes em suas entradas,
revela, a nosso ver, essa separação sócio-espacial. Caldeira observa que nessas
áreas fechadas “a circulação de pedestres é desestimulada, o tráfego de veículos é
enfatizado (...), desencorajando a interação pública.” (Caldeira, 2000, p. 312). Os
poucos caminhantes, em geral prestadores de serviços, são de estratos baixos,
que percorrem o espaço como via de acesso ao trabalho ou de retorno para casa.
Os estratos altos utilizam a rua como via para deslocamento em veículos. Não se
coloca a possibilidade de interação social entre eles. Mais do que isto: Caldeira
afirma, referindo-se ao bairro Morumbi, em São Paulo, que o “pedestre é pobre
e suspeito”. (2000, p. 314).
Essa separação sócio-espacial não se faz visível apenas pela presença dos
“enclaves fortificados”, cujas edificações emblemáticas são os “condomínios fechados” e os shoppings. Ela se estende também aos espaços públicos, mas de
uma maneira oposta. Ao mesmo tempo em que foram sendo construídos os “enclaves fortificados” (em regiões distantes do centro) através de iniciativas privadas, simbolizando ostensivamente status e demarcando fronteiras sociais, áreas
públicas dos centros de metrópoles, como o caso de São Paulo, pesquisado por
Caldeira (mas também de tantas outras cidades no Brasil e no exterior), foram
subtraídos da atenção do poder público, desde que estratos médios e altos se
mudaram para outras regiões mais nobres da cidade. Ocorre que essas áreas,
abandonadas pelo poder público, passam a ser ocupadas e utilizadas principalmente, mas não só, por estratos baixos da população - moradores pobres,
mendigos, vendedores ambulantes, etc. – tornando-se alvo de preconceito por
parte de estratos médios e altos. Entretanto, entendemos que é a presença daqueles estratos marginalizados, dando significado ao lugar, seja de moradia, de
trabalho, etc., e de transeuntes, regulares ou pontuais, que nos permite afirmar
o seu caráter público, enquanto área de livre acesso. Exemplificando o aspecto
público de locais significativos de São Paulo, Caldeira (2000) destaca a Praça da
Sé como um espaço de usos diversos, por seus moradores e frequentadores, in-
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clusive como lugar de manifestações políticas, ou seja, de exercício da cidadania.
Foi assim em 1984, quando 300 mil pessoas aproximadamente se reuniram no
grande movimento nacional pelas “Diretas Já” e continua sendo um espaço que
simboliza o “espírito” da rés-pública, ainda que pontualmente. A Praça da Sé
tem sido palco de várias outras manifestações públicas, como as mais recentes
de 2013, que mobilizaram cidadãos de idades, classes e grupos distintos, conclamando melhorias no transporte, saúde e educação públicos; contra a corrupção,
entre outras insatisfações. Portanto, é um local do espaço urbano que permanece
como um espaço público por abrigar práticas sociais diversas, preservar a livre
circulação e o anonimato daqueles que a utilizam.
O fato de localidades públicas centrais de cidades serem vistas como “deterioradas” em decorrência do descaso do poder público para com elas, não destitui seu caráter público, e, sim, caracteriza um tipo de reestruturação do espaço
urbano que se configura como uma forma de segregação social polarizada, física
e simbolicamente, através de intervenções privadas e públicas, ou até mesmo
pela não intervenção - ou seja, pela omissão do poder público, resultando no
privilegiamento de investimentos em algumas áreas da cidade (habitadas por
estratos médios e altos) em detrimento de outras (habitadas por estratos baixos).
Fica a questão: as intervenções urbanas através de iniciativas privadas
têm sido maiores do que as públicas? Qual é o impacto das intervenções privadas
sobre o espaço público? Estas são questões a serem aprofundadas.
Fundamentalmente, os estudos de Caldeira pretendem demonstrar o
agravamento do problema da separação espacial e social, própria da dinâmica
de reestruturação atual de espaços urbanos orientada pela crescente apropriação
privada de áreas da cidade de forma elitista e excludente, limitando o acesso a
vias públicas, enquanto espaços a serem utilizados livremente por “indivíduos
anônimos, segundo um código de regras de civilidade”. Contudo, mesmo afirmando haver uma retração do espaço público, de acordo com Caldeira, este
continua existindo como expressão do exercício da cidadania, substrato da vida
moderna, que deve ser preservado.
A “ludificação” da vida e de territórios urbanos
Outra forma de intervenção no espaço urbano nas sociedades contemporâneas, que interfere no espaço público, decorre da emergência de um “modo
de vida lúdico”, relacionado à industrialização do uso do tempo livre orientado
para o lazer e o entretenimento. Luís Vicente Baptista aborda esse fenômeno
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através do que denomina de processo de “ludificação” o qual, segundo o autor,
“corresponde a uma nova dinâmica nos usos do espaço humanizado, que amplia e diversifica a lógica de apropriação resultante dos históricos processos de
urbanização.” (Baptista, 2005, p.47). Essa nova forma de apropriação e de usos
de espaços, que vem se tornando uma tendência nas sociedades contemporâneas
em dimensão global, é designada pelo autor por “territórios lúdicos”, ou seja, “os
lugares/cenários edificados de raiz para serem usados como espaços de entretenimento e de consumo programado.” (Baptista, 2005, p. 47).
Importa observar que embora a dimensão lúdica da vida social seja uma
constante em qualquer sociedade, na contemporaneidade, ela passou a ocupar
um lugar central devido a mudanças econômicas e políticas que ocorreram, principalmente, após a II Guerra Mundial, concernentes ao desenvolvimento do capitalismo e ao processo de democratização das sociedades. Transformações no sistema produtivo devido a avanços tecnológicos, bem como a conquista de direitos
trabalhistas contribuíram para aumentar o tempo livre das populações. Outras
conquistas relativas ao processo de ampliação da cidadania possibilitaram maior
acesso à educação, resultando no surgimento, em vários países, inclusive no Brasil, de camadas intermediárias com capacidade de usufruir de bens e serviços
diversos, e que passam a aderir à “ideologia generalizada do consumo”. Essas
classes, segundo Baptista, desfrutam do hábito de consumo e de mobilidade
espacial, incorporando o lazer como parte do seu cotidiano.
Entretanto, como o autor afirma, a “adesão a um modo de vida lúdico é
variável” (Baptista, 2005, p. 48). Distintos desses grupos colocam-se aqueles que
não se enquadram como “plenos consumidores”, os que não têm real capacidade
de mobilidade social e espacial, mantendo-se à margem do usufruto de certos
tipos de bens e serviços comercializados nas sociedades atuais. Contudo, tendo
em vista grupos e estratos diversos com potencial de consumo, o capitalismo,
em sua lógica de atualização, visando à sua própria reprodução, em dimensão
global, introduziu a mercantilização do lúdico em que a “organização do tempo
disponível se estrutura como um setor central de negócios, face à generalização
das práticas de consumo e às atividades que lhe estão ligadas”. (Baptista, s/d, s/p).
Além da oferta de produtos variados, sempre renovados no mercado, a indústria
do turismo passou a ocupar um lugar fundamental, implicando na reorganização de espaços das cidades no sentido de torná-las comercialmente atrativas
para seus visitantes. Espaços de metrópoles e de pequenas cidades passam a ser
reconfigurados, visando a abrigar locais de entretenimento ou “lugares-cenários” de caráter sedutor. As cidades passam a competir em termos internacionais,
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buscando destacarem-se umas das outras através de atrativos singulares de suas
regiões, relacionados à sua história, comidas típicas, artesanato, patrimônio artístico-cultural, ou de belezas naturais, entre outros, aos quais se deve combinar
um elemento a mais: o da garantia de segurança aos visitantes e, também, claro,
aos seus habitantes enquanto consumidores de atividades de entretenimento,
entre outras ofertas comerciais.
É neste aspecto que a análise de Baptista se relaciona, em parte, com a
de Teresa Pires do Rio Caldeira (2000). O autor aponta para a problemática, em
debate nas ciências sociais, da “necessidade de incentivar a cidadania através
da promoção do espaço público” (Baptista, s/d, s/p). O que, a princípio, parece
simples, apresenta, na prática, uma contradição, porque, por outro lado, segundo Baptista, se detecta uma demanda por segurança pública advinda de grandes
parcelas da população, principalmente de setores médios e altos, mas também de
estratos baixos, que vêm exigindo o policiamento da cidade para ter garantido o
seu direito de “ir e vir” e do usufruto do espaço urbano com tranquilidade.
O problema levantado pelo autor é que a industrialização do entretenimento “reflete na própria gestão pública das cidades” (Baptista, 2005, p. 54),
que passa a ser planejada de forma estratégica, orientada principalmente para a
rentabilidade de empreendimentos, tornando a discussão relativa ao que é público “perturbadora” a essa dinâmica. Na prática, a cidade passa por intervenções, que resultam na sua divisão em territórios distintos: “de um lado, espaços
lúdicos animados por grandes empresas lucrativas de entretenimento com todas
as sucursais de animação e compras, e, de outro, territórios a se evitar, a [serem
entregues] ao poder político, e a se [manterem fechados] enquanto não forem
reconvertidos para usufruto lúdico.” (Baptista, 2005, p. 54). Nos primeiros se
garante a segurança dos cidadãos-consumidores (com policiamento público ou
privado), nos outros não há garantia de segurança pública.
Baptista trata, portanto, de uma forma de transformação das cidades,
também de caráter segregativo social e espacialmente, como já analisado por
Caldeira, mas focando o aspecto de uma economia do lúdico. Caldeira (2000)
aborda a questão da divisão sócio-espacial, mostrando o problema da “convivência” não-interativa em uma mesma região da cidade de São Paulo entre moradores de condomínios fechados, de luxo, de estrato alto, e moradores de estrato
baixo, além de tratar de espaços comerciais que demarcam fronteiras sociais em
contraposição à noção de público. Baptista aborda o problema da distinção entre
“consumidores” e” não-consumidores” da indústria de entretenimento, enquanto
parte do processo de transformação das metrópoles – criando-se ou reconfigu-
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rando-se espaços selecionados – a fim de torná-las passíveis de competição no
mercado global, enquanto cidades “cenários”, que oferecem atrações lúdicas e
segurança aos seus visitantes.
Pode-se citar Las Vegas, Lisboa, Barcelona, como exemplos de cidades
publicizadas em “guias de turismo” pelo encantamento que causam aos seus
visitantes por disporem de edificações espetaculares e/ou devido à segurança.
Essas cidades, como tantas outras, passaram por investimentos em construções (por exemplo, o monumental “Oceanário”, em Lisboa2) e reinvenções de
lugares simbólicos do mundo como simulacros (Las Vegas). Além desses aspectos, segundo Baptista e Pujadas, regiões das cidades de Lisboa e de Barcelona
passaram por uma “redefinição simbólica da sua expansão metropolitana, através da requalificação de determinados espaços urbanos, envelhecidos e marginais, que se converteram em espaços emblemáticos para a criação de uma imagem de cidades cosmopolitas”. (Baptista e Pujadas, 2005, p. 294).
Essas transformações podem ser analisadas como parte do processo de
globalização que, além das conhecidas características de mudanças econômicas (flexibilização da produção e das relações de trabalho, expansão global do
capitalismo financeiro, etc.), gera impactos também, como afirma Baptista, na
“morfologia e funções das cidades”, bem como nas relações sociais pré-existentes, embora “não afecte da mesma maneira nem todos os residentes, nem todas
as áreas da cidade, já que as alterações físicas e funcionais se produzem a ritmos
e em direcções diferentes”. (2005, p. 294-295).
Recorrendo ao modelo de Guido Martinotti (1996), Baptista e Pujadas
(2005) apontam para a complexidade da dinâmica de transformações do espaço
urbano relativas tanto ao aspecto morfológico quanto das relações sociais, em
diversas fases, conforme reproduzimos abaixo:
- “a cidade industrial, caracterizada por uma coincidência quase total entre residentes e trabalhadores (...);
- a primeira fase metropolitana [que surgiu] nos Estados Unidos na década de 20 e na Europa depois da II Guerra Mundial, em que houve um
aumento da população e ao mesmo tempo uma separação entre residentes
e trabalhadores. Operários e parcelas das classes médias passam a residir
fora do centro (subúrbios, regiões vizinhas) de onde se deslocam para o
trabalho. Surge, então, “a figura do commuter”;
2. Localizado no Parque das Nações, o oceanário é um aquário publico e também uma instituição
de pesquisa sobre biologia marinha e oceanografia, construído para a Expo 98, exposição
mundial com a temática: “os oceanos, um patrimônio para o futuro”. O aquário abriga vegetações
e animais marinhos representativos dos oceanos dos cinco continentes. Pode-se afirmar que é
um “cenário” símbolo de Portugal, país pioneiro em navegações, e que tem recebido milhões de
visitantes de vários países.
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- a segunda fase metropolitana caracteriza-se pelo incremento no número de commuters, assim como pelo aparecimento massivo de uma terceira
categoria de actores sociais: o utilizador da cidade (city user), isto é, aquela
população basicamente nacional que se desloca periodicamente ao centro
metropolitano em busca de serviços públicos ou privados: universidades,
hospitais, comércio, cinema, diversão;
- a terceira fase metropolitana, atual, caracteriza-se pelo surgimento dos
agentes de negócios metropolitanos como empresários, profissionais da
cultura, que vivem entre cidades, praticamente sem vinculação territorial”. (Baptista e Pujadas, 2005, p.300)
Esse modelo de Martinotti, apresentado por Baptista e Pujadas (2005),
ilustra a complexidade das metrópoles hoje, cuja dinâmica de rearranjos morfológicos processa-se concomitantemente a uma dinâmica de rearranjos das relações sociais caracterizada pelo surgimento de novos e múltiplos atores, ocupando e desocupando espaços selecionados, nos quais se constroem novas identidades: residentes - antigos e novos -, commuters, “city users”, “agentes de negócios
metropolitanos”, turistas. Cada um desses atores se apropria diferentemente de
determinados espaços, numa complexa interação que expressa formas de sociabilidade, de conflito e de negociações.
Baptista e Pujadas abordam situações de conflito entre residentes antigos
e novos de cidades diversas - Lisboa, Barcelona e também Rio de Janeiro, entre
outras -, como consequência do processo de mudanças no espaço urbano dessas
cidades, reconfigurado por novas apropriações por parte de agentes econômicos e
moradores, que resultaram em perda de identidade dos antigos residentes com o
espaço a que estavam acostumados, tanto relativa ao traçado das ruas, quanto ao
aspecto arquitetônico e de formas de sociabilidade. Conforme os autores afirmam,
antigos residentes “foram sendo despojados das suas cidades, que já não lhes pertencem, nem simbólica, nem materialmente”. (Baptista e Pujadas. 2005, p. 301).
Nesse quadro de transformações sócio-espacial, como pensar o espaço
público como “lugar de encontro”, efetivado pelo alargamento do tempo livre, e
associado também ao “acesso universal de espaços públicos urbanos”, conforme
apontado por Baptista?
O autor observa que um dos aspectos discutíveis daquelas transformações é que, por um lado, as mudanças no espaço físico das cidades implicam um
conjunto de ações por parte de governos locais e estaduais, e de agentes econômicos privados, que vão reconfigurando o espaço urbano de forma seletiva; por
outro, surgem novos atores e criam-se novas identidades, tipos diversos de sociabilidade e também “de hospitalidade selectiva vinculada ao consumo” (Baptista
e Pujadas, 2005, p. 303).
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Os conflitos se reproduzem hoje com “novos cenários e com novos participantes” através de uma “aliança ou no mínimo [de uma] sincronia e direccionalidade de esforços entre os poderes públicos metropolitanos, os governos nacionais
e os agentes económicos privados, principalmente do imobiliário e do comércio.”
(Baptista e Pujadas, 2005, p. 302). Opera-se, portanto, uma transformação das
cidades cujo direcionamento passa de uma prioridade dada aos “residentes” para
outra que tende a priorizar seus “utilizadores”, ou seja, os consumidores.
Se espaços físicos e sociabilidade diversas tornam-se seletivos, em função
da “ludificação de territórios” verifica-se, portanto, uma contradição ao caráter
de acesso universal que define o espaço público, o qual é subtraído, na prática,
do seu significado maior.
Concluindo essa parte, pode-se afirmar que as formas de intervenção e
de gestão do espaço urbano vem se processando, cada vez mais, através de uma
articulação entre poderes público e privado orientadas principalmente para fins
econômicos e políticos. Neste sentido, a atenção de autoridades governamentais,
municipais ou estaduais, para com o espaço público tende a acontecer quase que
somente na medida em que esse é passível de intervenções voltadas para aqueles
tipos de empreendimentos ou quando o espaço público é identificado como local
de impedimento e constrangimento aos interesses políticos ou privados. Neste
aspecto há uma similaridade com Caldeira, quando ela aponta a desconsideração
por parte do poder público com o que é público.
Gentrification e preservação do patrimônio
histórico e artístico: o caso do Bairro de Recife
A reconfiguração do espaço urbano, envolvendo o espaço público, sob a
ótica de interesses políticos e econômicos é analisada também por Rogério Proença
Leite (2007), mas com enfoque nas políticas de preservação do patrimônio histórico e artístico-cultural. O autor aborda o processo de “revitalização” de uma área da
cidade de Recife – o Bairro do Recife - e sua relação com a questão do espaço público, a partir de uma pesquisa empírica que realizou nessa localidade, em 2000.
O Bairro do Recife é identificado como uma área que representa a história e a
tradição cultural pernambucana, tendo como um dos seus símbolos mais significativos a Praça do Marco Zero, além de edificações antigas. Segundo leite (2007), esse
Bairro passou por uma primeira reforma em 1910, que resultou na mudança de parte
do seu estilo arquitetônico original, de influência holandesa e portuguesa, para um
estilo eclético. Vários casarões de estilo colonial foram demolidos e também a Igreja
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matriz. Ainda, segundo relata o autor, essa reforma ocorreu sob a influência de uma
concepção de modernização e de “higienização” de certos espaços urbanos, que já se
fazia presente em algumas cidades europeias. Posteriormente, o Bairro do Recife tornou-se alvo de políticas de preservação do patrimônio histórico e artístico cultural.
Em retrospectiva, a política de preservação do patrimônio histórico-artístico no Brasil teve seu início no Estado Novo com a criação do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), através do Decreto-Lei n. 25 de
30 de dezembro de 1937. As práticas de preservação do patrimônio surgem, nesse momento, como iniciativa do governo federal. A partir da década de 70 ocorre
uma redefinição na orientação da política de patrimônio histórico-cultural, que
se volta para a “valorização econômica” dos monumentos.3
De acordo com essa reorientação, ocorre um processo de descentralização das políticas de preservação no Brasil, em que “o patrimônio vai sendo
incorporado às políticas urbanas e articulado ao desenvolvimento regional e ao
incremento do turismo”, sob a responsabilidade dos governos estaduais e municipais. (Leite, 2007, p. 55). Desde os anos 90 intensifica-se essa prática, dirigida,
principalmente, para empreendimentos turísticos, através de uma parceria entre
governos estaduais e/ou municipais e empresas privadas.
Neste artigo, dar-se-á destaque a esta última fase de implementação da política de preservação do patrimônio histórico e artístico do Brasil (década de 90),
considerando-se especificamente a cidade de Recife, estudada por Leite (2007).
O autor discute a noção de espaço público relacionada à política de “revitalização” do “Bairro de Recife”4 enquanto um processo de gentrification.
3. Um dos marcos dessa reorientação, segundo Leite, foram os encontros de governadores
(Brasília, 1970; Salvador, 1971), que estabeleceram novas estratégias de preservação com a
participação dos Estados sob a justificativa de existirem “dificuldades econômicas de conservar
e restaurar o acervo excepcional de monumentos nacionais, [devendo-se] adotar uma política
de valorização que [permitisse] a integração do monumento no ambiente urbano, buscando
soluções autofinanciáveis”. (Leite, 2007, p. 55)
4. Em 1998, o “núcleo original da cidade de Recife” (que compreende dois terços do Bairro
do Recife) foi tombado pelo IPHA, por ser considerado um conjunto arquitetônico eclético no
cenário urbanístico brasileiro. Trata-se de um caso especial, porque o ecletismo não tinha sido
até então um critério da política de tombamento. Segundo Leite, a justificativa, apresentada para
o tombamento foi a de que o Bairro do Recife representava tradições distintas: “o bairro é, para
o IPHAN, vestígio do Brasil holandês, exemplar único da Paris de Haussmann e representante
da arquitetura moderna e contemporânea.” (Leite, 2007, p. 80). O ecletismo deve-se aos dois
grandes processos de intervenção urbana e arquitetônica pelas quais o bairro passou em dois
momentos diferentes. Conforme relata o autor, a primeira intervenção urbana e arquitetônica
ocorreu no século XVII, quando Maurício de Nassau, “se apropriou dos arrecifes e iniciou a
ocupação da faixa litorânea da província de Pernambuco” (Leite, 2007, p.56). A segunda ocorreu
no século XX, quando o Porto de Recife foi reformado, destruindo-se quase por completo o velho
bairro colonial, reconstruído, a partir de 1910, em estilo eclético.
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Reproduzo aqui a definição de gentrification utilizada por Leite, cujas
bases de referência estão em autores como Harvey (1992), Featherstone(1995),
Smith(1996) e Zukin (1995), conforme segue: “refere-se a formas de empreendimentos econômicos que elegem espaços da cidade como centralidades e os
transformam em áreas de investimentos públicos e privados.” (Leite, 2007, p. 61)
Segundo observação do autor, embora o termo tenha sido utilizado inicialmente para designar a recuperação de residências em bairros centrais de cidades
nos Estados Unidos, na década de 60, com o processo de renovação urbana em
larga escala passou-se a empregá-lo para referir-se tanto à reabilitação de casas antigas quanto às construções novas. É nesta acepção ampla que é adotado por Leite.
O plano inicial do processo de gentrification do Bairro do Recife, que data do
final da década de 80, previa a reabilitação dessa região, já em condições de deterioração, voltada para os seus moradores (trabalhadores portuários, prostitutas, pessoas
pobres que viviam em favelas) “símbolos da resistência do bairro”. Incluía também a
proposta de um projeto, intitulado “Memória em Movimento”, visando à integração
dos moradores ao processo de reabilitação do bairro. (Leite, 2007, p. 162).
Em agosto de 1988 houve a abertura oficial do projeto “Memória em Movimento”, cuja primeira iniciativa resultou na publicação do livro “Bairro de Recife: porto de muitas histórias”. Entretanto, conforme afirma Leite, não se deu
continuidade a esse processo de “revitalização” devido principalmente a fatores
políticos e econômicos.
Entre os anos de 1993 a 2000 intensificou-se o processo de gentrification,
mudando-se o foco da política de preservação na perspectiva de estimular atividades de consumo através do turismo e comércio cultural e cujos beneficiados passam a ser empresários, comerciantes, proprietários imobiliários, grupos
financeiros atacadistas e industriais em detrimento da população pobre. (Leite,
2007, p. 190). Inicia-se, então, a implementação de um “plano estratégico” de
“revitalização” do Bairro do Recife.
Para a efetivação do “plano estratégico”, o Bairro do Recife foi dividido em
três setores, os quais de agora em diante, para facilitar a identificação de cada
um, serão denominados conforme seguem: Polo Bom Jesus, Polo Pilar e Polo
Fluvial5, com destaque para os dois primeiros.
5. Segundo Leite, os aspectos considerados para a divisão do Bairro do Recife em três setores
foram: “distribuição espacial das atividades, o padrão de ocupação urbano e as condições da
infraestrutura urbana (...)”.
Identificação dos setores:
- “Setor de consolidação urbana (Pólo fluvial)”: abriga edificações institucionais como a Prefeitura
da Cidade de Recife, o Tribunal Regional Federal e a Polícia Federal.
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Com o processo de gentrification o Bairro do Recife transformou-se em
uma área marcada pela diferença social e simbólica. Uma parte foi “enobrecida”,
outra não. O Polo Bom Jesus se destaca por ser onde houve maiores investimentos, alvo do processo de “revitalização” e cuja rua do Bom Jesus é a parte mais
“enobrecida”. Seus quarteirões passaram a ser um ponto de encontro. Neles se
concentram bares e restaurantes, que, à noite, quando há grande movimento,
são protegidos por fronteiras físicas através do uso de cavaletes, delimitando o
espaço. Essa rua apresenta ainda como peculiaridade uma demarcação simbólico-temporal entre suas duas calçadas, tratadas, por Leite, como calçada-luz e
calçada sombra, como duas linhas divisórias: durante o dia a calçada-sombra tem
a função de manter acessível o espaço da rua e é usada pelos pobres; a calçada
-luz destina-se aos turistas. “À noite, o ‘enobrecimento’ absorve as duas calçadas,
criando fronteiras.” Segundo o autor, essas linhas divisórias “revelam como seus
usuários operam as categorias conflituosas de interação”. (Leite, 2007, p.183). No
Polo Bom Jesus é também onde acontecem atividades culturais de vários tipos,
promovidas pela Prefeitura com o apoio dos empresários do bairro: “shows com
artistas locais, apresentações de dança, exposições de arte na rua, festivais de
seresta”; além de grandes eventos - como a festa de São João e o carnaval - nos
quais são reavivadas expressões da cultura regional como os “reisados, maracatus, caboclinhos”, mas transformadas em objeto de consumo para turistas,
operando-se, assim, uma mudança no significado simbólico das manifestações
culturais. (Leite, 2007, p.185). Contudo, esses eventos são importantes por possibilitarem uma “flexibilização de fronteiras sociais”. (2007, p. 247)
O Polo Pilar, entretanto, onde se localiza a “Favela do Rato”, manteve sua
condição de área desassistida pelo poder público. Essa parte não foi “revitalizada”, não tendo havido recuperação de moradias, como se previa no projeto
inicial; apenas foram implantados alguns programas públicos, considerados polêmicos, como o “Hora de Acolher”, que retira os “meninos em situação de rua”
da região enobrecida, levando-os para um albergue da região. O único benefício
foi a abertura de uma escola pública, que, segundo Leite, funciona em condições
precárias, atendendo crianças e adultos.
O depoimento de uma moradora é ilustrativo da exclusão vivida pela população daquela parte da cidade: “Nós aqui moramos num lixo, num abandono.
- “Setor de intervenção controlada” ou “de revitalização”: área tombada pelo patrimônio histórico:
abrange o Pólo Bom Jesus, o Pólo Alfândega e o Pólo Arrecifes;
- “Setor de renovação (Pólo Pilar)”: área que pode ser modificada com construções novas que
sejam “harmonizadas” com o estilo tradicional”. (Leite, 2007, p. 178)
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Nós não temos banheiro, nós não temos água, nós não temos luz. Eles só reurbanizaram o Recife antigo. Aquilo ali é dos empresários... A reforma está servindo
para eles e não para nós” (Leite, 2007, p.160).
O autor cita também o Polo Moeda, que fica na extremidade sul do Bairro
Bom Jesus, destacando-o como uma área que “congrega diferenças” por apresentar
uma “flexibilização de fronteiras” em dias de grandes eventos, quando pessoas do
Polo Bom Jesus adentram pelo Polo Moeda. De acordo com Leite, neste Polo as
fronteiras sociais e simbólicas não deixam de existir, mas elas “têm um outro padrão de inclusão e de exclusão diferente das do Bom Jesus”. (2007, p.268)
Leite ressalta, ainda, as mudanças decorrentes da reforma do Largo do
“Marco Zero”, símbolo da cidade, que incluiu o terminal marítimo e a ampliação
do traçado da praça. Anteriormente havia uma pequena praça utilizada para
encontros entre pessoas. Com a “revitalização” a área tornou-se principalmente
local de passagem, perdendo seu significado anterior. Entretanto, pontualmente,
o espaço tem sido palco de grandes eventos culturais e manifestações públicas,
como a do “Dia do basta: eu quero paz”, ato público contra a violência urbana,
realizado em 2000.
Do ponto de vista teórico, Leite analisa o processo de gentrification do
Bairro Bom Jesus em Recife, buscando compreender “como as demarcações sócio
-espaciais podem configurar lugares e como os lugares conferem sentido público
ao espaço urbano”. (2007, p. 289)
Segundo sua perspectiva de análise, espaço urbano refere-se à configuração espacial enquanto demarcações, fronteiras físicas da cidade, às quais não
necessariamente são atribuídos significados como resultado de práticas sociais.
(2007:284). Enquanto que a noção de espaço público estaria vinculada ao conceito de lugar, definido por ele como uma
“demarcação física e/ou simbólica no espaço, cujos usos o qualificam e
lhe atribuem sentidos diferenciados, orientando ações sociais e sendo por estas
delimitado reflexivamente”. (...) Um “lugar é sempre um espaço de representação,
cuja singularidade é construída pela ‘territorialidade subjetivada’, mediante práticas sociais e usos semelhantes.” (Leite, 2007, p. 284).
Nesta perspectiva, um determinado espaço urbano só se torna um lugar,
enquanto categoria de análise, condicionado à existência de interações sociais
com “convergência de sentidos”, que lhe demarcam fronteiras simbólicas e físicas, embora flexíveis.
Leite, entretanto, problematiza essa ideia, observando que “convergência”
de sentidos, não implica consenso e, sim, possibilidade de “entendimento”, que
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diz respeito “à convivência cotidiana de pessoas cujas concepções de mundo e
estilos de vida são semelhantes”, embora comportando discordâncias, conflitos
ou dissensões. (Leite, 2007, p. 288)
De acordo com essa visão, os lugares podem ser compreendidos como espaços aonde as pessoas vão “encontrar seus iguais, exercitar-se no uso de códigos
comuns, apreciar os símbolos escolhidos para marcar as diferenças”. {Magnani,1993, p. 50 citado por Leite, 2007, p. 288). Leite afirma ainda que: “os lugares
urbanos têm fronteiras, mas elas não são necessariamente fixas e muito menos
dadas: são construídas socialmente e negociadas cotidianamente com outros lugares no complexo processo de interação pública, através do qual afirmam suas
singularidades, emergem conflitos, dissensões e, eventualmente, consensos. A
convergência de sentidos é, assim, condição necessária para que se ‘pratique’ um
espaço e o transforme em lugar, e não implica, necessariamente, consenso, mas
possibilidade de entendimento”. (Leite, 2007, 286)
Dois aspectos são, portanto, essenciais para a construção da categoria
social lugar que, por sua vez, constitui a base para a noção de espaço público, na
perspectiva de Leite: a possibilidade de “entendimento” a partir de um mínimo
de “convergência de sentidos” que os atores atribuem a determinados espaços
físicos segundo as diferentes formas de apropriação que fazem dele, e, ao mesmo
tempo, a demarcação flexível de fronteiras, simbólicas e físicas, constantemente
transformadas pelas práticas sociais cotidianas, conflituosas ou não.
A partir desta definição pode-se chegar à noção de espaço público combinando os conceitos de espaço urbano com sociabilidade pública, “entendendo
a sociabilidade de modo amplo, como práticas interativas – conflitivas ou não
– que ocorrem na vida cotidiana pública”. (Leite, 2007, p. 287). A noção de
público, então, pressupõe atribuição de sentido(s) a um espaço físico, de uso
público, transformado em lugar ou lugares, mesmo que como resultado de uma
“coexistência conflitante” entre atores sociais diferentes.
É com base nessas construções teóricas que Leite analisa o centro histórico de Recife, como um “espaço de sociabilidade pública (...) que [ao se tornar]
objeto de políticas urbanas e culturais que buscam recuperar [o] patrimônio
cultural para torná-lo passível de reapropriação por parte da população e do capital”, pode se constituir como “lugar”, dependendo da forma como o patrimônio
é reapropriado. (Leite, 2007, p. 61). O autor procura demonstrar que esse processo de reapropriação se dá a partir de “usos e contra-usos” que antigos e novos
usuários passam a fazer daquele espaço, enquanto lugar/lugares, atribuindo-lhes
sentidos diversos, seja de “moradia e refúgio” para os moradores do “Favela do
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Rato”, seja de lazer e consumo para os freqüentadores e visitantes da rua do Bom
Jesus. Mesmo com demarcações de “fronteiras” em espaços “enobrecidos”, os
“contra-usos” surgem como outras formas de apropriações não previstas no projeto de ”enobrecimento”, causando “ruídos visuais”, como a presença de meninos
em situação de rua, vendedores ambulantes, mendigos. Assim, como conseqüência do processo de gentrification, o Bairro do Recife “tornou-se um espaço entrecortado por diferentes representações sobre o que significa freqüentar e interagir
em seu espaço (....) As assimetrias de usos e possibilidades de construção dos
lugares possibilitaram o surgimento de mecanismos de interação mediados pela
diferença”. (Leite, 2007, p. 292) A rua da Moeda, de maneira especial, apresentaria uma composição “híbrida”, devido a uma certa flexibilidade social entre seus
usuários e visitantes; e o Largo do Marco Zero seria a expressão da reapropriação
do espaço público.
Concluindo, pela análise de Leite pode-se inferir a existência de um “enclave” social e cultural, como conseqüência da implementação de políticas de
recuperação do patrimônio arquitetônico e cultural enquanto um processo de
gentrification. A rua, que é por definição um espaço público, sofreu uma obstrução, com a “abertura de áreas públicas privatizadas”. Se o espaço público
“constitui-se como um conjunto de práticas [diversificadas] que se estruturam
num certo lugar”, a delimitação com cavaletes de espaços nas ruas com fins comerciais criou constrangimentos às práticas interativas entre os seus moradores
e freqüentadores, resultando num espaço segmentado. (2007, p. 197)
Contudo, é importante ressaltar que políticas de “revitalização” não resultam necessariamente na perda do espaço público, “mas numa reordenação da
sua lógica interativa, a partir das apropriações (“táticas”) dos espaços mediante a
construção dos lugares”, enquanto construção de identidades. (Leite, 2007, pp.
215-216).
Considerações finais
Pelas três abordagens apresentadas sobre intervenções urbanas e espaço
público pode-se concluir que a segmentação urbana nas sociedades contemporâneas ganhou uma dimensão maior e é excludente em vários aspectos, tendo
em vista a complexidade da organização do espaço urbano, sustentada não só,
mas, principalmente, por interesses econômicos e políticos, num processo de
mercantilização dos usos do espaço urbano que atinge o espaço público. Nessa
perspectiva, é possível afirmar a existência de uma divisão sócio-espacial em
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termos de “consumidores” e não “consumidores”, tanto de bens materiais e imateriais, quanto de serviços. Contudo, faz-se necessário relativizar essa afirmativa,
porque, por outro lado, pode se perceber também formas de negociação entre
público e privado, que resultam em investimentos voltados para a recuperação
de espaços públicos que são utilizados de maneiras diversas pelos cidadãos. Deve-se observar, ainda, a ocorrência de movimentos de resistência bem sucedidos
realizados pelos cidadãos visando à reapropriação de espaços públicos, abandonados pelas autoridades municipais e estaduais, ou delimitados por elas para
uso privado. As práticas sociais são dotadas de possibilidades de resistência e de
rearranjos constantes que resignificam lugares, construindo-se novas identidades ou até mesmo, eventualmente, recuperando-se antigas identidades.
O grande desafio, portanto, é como definir espaço público na atualidade,
buscando identificar os elementos de tensão, negociação e resistência que fazem
parte da relação entre público e privado e como analisá-los enquanto parte da
dinâmica do exercício da cidadania face aos interesses privados.
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Instituto de
Ciências Sociais
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O PODER LOCAL, A POLÍTICA HABITACIONAL
E O MERCADO IMOBILIÁRIO: TRAJETÓRIA DE
ASSUNÇÃO DE ATRIBUIÇÕES E MCMV
Gabriella Caroline Rodrigues Beltrame
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Introduzindo
O escopo deste artigo é apresentar o panorama de assunção da atribuição de provisão habitacional pelos municípios brasileiros, levantando algumas
questões relevantes da tríade: mercado, política habitacional e poder local. Neste
intento, busca-se apresentar a relação entre política habitacional, poder local e
mercado imobiliário sob a ótica de dois momentos que perpassam a “descentralização por ausência”, evidenciada com o fim do BNH (Banco Nacional de
Habitação), e o retorno de uma política de habitação central de grande escala,
exemplificada pelo Programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV). Neste percurso, especial esforço reflexivo em que se intenta evidenciar a convergência entre
política habitacional e mercado, é depositado neste segundo momento.
O período posterior ao fim do BNH seria marcado pela descontinuidade
da política habitacional. Nesta ausência de uma política habitacional de nível
federal, o poder local apresenta-se com diversas experiências de provisão de habitação, fortalecidos pela descentralização institucional e fiscal promovida pela
Constituição de 1988 (CF/1988).
O processo de descentralização encetado pela CF/1988 envolveu tanto
um movimento de poder decisório, como a criação e o fomento de capacidades
institucionais nos estados e municípios, promovendo, assim como a legislação
que a sucede, a ampliação considerável das responsabilidades dos municípios
referentes à proteção social e ao bem-estar.
Este panorama, pós-BNH, de ausência ou descontínua presença do poder
central no tocante à política habitacional sofreria inflexão a partir de meados
dos anos 2000 com o início de um processo de construção da política nacional
de habitação, sendo criados o Ministério das Cidades e o Sistema Nacional de
Habitação de Interesse Social (SNHIS) que tinham por princípios a participação
popular, o planejamento e a integração das políticas urbanas. Contudo, imerso
sob a alcunha de medida anticíclica à crise de 2008, o governo federal promoveria o lançamento do MCMV, fora do SNHIS e fortemente ancorado na iniciativa
e na participação do setor privado para a provisão de habitação.
O BNH, principal órgão do sistema habitacional do período ditatorial e
que se torna sinônimo do modelo habitacional do período, e o MCMV, expoente da política habitacional do governo petista, ocorrem em períodos temporais
distintos e distantes, todavia, guardam em comum a magnitude: ambos são programas habitacionais de grande escala. O modelo BNH foi desenvolvido e implementado em um contexto de Estado centralizado pela ditadura militar em que
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o poder central era dotado de mecanismos para alinhar estados e municípios a
suas políticas e programas.
Por outro lado, o MCMV emerge em um contexto de complexa relação
entre os entes federativos. Imerso neste panorama, uma questão impõe-se: quais
relações entre os entes federados viabilizaram o MCMV? E como é impactado o
poder local com o ancoramento da política habitacional promovida pelo MCMV
na iniciativa do mercado imobiliário?
No intuito de iniciar o caminho a estas questões depara-se com a trajetória de ampliação da agenda social e urbana do nível municipal de poder, mais
especificamente com a trajetória de assunção da atribuição de provisão habitacional pelos municípios, no período posterior ao BNH à emergência do MCMV,
percurso este em que se busca, lastreado em pesquisa bibliográfica, evidenciar a
capacidade do governo local para o planejamento e a implementação de políticas
sociais e urbanas neste nível de poder.
A análise insere-se no contexto de provisão pública de bem-estar social
sob a égide de reorganização das relações entre Estado e sociedade, enfocando a
dimensão local da produção de bem-estar especificamente a relação entre poder
local, provisão habitacional e mercado imobiliário.
Assumir a provisão habitacional no vazio institucional provocado pelo
desmantelamento da política habitacional com o fim do BNH, exigiria dos municípios a existência e o fomento de capacidades institucionais. Em sentido correlato, fomentar a adesão e o êxito de um programa da escala do MCMV sem
os mecanismos de alinhamento antes existentes no período militar exigiria do
governo central lançar mão de instrumentos e de instituições que favorecessem
a adesão do poder local e a indução das capacidades institucionais deste ente.
Contudo, ao alicerçar-se na iniciativa e participação do setor privado o MCMV
lega alheamento aos princípios do SNHIS, deixando ao poder local as responsabilidades por minimizar o crescimento de sua franja urbana e baixa capacidade
de interferir na localização e na qualidade dos empreendimentos.
O poder, o local e as capacidades
institucionais do poder local
O processo de descentralização encetado pela Constituição de 1988 envolve tanto um movimento de poder decisório (ARRETCHE, 1996), como a
criação e o fomento de capacidades institucionais nos estados e municípios. A
Constituição de 1988 e a legislação que a sucede promoveram a ampliação con-
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siderável das responsabilidades dos municípios referentes à proteção social e ao
bem-estar, optando pelo formato de competências concorrentes entre os entes
federativos para a maior parte das políticas sociais brasileiras. Fixou, ademais,
aumento de receitas tributárias que, todavia, mostrou-se insuficiente frente às
novas atribuições. Estas últimas, em processo de expansão da agenda social considerando a emissão de leis orgânicas tais como a da saúde, da educação e da
assistência social.
O panorama contemporâneo, contudo, não seria de ausência da instância
federal na agenda social, mas de exigência que os municípios ultrapassem a condição de meros executores, para, também, investirem na provisão e bem-estar
público, passando o governo municipal a exercer relevante função na entrega de
bens e na prestação de serviços aos cidadãos, sendo chamado a operacionalizar
“o acesso do cidadão aos bens e serviços urbanos e sociais aos quais têm direito”
(FILGUEIRAS & ANDRADE, 2010, p. 02). Assim, o modelo vigente no Brasil de
políticas sociais concebe, como afirmam as autoras, que os municípios também
possuam de forma própria a oferta de serviços e bens.
O nível local de governo, portanto, tomou ênfase na literatura especializada, mormente, após a promulgação da Constituição 1988 quando os municípios
são alçados a entes federativos. Esta ênfase enfoca aspectos positivos e negativos
deste âmbito de poder. O local é exaltado pela proximidade às demandas, à participação, à vigilância dos cidadãos à promoção de experiências de cidadania e
potencial demandante de uma estrutura mais ágil e flexível. Faz sentido supor
que tomando o espaço próximo – a cidade – tornam-se, mais próximos, poder e
cidadão. Todavia, esta mesma proximidade tão benéfica a priori, poderia facilitar
o exercício de gramáticas políticas corrompidas como o clientelismo e o patrimonialismo (NUNES, 1997) tão acercado estariam poder e elites locais identificadas como conhecedoras e praticantes assíduas dessas linguagens políticas.
A literatura acadêmica, como ressalta Dias (2012), também enfoca os dilemas e as tensões que envolvem competição e cooperação entre os esforços dos
diversos níveis de poder para a implementação da agenda social.
Dilemas e vantagens do poder local convivem, sendo simultaneamente
verdadeiros e parciais, o que demonstra a necessidade permanente de ajuste, de
construção deste nível de poder às demandas visto que as potenciais virtudes
não se confirmam de modo automático (FILGUEIRAS & ANDRADE, 2010).
A ampliação da agenda social do nível local de governo impôs, por conseguinte, novos desafios a este ente. A descentralização por si só de recursos e
atribuições não gera como uma resposta necessária, nem a adesão dos governos
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locais, nem as condições para que estes desempenhem exitosamente esta agenda
ampliada. Quanto à ausência destas condições, Filgueiras & Andrade (2010) observam que a carência de capacidade gerencial e técnica no âmbito local foram e
o são razões para o insucesso de muitos programas de descentralização.
Por meio do processo de descentralização de políticas públicas no país
tornam-se, os municípios, quer por iniciativa própria quer por iniciativa dos
outros níveis de governo, os principais responsáveis por implementarem programas sociais e urbanos. Esta responsabilidade vem requerer, embora de forma não exclusiva, capacidades institucionais locais. Capacidades estas que não
ocorrem necessária e rapidamente, nem percorrem trajetórias homogêneas nos
numerosos, diversos e díspares municípios brasileiros, dependendo da dinâmica
política e social interna a cada localidade (FARAH, 2011).
Ausência de capacidades administrativas e políticas, carência quantitativa
e técnica de recursos humanos, bem como financeira, compõe um cenário muito
presente nos governos locais brasileiros. Cenário este que somado à deficiência
de articulação e coordenação entre os níveis de governo, ao exercício de gramáticas políticas de cunho clientelista e patrimonialista e ao municipalismo autárquico desfavorecem o bom exercício das funções sociais e urbanas atribuídas ao
poder local, seja no âmbito do planejamento, seja no que tange à implementação
de políticas sociais (FILGUEIRAS & ANDRADE, 2010).
À capacidade administrativa e política deve ser acrescentada, para a assunção de atribuições de política social pelo governo local, a capacidade do governo federal de mobilizar aquela instância de poder a aderir às responsabilidades de provisão pública de bem-estar. Depende, portanto, da indução vertical à
adesão, considerando que, nas bases de nosso atual Estado, os entes federativos
são soberanos entre si, portanto, não submetidos a alinhamentos compulsórios
a um poder central.
Sob o contexto de ampliação da gama de atribuições do poder local, impondo a ele novos desafios e perspectivas importou-nos trazer neste trabalho um
brevíssimo olhar sobre a trajetória de assunção da provisão habitacional, pelos
municípios brasileiros temporalmente localizada no período pós-BNH. Acreditamos que a política habitacional represente o Estado e a política no nível urbano
conjuntamente. Nossa sucinta apresentação do panorama de descentralização
da política habitacional que perpassa pelo momento da “descentralização por
ausência” à indução vertical, busca evidenciar a relevância das capacidades institucionais para o êxito da produção e satisfação de direitos sociais e urbanos
marcantemente àqueles relacionados à habitação.
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Política habitacional e poder local:
descentralização por ausência
A agenda local, indica Farah (2012), que inicialmente estava centrada na
questão urbana foi se complexificando e diversificando, especialmente a partir do processo de democratização e da promulgação da Constituição de 1988,
abarcando novos atores, novas instituições e também novas questões públicas a
serem enfrentadas como a saúde, a educação e a assistência social. Esta perda
de centralidade no nível local também era reflexo, segundo a autora, do deslocamento da centralidade da questão urbana na agenda nacional que acarretaria o
“desmonte” das estruturas de financiamento da área habitacional.
Farah (2001) observa que a dinâmica da descentralização é variável considerando as condições políticas e sociais internas a cada localidade. Sob este
prisma argumentativo poderíamos supor que esta mesma dinâmica também varie conforme a provisão de bem-estar – a política particular – que se toma como
objeto de análise, em nosso caso, a provisão habitacional.
Dias (2012) destaca que a política habitacional brasileira nasce sob a
égide da centralização modernizadora dos governos militares, em que o Estado
possuía um papel decisivo como indutor do crescimento, apontando o BNH
como um exemplo da materialização desses princípios. Neste sentido, Arretche
observa que tanto as instituições federais quanto estados e municípios “eram
agentes da expansão do Estado e da execução local de políticas centralmente
formuladas” (1999, p. 114). Sob este contexto, a ação dos municípios era, como
argumenta a autora, essencialmente, de formular projetos de solicitação de recursos ao governo federal.
O Sistema Brasileiro de Habitação (SFH), financiado a partir de 1967 pelo
Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e pelo Sistema Brasileiro de
Poupança e Empréstimo (SBPE) delinearia, segundo Bonduki (2009), e pela primeira vez, malgrado seus limites e críticas, uma Política Nacional de Habitação
baseada em uma estratégia de intervenção na questão habitacional que tinha no
BNH uma estrutura institucional de abrangência nacional.
No entanto, a expansão do Estado a nível federal implicaria, também, o
fomento de organismos nos estados e municípios para a execução das políticas
como as COHABS “órgãos executores da política habitacional no local” (FARAH,
2012, p. 11). Dias (2012), no mesmo sentido, indica que no período posterior a
1964, as transferências de recursos, por meio dos fundos de participação, criariam a possibilidade de fortalecimento administrativo dos municípios.
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Rodrigues (2013) apresenta o período posterior ao fim do BNH como
envolto pelo ambiente da democratização, pelas pressões sociais e ações de âmbito municipais que irão questionar a centralização e o modelo de produção e
financiamento do BNH. Como principal crítica ao SFH, Bonduki (2009) indicou
a centralização da atuação na provisão de moradia pelo sistema formal da construção civil, a centralização da resposta governamental ao déficit habitacional no
mercado imobiliário privado.
A atuação direta dos municípios na provisão habitacional que se fomenta
neste contexto, é inicialmente caracterizada como “descentralização por ausência” (ARRETCHE, 2000, CARDOSO & RIBEIRO, 2000). Descentralização esta
indicativa de uma tendência descentralizadora existente antes mesmo da promulgação da Constituição de 1988 associada à desestruturação do modelo de
estado nacional desenvolvimentista. Esta assunção de atribuição pelo nível local
de governo dar-se-ia no vácuo ou no desmantelamento de uma estratégia nacional de política voltada para a habitação. Marcantemente a partir da extinção do
BNH em 1986, com a crise do sistema de financiamento conjugada à instabilidade institucional das políticas em âmbito federal pós-BNH, emerge, segundo
Bonduki (2009), um período de transição, conhecido como pós-BNH, em que
deixa de existir uma estratégia nacional para a habitação.
Para Arretche (1996), no período compreendido pela Nova República, as
áreas de habitação e desenvolvimento urbano percorreriam uma longa “via-crucis
institucional” como resultado da inexistência de uma estratégia nacional consolidada, evidenciada por uma dispersão e fragmentação institucional das bases
da política habitacional brasileira. Este vazio, porém, indica Bonduki (2009),
seria ocupado de forma fragmentária e pouco articulada por municípios e estados, havendo uma progressiva assunção de atribuições por estes entes. Arretche
(1996) aponta que, conforme se ausentava o governo federal na provisão de recursos para investimentos em habitação, aumentava-se, porém não em mesmo
percentual, a atuação do poder local em um processo que refletiria “a progressiva
autonomização das bases de formulação e implementação da política social de
habitação, como resposta à progressiva ausência do governo federal” (ARRETCHE, 1996, p. 15).
Arretche associa esta assunção da provisão habitacional pelo poder local,
identificável, segundo a mesma, por todo o país, todavia com significativo grau
de variedade, como uma resposta à ausência do governo federal no setor e uma
reação à elevação da competição eleitoral no então emergente contexto democrático, apontando o Estado e o município de São Paulo como exemplos emblemá-
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ticos e nós, apenas a título de ilustração, acrescentamos a emergência em 1989
dos primeiros programas habitacionais em que a proposta de autogestão passa a
fazer parte do rol de políticas públicas para habitação, figurando os municípios
de São Paulo, Diadema, Santo André e Ipatinga como pioneiros.
Esta fragmentação institucional e o papel secundário da política habitacional para o governo federal, com a assunção também fragmentária e desarticulada pelos municípios da responsabilidade pela provisão de moradia perduraria
até, segundo Dias (2012), o início dos anos 2000, quando o governo federal inicia
estratégia nacional que abarca o fortalecimento das capacidades institucionais do
poder local para a implementação de sua Política Nacional de Habitação.
Política habitacional e poder local:
indução vertical
A base federativa do Estado brasileiro, novamente promovida pela Constituição de 1988, impactaria, segundo Arretche (1999), no processo de descentralização das políticas sociais no país, visto que o governo central não mais contaria
com mecanismos de alinhamento de que dispunha no período militar, passar-se-ia
necessário, pelo princípio da soberania entre os entes da federação, que estes assumissem a gestão de políticas de bem-estar social sob a prerrogativa da adesão.
Adesão esta que subsume incentivos para se concretizar, tornando-se essenciais,
portanto, estratégias de indução capazes de mobilizar o poder local a aderir.
Sob o contexto em que a política urbana compete administrativamente
aos municípios, estes, todavia, dependentes do governo federal para dotação de
recursos para saneamento e habitação, visto que a maior autonomia fiscal proporcionada pela Constituição não foi equânime, dependendo do porte e da capacidade de arrecadação de cada um deles, nem necessariamente suficiente para
atendimento da demanda ampliada, dar-se-ia o novo panorama da habitação
no Brasil, embora, esta maior autonomia fiscal tenha proporcionado a adoção
por alguns municípios de porte médio e grande, iniciativas com certo grau de
independência do governo central (FILGUEIRAS & ANDRADE, 2010). Neste
panorama, Dias (2012) aponta que as instituições de política habitacional passam a embutir mecanismo de indução vertical de capacitação administrativa do
poder local.
Farah (2012, p. 12) mostra, no entanto, que esta preocupação do governo
central com a capacitação do nível local de poder em relação à implementação da
política habitacional já estava presente durante o período do BNH, exemplificada
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pelo PROMUNICIPIO (Programa de Assistência Técnica do Plano Integrado de
Apoio do Município) com “o objetivo de apoiar as administrações municipais no
aprimoramento de suas capacidades técnicas e operacionais e no planejamento e
elaboração de projetos de melhorias habitacionais (...)”.
Dias (2012) aponta que com a criação do Ministério das Cidades em
2003, marco institucional da valorização do papel constitucional dos municípios
na gestão urbana, o governo federal iniciaria um processo de indução vertical
das capacidades administrativas voltadas às políticas habitacionais dos governos
locais. Este processo é apontado pelo autor como condicio sine quae non para a
transmissão bem sucedida de atribuições sociais para o poder local, fortalecendo
a colaboração e a própria adesão deste âmbito de poder.
A criação do Estatuto da Cidade em 2001 disciplinaria o papel dos municípios na gestão urbana em atendimento à exigência constitucional, oportunizando um conjunto de instrumentos de intervenção sobre seus territórios e estabelecendo formas participativas de discussão das políticas urbanas. Desta feita, a
Constituição e o Estatuto da Cidade confeririam centralidade ao poder local no
desenvolvimento da política urbana, “fator que condicionava a formulação das
iniciativas habitacionais” (DIAS, 2012, p.79).
Com a aprovação em 2005 do projeto de lei que previa a criação do fundo
de moradia, denominado de Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social
(FNHIS), foram estabelecidos os elementos institucionais básicos para a criação
do Sistema Nacional de Habitação (SNHIS), ancorado em uma distribuição das
atribuições entre os três níveis de governo, em que se estabelecia um papel fundamental para o nível local na implementação da política de habitação. A adesão
ao sistema é imprescindível para que estados e municípios recebam recursos
federais. Para tanto, estes devem se comprometer com a criação de um fundo de
habitação, a ser gerido por um conselho com participação popular, bem como,
elaborar um Plano Local de Habitação de Interesse Social (PLHIS) que estabeleça
as bases da política em nível local.
Cardoso e Aragão (2013) defendem que a lógica de criação do Sistema
Nacional de Habitação de Interesse Social seria a de fortalecimento dos órgãos
públicos municipais e estaduais para a implantação de políticas habitacionais.
Os Fundos de HIS seriam, concomitantemente, mecanismos que permitiriam
aos municípios alavancar recursos próprios e potencializar os recursos federais
ou estaduais. Ao passo que os conselhos gestores dos fundos locais promoveriam uma maior participação social em relação ao uso dos recursos. Segundo os
autores, o fortalecimento da esfera de governo local indicava a necessidade da
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construção de uma nova cultura política e de novos mecanismos institucionais
para as ações de política urbana e habitacional. Para Dias (2012), com o SNHIS
o governo central passa a induzir de forma mais intensa a capacitação dos municípios. Segundo este autor, esta intensificação da indução das capacidades institucionais e, acrescentemos, indução à adesão, permitiria a criação das condições
para que o governo federal lançasse as bases do desempenho de um programa
de provisão habitacional da magnitude do MCMV que conta com a meta total de
3 milhões de moradias até o ano de 2014.
MCMV, mercado imobiliário e poder local
O lançamento do MCMV em março de 2009, com sua regulamentação
em julho do mesmo ano pela Lei 11.977 e uma segunda fase estabelecida em
2011 pela Lei 12.424 representa a consolidação da inflexão da provisão de moradia popular no Brasil que, como apontam Arantes e Fix (2009), já podia ser
identificada nas empresas de incorporação e construção imobiliária, com o direcionamento do mercado imobiliário, historicamente voltado para atendimento
aos grupos de maior renda, para a provisão de moradia popular. Frise-se que
cada uma das duas fases do programa objetiva construir 1 milhão de moradias
para famílias com renda inferior a 10 salários mínimos. Elaborado sob liderança
da Casa Civil e do Ministério da Fazenda e, segundo Fix (2011), sem participação
popular e sem mobilizar as estruturas operacionais já existentes do Conselho das
Cidades e do FNHIS e os próprios instrumentos previstos no Estatuto da Cidade,
o MCMV direcionaria recursos para atendimento à demanda de até três salários
mínimos para o Fundo de Arrendamento Residencial (FAR), fundo, destaque-se,
sem conselho.
O MCMV configura-se pela produção privada dos empreendimentos com
financiamento público sob a justificativa de que a construção civil apresentaria
rápida resposta ao programa, diferentemente das dificuldades e burocracias enfrentadas pelo setor público. Há, desta feita, uma escolha pelo governo central,
de um modelo em que o mercado imobiliário assume papel central na elaboração, viabilização e execução da provisão de moradia popular.
O MCMV marcaria esta citada inflexão do mercado por atingir o “problema da demanda” apontado por Ribeiro (1997), proporcionando subsídios e créditos para a aquisição da mercadoria moradia. Neste ponto, Shimbo destaca que
o programa foi apresentado como uma “política social de grande escala” (2010,
p. 93), todavia, também seria apresentado como “uma das principais ações do
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governo em reação à crise econômica internacional” (2010, p. 93), proporcionando crédito não só ao consumidor, como também ao capital incorporador e construtor como uma medida anticíclica (FIX, 2011). Seu slogan bem expressará sua
hibridez entre política habitacional e política econômica: “Moradia para as famílias/renda para os trabalhadores/desenvolvimento para o Brasil”. Este programa,
segundo Shimbo (2010), viria corroborar a ampliação do mercado para atender a
demanda habitacional de baixa renda, superando os limites de “demanda solvável” encontrados por incorporadoras e construtoras, consolidando princípios de
mercado na provisão de habitação de interesse social. Em consonância, Arantes
& Fix destacam o fato de que apresentação dos projetos para a produção de
moradia pelo MCMV ser incumbência das construtoras, proporciona que sejam “estritamente concebidos como mercadorias, rentáveis a seus proponentes”
(2009, p. 04).
Para Shimbo (2010) o MCMV viria formalizar a tendência perceptível,
desde meados dos anos 1990, de incentivo à provisão privada de moradia. Como
formalizador de uma tendência, o programa, defende a autora, não seria em si
uma “surpresa”, mas estaria conforme o que já se estruturava na política nacional
de habitação.
Todavia, conforme apontam Arantes & Fix (2009); Shimbo (2010); Fix
(2011) o MCMV não se propôs, assim como não o fez o BNH, a enfrentar o “problema fundiário” “apesar do consenso entre movimentos populares, militantes e
pesquisadores da área de que não há como desenvolver uma política habitacional sem enfrentar – o nó da terra” (FIX, 2011, p. 142). Persiste, desta feita, um
modelo de provisão privada de habitação social dissociados dos instrumentos
de democratização do acesso à terra previstos na Constituição de 1988 e no Estatuto da Cidade de 2001, estes resultantes de muitos anos de reivindicação dos
movimentos de Reforma Urbana. Como decorrência deste não enfrentamento,
Fix (2011) indica que os empreendimentos têm ido além dos limites das periferias urbanas, “ultrapassando os limites entre rural e urbano das cidades médias”
e aquecendo o mercado de terras.
“Minha Casa, Minha Vida”, nome de apelo publicitário que deixa entrever
a propagação do “ideal” da casa própria terá, originalmente, como público a ser
atendido, famílias com renda entre 0 a 10 salários mínimos1, estabelecendo um
patamar de subsídio direto proporcional à renda familiar, destinando-se, destaque-se, à produção e à aquisição de imóveis novos, não se aplicando a imóveis
1. Atualmente as faixas de renda mensal bruta do MCMV não são fixadas pelo salário mínimo,
equivalendo a um valor fixo.
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já edificados. Novamente frise-se a opção do governo federal em enfrentar o
déficit habitacional pelo binômio: casa própria e nova, bem ilustrado no slogan
do MCMV fase 2: “Mais 2 milhões de novas moradias: o maior dos sonhos cada
vez melhor”.
Segundo Lago (2012), o quadro histórico, em que cabe ao mercado imobiliário a função de regular a localização e a tipologia da moradia, passa por agravamento, considerando o boom imobiliário provocado com o Programa Minha
Casa, Minha Vida (MCMV), em certa medida, resposta governamental às empresas da construção civil, para a ampliação da demanda solvável no mercado habitacional. Sob a divisa do MCMV, o governo federal tendo “por objetivo promover
a produção ou aquisição de novas unidades habitacionais, ou a requalificação
de imóveis urbanos” (MCidades, 2014) abrigaria diversos tipos de programas
de produção habitacional, contidos dentro do subprograma intitulado Programa Nacional de Habitação Urbana (PNHU), dentre eles o MCMV-Empresarial –
compreendido pelas modalidades I e II – explicitadas a seguir –e o subprograma
denominado Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR), que, contudo, não
é nosso objeto analítico.
De forma bastante sucinta o MCMV apresenta quatro modalidades de
financiamento:
• Habitação para famílias com renda familiar mensal bruta de até
R$1.600,00 (faixa 1) – contemplando a aquisição de empreendimentos na
planta, pelo fundo especialmente criado pelo pacote;
• Habitação para famílias com renda entre R$1.601,00 a R$3.100,00
(faixa 2) e de R$3.1001,00 a R$4.300,00 (faixa 3) (nos casos de imóveis
situados em municípios integrantes de regiões metropolitanas ou equivalentes, municípios-sede de capitais estaduais, ou municípios com população igual ou superior a 250 mil habitantes, o teto é de R$5.400,00).
– financiamento às empresas do mercado imobiliário para produção da
habitação popular, priorizando a faixa 2;
• Operações coletivas urbanas em parceria com cooperativas habitacionais ou mistas, associações, demais entidades privadas sem fins lucrativos, para famílias com renda bruta mensal de até R$1.600,00 reais, organizadas de forma associativa a entidades;
• Crédito corporativo para infraestrutura- linha de crédito para financiamento de infraestrutura, interna e/ou externa aos empreendimentos
habitacionais, com recursos do Tesouro Nacional, para a produção de
habitação financiada pela Caixa Econômica Federal (CEF).
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Acerca das duas primeiras modalidades, que proveem de iniciativa exclusiva do mercado imobiliário, daí a denominação MCMV- Empresarial atribuída
pela literatura, Shimbo (2010) destaca se diferenciarem basicamente quanto ao
modo de sua operacionalização e às características do financiamento e do empreendimento. Na primeira modalidade que atende a faixa 1, após a alocação de
recursos da União provindos do FAR por área do território nacional, estado e
municípios realizam cadastro e seleção da demanda. Em paralelo, construtoras
apresentam projetos à CEF, gestora operacional do MCMV, sendo-lhes facultado
estabelecer ou não parcerias com estados, municípios, cooperativas e movimentos sociais. Desta feita, o beneficiário precisa dirigir-se à prefeitura, estado ou
movimento social para se cadastrar. Posteriormente, a CEF realiza a análise dos
projetos, contrata a operação, acompanha a execução da obra pela construtora,
libera recursos conforme cronograma e, finalizado o empreendimento, realiza
sua comercialização. Assim, nesta modalidade, a construtora vende a completude do que produzir para a CEF, sem gastos de incorporação imobiliária e de
comercialização, e, especialmente sem risco de inadimplência dos compradores
ou vacância das unidades (CARDOSO & ARAGÃO, 2013).
Nessa modalidade é que se encontram concentrados os subsídios, que podem ser entre 60% a 90% do valor do imóvel, com comprometimento de no máximo 10% da renda, em prestação mensal, pelo prazo de 10 anos. Fix e Arantes
(2009, p. 02) destacam que essa modalidade constitui-se uma “oferta privada ao
poder público” visto que cabe à construtora definir “o terreno e o projeto, aprova
junto aos órgãos competentes e vende integralmente o que produzir para a Caixa
Econômica Federal”. Em consonância, Cardoso e Aragão (2013) indicam que
o desenho do programa na modalidade empresarial, baseia-se, fortemente na
iniciativa das empresas o que acarreta distorções em relação à distribuição dos
recursos pelo território, assim, o MCMV não está presente em municípios que,
embora apresentem déficit representativo, não despertem o interesse econômico
das empresas do setor imobiliário.
Contemporaneamente, como informa Dias (2012) o governo central
apresenta-se como principal ator no planejamento e na implantação da política
pública de habitação, responsável pela oferta de recursos como os oriundos do
FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço), do SBPE (Sistema Brasileiro
de Poupança e Empréstimo), do FAR (Fundo de Arrendamento Residencial) e
do OGU (Orçamento Geral da União), sendo, ademais, responsável pelas diretrizes da política e controlador da CEF (Caixa Econômica Federal), gestora
operacional do MCMV.
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A função dos estados e municípios nesse programa tem-se restringido ao
papel de organizar a demanda por meio de cadastros encaminhados à CEF para
fins de seleção dos beneficiários. Ainda cabem a estes entes facilitar a produção
habitacional do mercado privado voltada ao MCMV por intermédio de desoneração tributária e a flexibilização da legislação pertinente (CARDOSO; ARAGÃO; ARAÚJO, 2011). A própria análise dos projetos passando pela contratação
do empreendimento estão adstritos ao campo de responsabilidade da CEF, não
oportunizando ao poder local possibilidade de influir na escolha dos projetos,
sua qualidade, seu tamanho e, principalmente, sua localização.
É possível supor, como de fato já apontam pesquisas sobre o MCMV, que
esta expressiva ausência do poder local e estadual, a inexistência de uma política
fundiária que acompanhe o programa combinados com a escolha explícita do governo central em enfrentar o déficit habitacional por meio da provisão da moradia
via mercado imobiliário acarretaria um novo – visto que já acontecido no período
BNH – processo de periferização geográfica de nossas cidades, um novo e acelerado
processo de horizontalização das fronteiras urbanas, com os custos sociais deste
processo. A escolha pela periferia favorece o lucro imobiliário seja pelo preço mais
barato, seja pelo tamanho dos terrenos, no entanto, os custos decorrentes são socializados entre usuários destas moradias surgidas por este modelo, toda a cidade e o
poder local que tem que se haver com a expressiva e rápida ampliação de demanda
por serviços e equipamentos públicos, sem, tampouco, ter sido oportunizado poder
decisório sobre localização, quantidade e qualidade dos empreendimentos.
Ao negligenciar as soluções e os projetos adotados pelos estados e municípios para atendimento à demanda habitacional desenvolvidos no vácuo de uma
política habitacional do governo central, e, lado outro, adotar procedimentos
“padrão” em todo território nacional, o governo central perde oportunidade de
favorecer experiências exitosas a nível local que busquem romper com resultados danosos já conhecidos do período BNH.
Neste contexto, nos advertem Cardoso; Aragão; Araújo (2011) tornar-se-ia
importante a ampliação do poder decisório dos municípios sobre as políticas,
buscando aproximar a facilidade de crédito habitacional às políticas dos governos locais de habitação de interesse social.
Considerações Finais
O processo de descentralização das políticas sociais e urbanas capitaneado pela Constituição de 1988, ampliou consideravelmente o papel dos governos
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municipais na implementação de programas sociais e urbanos. Esta ampliação
corroborada por argumentos que evidenciam as virtudes do poder local, no entanto, não significam o cumprimento automático desta promessa que associa,
necessariamente, poder local a vantagens da proximidade ao cidadão. Esta ampliação também traz consigo desafios e exigências que perpassam pela superação
de gramáticas políticas clientelistas e patrimonialistas, articulação e coordenação
com os demais entes, recursos financeiros e, especialmente para os fins deste
trabalho, consolidação de capacidades institucionais.
Nesta perspectiva, este trabalho buscou apresentar, sucintamente, o panorama de assunção de responsabilidades ligadas à provisão habitacional pelos municípios brasileiros no período pós-BNH, levantando algumas questões
relevantes da tríade: mercado, política habitacional e poder local. Enfatizou-se
o fortalecimento de capacidades institucionais do nível local de governo como
condição substancial para que este assuma com eficiência as atribuições de produção de bem-estar social e urbano, marcantemente a provisão habitacional,
lado outro, buscou-se apontar a baixa possibilidade do poder local influir sobre
os empreendimentos desenvolvidos pelo MCMV, programa habitacional de grande escala em que há uma escolha pelo governo central, de um modelo em que o
mercado imobiliário assume papel central na elaboração, viabilização e execução
da provisão de moradia popular.
A “descentralização por ausência”, processo em os estados e municípios
assumir a provisão habitacional no vazio institucional provocado pelo desmantelamento da política habitacional com o fim do BNH – experiência fragmentária e pouco articulada – exigiria destes entes, em especial do poder local, a
existência e o fomento de capacidades políticas, programáticas e operacionais
(FILGUEIRAS & ANDRADE, 2010). Correlatamente, fomentar a adesão e o êxito
de um programa da escala do MCMV sem os mecanismos de alinhamento antes
existentes no período militar exigiria do governo central aparelhar-se de instrumentos e de instituições que favorecessem uma dupla indução vertical: indução
da adesão do poder local e indução das capacidades institucionais deste ente,
que consideramos, parte importante do êxito quantitativo deste programa.
Conquanto, ao assentar-se fundamentalmente na iniciativa e na participação do setor imobiliário privado, o MCMV lega alheamento aos princípios
do SNHIS, não enfrentamento da questão fundiária por meio da mobilização
de instrumentos já existentes como os previstos no Estatuto da Cidade, bem
como, desconsidera as experiências forjadas pelos estados e municípios durante
o período de ausências do governo central na política habitacional, deixando ao
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poder local reduzido poder decisório, bem como as responsabilidades por minimizar o crescimento de sua franja urbana e baixa capacidade de interferir na
localização, na qualidade e na quantidade dos empreendimentos.
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Instituto de
Ciências Sociais
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Espaço público e mobilidade urbana:
Uma análise comparada do papel do espaço
público nas políticas de mobilidade urbana
de Bogotá e do Rio de Janeiro: o caso dos
projetos de BRT
Ana Marcela Ardila Pinto1
Leticia Parente Ribeiro2
1. Professora UFMG, Sociologia. [email protected]
2. (Professora UFRJ, Geografia). [email protected]
III Simpósio de Ciências Sociais: Cidade e Democracia
Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
Introdução
A recente difusão do modelo de transporte público coletivo conhecido
como Bus Rapid Transit (BRT) em diversas cidades do mundo tem suscitado
uma ampla discussão acerca do planejamento e da gestão da mobilidade urbana. O BRT tem sido promovido por agências de cooperação internacional e
órgãos multilaterais como uma solução eficiente, sustentável e econômica para
resolver os graves problemas de mobilidade que afetam as grandes cidades, se
comparado com outros modelos de transporte. Este sistema foi implantado em
mais de 181 cidades com contextos físicos, sociais e políticos diferentes (GLOBAL BRT DATA, 2014).
O BRT tem sido constituído em um modelo de mobilidade urbana a partir
das experiências internacionais de numerosas cidades que tem criado diferentes
estratégias para melhorar o transporte urbano. Na sua difusão tem sido fundamental a participação dos organismos internacionais como o Banco Mundial
(DENG; NELSON, 2011) e de agências internacionais de cooperação como o
Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento, ITDP. Especificamente
o ITDP, como organização social internacional sem fins lucrativos, assessora a
implementação técnica, de infraestrutura e de gestão do sistema. Esta organização tem contribuído, por exemplo, na elaboração de um Manual de BRT, Guia de
Planejamento (ITDP, 2008), que corresponde a um conjunto de lineamentos para
os BRT brasileiros, junto com o Ministério das Cidades.
Neste documento, o BRT é concebido como um sistema articulado de
ônibus de alta capacidade de transporte de passageiros, com gestão empresarial, linhas estruturadas, vias segregadas e exclusivas na maior parte das rotas,
tecnologias veiculares de baixa emissão, redes troncais ou corredores centrais,
localização das vias no canteiro central, estações estruturadas ao nível da plataforma e do veículo, sistemas de cobrança eletrônica fora do ônibus, incorporação
de sistemas de tráfego inteligentes, integração física e tarifária com sistemas de
alimentação e integração com outros modos de transporte (2008).
O modelo está sendo promovido como alternativa de rápida construção,
eficiente e de alto impacto positivo, em comparação aos altos custos de construção dos tradicionais sistemas de transporte baseados no metrô. Também é adotado como reação à crise dos sistemas de ônibus em virtude de sua fragmentação,
baixa qualidade e altos níveis de informalidade, e como um aperfeiçoamento de
soluções anteriores baseadas na criação de vias exclusivas, já implantadas em
várias cidades australianas, europeias e americanas (LERNER, 2009)
140
PINTO, A. M. A. e RIBEIRO, L. P.• Espaço público e mobilidade urbana...
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Boa parte do manual está baseado nas propostas dos prefeitos Enrique
Peñalosa, de Bogotá e de Jaime Lerner de Curitiba, principais agenciadores e
difusores do modelo. No manual, propõe-se a criação de redes de espaços públicos, como parte de um projeto de cidade orientado a favorecer os usos públicos
e a restringir a utilização do automóvel como principal modo de transporte.
Neste documento define-se a construção deste tipo de espaços como uma estratégia para melhorar o paisagismo da cidade, contribuir na operação do sistema
de transporte, garantir a segurança, diminuir os efeitos ambientais pelo uso de
combustíveis fósseis, atender as demandas de serviços dos passageiros, favorecer
formas de mobilidade alternativas, entre outros benefícios. A construção de ciclovias, praças, calçadas, passarelas, rampas, sinalizações, elementos de mobiliário, iluminação, não é considerada a partir desta perspectiva, como um elemento
acessório, mas como um eixo estruturante do modelo (ITDP, 2008).
A partir de um exercício de pesquisa comparada, analisamos as continuidades e descontinuidades na implementação deste modelo de transporte
coletivo, especialmente no que diz respeito ao papel dos espaços públicos na
formulação e implementação a partir da década de noventa. Observamos, em
primeiro lugar, como embora tenha características relativamente homogêneas,
o modelo é recontextualizado e adaptado ás condições locais, relativas aos arranjos políticos, físicos e sociais. Consideramos, em segundo lugar, que a compreensão do papel dos espaços públicos nos sistemas de mobilidade não tem
só consequências de ordem funcional, mas expressam diferenciais relevantes
em torno à definição atribuída pelos agentes políticos locais ao ideal de ordem
urbana, em termos da ideia de cidadania, de projeto de cidade e das formas
de sociabilidade e convívio entre os cidadãos. Em terceiro lugar, entendemos
que a forma de compreensão do conceito tem desdobramentos direitos sobre a
qualidade, quantidade e localização dos espaços públicos produzidos em cada
um BRT locais.
Para tal fim, realizamos uma comparação entre Bogotá, Colômbia e o Rio
de Janeiro, Brasil. Estas cidades apresentam características muito diferentes na
sua morfologia, condições ambientais, práticas culturais, tradições urbanísticas,
composição étnica. Porém, compartilham algumas características, tais como sua
posição no subcontinente sul-americano, um tamanho similar de sua população, próximo a 6.3 milhões de habitantes para o Rio (IBGE, 2014) e 7,4 para
Bogotá (DANE, 2012), níveis elevados de pobreza, segregação, violência e favelização (QUESADA, 2006). No entanto, também têm em comum o fato de que
as prefeituras municipais de ambas as cidades decidiram destinar uma porção
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importante de recursos públicos ao desenvolvimento de projetos de mobilidade
urbana baseados no fomento do transporte público e no desestímulo ao automóvel privado.
Nestas duas cidades a implementação do BRT ocorreu durante as últimas
duas décadas. Ainda que Curitiba tenha sido a primeira cidade onde o BRT foi
implantado e construído como um modelo de transporte público (há 31 anos),
Bogotá tem sido reconhecida como a experiência-modelo na operação deste sistema de mobilidade para grandes metrópoles e seu sucesso tem impulsionado
sua implantação em outras cidades.
Nesta cidade andina, o sistema, conhecido como Transmilenio, iniciou
sua operação no ano 2000 e atualmente conta com mais de 112 Km em 11 corredores, para transportar 2.185.617 passageiros. O caso do Rio de Janeiro é muito
mais recente, mas sua implantação tem sido resultado de uma forte parceria
entre o ITDP tem contado com a assessoria do prefeito bogotano Peñalosa (BRT
RIO, 2014). A implantação do sistema de BRT, denominado Ligeirão, começou a
ser divulgada em 2009, no contexto da escolha da cidade para sediar alguns dos
jogos da Copa de Futebol e os Jogos Olímpicos de 2016. O sistema inaugurou sua
primeira linha em 2012, denominada Transoeste e iniciou este ano sua operação
o BRT Transcarioca. Hoje o sistema transporta 2,765.600 mil passageiros e tem
14 corredores exclusivos para ônibus articulados. (GLOBAL BRT DATA, 2014).
Com a experiência destas duas cidades em mente, organizados o trabalho
em duas partes. Na primeira realizamos uma discussão teórica sobre o conceito de
espaço público e sua relação com a mobilidade urbana e destacamos as dimensões
física, política e social que estruturam a definição deste conceito. Posteriormente
apresentamos os resultados da comparação dos arranjos normativos da política de
mobilidade local e o papel atribuído aos espaços públicos nos diferentes instrumentos de planejamento urbano das duas cidades segundo estas dimensões.
Espaço público e mobilidade urbana:
uma dicotomia hegemônica
A relação entre os conceitos de espaço público e mobilidade urbana é
bastante problemática. Na maior parte dos estudos sobre a cidade produzidas
tanto na sociologia, como na geografia ou o planejamento, estes conceitos são
concebidos de forma dicotômica. De um lado, considera-se que os espaços públicos são lugares caracterizados pela densidade, riqueza e complexidade das
suas determinações material, política e social e pela promoção do encontro e da
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sociabilidade; enquanto os espaços de mobilidade são espaços abstratos, homogêneos e destinados fundamentalmente ao deslocamento (MÓDENES, 2008).
Existiria então uma oposição em termos físicos, que se traduz entre pontos e
fluxos, entre lugares e redes, entre praças e estradas. A morfologia destes espaços tem consequências na construção de uma esfera de sociabilidade, onde
esta dicotomia se expressa entre espaços de permanência e de deslocamento, de
apropriação e identidade comunitária e de espaços de circulação rápida, anonimato e mobilidade. O recuo da sociabilidade, da diversidade e da identidade está
associado também ao desaparecimento da esfera pública, traço político essencial
dos espaços públicos. Observa-se na literatura como esta oposição é formulada
entre espaços que fortalecem a esfera pública, o debate e o exercício da cidadania
e os espaços de massas.
O papel dos espaços públicos está intimamente ligado ao seu papel como
cenários materiais ativos no processo de configuração das práticas sociais. Em
razão de sua natureza física, foi-se criando um forte acordo em relação às características deste tipo de espaço em razão de aspectos tais como sua forma, uso e
acessibilidade. De fato, na maior parte dos trabalhos, o espaço aparece definido
a partir dos tipos morfológicos mais comuns, tais como praças, parques, ruas;
assim como também, pelo seu caráter multifuncional, sua riqueza estética e,
sobretudo, pelo livre acesso garantido pelas leis do Estado Moderno (SMITH &
LIGHT, 1997).
A definição sobre a sua materialidade inclui também um forte acordo em
relação ao que tem se denominado como a morte do espaço público, como resultado do urbanismo moderno e do planejamento regional. Entre os principais
autores que representam esta perspectiva estariam Jane Jacobs (1992), Richard
Sennett (2001), Jordi Borja (1998), Marc Augé (2001). De forma mais ou menos similar, criticam o urbanismo moderno pela criação de ambientes urbanos
homogêneos, áreas vazias, ruas degradadas, áreas em desuso, esvaziamento do
centro urbano, diminuição da competitividade e perda da dimensão da vida pública da cidade. Para eles, esses fenômenos são o resultado da institucionalização
das propostas da citada escola de pensamento no governo da cidade, baseadas
na ideia de controle da vida urbana, mediante a promoção da suburbanização, a
especialização funcional e a ênfase na mobilidade privada.
Segundo Jane Jacobs (1992), em seu trabalho icônico publicado nos anos
sessenta, The death and life of great American cities, para reverter o quadro de degradação urbana é preciso mudar as políticas públicas de planejamento. Jacobs
outorga um valor significativo às políticas vinculadas à revitalização das ruas,
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à promoção da diversidade de usos urbanos, à integração das áreas de favelas
e ao fortalecimento da identificação dos cidadãos. O Estado local, como agente
orientador do ordenamento, deve agir não no sentido de controlar e definir os
usos urbanos, mas para construir os cenários adequados ao desenvolvimento
da diversidade social e espacial e ao crescimento do potencial econômico e da
competitividade urbana.
No mesmo sentido da crítica realizada por Jacobs, Richard Sennett (2001)
considera que o urbanismo moderno, baseado em uma concepção mecanicista,
funcionalista e totalizante da cidade, pretende coordenar de forma massiva e
centralizada as estruturas públicas e privadas da cidade e as formas de convívio
da cidadania. Para ele o planejamento moderno está baseado em uma tecnologia
que constrói máquinas modernas, monofuncionais, que anulam o espaço para
o conflito, a diversidade. Os subúrbios urbanos e as grandes avenidas e estradas
que os conectam são expressão da perda da publicidade da cidade e das suas
possiblidades de exercício da liberdade.
Para Sennett, o urbanismo moderno, quando institucionalizado como
política pública, gera como consequência direta o recuo do espaço público, o
que se traduz no enfraquecimento do cosmopolitismo necessário à convivência
no contexto de uma sociedade diversificada. Os seres humanos modernos adotaram uma atitude passiva, e como consequência, uma menor capacidade para
a sociabilidade, menor conhecimento e confiança na vida pública. A agorafobia
urbana, ou o medo do público, e a suspeita, são atualmente características do
espaço urbano; e a homogeneização e segregação espacial, sua expressão física.
Segundo Sennett, a transformação dessa tendência exige uma mudança na disposição física das cidades e de seus espaços públicos. Os habitantes da cidade
devem aprender a viver os conflitos que resultam do encontro com outros e, para
isso, é preciso produzir espaços que diminuam os níveis de controle externo e
promovam a mistura social e cultural. Como eixo orientador do planejamento,
sugere a promoção de cidades anárquicas, alternativas à pretensão de controle
do urbanismo moderno. Defende a diversidade de usos, o aumento da densidade
e a descentralização do poder, medidas que devem contribuir para a geração de
contextos que obriguem os cidadãos a se encontrar, debater e enfrentar a dor que
produz a incerteza, o desacordo e a diferença.
Na mesma linha de análise adotada por Sennett e Jacobs, Borja (1998)
critica o urbanismo moderno por sua natureza funcionalista e os impactos dos
processos de globalização, mas considera que a política pública urbana, mediante a realização de projetos, é capaz de reverter as tendências que desestruturam
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os tecidos urbanos. Assim, fenômenos como a suburbanização, a baixa densidade, a desregulação, o zoneamento de usos e atividades de tipo monofuncional,
a especialização do centro e a construção de grandes rodovias são consideradas
pelo autor como responsáveis pela perda do direito à cidade de muitos cidadãos.
No mesmo sentido, Marc Augé (2001) vai construir seu famoso conceito
de não-lugar a propósito dos espaços destinados à mobilidade. Para este antropólogo, a sobremodernidade, caracterizada pelo aprofundamento do capitalismo,
do individualismo e da globalização, deixa em segundo plano a criação de espaços para a identidade, a relação e a história, e privilegia a produção de pontos de
trânsito, provisórios e dedicados ao consumo. As redes de transporte e os pontos
que as conectam são definidas como espaços, em oposição aos lugares.
Para boa parte da literatura, a expansão de espaços vazios, de não-lugares, gera como consequência, o desaparecimento do debate entre cidadãos. Os
espaços públicos foram associados, em termos políticos, ao desenvolvimento de
uma esfera pública de deliberação e debate, enquanto sua dissolução foi associada ao crescimento das massas, das organizações burocráticas e dos meios de
comunicação. Para autores como J. Habermas (1986, 2003) ou H. Arendt (2007)
a esfera pública constitui principalmente um espaço de publicidade, interação e
de comunicação face a face entre cidadãos livres para o debate público de ideias
políticas, éticas e morais. A esfera pública é concebida como um espaço metafórico entre o Estado e o mundo do trabalho, que supõe que os indivíduos possam
transcender os assuntos próprios aos âmbitos privado e íntimo para deliberar
sobre as decisões públicas de interesse geral e apresentar demandas para a construção de consensos discursivos. Essa publicidade estaria baseada na criação de
uma linguagem comum que permitiria o encontro intersubjetivo.
Para Hannah Arendt (2007), a esfera pública é produto de um processo
de construção social da realidade, do debate entre indivíduos diversos que, libertados da necessidade, tem a capacidade de serem políticos, de julgar e participar
na deliberação racional dos assuntos coletivos. No mesmo sentido, para Habermas (1986) a esfera pública e os espaços onde esse debate dos cidadãos é realizado desapareceram com o crescimento “da democracia de massas industrialmente
desenvolvida” e do aumento das atribuições do poder estatal (1986, p. 128), esses
lugares perderam sua função como espaços de encontro intersubjetivo para a
deliberação crítica. A despolitização da sociedade, a legitimação dos governantes
mediante formas plebiscitárias, entre outros fenômenos, significou para Habermas a privatização do debate público, o enfraquecimento da opinião pública e a
especialização das formas de representação e pressão política em organizações e
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partidos. O desenvolvimento desses processos esteve associado à emergência do
que Habermas denomina novos “meios de transmissão e influência” (1986, p. 123).
Os jornais, a rádio e a televisão, na sua condição de meios de comunicação de
massas, substituíram os antigos lugares públicos por sofisticadas técnicas de publicidade, que converteram os cidadãos em consumidores do espetáculo político.
A partir de outra orientação teórica, mais próxima ao marxismo, Henri Lefebvre (2006) propõe uma distinção no seu trabalho The production of
space, entre espaço abstrato e espaço diferencial, que constitui uma referência tanto no planejamento, como na geografia e no campo urbano. Na sua
crítica ao planejamento urbano francês, Lefebvre distingue entre a cidade
entendida como arte, como transformação estética, e a cidade produto, criada
pelo capitalismo. O espaço abstrato, produto das práticas espaciais de técnicos e urbanistas, implica a destruição das relações locais, o desconhecimento
das necessidades e experiências dos usuários do espaço e a construção de
espaços homogêneos, funcionais que contribuem para a reprodução do capital. Este espaço opõe-se ao espaço diferencial, aquele que é resultado da
apropriação e contestação dos cidadãos, é o espaço vivido e transformado
para fortalecer os vínculos e as identidades.
Com argumentos semelhantes, o geógrafo crítico David Harvey também
vai atribuir a perda da esfera pública dos espaços públicos à transformação da
cidade associada à emergência do modo de produção capitalista e ao seu processo de criação de espaços de mobilidade urbana, que converte os então cidadãos
ativos e beligerantes em apenas consumidores passivos. Em um trabalho sobre a
economia política dos espaços públicos, Harvey (2006) apresenta como exemplo
paradigmático desta relação o processo de transformação urbana de Paris a partir dos projetos de renovação urbana durante a era de Haussmann. Este processo
empreendido pelo barão, baseada na construção de bulevares, parques e jardins
e a abertura de cafés, permitiu o aumento do controle militar sobre a cidade, o
aumento da velocidade da circulação de mercadorias e a apropriação de espaços
comunais, que eram lugares da contestação e da manifestação política dos processos revolucionários que aconteceram na França durante as décadas de 1830
e 1840. Igualmente, criou cenários para a exibição do poder imperial, os quais
apoiaram a legitimação desta forma de dominação. Paradas militares, matrimônios imperiais, galas e desfiles, entre outras atividades festivas, converteram a
cidade em um espetáculo para ser consumido passivamente pelos cidadãos, sem
possibilidades de organização para contestar a ordem imperial e a nova ordem
econômica capitalista. Nas palavras de Harvey, “The effect, however, was to trans-
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form the citizen into a mere spectator and consumer. From this standpoint, the passivity
of politics was tentatively and at least momentarily secured” (2006, p. 25–26)
A postura teórica de Harvey e Lefebvre também é compartilhada por
autores como Don Mitchell (2003), Sharon Zukin (2008), Andrew Smith e Jonathan Light (1998), entre outros. Preocupados com problemas mais contemporâneos como os processos de globalização e crescimentos das grandes metrópoles
mundiais, segundo estes autores, os novos espaços construídos pelo grande capital, como estações dos diferentes meios de transporte, as estradas, as praças
administradas pelas multinacionais, promovem a circulação e integração rápida
dos indivíduos nos mercados globais, em detrimento das experiências de lugar,
da construção de identidades locais e do debate coletivo.
Pode-se dizer então que esta postura dicotômica tem atingido uma posição hegemônica no âmbito das ciências sociais. A mobilidade tem sido concebida
como o avesso do espaço público, como o inverso matemático a partir do qual
é possível definir um estado ideal e desejável de ordem urbana e de vida democrática, de convívio e de identidade. Porém, esta hegemonia está sendo discutida
por perspectivas divergentes que cada vez mais ganham relevância e é possível
vislumbrar seus desdobramentos tanto na produção acadêmica, como na construção das políticas urbanas.
A mobilidade: uma perspectiva
divergente para pensar a cidade
A construção deste pensamento dicotômico nas ciências sociais não é o
resultado de um processo isolado do lado daqueles preocupados pelos espaços
públicos, nem pela construção de outras práticas de apropriação e uso da cidade.
Pelo contrário, resulta de um diálogo com as formas como foi tratado o problema
da mobilidade, e mais especificamente do transporte. Grande parte das pesquisas até os anos setenta privilegiaram os problemas econômicos, técnicos e funcionais do movimento. Já depois dessa década, emergiram novos estudos que incorporaram a visão dos usuários, o problema da acessibilidade e, de forma mais
recente, outros aspectos relevantes relativos às dimensões sociais, culturais e
políticas, com o desenvolvimento do que se denominou a virada da mobilidade.
No âmbito da geografia e do planejamento regional, até meados da década de 1970, a maior parte das pesquisas privilegiava o estudo das interações
entre os lugares e dos padrões de distribuição espacial das atividades econômicas, especialmente na escala regional. Fatores como a distância, o tamanho po-
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pulacional, as funções das cidades, a estrutura do mercado de bens e serviços e
a organização do governo, eram considerados indicadores de atração dos lugares
e incorporados aos modelos de análise gravitacionais. As redes de transporte,
por sua vez, eram concebidas tanto como suporte dos fluxos quanto elementos
estruturantes das regiões econômicas. (SEGUÍ & PETRUS, 1991).
Diversas críticas foram feitas a este modelo de análise, especialmente à
sua visão abstrata do espaço, que desconsidera as configurações específicas das
áreas urbanas e regionais, bem como ao caráter mecânico atribuído às redes
de transporte, reduzidas à função de circulação. Uma das principais críticas ao
modelo tradicional enfatiza o escasso papel concedido aos indivíduos, tanto na
identificação das suas demandas de mobilidade, quanto na própria configuração
das redes, desconsiderando sua participação ativa na construção, interpretação
e valorização das mesmas Este debate ganhou força, sobretudo, a partir da década de setenta, quando se introduz a perspectiva dos usuários nos problemas de
transporte. (1991).
Outra importante contribuição a este debate foi introduzida, ainda na década de 1970, por Torsten Hägerstrand, a partir da abordagem conhecida como
Time Geography. O conceito de trajetórias espaço temporais, proposto pelo autor, se contrapõe à redução da mobilidade ao mero deslocamento espacial entre
dois pontos, ampliando-a de modo a considerar o conjunto de atividades que
são realizadas pelos indivíduos em um recorte temporal determinado (dia, mês
ou ano). Segundo esta abordagem, os indivíduos tomam decisões acerca de seus
deslocamentos a partir da construção de programas de atividades, levando em
consideração as diferentes restrições que a cidade e o sistema de transporte lhes
impõem (THRIFT, 1977).
A questão da acessibilidade foi outro dos elementos centrais destas discussões. Baseado na análise das demandas de transporte, foram identificadas
diferenças significativas nas oportunidades e capacidades que os indivíduos, objetos e informações têm de aproveitar os benefícios urbanos, espaciais e sociais
não apenas em função de sua localização, como também de suas características sociodemográficas, tais como a raça, a idade ou o gênero (KAUFMANN;
BERGMAN; JOYE, 2004). Diversas pesquisas evidenciaram que os idosos, crianças, negros, mulheres e pessoas mais pobres apresentam menores condições de
acessibilidade (CARDOSO, 2007). Entretanto, como argumenta Urry (2007), o
acesso aos bens e serviços considerados necessários para a inclusão social não
é algo fixo, pois depende dos próprios sistemas de mobilidade e de sua evolução. Além disso, em muitos casos, o caráter daquilo que os indivíduos e grupos
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considerados “excluídos” buscam acessar só é revelado por intermédio de novas
infraestruturas que realizam esta demanda latente. Logo, para determinar o grau
de desigualdade social engendrado pelas barreiras à mobilidade é necessário
saber o que as pessoas querem ou podem querer, onde desejam ir e quais são as
dificuldades encontradas para a realização de seus projetos.
Os problemas associados à percepção dos usuários também foram incorporados às pesquisas, a partir de abordagens comportamentais e, posteriormente, da utilização de métodos qualitativos como a etnografia, mapas mentais e
entrevistas, que procuram determinar as diferenças nas práticas de mobilidade e
na percepção dos indivíduos sobre mudanças ou inovações técnicas e sua relação
com variáveis socioeconômicas, sociais ou demográficas. Estes estudos também
consideram a dimensão espacial urbana como referência para a construção das
interpretações e das práticas dos agentes, procurando estabelecer como os indivíduos se deslocam na cidade e como valorizam os diferentes lugares.
De forma mais recente os estudos de mobilidade têm desenvolvido importantes críticas a partir de conceitos e métodos que fazem parte do que tem
se conhecido como o novo paradigma da mobilidade ou o mobility turn. Autores
como John Urry (2007), Tim Cresswell (2011), e Vincent Kaufmann (2002), entre outros, têm ido além do campo de estudos do transporte, para questionar o
lugar que o conceito de mobilidade tem ocupado na teoria social e tem evidenciado suas implicações para a compreensão da vida urbana em particular. Neste
sentido, têm contribuído na redefinição de conceitos da vida urbana como lugar,
identidade, sociabilidade, onde o movimento deixa de ser apenas um evento
transitório, vazio e abstrato, sem possibilidades para a construção da identidade
e de formas de convívio.
Para os autores da virada, a mobilidade não é mais considerada como
uma anomalia ou como uma atividade funcional realizada em um espaço-tempo homogêneo, pouco autêntico, mecânico, pouco ético, sem raízes. Procuram
entender o deslocamento como um evento que envolve narrativas, capacidades,
moralidades e estéticas (CRESSWELL, 2011). A mobilidade física e virtual é entendida como uma forma de aprendizagem, de desconstrução das identidades
rígidas, essencialistas (MASSEY, 2008), permitindo a criação de novas formas
de associação e novas formas de ser na vida (MÓDENES, 2008). É considerada
como uma experiência normal, complexa que articula e discute as formas de
distribuição do poder e de organização social vinculadas com o movimento.
As novas identidades associadas aos fluxos implicam o reconhecimento
das práticas de deslocamento. Caminhar, andar de bicicleta, ir de ônibus ou diri-
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gir constituem formas constitutivas da vida urbana; enquanto as ruas e calçadas
não são agora só espaços para circular, mas também parte da vida coletiva e para
o desenvolvimento de formas de interação complexas (WHYTE, 2009; JENSEN,
2006). A mobilidade questiona assim as identidades e instituições clássicas para
compreender a vida urbana, tais como lar, vizinhança e trabalho. Mas que deslocamentos pendulares, as práticas de mobilidade articulam diversos espaços
urbanos a partir de práticas, experiências, recursos e agentes, em uma complexa
rede física e sociabilidade. As identidades são produzidas através das redes de
pessoas, ideias e coisas se movimentando e não pela pertença a um espaço único,
compartilhado de habitação, seja este uma região ou um Estado (CRESSWELL,
2011). Constituem-se assim subjetividades móveis, que implicam diferentes formas de apropriação dos lugares.
Estas identidades estão associadas também às políticas de mobilidade, que
contribuem no aumento ou diminuição das capacidades de deslocamento, através
de criação de formas de acesso ao poder. A mobilidade não é um recurso distribuído de forma homogênea e cria formas de inclusão ou exclusão da vida urbana,
dependendo a inserção dos agentes nas redes de poder. Para alguns autores, a
mobilidade constitui um direito que deve ser reconhecido e incluído nas políticas
urbanas (FÉRÉ, 2011), ou como um direito fundamental para o desenvolvimento
da cidadania, que se expressa nos arranjos normativos (BLOMLEY, 1994).
A partir das diferentes contribuições destes estudos, é possível pensar
que as práticas de mobilidade e de uso do espaço público não necessariamente
correspondem a opostos de uma relação dicotómica. Mas que uma separação,
constituem formas diversas de publicidade e de construção de identidades, que
dependem da morfologia, ritmos e experiências dos agentes em cada contexto
espaço-temporal. Os agentes urbanos misturam e usam, segundo suas necessidades e preferências, lugares para ficar, para se deslocar, configurando deste
modo uma complexa rede de espaços urbanos em ritmos e velocidades diversas. Esses agentes também estão inseridos em redes que permitem ter maior ou
menor acesso e pelo tanto, mais ou menos motilidade, segundo sua posição e
relação com outros em diversos balanços de poder.
Os desdobramentos desta visão mais flexível e complexa da mobilidade
são múltiplos para o desenvolvimento da pesquisa sobre o papel dos espaços
públicos nas políticas de mobilidade urbana de BRT. Permite estabelecer alguns
critérios teóricos e metodológicos, que implica compreender, em primeiro lugar,
que não existiria uma forma homogênea de organização do espaço-tempo ou de
publicidade independente das condições locais. As práticas cotidianas, a morfo-
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logia dos lugares e as relações de poder em cada contexto, têm particularidades
que deveriam ser reconhecidas. Em segundo lugar, que os espaços locais não
são independentes e estão integrados em redes mais amplas nas quais circulam
ideias, pessoas e coisas. De tal forma, que os modelos viajam e permitem criar
universos compartilhados de significação. Em terceiro lugar, as relações de poder
em cada âmbito local definem regras e formas de acesso aos recursos que circulam em cada uma das redes, e em consequência, a distribuição desses recursos
na cidade evidência a forma como é exercida a cidadania. Por último, é relevante
realizar estudos comparados como alternativa para desconstruir os essencialismos locais ou o universalismo normativo. A comparação implica deslocamentos
nas formas de compreensão e representação, permitindo desnaturalizar o que
aparece como evidente para os habitantes de cada espaço local. Neste sentido, é
fundamental entender como essas diferentes lógicas, acima resumidas, operam
na formulação das políticas de mobilidade que constituem o objeto da comparação desta pesquisa, destacando seus eventuais conflitos ou acomodações mútuas.
Os espaços públicos da mobilidade
urbana em Bogotá e no Rio de Janeiro:
a construção das práticas de deslocamento
dos cidadãos nos arranjos normativos:
Materiais
Para efeito desta pesquisa, consideramos pertinente empregar o conceito de
política pública proposto por Dye (1992), definido como o conjunto de escolhas
que o governo decide realizar ou não. Estas escolhas são determinadas tanto pelos
instrumentos legais que definem as regras e direitos dos cidadãos, como pelos processos de negociação e concorrência entre os diferentes agentes que procuram sua
institucionalização no âmbito dos arranjos normativos. Os agentes sociais tentam
introduzir seus projetos, interesses e razões práticas nos quadros normativos e
construir novos arranjos sociais, baseados em uma leitura do espaço e dos contextos sociais nos quais devem agir (ETHINGTON, 1994). Desta forma, mediante a
formalização no marco das políticas públicas, as demandas dos agentes ganham
legitimidade, universalidade e capacidade de coerção (DYE, 1992).
As políticas públicas de mobilidade, em particular, constituem arranjos
normativos que orientam a produção de diferentes objetos, infraestruturas, regras e padrões físicos, os processos de formulação, gestão e manutenção das
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intervenções, a definição das instituições envolvidas, das formas de governo e
de coerção, assim como o suporte cognitivo dado à decisão (PFLIEGER, KAUFMANN & PATTAR, 2009). Essas políticas são mediadas tanto por condições
anteriores, como pelas visões de futuro da cidade. A criação de políticas públicas
é, portanto, resultado de um processo fluido de articulação e diálogo entre as
propostas dos agentes políticos em diferentes períodos e os acordos resultantes
de arranjos institucionais anteriores, cujos efeitos são mais estruturantes.
Para comparar as semelhanças e diferenças na construção das políticas
públicas de mobilidade e sua relação com o espaço público de Bogotá e do Rio
de Janeiro, empregamos como estratégia metodológica a proposta de análise de
informação qualitativa de Matthew Miles e A. Michael Huberman (1994). Em
primeiro lugar, coletamos os instrumentos de política pública elaborados pelos
governos nacionais do Brasil e da Colômbia e pelos governos locais do Rio de
Janeiro e Bogotá, a partir da dos anos 2000. Neste período há uma ampliação
dos debates relativos ao problema da mobilidade urbana e à necessidade de implantação de sistemas de transporte massivo. Incluímos planos de desenvolvimento territorial, planos diretores e os planos setoriais da política de mobilidade
e transporte urbano.
Quadro 1: Instrumentos normativos analisados
Rio de Janeiro
Plano Estratégico do Município do Rio de
Janeiro (2009)
Plano de Diretor de Desenvolvimento
Urbano Sustentável do Município
do Rio de Janeiro (2011)
Política Nacional de Mobilidade Urbana
(2012)
Plano estratégico do Município
do Rio de Janeiro (2013)
Bogotá
Política para Mejorar el Servicio
de Transporte Público Urbano
de Pasajeros (2002)
Planes de Ordenamiento Territorial
de Bogotá (2000, 2003 e 2004)
Política Nacional de Transporte
Urbano y Masivo (2003)
Plan Maestro de Movilidad
de Bogotá (2006)
Fonte: elaboração própria
Em segundo lugar, sistematizamos e organizamos esses discursos segundo fonte, lugar e data de publicação e registramos, literalmente, em uma matriz
descritiva, as diretrizes e os objetivos da política, os conceitos empregados, e as
estratégias e ações propostas. Posteriormente, realizamos um processo de redução
de dados, em uma matriz analítica, que consiste na simplificação ou abstração
dos principais conteúdos vinculando-os com outros conjuntos temáticos, mediante categorização. Retomando a definição de espaço público discutida ao início, as
categorias que empregaremos correspondem às dimensões física ou material, polí-
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tica e social. Por último, realizamos uma comparação das dimensões analisadas e
identificamos semelhanças e diferenças nas políticas das duas cidades.
A leitura das fontes normativas das duas cidades permite observar diferenças importantes no papel atribuído aos espaços públicos nos processos de planejamento urbano em geral e da mobilidade em particular. Em Bogotá, o espaço público assume um papel estruturante, reconhecido como um direito constitucional,
com um alto grau de regulamentação nos instrumentos locais. Ele aparece como
parte substantiva dos objetivos, dos instrumentos de gestão, objeto de regulação
específica e de desenvolvimento de um corpo administrativo. Esta posição é bem
diferente no caso do Rio de Janeiro. O espaço público aparece de forma muito menos frequente e importante como critério de ordenamento. Este fenômeno é bem
expressivo no caso, por exemplo, dos instrumentos de planejamento que orientam
as políticas de ordenamento do solo urbano, em três dos principais arranjos normativos: a Lei Orgânica do Município (1990), e os Planos Diretor do Rio de Janeiro
(1992 e 2010). Nos instrumentos esse conceito não é apresentado de forma direta
nem como objeto da lei, dos objetivos ou dos princípios gerais. Não se define um
conceito particular, nem o conjunto de bens considerados públicos. Ele é incorporado de forma mais específica em relação aos problemas de zoneamento e regulamentação dos usos do solo. Este caráter mais estruturante do espaço público no
caso Bogotano e mais funcional no caso carioca atravessa o desenvolvimento de
instrumentos normativos associados ao sistema de mobilidade de BRT, tanto nas
suas dimensões físicas, políticas e sociais.
A dimensão material dos espaços públicos nos
arranjos normativos que regulam os sistemas
BRT de Bogotá e no Rio de Janeiro
Nos arranjos normativos das duas cidades é possível ver a estreita interdependência entre o papel dos espaços públicos e o planejamento da mobilidade
urbana, pelo menos em dois eixos: o primeiro consiste na transformação do modelo de cidade e sua relação com os sistemas de transporte coletivo, e o segundo,
o papel dado às formas de mobilidade alternativa. Estes dois eixos aparecem com
força nos instrumentos de planejamento bogotanos e cariocas, ainda que com
diferenças significativas.
De forma semelhante, nas duas cidades procura-se fortalecer um modelo de planejamento baseado na visão de uma cidade densa, compacta, contínua
e integrada a través de sistemas de transporte sustentável. O sistema de transporte coletivo é considerado como um eixo estruturante do ordenamento e
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do crescimento urbano, em detrimento da cidade moderna, baseado na lógica
de suburbanização e mobilidade vinculada ao automóvel privado. Pretende-se
deste modo, diminuir a conurbação e expansão a partir do fortalecimento do
transporte público coletivo, o qual deve permitir a organização e ordenamento
dos polos geradores de viagens, assim como reduzir os deslocamentos às áreas
centrais e mais consolidadas da cidade. Procura-se deste modo, diminuir os
custos associados à congestão nas viagens entre áreas centrais e áreas residenciais. Neste modelo de ordenamento, o sistema de mobilidade é concebido
como o articulador entre os usos do solo, as centralidades urbanas e os diferentes serviços públicos.
Entretanto, existem diferenças significativas nos modelos territoriais. No
Rio de Janeiro o modelo promove a integração dos diferentes modos de transporte coletivo para evitar o crescimento e aumentar a densidade urbana. Incluem-se
uma maior variedade de modos de transporte coletivo, como o metrô, as barcas,
os ônibus, os trens, as vans, enquanto em Bogotá, a política local promove fundamentalmente o BRT como modo coletivo estruturante. Na capital colombiana,
os projetos de mobilidade são concebidos como componentes estruturantes das
operações urbanas de renovação e requalificação das áreas centrais e das periferias mais pobres, sob o princípio de equidade territorial de distribuição de
equipamentos e serviços urbanos.
Estas diferenças no papel do BRT e dos outros modos de mobilidade
têm desdobramentos importantes em termos dos espaços públicos. Na definição do BRT colombiano se contempla o desenvolvimento de operações urbanas nos seus critérios de implantação, que inclui a construção de uma ampla
rede de espaços públicos que integre os serviços de mobilidade, com as áreas
residenciais e os serviços urbanos. Estas operações implicam transformações
de renovação e requalificação nas áreas próximas das vias destinadas ao transporte massivo. Em uma definição bastante abrangente e sistémica, são considerados como espaços públicos as próprias vias exclusivas de circulação dos
ônibus do sistema, as vias para carros, assim como as estruturas para acesso
aos ônibus, as calçadas ao longo das vias exclusivas, as passarelas, as ciclovias,
as praças e os parques construídos e o mobiliário urbano (AlCALDÍA MAYOR
DE BOGOTÁ, 2004. Enquanto no Rio de Janeiro se concebe o BRT como uma
rede de vias especializadas para a circulação de ônibus articulados. Nem as
vias, estações ou calçadas são consideradas como espaços públicos. Também
não se estabelece a construção integrada de ciclovias como parte integrante
do BRT, ainda que sejam componentes centrais no marco de um sistema de
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mobilidade urbana.
A dimensão política dos espaços públicos:
a definição de cidadania em movimento
Os instrumentos de política pública observados apresentam continuidades relevantes na definição da ideia de cidadania em termos da mobilidade e do
espaço público. Nas duas cidades a mobilidade é definida como um direito que
garante o cumprimento de outros, como a qualidade de vida, um ambiente saudável e a dignidade humana. Estas políticas reconhecem no deslocamento uma
forma de exercício da cidadania e de apropriação da cidade. Confere aos usuários
o papel de agentes ativos da mobilidade, tirando o foco no transporte, como foi
bastante corrente no planejamento dos deslocamentos urbanos. Porém, há diferenças notórias no que diz respeito à própria natureza de quem se considera o
usuário do serviço.
Em Bogotá, esta condição é conferida às diversas formas de mobilidade,
tais como ciclista, pedestre, motociclista, entre outros, enquanto no Rio de Janeiro só têm esse estatuto os usuários do transporte público coletivo. Esta diferenciação, como foi expressado acima, tem consequências nos critérios espaciais
definidos para a construção dos espaços públicos do sistema, na implantação
ou não de dispositivos espaciais para garantir a mobilidade. Em termos mais
específicos, encontramos diferenças em relação à definição dos tipos de agentes
que são reconhecidos como usuários, situação que confere maior visibilidade
pública. Em Bogotá, os pedestres são considerados como o agente prioritário do
sistema de mobilidade, enquanto no Rio de Janeiro seu valor está restringido ao
momento da circulação. Esta posição de notoriedade tem uma tradução relevante no papel concedido aos espaços usados por estes agentes de mobilidade. O
Estado tem a função de regular e incorporar as redes de pedestres aos sistemas
de mobilidade. Em consequência, a definição colombiana é mais abrangente em
comparação com um olhar mais funcional e restrito no caso carioca.
Outros usuários relevantes dos sistemas de mobilidade são os ciclistas.
Em ambas as cidades os marcos normativos preveem a ampliação da rede de vias
dedicadas ao uso de bicicletas e a articulação das ligações deste modal ao sistema
de transportes públicos, com dotação de equipamentos específicos para este fim.
Tanto em Bogotá como no Rio de Janeiro, enfatiza-se o aspecto comportamental,
através do estímulo à cultura da bicicleta e à sensibilização dos demais usuários
do sistema de transportes para as peculiaridades desta forma de mobilidade, for-
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temente associada à promoção da sustentabilidade ambiental. No Rio de Janeiro,
o uso da bicicleta esteve tradicionalmente vinculado às atividades de lazer, especialmente na orla da cidade. Contudo, a ampliação da malha cicloviária na zona
oeste, área de expansão urbana da cidade, atesta o reconhecimento pelos agentes
públicos de que o uso deste modo de transporte constitui uma alternativa de mobilidade intensamente praticada, sobretudo pela população de baixa renda. Em
Bogotá a rede cicloviária aparece como um elemento articulado à rede de BRT e
é prevista na norma a obrigatoriedade de construir equipamentos e mobiliários
que permitam esta integração. De outro lado, a diferença do Rio, em Bogotá o
uso de bicicleta é concebido como uma alternativa de baixo custo que garante o
acesso à mobilidade a populações de mais baixa renda.
Outro tema importante da definição de cidadania tem a ver com a inclusão
de agentes excluídos do sistema. Por meio da incorporação do conceito de mobilidade reduzida, os instrumentos da política reconhecem a heterogeneidade que
caracteriza as condições individuais de deslocamento na cidade. Preveem também
a capacitação dos agentes públicos e da comunidade em geral para a compreensão
das características particulares deste tipo de mobilidade. Os instrumentos legais
que regem a política de transporte das duas cidades incorporam o princípio da
acessibilidade universal, o qual supõe o provimento de um ambiente seguro e
acessível para pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida e para usuários vulneráveis. Supõem a adequação das vias, das calçadas, dos equipamentos urbanos e
dos meios de transporte às necessidades destes agentes. As diferenças encontradas
nas duas cidades têm a ver com a definição desta forma de exclusão. Em Bogotá, a
mobilidade reduzida é assimilada a uma limitação do indivíduo para realizar suas
atividades diárias e, de forma mais geral, para se relacionar com o entorno urbano.
A partir da definição dos agentes de mobilidade é possível observar que
ainda que nas duas cidades são incorporados os critérios da diversidade de agentes e sua importância para a construção da cidadania, na garantia dos direitos,
há diferenças relevantes na sua concepção, que se expressam nos critérios de ordenamento socioespacial. Em Bogotá, estes agentes são definidos de forma mais
abrangente em um sistema que estabelece as articulações entre formas de deslocamento e infraestruturas, enquanto no Rio de Janeiro, o sistema de mobilidade
é concebido de forma mais funcional e aparece restrito ao âmbito da circulação
em geral e do transporte em particular.
A dimensão social dos espaços públicos: a regulação
dos encontros dos agentes da mobilidade
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Para a compreender a dimensão social dos espaços públicos do sistema
de mobilidade, observados dois eixos de análise. De um lado, o problema a atribuição dos recursos urbanos escassos e de outro, a construção de uma ordem
social e da regulação do convívio dos cidadãos. Estes dois critérios aparecem nos
instrumentos, com diferentes pesos.
Em primeiro lugar, observamos a importância que foi atribuída nas duas
cidades ao transporte e a mobilidade como um instrumento fundamental na garantia do acesso dos cidadãos aos serviços e equipamentos urbanos. Entende-se
a mobilidade como uma forma de garantir o uso e apropriação da cidade a partir
da conexão de áreas, bens e serviços urbanos. Para tal fim, nos diferentes instrumentos observados define-se a necessidade de integrar os diferentes modos de
transporte existentes na cidade e estruturar esta rede a partir do sistema operacional de transporte coletivo. Pretende-se desta forma, atribuir mais importância
ao transporte público como uma forma mais eficiente de distribuir os recursos da
sociedade e diminuir a desigualdade e segregação socioeconómica. O privilegio
do transporte público é entendido em oposição ao transporte privado automotor.
Este é visto como o sinónimo do privilégio de uma minoria em detrimento da
qualidade da maioria, que redunda no detrimento da qualidade de vida urbana
e na equidade socioeconómica. Definem-se, em consequência, restrições maiores
à circulação de veículos privados, em tempos de maior congestão, assim como
também em áreas de valor patrimonial, ambiental ou de uso coletivo.
Também podemos reconhecer nos arranjos, a tentativa de construir uma
ordem urbana que permita criar contextos mais regulados de convívio. O privilégio concedido em geral aos bens de uso comum, pelo seu papel como cenários
de convívio social e, aos espaços públicos em particular, como uma forma para
aumentar o cumprimento de normas de trânsito e organização das atividades
urbanas. A principal estratégia prevista consiste na requalificação dos espaços públicos, baseada no princípio de segregação das diferentes formas de uso,
como forma de evitar os conflitos derivados do encontro das diferentes formas
de uso. Definem-se por exemplo, medidas como a implantação de faixas, pistas
e corredores exclusivos com gerenciamento e controle da operação, proibição de
estacionamento nas calçadas e remoção de qualquer veículo que prejudique a
circulação das pessoas, especialmente dos pedestres, segregação de faixas para
ciclousuários, com sinalizações especializadas e melhoria da acessibilidade para
pessoas com mobilidade reduzida, com sinalização e facilidades específicas.
No entanto, há diferenças significativas. Em Bogotá a implantação do sistema de BRT é concebido como um elemento essencial para fortalecer a cultura
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cívica da cidade e a ampliação do grau de pertencimento dos habitantes com a
cidade. O sistema de transporte não cumpre tem então só um caráter funcional,
como simbólico, na construção de um ideal de vida coletiva, que favoreça o
cumprimento de regras de civilidade e a criação de formas de identidade com
a cidade. Busca-se a identificação dos cidadãos com o projeto de modernização,
criando uma forte oposição entre uma ordem formal e institucionalizada, a uma
ordem informal, caótica e imprevisível. No Rio de Janeiro, o sistema é compreendido de forma mais funcional e específica ao seu caráter como modo de transporte. São valorizados nos instrumentos aspectos como a melhora as condições
ambientais, de segurança e sua eficiência na diminuição dos tempos de viagem.
O espaço público foi entendido como espaço de exercício da cidadania,
como cenário de debate e de construção de regras para melhorar o convívio,
como referente na construção de identidade e apropriação do território pelos
cidadãos. No Rio de Janeiro o espaço público é considerado o espaço onde é possível realizar e dar visibilidade à estratégia de ordenar a cidade, especialmente
no que tange à promoção do cumprimento de normas, organização do comércio
irregular e o ordenamento do transporte coletivo irregular sobre o princípio de
ordem urbana. Assim, intervir no espaço público permite integrar na legalidade
os usos urbanos informais e favorecer a circulação e o uso dos pedestres.
Considerações finais
A comparação dos arranjos normativos da política local sobre o papel dos
espaços públicos na mobilidade urbana e no sistema BRT de Bogotá e do Rio
de Janeiro permite colocar em evidência que a implementação de modelos de
transporte não é produto de uma decisão estritamente técnica ou de ordem financeira. Pelo contrário, os arranjos normativos analisados expressam diferentes
visões sobre um mesmo modelo, que dizem respeito das representações sobre
as dimensões físicas, políticas e sociais que os agentes locais constroem sobre a
vida coletiva e de seus diversos desdobramentos na implantação dos projetos.
O modelo de BRT faz parte de uma visão inovadora de planejamento urbano
que valoriza a perspectiva dos usuários, os impactos e determinantes ambientais
numa perspectiva de longo prazo e a criação de espaços para o fortalecimento da
cidadania e do público.
A análise das políticas nacionais e locais que ordenam o setor da mobilidade evidenciou que mais do que uma oposição entre espaços públicos e redes
de mobilidade, há uma forte convergência entre os dois conceitos, que depende
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do valor que cada um destes elementos tem na política local. Assim, por exemplo, em Bogotá há uma visão sistêmica desta relação, na qual os espaços de mobilidade são considerados espaços públicos, e ao mesmo tempo, os tradicionais
espaços públicos são considerados como elementos que devem ser integrados
nas redes de mobilidade, para permitir seu uso. No Rio de Janeiro, esta relação é
mais distante e os espaços de mobilidade apresentam uma função mais especializada, orientada a favorecer a circulação. A relação com os tradicionais espaços
públicos depende mais das articulações realizadas pelos próprios usuários através das suas formas de uso.
Este caráter sistêmico também se traduz na função da mobilidade como
elemento estruturante da vida coletiva da cidade. Em Bogotá, foi atribuída aos
espaços do BRT funções de ordem urbanística, de integração socioeconômica, de
eficiência urbana. No entanto, também teve a função de representar uma nova
ordem de cidade e um novo arranjo na definição de cidadania, a partir do reconhecimento das práticas de mobilidade. No Rio de Janeiro, estas funções estão
mais centradas na circulação e integração de áreas urbanas carentes dos serviços
de transporte e da intervenção do Estado.
Esta revisão deixa na verdade mais dúvidas que certezas. Vários desafios
deverão ser encarados, entre os quais podemos mencionar a análise desses arranjos à luz das intervenções físicas e das formas de apropriação dos cidadãos nas
suas práticas cotidianas. Também será importante estabelecer o papel que estas
discussões têm na construção da esfera pública local e suas transformações nos
diferentes projetos dos prefeitos locais. Por último, será necessário avançar na
análise das diferenças nas políticas agenciadas pelas diferentes escalas de governo em cada país, dado que os pactos de organização do Estado influenciam na
definição do investimentos e implementação de cada projeto urbano.
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III Simpósio de Ciências Sociais: Cidade e Democracia
Instituto de
Ciências Sociais
Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
O monitoramento de projetos públicos
de mobilidade urbana e infraestrutura
rodoviária: contribuições e desafios para o
desenvolvimento democrático
Karen Christine Dias Gomes1
1. Pós-graduação lato sensu em Gerenciamento de Projetos – IEC PUC Minas. karen_
[email protected]
III Simpósio de Ciências Sociais: Cidade e Democracia
Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
Introdução
Ao longo dos anos 1990, a administração pública federal se propôs a realizar uma reforma administrativa do Estado, tendo como uma de suas orientações
a evolução para uma administração pública “gerencial”, na qual se aplicariam
conceitos de eficácia e de eficiência, de controle de resultados e de descentralização em direção ao cidadão (BRASIL, 1995, p.7), de forma a, dentre outros
objetivos, “aumentar sua [do Estado] ‘governança’, ou seja, sua capacidade de
implementar de forma eficiente políticas públicas” (BRASIL, 1995, p.11).
Nesse contexto, a administração pública de um dos entes federados do
Brasil se propôs, a partir de 2003, a desenvolver um processo de reforma administrativa, o qual visava à modernização da gestão pública mineira, de acordo
com Correa (2007). Entre 2007 e 2010, desenvolveu-se uma Segunda Geração
desse processo, voltada para a focalização de resultados mais concretos a serem
entregues à população local. Por fim, a partir de 2011, deu-se início à Terceira
Geração dessa reforma, cujas bases seriam a Gestão para a Cidadania e a construção de um Estado em Rede. Ressalta-se que as bases desses modelos, quais
sejam qualidade do gasto público, equilíbrio fiscal e foco nos resultados, se mantiveram ao longo da sucessão de gerações do processo (VILHENA;LADEIRA,
2012, p. 4).
Uma das principais ferramentas utilizadas nesse processo foi a perspectiva do planejamento estratégico da ação estatal baseada em resultados, com
a consequente priorização de determinados programas e políticas públicas, os
quais teriam fluxo de recursos orçamentários mais expressivo e seriam gerenciados mais qualificadamente, atualmente segundo metodologias específicas
de gestão de projetos e de gestão de processos. Tais metodologias preconizam,
dentre outras características, o monitoramento intensivo das entregas e realizações desses projetos, sendo as informações consolidadas em sistemas corporativos específicos. Esse conjunto de políticas públicas constitui a chamada
carteira de Programas Estruturadores. A definição de quais programas estruturadores e de quais projetos e processos estratégicos compõem essa carteira é
realizada mediante o uso de instrumentos de planejamento estratégico e tático.
Os instrumentos de planejamento de longo e médio prazo atualmente vigentes
para esse estado estabelecem projetos de mobilidade urbana e infraestrutura
rodoviária aos quais é aplicada a metodologia preconizada pelo Guia do Conhecimento em Gerenciamento de Projetos (PMBOK), atualmente em sua 5ª
edição (PMI, 2013).
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GOMES, K. C. D. • O monitoramento de projetos públicos de mobilidade urbana...
III Simpósio de Ciências Sociais: Cidade e Democracia
Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
Nesse sentido, o objetivo geral do presente trabalho é contribuir para as
discussões referentes ao monitoramento de projetos públicos e seu impacto para
o aprimoramento da democracia, em especial no que tange a ações relativas ao
espaço urbano. Especificamente, pretende-se:
• levantar os principais conceitos teóricos relativos ao monitoramento de
projetos públicos e ao desenvolvimento democrático;
• apresentar o contexto institucional-legal em que se realizam os projetos
públicos de mobilidade urbana e infraestrutura aqui estudados;
• analisar as contribuições e os desafios da atual metodologia de monitoramento dos projetos de mobilidade urbana e infraestrutura rodoviária
desenvolvidos pelo ente da federação brasileira estudado para o desenvolvimento democrático.
Entende-se que o presente trabalho se justifica, pessoalmente, pelo fato
de a autora ser servidora pública efetiva alocada na unidade administrativa responsável pelo monitoramento de alguns dos projetos e processos estratégicos
organizados nos Programas Estruturadores e perceber contribuições e desafios
dessa prática para o desenvolvimento democrático. Em termos mais amplos,
entende-se que os projetos de mobilidade urbana e infraestrutura rodoviária e
seu monitoramento são relevantes por sua complexidade, o volume de recursos
que recebem e o impacto exercido sobre a população beneficiada, entendendose como relevante analisar suas contribuições e desafios. Ressalta-se que, aqui,
considera-se a democracia tanto em sua vertente representativa quanto no seu
aspecto de controle democrático.
Procurando discutir essas questões, o presente trabalho se organiza, além
desta Introdução, na Seção 2 – Monitoramento de projetos públicos e desenvolvimento democrático: conceitos, significados e contexto, no qual são apresentados conceitos, abordagens teóricas e o contexto institucional-legal a respeito
do tema com o qual o trabalho se identifica e que balizam as proposições ora
feitas; Seção 3 – Tratamento Metodológico, em que são registradas as técnicas de
pesquisa científica utilizadas para responder os problemas e atingir os objetivos
da presente pesquisa; Seção 4 – Contribuições e desafios do monitoramento de
projetos públicos de mobilidade urbana e infraestrutura rodoviária para o desenvolvimento democrático, em que são registrados os resultados obtidos a partir
da análise dos dados selecionados; e Seção 5 – Considerações finais, no qual são
sintetizados os resultados obtidos, tecidas algumas conclusões a que se foi possível chegar e sugeridos assuntos para novas pesquisas suscitados pelo trabalho;
além da indicação das Referências Bibliográficas.
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Monitoramento de projetos públicos
e desenvolvimento democrático:
conceitos, significados e contexto
Para a adequada compreensão do presente trabalho, faz-se necessário
apresentar as definições com que se vai trabalhar. E a primeira delas é, exatamente, a respeito de projetos. O PMBOK 4ª edição define projeto como “um
esforço temporário empreendido para criar um produto, serviço ou resultado
exclusivo” (PMI, 2008, p.5). Citando Tuman (1983), Carvalho e Rabechini Jr.
(2011) também apresentam a definição de que
um projeto é uma organização de pessoas dedicadas que visam atingir um
propósito e objetivo específico. Projetos geralmente envolvem gastos, ações
ou empreendimentos únicos de altos riscos e devem ser completados numa
certa data por um montante de dinheiro, dentro de alguma expectativa de
desempenho. No mínimo, todos os projetos necessitam ter seus objetivos
bem definidos e recursos suficientes para poderem desenvolver as tarefas
requeridas (TUMAN, 1983 apud CARVALHO;RABECHINI JR., 2011, p. 21).
Por sua vez, é preciso registrar que os projetos públicos possuem especificidades que devem ser levadas em consideração quando de sua gestão e de
seu monitoramento, tais como a responsabilidade com a promoção do interesse
público; o foco no cidadão, em certos aspectos assemelhado ao cliente do projeto; o contexto político em que são desenvolvidos e sua relação com a formação
e implementação de políticas públicas; a observância do princípio da legalidade
em seu sentido estrito (fazer apenas o que possui previsão legal); submissão a
sistemas de controle interno e externo. Outras peculiaridades dos projetos públicos se referem às próprias áreas de seu gerenciamento, como a observação da
legislação de licitações no que tange às aquisições; a necessidade de concurso
público ou previsão legal de cargos em comissão de recrutamento amplo, e suas
consequências, quanto à gestão de recursos humanos; vinculação da gestão de
custos às questões de execução orçamentária. Além disso, o ambiente em que os
projetos públicos são realizados é tipicamente burocrático, com toda a sua racionalidade e também com seus desvios, identificados como o controle imperfeito, o
conservadorismo crescente, a maximização do orçamento e o burocrata do nível
da rua; para estes, a Nova Gestão Pública propõe respostas predominantemente
voltadas para a aproximação da administração pública de um estilo mais gerencial tipicamente observado na administração privada.
Por sua vez, cabe destacar os aspectos relacionados à democracia, foco do
presente trabalho. Democracia esta aqui entendida a partir das considerações de
Bobbio (1997) de que
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o único modo de se chegar a um acordo quando se fala de democracia,
entendida como contraposta a todas as formas de governo autocrático, é
o de considerá-la caracterizada por um conjunto de regras (primárias ou
fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões
coletivas e com quais procedimentos. (...) Para que uma decisão tomada por
indivíduos (um, poucos, muitos, todos) possa ser aceita como decisão coletiva é preciso que seja tomada com base em regras (não importa se escritas
ou consuetudinárias) que estabeleçam quais são os indivíduos autorizados
a tomar as decisões vinculatórias para todos os membros do grupo, e à base
de quais procedimentos. No que diz respeito aos sujeitos chamados a tomar
(ou a colaborar para a tomada de) decisões coletivas, um regime democrático caracteriza-se por atribuir este poder (que estando autorizado pela lei
fundamental torna-se um direito) a um número muito elevado de membros
do grupo. (...) No que diz respeito às modalidades de decisão, a regra fundamental da democracia é a regra da maioria, ou seja, a regra à base da qual
são consideradas decisões coletivas — e, portanto, vinculatórias para todo
o grupo — as decisões aprovadas ao menos pela maioria daqueles a quem
compete tomar a decisão. (...) [E] é indispensável uma terceira condição: é
preciso que aqueles que são chamados a decidir ou a eleger os que deverão
decidir sejam colocados diante de alternativas reais e postos em condição de
poder escolher entre uma e outra. (BOBBIO, 1986, p.18-19).
Nesse contexto, registram-se as discussões a respeito da democracia representativa e da democracia participativa. A partir de Bobbio (1997), pode-se dizer que
a expressão “democracia representativa” significa genericamente que as
deliberações coletivas, isto é, as deliberações que dizem respeito à coletividade inteira, são tomadas não diretamente por aqueles que dela fazem
parte mas por pessoas eleitas para esta finalidade (BOBBIO, 1986, p. 44).
Porém, é necessário que se evite uma correlação direta entre representação e elitismo democrático proposto por Weber (1978) e Schumpeter (1942)
citados por Ladeira (2008). Afinal, discorda-se das proposições de que
há necessidade de capacidade técnica para controlar os meios de produção da Administração Pública e os processos públicos, numa sociedade
marcada pela complexidade. Como os meios de produção e administração
devem se manter distantes dessa população cuja complexidade ultrapassa o limite da racionalidade, caberia ao funcionalismo público controlar
a vida dos indivíduos que, por outro lado, teriam igualdade formal dos
direitos políticos como a garantia da democracia (WEBER, 1978 apud LADEIRA, 2008, p. 18) (...) [e de que há] impossibilidade de se atingir o bem
comum por meio de um acordo racional entre as pessoas, os cidadãos, por
não terem claras as suas preferências e os impactos de suas escolhas, de
um lado, e por serem muito influenciados à propaganda e outros métodos
de persuasão, por outro. A racionalidade política, para ele, seria atingida
através da disputa pelo poder entre as elites, sendo essa disputa o método
democrático necessário ao funcionamento da máquina pública. Aos cidadãos, é limitada a participação na política ao ato da produção de governos,
isto é, ao voto. (SCHUMPETER, 1942 apud LADEIRA, 2008, p. 18).
Por sua vez, os significados de democracia participativa aqui entendidos se fundamentam em conceitos de Habermas (1992), extraídos por Ladeira
(2008), que defende
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um modelo de esfera pública, enquanto espaço no qual indivíduos podem
problematizar em público uma condição e desigualdade na esfera privada.
O espaço público, em sua definição, é espaço de formação de opiniões e
vontades e da publicização destas” (HABERMAS, 1992 apud LADEIRA,
2008, p. 20-21).
Apesar disso, Ladeira (2008) entende que
a análise de Habermas não chega a prever instâncias institucionais de participação, embora ele abra caminhos para concepções de democracia ancoradas nos processos de interação e comunicação nos domínios societários, que ficaram conhecidas como a vertente da democracia deliberativa”
(LADEIRA, 2008, p. 22).
Ladeira (2008) ressalta, ainda, a posição de Habermas de que a “opinião
pública, portanto, não pode “dominar”, mas apenas direcionar o uso do poder
administrativo para determinados canais” (LADEIRA, 2008, p. 25).
A partir desses conceitos, Ladeira (2008, p. 26) indica que
o desenvolvimento das teorias de democracia participativa aponta para
a existência de espaços de participação, por meio de uma pluralidade de
formas e arranjos, nos processos deliberativos públicos, especialmente na
formulação, implementação e avaliação de políticas públicas (...) [e cita
teóricos que entendem] os espaços de participação entre a sociedade e
o Estado como os locais por excelência da democracia deliberativa, representando a possibilidade de soberania popular procedimentalizada, na
interseção entre participação e representação (LADEIRA, 2008, p.26).
Além disso, Azevedo e Anastasia (2002) apontam que
o grande desafio que se coloca atualmente, para as democracias novas ou
já consolidadas, refere-se ao aperfeiçoamento e ao aprofundamento das instituições democráticas, com vistas a permitir sua operação nos interstícios
eleitorais, acoplando aos mecanismos clássicos da representação formas institucionalizadas de participação política, que permitam a ampliação do direito
de vocalização das preferências dos cidadãos e o controle público do exercício
do poder (ANASTASIA, 2000 apud AZEVEDO;ANASTASIA, 2002, p.3).
Nesse sentido, os governos têm sido cobrados a apresentarem accountability e responsividade, isto é,
governos são responsáveis quando os cidadãos têm possibilidade de discernir aqueles que agem em seu benefício, e podem lhes impor sanções
apropriadas, de modo que os governantes que atuam em prol do benefício
dos cidadãos sejam reeleitos, e os que não o fazem sejam derrotados. E governos responsivos são aqueles que promovem os interesses dos cidadãos,
escolhendo políticas que uma assembleia de cidadãos, tão informados
quanto o Estado, escolheria por votação majoritária, sob os mesmos constrangimentos institucionais (PRZEWORSKI, 1996 apud AZEVEDO;ANASTASIA, 2002, p.3).
Dessa forma, existe uma permanente pressão para que os administradores públicos deem transparência a seus atos e tomadas de decisão, justificando
suas ações e explicitando o interesse público nelas envolvido.
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Ainda nesse contexto, observa-se o fortalecimento dos mecanismos e dos
órgãos de controle interno e externo sobre as ações públicas. Silva (2014, p.2)
traz a definição de que “controlar um objeto significa influenciar seu comportamento de modo a obter um resultado desejado” e de que “a essência da teoria do
controle baseia-se na intercalação de um agente corretivo no fluxo do processo
de modo a balizar seu comportamento, para que se processe dentro de padrões
predeterminados” (FLORENTINO, 1988 apud SILVA, 2014, p.2). Enquanto função da Administração, Silva (2014, p.3) aponta que “controle é o processo destinado a assegurar que as ações estão sendo executadas de acordo com o planejado, visando a atingir objetivos predeterminados”, sendo que
os controles administrativos englobam os métodos e procedimentos que
visam à adesão às políticas estratégicas e à eficiência operacional da organização. São instrumentos de controle administrativo o planejamento
estratégico, as metas de produção, os sistemas de custos e o controle de
qualidade, entre outros (...) [e os] controles internos são compostos pelo
plano de organização e todos os métodos e medidas pelas quais uma organização controla suas atividades, visando a assegurar a proteção do patrimônio, exatidão e fidedignidade dos dados contábeis, e eficiência operacional, como meios para alcançar os objetivos globais da organização
(SILVA, 2014, p.3-4).
A Constituição Federal de 1988 estabelece também trata a respeito do
controle:
Art. 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e
patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta,
quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder
(BRASIL, 1988).
No que tange ao controle externo, Aguiar, Figueiredo e Figueiredo (2014)
apresentam o conceito de José Afonso da Silva, que afirma que
O controle externo é, pois, função do Poder Legislativo, sendo de competência do Congresso Nacional no âmbito federal, das Assembleia Legislativas nos Estados, da Câmara Legislativa no Distrito Federal e das Câmaras Municipais nos Municípios como o auxílio dos respectivos Tribunais
de Contas. Consiste, assim, na atuação da função fiscalizadora do povo,
através de seus representantes, sobre a administração financeira e orçamentária. É, portanto, um controle de natureza política, no Brasil, mas
sujeito à prévia apreciação técnico-administrativa do Tribunal de Contas
competente, que, assim, se apresenta como órgão técnico, e suas decisões
administrativas, não jurisdicionais, como, às vezes, se sustenta, à vista da
expressão ‘julgar as contas’ referida à sua atividade (art. 71, I) (SILVA, s.d.
apud AGUIAR;FIGEIREDO;FIGUEIREDO, 2014, p.44).
Cabe registrar, também, os conceitos relativos a monitoramento, o qual
consiste em função clássica da administração. De acordo com Nascimento (2011),
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citando Chiavenato (2003), administrar é “o processo de planejar, organizar, dirigir e controlar o uso de recursos a fim de alcançar objetivos” (CHIAVENATO,
2003 apud NASCIMENTO, 2011, p. 1). Ainda segundo Nascimento (2011), é
possível perceber uma relação de sequência entre as fases desse processo, relação
essa que é representada de forma claramente compreensível no chamado ciclo
PDCA, sendo que as letras que denominam o método referem-se às palavras
Plan, Do, Check e Act, traduzidas do inglês como planejar, executar, verificar e
atuar e apresentadas num ciclo. Para Chumbita (1997), o monitoramento
consiste na obtenção periódica de informações relevantes para observar e
descrever o progresso de determinadas atividades, comparando sistematicamente os desenvolvimentos efetivos e os resultados alcançados com
as previsões; para isso, é preciso dispor de um plano como referência, no
qual se definam as variáveis de
​​ monitoramento e a magnitude das metas a
alcançar (CHUMBITA, 1997, p. 7).
Pares e Valle (2006) complementam essa noção ao postularem que
o monitoramento da ação governamental pressupõe a coleta, a armazenagem, o processamento (tratamento) e a divulgação das informações, fornecendo indicadores e elementos para a avaliação do gasto público. Ou
seja, o monitoramento e a avaliação, embora possam ser conceitualmente
delimitados, na prática estão intimamente associados e possuem grande
sinergia (PARES; VALLE, 2006, p. 261).
Além disso, os autores argumentam que “as informações produzidas no
processo de monitoramento são indispensáveis para a avaliação dos resultados
dos programas e, por conseguinte, do plano [plurianual]” (PARES; VALLE,
2006, p. 262).
Já Paludo e Procopiuck (2011) delimitam o conceito de monitoramento ao
entenderem que ele “consiste no acompanhamento contínuo da execução físicofinanceira das ações e dos programas do PPA, permitindo análises para a identificação e superação das restrições” (PALUDO E PROCOPIUCK, 2011, p. 117).
Citando Albuquerque, Medeiros e Feijó (2008), os autores identificam momentos
distintos do processo de monitoramento, que, além desse acompanhamento supracitado, é composto por uma análise crítica, ou seja, pelo reconhecimento da
“influência do ambiente externo, e até mesmo das potencialidades ou limitações
do ambiente interno no desempenho do programa e na consecução dos seus
resultados” (ALBUQUERQUE, MEDEIROS e FEIJÓ, 2008 apud PALUDO e PROCOPIUCK, 2011, p. 118).
Para esse conceito, Januzzi (2005) também contribui com a noção de que
monitoramento e avaliação são processos analíticos organicamente articulados, sucedendo-se no tempo, com o propósito de subsidiar o gestor
público com informações acerca do ritmo e da forma de implementação
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dos programas (indicadores de monitoramento) e dos resultados e efeitos
almejados (indicadores de avaliação) (JANUZZI, 2005, p. 155).
Por outro lado, explicita-se o contexto institucional-legal em que os projetos de mobilidade urbana e infraestrutura rodoviária aqui estudados são executados e monitorados. Seguindo o contexto de reforma administrativa experimentada pelo governo federal a partir dos anos 1990, a qual objetivava a evolução
para uma administração pública “gerencial”, a administração pública do Estado
aqui estudado se propôs, a partir de 2003, a desenvolver um processo de reforma administrativa, o qual visava à modernização da gestão pública mineira, de
acordo com Correa (2007). Vilhena e Athayde (2005, p.1) entendem que esse
processo teve “como finalidade conferir ao Estado maior eficiência e efetividade
na execução de políticas públicas” a partir da adoção de medidas “necessárias
à resolução de problemas de ordem fiscal e à adequação da máquina pública à
nova realidade”. Essa reforma administrativa teve uma Segunda Geração, focalizada em resultados, e, atualmente, encontra-se em sua Terceira Geração, “cujo
enfoque é a Gestão para a Cidadania, com a manutenção das bases dos modelos
anteriores: equilíbrio fiscal, qualidade do gasto público e foco nos resultados”
(VILHENA;LADEIRA, 2012, p. 4).
Ao longo da sucessão de gerações da reforma administrativa nesse Estado, observa-se o fortalecimento do planejamento estratégico e de sua integração
com o orçamento. O instrumento de planejamento estratégico adotado pelo ente
federativo aqui estudado atualmente vigente define como forma de consecução
da estratégia o estabelecimento de 11 Redes de Desenvolvimento Integrado, para
as quais existem metas-síntese, objetivos estratégicos e indicadores de desempenho. Por sua vez, a administração pública em questão também segue um planejamento tático, identificado como o Plano Plurianual de Ação Governamental
(PPAG), atualmente relativo ao quadriênio de 2012 a 2015. Esse instrumento
operacionaliza a estratégia a partir da priorização de programas e políticas públicas, que passam a compor os programas estruturadores e seus projetos e processos estratégicos:
Os Programas Estruturadores têm como objetivo transformar em realidade a Visão de Futuro traçada pelo PMDI, por meio de ações concretas,
objetivando resultados efetivos, visíveis e quantificáveis, imprimindo a
marca das realizações do Governo. Tais programas devem ter a capacidade
de alavancar, de maneira sinérgica, outras iniciativas públicas e privadas
capazes de multiplicar seus efeitos.
(...)
Os Projetos Estratégicos são empreendimentos únicos, singulares, com
início e fim determinados, que mobilizam recursos e competências para
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realizar entregas específicas para a sociedade. Nesse sentido, cada Projeto
Estratégico entrega ao seu final algo novo, que não existia anteriormente e
que possuem alto poder de transformação.
Por fim, os Processos Estratégicos se diferenciam dos Projetos Estratégicos, uma vez que são um conjunto de atividades executadas de maneira
recorrente, estruturadas e desenhadas para produzir um produto específico para um determinado usuário. Destaca-se aqui o caráter rotineiro
dos processos, ou seja, seus resultados se repetem. A diferenciação entre
Projetos e Processos é uma inovação na organização das ações estratégicas
do Estado de Minas Gerais (MINAS GERAIS, 2012b, p.20).
Os projetos estratégicos estão inseridos na metodologia de gestão de projetos aplicada aos projetos que compõem a carteira de Programas Estruturadores.
Com isso, é realizado o monitoramento por parte de servidores lotados em uma
unidade administrativa central na estrutura orgânica desse Estado. O fluxo de
monitoramento inclui a realização de reuniões mensais de Status Report do projeto, na qual se espera que seja realizada a atualização do cronograma, registrada
a execução física do projeto, apresentados os principais gargalos e discutidas
questões orçamentárias-financeiras. Bimestralmente, são realizadas Reuniões
de Comitê de Resultado, nas quais são apresentados os principais problemas
relativos aos projetos e processos que compõem os Programas Estruturadores
de determinada Rede de Desenvolvimento Integrado aos representantes da alta
gestão dos órgãos e entidades, tendo o responsável pela Secretaria Central como
mediador dessa discussão, com quem são estabelecidos planos de ação para superação desses gargalos. E, de acordo com a agenda do Governador, são realizadas Reuniões Gerenciais com os Secretários de todas as pastas. A metodologia de
Gestão de Projetos aplicada aos projetos estratégicos está consolidada no Sistema
de Monitoramento e Gestão da Estratégia Governamental, uma ferramenta que
integra “numa única plataforma informações relacionadas ao planejamento, execução, monitoramento, avaliação e revisão da estratégia governamental” (MINAS
GERAIS, 2012a, p.8).
Os projetos estratégicos também estão incluídos no processo de monitoramento e avaliação aplicado a todos os programas governamentais do Estado
aqui estudado, materializado no Sistema de Informações Gerenciais e de Planejamento (SIGPLAN), instituído pelo Decreto nº 44.014, de 19 de abril de 2005 e
cuja finalidade, segundo o artigo 1º do referido decreto, é
Art. 1º - [...] sistematizar informações sobre o desenvolvimento dos programas e ações governamentais, propiciar seu monitoramento, modificações e adequações, e capacitar órgãos e entidades para a avaliação e análise
qualitativa que objetivem o aperfeiçoamento da atuação do Governo junto
à sociedade (MINAS GERAIS, 2005).
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Nesse sistema, para cada projeto estratégico é estabelecido um produto e
suas metas físicas e financeiras anuais, com o respectivo detalhamento mensal.
O monitoramento é registrado nesse sistema bimestralmente, informando-se a
execução física e financeira no período regionalizadamente (municípios ou regiões do Estado em questão) e possibilitando a inserção de justificativas para
desempenho considerados insatisfatórios (percentuais de execução menores que
70% ou superiores a 130% em relação ao inicialmente planejado) e informações
complementares da situação do projeto.
Por fim, registra-se que a administração pública do Estado aqui analisado adota práticas de contratualização de resultados entre seus órgãos e entidades, o chamado Acordo de Resultados, entendido por Souza (2012, p.10)
como “um instrumento que promovesse maior alinhamento e aderência das
políticas setoriais com a agenda de governo, incorporando as áreas de resultado, seus objetivos, projetos, indicadores e metas. Dessa forma, ele seria um
instrumento de contratualização de resultados e da política de incentivos”.
Dessa forma, as entregas previstas pelos projetos (e processos) estratégicos,
somadas a indicadores finalísticos, compõem contratos de resultados celebrados entre o Governador, os órgãos e entidades e suas equipes. Havendo
desempenho satisfatório e disponibilidade orçamentária, os servidores recebem o chamado Prêmio por Produtividade, gratificação pecuniária proporcional ao valor da sua remuneração.
Dessa forma, ficam apresentados os principais conceitos e significados
relativos projetos públicos, democracia e monitoramento que balizam o presente
trabalho; as especificidades da Gestão de Projetos Públicos; e o contexto em que
a execução e o monitoramento dos projetos de mobilidade urbana e infraestrutura rodoviária se concretizam.
Tratamento Metodológico
Para a adequada compreensão do presente trabalho e para sua validação em termos científicos, é preciso registrar qual o tratamento metodológico
foi adotado para a consecução dos objetivos propostos. Isto é, faz-se necessário registrar a definição de quais técnicas de pesquisa foram utilizadas, técnicas estas entendidas segundo o conceito apresentado por Marconi e Lakatos
(2007) de que técnica “é a habilidade para usar [...] [os] preceitos ou normas
[...] [de uma arte ou ciência] na obtenção de seus propósitos” (MARCONI;
LAKATOS, 2007, p. 62).
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A partir da classificação de Gil (2001), citada por Schnitman (2011), pode-se dizer que, no que tange aos objetivos, o presente trabalho se aproxima
melhor de uma pesquisa descritiva, já que tem por finalidade observar, descrever e analisar aspectos relacionados aos avanços e desafios do monitoramento
de projetos públicos de mobilidade urbana e infraestrutura rodoviária para o
desenvolvimento democrático.
Quanto aos procedimentos, o presente trabalho utilizou a técnica
da análise de documentação indireta, a qual, segundo Marconi e Lakatos
(2007), tem o “intuito de recolher informações [...] sobre o campo de interesse” (MARCONI; LAKATOS, 2007, p. 62) e pode ser feita por meio de pesquisa documental, a partir da qual documentos escritos ou não constituem
fontes primárias de coleta de dados; ou por meio de pesquisa bibliográfica, a
qual, como fonte secundária de dados, “abrange toda bibliografia já tornada
pública em relação ao tema de estudo” (MARCONI; LAKATOS, 2007, p. 71).
Nesse sentido, foi realizada pesquisa bibliográfica a respeito do quadro teórico em que este estudo se baseia, levantada e apresentada na Seção 2. Já a
pesquisa documental se baseou em documentos oficiais que dizem respeito
a atos da Administração Pública do estado que executa os projetos públicos
aqui analisados, os quais incluíram leis, decretos e resoluções que compõem
seu aparato institucional-legal aplicáveis ao tema aqui estudado, também
apresentados na Seção 2.
Em relação à coleta de dados, o presente trabalho é fruto da observação participante. Marconi e Lakatos (2011) entendem que esse instrumento
“implica a interação entre investigador e grupos sociais, (...) [coletando dados]
diretamente do contexto ou situação específica do grupo” (MARCONI; LAKATOS, 2011, p. 279). Isso porque os pontos, fatos e análises apresentados neste
trabalho são extraídos a partir da realidade vivida pela autora enquanto servidora lotada na unidade administrativa responsável pelo monitoramento dos
projetos aqui estudados.
Dessa forma, dando prosseguimento ao trabalho, na Seção 4, são apresentados os resultados observação participante e as respectivas análises relativas
contribuições e desafios do monitoramento de projetos públicos de mobilidade
urbana e infraestrutura rodoviária para o desenvolvimento democrático. Por fim,
no Capítulo 5, são sintetizados os resultados obtidos, tecidas algumas conclusões
a que se foi possível chegar e sugeridos assuntos para novas pesquisas suscitados
pelo trabalho.
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Contribuições e desafios do monitoramento
de projetos públicos de mobilidade
urbana e infraestrutura rodoviária para
o desenvolvimento democrático
Os projetos públicos de mobilidade urbana e infraestrutura rodoviária aqui
estudados são submetidos à metodologia de gestão de projetos adaptada do PMBOK. Conforme registrado na identificação do contexto institucional-legal em que
eles se encontram, essa metodologia prevê a realização de reuniões mensais de Status Report do projeto, na qual se espera que seja realizada a atualização do cronograma, registrada a execução física do projeto, apresentados os principais gargalos
e discutidas questões orçamentárias-financeiras. Bimestralmente, são realizadas
Reuniões de Comitê de Resultado, nas quais são apresentados os principais problemas relativos aos projetos e processos que compõem os Programas Estruturadores
de determinada Rede de Desenvolvimento Integrado aos representantes da alta
gestão dos órgãos e entidades, tendo o responsável pela Secretaria Central como
mediador dessa discussão, com quem são estabelecidos planos de ação para superação desses gargalos. E, de acordo com a agenda do Governador, são realizadas
Reuniões Gerenciais com os Secretários de todas as pastas. Observa-se que o cumprimento desse fluxo de monitoramento permite o aprimoramento da execução
desses projetos ao facilitar a interlocução entre unidades administrativas distintas
que têm participação parcial neles; identificar os principais dificultadores para a
realização das metas e entregas planejadas e propor alternativas para saná-los, envolvendo, inclusive, a alta gestão, quando necessário; alocar os limitados recursos
orçamentários-financeiros em entregas factíveis e relevantes. Considerando que os
projetos monitorados representam o desdobramento de planos de governo para os
quais os representantes atualmente no poder foram democraticamente eleitos, entende-se que o monitoramento desses projetos contribui para o desenvolvimento
democrático ao colaborar para a eficiente execução das políticas públicas selecionadas para efetivar essas propostas.
Outra contribuição relevante do monitoramento de projetos públicos de
mobilidade urbana e infraestrutura rodoviária diz respeito à consolidação de
dados relativos a suas entregas em sistemas corporativos, especificamente no
Sistema de Informações Gerenciais e de Planejamento (SIGPLAN) e no Sistema de Monitoramento e Gestão da Estratégia Governamental. Entende-se que
a padronização das metodologias de consolidação desses dados por meio dos
sistemas em questão permite a uniformidade de entendimento a respeito do que
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deve ser, de fato, monitorado; cria-se um banco de dados a respeito das entregas
realizadas, permitindo a análise de dados históricos para tomada de decisão
futura; possibilita a comparação rápida entre as metas estabelecidas e as efetivamente executadas; contribui para a disponibilização de dados regionalizados
ao conter regras de negócios que exigem sua inserção por município ou região
do Estado estudado. Além disso, a partir da consolidação das informações registradas no SIGPLAN, são elaborados relatórios de execução física e financeira, os
quais são disponibilizados, com suas respectivas atualizações bimestrais, nos sítios eletrônicos de cada órgão ou entidade do Estado em questão. Normalmente,
são realizadas pela Assembleia Legislativa do Estado aqui analisado audiências
públicas para monitoramento das entregas realizadas até o terceiro ou quarto
bimestre, conforme informações registradas no SIGPLAN. Percebe-se neste tipo
de prática a possibilidade de fortalecimento e desenvolvimento democrático, já
que se reforça o papel do Poder Legislativo no ciclo de implementação de políticas públicas e abre um espaço público e formal para participação popular no
controle das atividades do Poder Executivo. Ao final do exercício, as informações
registradas nesse Sistema são encaminhadas à Assembleia Legislativa e ao Tribunal de Contas respectivo a fim de subsidiar as ações de controle externo sobre os
atos do Poder Executivo.
Por outro lado, a consolidação das informações do monitoramento em
sistemas corporativos também representa um dos maiores desafios para o desenvolvimento democrático aqui considerado, em especial para os projetos de mobilidade urbana e infraestrutura rodoviária. Isso porque, no caso do SIGPLAN, os
relatórios extraídos e publicados nos respectivos sítios eletrônicos geralmente são
disponibilizados em arquivos com formatos não editáveis, predominantemente
em arquivos Portable Document Format (PDF) da Adobe Acrobat©. Tal opção limita as possibilidades de manuseio desses dados por parte da sociedade civil organizada e pelos próprios órgãos de cotrole, que acabam dependendo de o próprio
Poder Executivo encaminhar análises desses dados, conforme lhe favoreçam,
ou disponibilizem as bases de dados. Ainda a respeito do SIGPLAN, observa-se
que, durante o monitoramento, são disponibilizados campos de Informações de
Situação, no qual podem ser inseridas para elementos de justificativas para os
casos em que se observe desempenho considerado insatisfatório (percentuais de
execução menores que 70% ou superiores a 130% em relação ao inicialmente
planejado) e informações complementares sobre o andamento do projeto. Porém,
essas informações “qualitativas” não são incluídas nos relatórios divulgados, o
que compromete a real compreensão das dificuldades de execução dos projetos
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GOMES, K. C. D. • O monitoramento de projetos públicos de mobilidade urbana...
III Simpósio de Ciências Sociais: Cidade e Democracia
Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
públicos e as justificativas para os casos de desempenho diferente do planejado.
Além disso, a metodologia utilizada pelo SIGPLAN prevê a eleição de um produto por projeto, por exemplo “quilômetro pavimentado” para projetos de infraestrutura rodoviária e “obra civil concluída” para projetos de mobilidade urbana.
Porém, esses projetos, foco do presente trabalho, possuem entregas intermediárias, tais como a elaboração de projetos executivos, e despesas acessórias, como
serviços de supervisão de obra e desapropriações, que geram custos no que tange
à execução financeira mas não são diretamente refletidos na execução física.
Atualmente, os responsáveis pelo monitoramento desses projetos se encontram
sensibilizados para a importância de registrar as informações relativas a essas
entregas complementares nas Informações de Situação do SIGPLAN. Faz-se necessário, agora, definir-se a respeito da possibilidade de publicação dessas Informações ou da criação de ações orçamentárias específicas para cada uma dessas
entregas complementares, contribuindo para aprimoramento da transparência e
do acesso às informações públicas.
Por sua vez, a consolidação das informações no Sistema de Monitoramento e Gestão da Estratégia Governamental também apresenta desafios ao desenvolvimento democrático no monitoramento de projetos de mobilidade urbana
e infraestrutura rodoviária. Isso porque o acesso a esse Sistema é limitado a
usuários cadastrados, normalmente servidores e estagiários do Poder Executivo,
e indicados por representantes da alta gestão dos órgãos e entidades. Tal regra de
acesso limita a disponibilização de uma das informações mais relevantes nesse
tipo de projeto, qual seja o cronograma de execução, com suas tendências de
início e de término. Além disso, esse Sistema costuma ser alimentado por relatórios de obra elaborados pelos órgãos da Administração Indireta responsáveis
por sua execução, os quais também não são publicizados. Nesse sentido, sugerese a definição de estratégias de disponibilização das informações consolidadas
nesse Sistema, por exemplo em relatórios mensais de Status Report, permitindo
o acompanhamento mais próximo da execução desses projetos por parte da população e dos órgãos de controle externo.
Considerações finais
Para a adequada análise dos desafios e contribuições para o desenvolvimento democrático do monitoramento de projetos de mobilidade urbana e infraestrutura rodoviária, foram levantados os principais conceitos teóricos relativos ao tema, abrangendo os fundamentos da gestão de projetos, o entendimento
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Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
sobre o tema da democracia e suas vertentes representativa e participativa e as
contribuições da literatura para a conceituação de monitoramento.
Foram apresentadas também as especificidades da execução de projetos
no setor público, tais como a responsabilidade com a promoção do interesse público; o foco no cidadão, em certos aspectos assemelhado ao cliente do projeto; o
contexto político em que são desenvolvidos e sua relação com a formação e implementação de políticas públicas; a observância do princípio da legalidade em
seu sentido estrito (fazer apenas o que tem previsão legal); submissão a sistemas
de controle interno e externo. Outras peculiaridades dos projetos públicos se
referem às próprias áreas de seu gerenciamento, como a observação da legislação de licitações no que tange às aquisições; a necessidade de concurso público
ou previsão legal de cargos em comissão de recrutamento amplo, e suas consequências, quanto à gestão de recursos humanos; vinculação da gestão de custos
às questões de execução orçamentária. Por fim, o ambiente em que os projetos
públicos são realizados é tipicamente burocrático, com toda a sua racionalidade e
também com seus desvios, identificados como o controle imperfeito, o conservadorismo crescente, a maximização do orçamento e o burocrata do nível da rua;
para estes, a Nova Gestão Pública propõe respostas predominantemente voltadas
para a aproximação da administração pública de um estilo mais gerencial tipicamente observado na administração privada.
Além disso, foi apresentado o contexto institucional-legal da administração
pública estudada em que os projetos de mobilidade urbana e infraestrutura rodoviária são executados, notadamente marcado pelas iniciativas de reforma administrativa e que inclui também a observação dos instrumentos de planejamento estratégico, e de planejamento tático, que organizam a estratégia de desenvolvimento do
Estado analisado a partir de Redes de Desenvolvimento Integrado, cujos objetivos
são operacionalizados por uma carteira de programas estruturadores compostos
por projetos e processos estratégicos. Outro fator relevante nesse contexto é a existência de uma unidade administrativa central que estabelece metodologias de gestão de projetos aplicadas aos projetos aqui exemplificados.
A partir disso, observa-se que o monitoramento dos projetos públicos de
mobilidade urbana e infraestrutura rodoviária implementados pelo ente da federação brasileira estudado tem contribuído para o desenvolvimento democrático na
medida em que identifica os gargalos de execução, articula planos de ação para sua
superação e encaminha para representantes do núcleo estratégico as questões que
dependem de sua tomada de decisão, permitindo a efetivação de compromissos
para os quais representantes foram eleitos. Além disso, percebe-se que a consolida-
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ção das informações monitoradas e a posterior publicação das entregas realizadas
permite que a população beneficiada, a sociedade civil organizada e os órgãos de
controle interno e externo tenham acesso às informações relativas ao resultado do
gasto público, acompanhem as realizações do estado e, quando necessário, questionem a implementação dessas políticas públicas, reforçando aspectos democráticos como transparência, accountability e responsividade.
Porém, percebe-se a existência de desafios a serem superados para o contínuo desenvolvimento democrático no que tange a esse monitoramento, tais
como o formato de disponibilização desses dados, já que os relatórios divulgados
costumam não ser editáveis, dificultando a adequada manipulação para sua análise. Além disso, muitas das observações realizadas ao longo do monitoramento
são registradas em campos dos sistemas corporativos que não compõem os relatórios finais disponibilizados, o que limita a compreensão, por exemplo, dos
possíveis problemas de execução e do destino de parte do recurso aplicado em
cada projeto pelo fato de seu produto não refletir todas as frentes de sua atuação.
Para futuras pesquisas, sugere-se analisar as possibilidades de contribuição para o desenvolvimento democrático oferecidas por outros projetos e processos estratégicos do estado estudado. Além disso, pode ser interessante comparar
as contribuições do monitoramento de projetos conforme as práticas adotadas
em outros entes da federação. Por fim, entende-se cabível a realização de estudos
a respeito de outras contribuições da execução de projetos de mobilidade urbana
e infraestrutura rodoviária, tais como redução da desigualdade regional, aumento da competitividade econômica, dentre outros.
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III Simpósio de Ciências Sociais: Cidade e Democracia
Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
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Cidades: diálogos interdisciplinares
Grupo de Trabalho 2
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Instituto de
Ciências Sociais
Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
O TRABALHO NO CONTEXTO URBANO:
percepções de usuárias do Programa
Bolsa Família1
Amanda do Carmo Amorim Nadú 2
Laiene Joyce Pereira Torres3
Andréa Branco Simão4
RESUMO: O trabalho apresenta uma análise do trabalho feminino a partir da
percepção de beneficiárias do Programa Bolsa Família (PBF). Especificamente,
o estudo expõe um panorama acerca dos significados do trabalho para
mulheres que enfrentam diversos desafios impostos pela vida no contexto
urbano, dentro os quais estão a pobreza e a baixa qualificação para se
inserirem em um mercado de trabalho cada vez mais exigente. As discussões
são baseadas em dados qualitativos provenientes de doze entrevistas semiestruturadas realizadas com beneficiárias do PBF, no município de Contagem/
MG. Os resultados preliminares apontam que, para as mulheres entrevistadas,
o trabalho é um importante dispositivo para que consigam alcançar uma
maior autonomia no contexto familiar. Contudo, elas acreditam que a inserção
da mulher no mercado de trabalho é uma decisão permeada por grandes
obstáculos: o fato de ter filhos, as inúmeras tarefas domésticas e, em geral,
a baixa escolaridade são aspectos que dificultam a participação no mercado
formal de trabalho no contexto urbano, cada vez mais exigente e competitivo.
Adicionalmente, o ingresso da mulher no mercado de trabalho também é
permeado por questões de gênero, as quais nem sempre são percebidas de
maneira clara pelas beneficiárias entrevistadas.
Palavras-Chave: Trabalho Feminino; Divisão Sexual do Trabalho; Programa
Bolsa Família; Relações de Gênero.
1. Este trabalho apresenta resultados parciais do projeto Trabalho Feminino e Empoderamento
da Mulher: percepções de usuárias do Programa Bolsa Família financiado pelo Programa de
Bolsas de Iniciação Científica (PROBIC), da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,
a quem as autoras agradecem.
2. Acadêmica do 8º período do curso de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais.
3. Acadêmica do 8º período do curso de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica
de Minas Gerais.
4. Professora Doutora da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
III Simpósio de Ciências Sociais: Cidade e Democracia
Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
INTRODUÇÃO
Durante longos períodos as mulheres ocuparam um lugar secundário
no que diz respeito a sua participação na esfera pública. Isto porque, historicamente, o homem foi instituído como o provedor do lar, cabendo à mulher
o papel de cuidadora, de mãe e de esposa. O processo industrial dos séculos
XVIII e XIX aparece, para essa mulher, como uma oportunidade de mudanças
no âmbito econômico, cultural e social. Beauvoir (1970) descreve que no contexto do desenvolvimento da indústria, a mulher se insere no âmbito do trabalho
produtivo devido à crescente demanda por mão-de-obra. Além disso, pelo fato
de ofereceram um trabalho mais barato e por trabalharem melhor, os patrões,
muitas vezes, preferiam as mulheres aos homens.
De acordo com Probst (2003), desde que o movimento feminista passou
a agregar concepções de ação política, as mulheres almejam uma igualdade com
os homens. Trata-se de uma luta histórica que ganha maior visibilidade a partir
do momento que se instauram importantes mudanças suscitadas, em especial,
pela consolidação do sistema capitalista, o qual possibilitou que boa parte
da mão-de-obra feminina fosse absorvida nas fábricas. Além disso, as duas
grandes Guerras Mundiais contribuíram para que a mulher passasse não só
assumir os negócios da família, mas também, muitas das posições que eram
destinadas aos homens no mercado de trabalho, já que os mesmos eram convocados a estar à frente das batalhas.
Considerando, portanto, o trabalho como uma variável relevante na vida
dos indivíduos, este estudo tem como objetivo central apresentar uma análise
do trabalho feminino a partir da percepção de beneficiárias do Programa Bolsa
Família (PBF). Especificamente, o estudo expõe um panorama acerca dos significados do trabalho para mulheres que enfrentam diversos desafios impostos
pela vida no contexto urbano, dentro os quais estão a pobreza e a baixa qualificação para se inserirem em um mercado de trabalho cada vez mais exigente.
A escolha metodológica para investigar o tema em questão recaiu sobre
a metodologia qualitativa. Foram realizadas doze entrevistas semi-estruturadas
com beneficiárias do PBF de Contagem.
O artigo está dividido em cinco partes, sendo a primeira esta introdução. Na segunda parte são feitas breves considerações sobre o trabalho e seus
significados, sobre a participação da mulher no mercado de trabalho e, sobre
desafios e possibilidades encontrados pelas mulheres beneficiárias do Programa
Bolsa Família, especificamente no contexto urbano, para se inserirem no mer-
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cado formal de trabalho. A terceira parte apresenta a metodologia utilizada. Na
quarta parte são discutidos os resultados e, por fim, na quinta parte são feitas as
considerações finais.
O que se espera é que este estudo possa contribuir para melhor compreensão acerca das dificuldades enfrentadas pelas beneficiárias do PBF no
que diz respeito ao trabalho no contexto urbano.
CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS
Este item apresenta algumas considerações a respeito dos significados do
trabalho, da participação feminina no mercado de trabalho e sobre alguns desafios e possibilidades encontrados pelas mulheres beneficiárias do Programa
Bolsa Família para se inserirem no mercado formal de trabalho. Estes aspectos
são relevantes no contexto de vida de milhares de mulheres que vivem em
grandes áreas urbanas, como é o caso do município de Contagem.
Significados do Trabalho
Desde seu surgimento, a categoria trabalho vem sofrendo inúmeras modificações e, ocupando permanentemente a centralidade na vida das pessoas. Todo
movimento da sociedade estabelece novos papéis e novas necessidades, o que influencia diretamente o significado que o trabalho assume na vida dos indivíduos. Hirata e Zarifian (2003) argumentam que a concepção moderna de trabalho
pode ser entendida por meio de duas vertentes. Na primeira delas, o trabalho
fundamenta-se como uma propriedade comum e global da ação humana. Neste
sentido, o trabalho estrutura o movimento que ocorre entre o homem e a natureza. Através da prévia-ideação e suas forças, o homem transforma a natureza
em algo útil para o contexto da sua realidade. Concomitantemente a esse processo de transformação da natureza, o homem transforma a si mesmo. Na segunda
vertente, a noção de trabalho faz referência às condições sociais estabelecidas a
partir do trabalho, onde é evidenciada relação homem-homem.
Netto e Braz (2012) consideram que através do trabalho os homens produziram a si mesmos, ou seja, autoproduziram-se como resultado de sua própria
atividade, tornando-se para além de seres naturais, seres sociais. Na compreensão desses autores o trabalho possibilita o desenvolvimento das capacidades humanas, das forças produtivas e das relações sociais. O trabalho possibilita a produção de qualquer bem, criando valores que formam a riqueza social.
Adicionalmente, para estes autores, o trabalho é uma categoria que faz referência
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ao próprio modo de ser dos homens e da sociedade e, sendo assim, pode ser
considerado central para a compreensão do próprio fenômeno humano-social.
Morin, Tolfo e Piccinini (2007) argumentam que o significado do trabalho
está estreitamente vinculado com questões pessoais, ambientais e é influenciado
tanto por mudanças no indivíduo, quanto por mudanças que ocorrem ao seu
redor. De acordo com estes autores, “o significado refere-se às representações que
o sujeito tem de sua atividade, assim como o valor que lhe atribui. A orientação
é sua inclinação para o trabalho, o que ele busca e o que guia suas ações” (p.39).
No âmbito da discussão sobre o significado do trabalho para os indivíduos, Tolfo e Piccinini (2007) ressaltam que o grau de importância que o trabalho
tem na vida de uma pessoa, em um determinado momento, pode ser definido
como centralidade. Este aspecto, de acordo com os pesquisadores, é um construto complexo, formado por um componente valorativo e um componente
relativo. O componente valorativo da centralidade do trabalho diz respeito à importância do mesmo dentro da vida dos indivíduos e revela em que medida ele
é central para a autoimagem. Já o componente relativo do trabalho refere-se
à como a centralidade do trabalho é influenciada por outros momentos ou
fatos importantes da vida dos indivíduos.
Conforme enfatiza Casaca (2005), na concepção de Guy Standing, o
direito ao trabalho, estabelecido como uma demanda central a partir da metade do século XX, não configurou o trabalho assalariado para todos. Sobre esse
aspecto, a partir das considerações de Delphy e outros estudiosos, a autora argumenta que, somente o trabalho produtivo, executado pelo homem trabalhador,
era considerado pela sociedade, subjugando o trabalho não pago exercido pelas
mulheres no âmbito familiar, bem como o trabalho informal e voluntário.
Cisne (2012) chama atenção para questão da feminização do mundo do
trabalho , compreendida por ela como um fenômeno social no âmbito da ordem
do capital. A autora enfatiza a importância de se conhecer sobre os desdobramentos velados desse fenômeno. Discute-se a inserção feminina no mercado de
trabalho como uma estratégia de emancipação para as mulheres, paralelamente
às estratégias conformadas pelo capital. O item a seguir aborda a questão da inserção feminina no mercado laboral.
Inserção feminina no mercado de trabalho
O ingresso da mulher no mercado aconteceu de forma lenta e gradual
e ainda pode ser considerado como um processo em construção atravessado
por diversas questões, tais como: escolaridade, posição da mulher na família e
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relações de gênero. As constantes transformações sociais e econômicas ocorridas
na humanidade contribuíram, e ainda contribuem, na dinâmica desse processo.
A educação é um dos principais meios viabilizadores do ingresso da mulher
no mercado de trabalho. Entretanto, como postulam Rego e Pinzani (2013),
a educação das mulheres sempre foi pautada nas ordens da vida privada e
doméstica. Essa é uma questão mais claramente evidenciada no âmbito das mulheres pobres, as quais, em geral, têm acesso mais limitado a níveis mais elevados
de escolaridade.
O trabalho feminino sempre teve seu sentido vinculado ao lugar da
mulher na esfera familiar. Independentemente de seu lugar na família, dos
cuidados com os filhos e das entradas e as saídas do mercado de trabalho, a
mulher sempre trabalhou. Contudo, sua inserção no mercado formal sempre
esteve fortemente ligada à realidade da família, ou seja, das possibilidades e
necessidades da mesma. Neste aspecto, é importante salientar que a mulher
pobre sempre exerceu algum tipo de atividade renumerada. Para esta mulher,
o trabalho faz parte das obrigações familiares, e não se configura como uma
forma de realização individual. (SARTI, 2011).
Bruschini (2008) argumenta que, embora vários fatores tenham influenciado a entrada das mulheres no mercado de trabalho, tal inserção está
estritamente ligada às necessidades e às possibilidades que as mulheres têm de
trabalhar fora de casa. Em outras palavras, a inserção feminina no mercado de
trabalho depende tanto de fatores econômicos quanto da posição que a mulher
ocupa na unidade familiar. Além disso, a disponibilidade dos indivíduos do
sexo feminino para o trabalho também depende de uma complexa combinação
de características pessoais, dentre as quais podem ser citadas a idade e a escolaridade, além de outras relacionadas à família, tais como o estado civil e
a presença de filhos. Adicionalmente, o ciclo de vida e a estrutura familiar também são características que influenciam a possibilidade de inserção feminina no
mercado de trabalho. A priori, as mulheres se inserem no mercado de trabalho
motivadas pelas vontades e necessidades.
Adicionalmente, vale pontuar que a crescente participação da mulher no
mercado de trabalho representou importantes transformações sociais verificadas
no século XX. O crescimento da população economicamente ativa brasileira,
na primeira metade do século ocorreu devido ao aumento das taxas de atividades femininas, este avanço de mercantilização da força de trabalho feminina
representa uma significativa fonte de riqueza econômica para o Brasil. (ALVES;
CORRÊA, 2009 p. 165).
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Para Wajnman e outro pesquisadores (1998) o constante crescimento da
atividade feminina no mercado de trabalho brasileiro também pode ser explicado por um arranjo de fatores econômicos, demográficos e culturais que vêm
ocorrendo na sociedade. De acordo com autora, as significativas transformações
nos padrões de comportamento e nas atribuições de valores sociais das mulheres, que levaram a modificação na formação da identidade feminina, resultando em uma nova configuração dos papéis da mulher de todas as classes sociais,
promoveram, possivelmente, uma elevação na oferta de trabalho deste segmento.
Outro ponto relevante, a ser considerado nessa temática, diz respeito aos
filhos. Ramos e Soares (1995) ressaltam que a existência de filhos pequenos
faz com que as possibilidades das mulheres se inserirem no mercado de trabalho sejam menores. A ausência de políticas públicas de boa qualidade para
que essas mulheres possam substituir o tempo gasto na função materna por
sua inserção no mercado de trabalho é apontada pelos autores como um dos
aspectos que merece atenção. Nesta direção Bruschini e Ricoldi (2009) apontam para o fato de que a mulher é considerada a principal responsável pelos
cuidados demandados no âmbito da família. No que diz respeito aos afazeres
domésticos, as autoras apontam que as tarefas domésticas são consideradas atividades essencialmente femininas e incluem, por exemplo, trabalhos relacionados
à limpeza da casa, à lavagem das roupas, etc.
Desse modo, devido à responsabilidade que possuem tanto com os afazeres domésticos, quanto com os cuidados com filhos e marido, quando ingressam no mercado de trabalho as mulheres se inserem em uma jornada
que pode ser definida como dupla, ou até mesmo como tripla, caso ela ainda
associe todas as atividades pelas quais já é responsável ao estudo. As mulheres
necessitam dobrar e redobrar seu tempo entre, “trabalho profissional e doméstico, opressão e exploração, se acumulam e articulam, e por isso elas estão em
situação de questionar a separação entre as esferas da vida-privada, assalariada,
política- que regem oficialmente a sociedade moderna.” (HIRATA; ZARIFIAN,
2003, p. 67).
Ainda que a mulher tenha alcançado um espaço na esfera pública, a
dedicação para com a família continua quase na sua totalidade, uma responsabilidade apenas das mulheres. “A mulher de hoje apenas multiplicou funções, mas
ainda não dividiu as responsabilidades”. (ROCHA-COUTINHO, 2004, p. 16).
Para Sarti (2011) o trabalho da mulher está inserido em um contexto bastante
amplo, que inclui o desempenho do papel de mãe, de esposa e de dona de casa. De
acordo com a autora, para muitas pessoas, o trabalho formal, mesmo quando realiza-
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do por meio período, não deve afastar a mãe das crianças, frisando a associação entre
trabalho feminino e os conflitos na família. Neste sentido, a inserção da mulher no
mercado de trabalho pode ser compreendida como um desafio, considerando que,
na maioria das vezes, a mulher soma a sua participação no mercado de trabalho às
tarefas domésticas e obrigações de mãe e esposa. As mulheres estão inseridas habitualmente no contexto privado-doméstico e, a favor da sua obrigação com a família
são, por vezes, privadas das esferas mercantis e cívicas.
O crescimento do trabalho feminino representa um ponto significante
na configuração dos significados do trabalho na sociedade contemporânea.
Contudo, os autores enfatizam que a questão salarial não acompanha o crescimento e a difusão do trabalho feminino na mesma proporção. São movimentos
contrários. O mesmo ocorre com a questão dos direitos trabalhistas e sociais.
(ANTUNES; ALVES, 2004, p. 337-338).
Segundo Alves e Corrêa (2009), ainda que as mulheres sejam maioria nos
segmentos mais escolarizados da População Economicamente Ativa (PEA), os
homens predominam nos segmentos com melhor remuneração. Sob esse aspecto, Santos (2010, p.13) destaca que, “a partir das condições objetivas e subjetivas
dos papéis que ocupam socialmente e do modo desigual como são construídas
as relações, as mulheres não possuem acesso igualitário ao trabalho, aos salários
e aos bens de maneira geral.”
Nesse contexto, de acordo com Kergoat (2003, p. 56), se legitimam papéis para mulheres e homens considerando o gênero apenas no universo biológico, negando a existência dos papéis sociais. A divisão social do trabalho se orienta por dois princípios: “o princípio de separação (existem trabalhos de homens
e mulheres) e o princípio de hierarquização (um trabalho de homem “vale” mais
do que um trabalho de mulher)”.
Serpa (2010) destaca que as mulheres se inserem no mercado de trabalho com suas capacidades restritas pelos aprendizados assinalados pelo gênero e configurando os “guetos femininos”. Na esfera privada as mulheres se dedicam a aprender as atividades do lar e aos cuidados com as responsabilidades
perpetuadas ao longo dos tempos, como essencialmente femininas, o que para
Neves (2013) são aspectos decisivos na divisão sexuada do trabalho produtivo.
A divisão sexual do trabalho representa um campo complexo no desenvolvimento do conceito de trabalho. Discutir o papel da mulher no espaço
público/privado requer compreender a divisão de trabalho entre homens e
mulheres, bem como o que os conduziu a contraírem posições desiguais em
termos de poder, prestígio e riqueza.
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Sobre essas considerações Cisne (2012), fazendo referência a Mézáros argumenta que o ingresso da mulher no mercado de trabalho em grande número, especialmente no século XX, não representou sua completa emancipação. Ao contrário
disso, significou o desenvolvimento de um trabalho subjugado a baixos salários. Entretanto, o trabalho feminino tem sido associado como causa ou condição
para as mudanças em curso nas relações de gênero, e finalmente, no formato das
famílias. Quando as mulheres podem conseguir renda fora de casa e o fazem, sua
condição feminina tende a melhorar especialmente, no contexto familiar. A contribuição da mulher para a melhora das condições financeiras da família é mais evidente quando ela trabalha fora de casa e recebe um salário por isso. A participação
da mulher no mercado de trabalho é pontuada como uma possibilidade para que
ela se insira no universo de mudanças no sentido econômico, social e psicológico.
Sen (2000) enfatiza que quando a mulher trabalha fora de casa, ela também tem
mais voz ativa, pois é mais independente em relação ao outro.
O Programa Bolsa Família
O Programa Bolsa Família (PBF), instituído em outubro de 2003, tem
como principal finalidade o combate à fome e a pobreza através de transferência
de um benefício financeiro associado à garantia do acesso aos direitos sociais
básicos (saúde, educação, assistência social e segurança alimentar). Têm ainda
por objetivo, a inclusão social, contribuindo para a emancipação das famílias
das beneficiárias, construindo meios e condições para que elas possam sair da
situação de vulnerabilidade que se encontram. (SILVA; LIMA 2010, p.37).
Atualmente, o PBF atende cerca de 13 milhões de famílias em todo território nacional. A renda familiar é limitada a R$ 140,00 (cento e quarenta reais)
por pessoa e conforme o número e idade dos filhos. A gestão do programa é
descentralizada e compartilhada pela União, estados, Distrito Federal e municípios. O PBF conta com o Cadastro Único (CADUNICO) para Programas
Sociais, o qual foi regulamentado pelo Decreto no 6.135/07 e é coordenado
pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) (BRASIL,
2011). Em janeiro de 2013, 1.191.589 famílias de Minas Gerais foram beneficiadas pelo programa (SAGI, 2013).
Pelo fato de ser um Programa de Transferência de Renda Condicionada
(PTRC), o recebimento das transferências através do PBF é condicionado a contrapartida s nas áreas de educação e saúde. Trata-se das condicionalidades, que
podem ser entendidas como compromissos assumidos tanto pelas famílias beneficiárias do programa, quanto pelo poder público, para ampliar o acesso dessas
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famílias aos seus direitos sociais básicos. Segundo Cotta e Paiva (2010) as condicionalidades postas pelo programa constituem um sistema de indução que busca
afetar o comportamento dos membros adultos das famílias vulneráveis, por meio
da associação de valor financeiro a decisões entendidas como ótimas no âmbito
social, tais como o investimento na saúde e educação das gerações posteriores.
Curralero e colaboradores (2010) argumentam que, no âmbito dos PTRC, as condicionalidades têm como objetivo, de longo prazo, a ruptura do ciclo intergeracional
da pobreza através da elevação do capital humano das populações vulneráveis.
Entretanto, Soares e Sátyro (2010) enfatizam que há, atualmente, uma
vertente que pontua o fato do BF ser primariamente, um programa de proteção
social e, ao afixar contrapartidas excessivas, essa função de proteção social enfraquece, na medida em que serão as famílias mais vulneráveis as que não conseguirão atender as exigências mais rigorosas. Cotta e Paiva (2010) consideram
que as condicionalidades além de inócuas, não seriam constantemente monitoradas, e ainda não teriam impacto efetivo nos serviços de saúde e educação.
A porta de saída, no contexto do PBF, é para Soares e Sátyro (2010) um
ponto contencioso, os autores destacam que se a falta de empenho, a falta de
esperança no futuro, ou expectativas pouco ambiciosas são condições presentes
no âmbito das famílias pobres, o PBF pode ter efeitos de longo prazo negativos.
Ao acostumar as pessoas a viver da doação do Estado, o programa as levaria a
dedicar-se menos para uma superação da pobreza, o que ao longo prazo, poderá
aumentar a pobreza no país.
Souza e Caetano (2012), ao apropriar-se da ideia de Tavares, recorrem à
crítica feita ao PBF no que se refere ao potencial desestímulo ao trabalho adulto causado pelo recebimento do benefício. Para os autores tal crítica baseia-se
em três hipóteses: a primeira diz respeito à existência de um efeito renda do
programa, de tal modo que a transferência auferida diminuiria a necessidade
econômica do trabalho, uma segunda possibilidade está relacionada ao fato cujo
intuito era que a renda familiar continue elegível ao PBF, os beneficiários podem preferir ofertar menos trabalho e por fim os beneficiários podem ser induzidos a diminuir sua jornada de trabalho para atender as condicionalidades
do programa. A avaliação de Impacto do PBF realizada pelo CEDEPLAR (2007)
não confirmam a hipótese de desincentivo ao trabalho pelo programa, pelo contrário os resultados encontrados, “sugerem a existência de incentivo ao trabalho
entre os beneficiários do PBF, sendo a participação no mercado de trabalho dos
beneficiários em relação aos não beneficiários é ainda maior em se tratando das
mulheres”. (SOUZA; CAETANO 2012, p. 4).
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Os resultados da pesquisa sugerem não haver desincentivo ao trabalho ao
comparar beneficiários e não beneficiários, pelo contrário, verificaram-se efeitos
positivos do PBF sobre a participação no mercado de trabalho. As falas de
mulheres beneficiárias do Programa Bolsa Família, entrevistadas no município
de Contagem, apresentadas posteriormente neste estudo, permitem algumas reflexões acerca destes importantes tópicos.
METODOLOGIA
Os resultados apresentados neste estudo se fundamentam nos dados qualitativos obtidos a partir da pesquisa “Trabalho Feminino e Empoderamento da
Mulher: percepções de usuárias do Programa Bolsa Família”, que está realizada
pela Escola de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
– Unidade de Contagem, com financiamento do Fundo de Incentivo à Pesquisa
(FIP). A pesquisa foi desenhada para investigar, no âmbito do programa Bolsa
Família, questões do trabalho feminino e empoderamento da mulher. Respeitando
os princípios éticos relativos a estudos que envolvem seres humanos, a pesquisa
que subsidia este estudo foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (21009113.6.0000.5137).
O trabalho de campo consistiu na realização de doze entrevistas semi- estruturadas com beneficiárias do Programa Bolsa Família no município de Contagem, Minas Gerais. Entrevistas semi-estruturadas se caracterizam pelo uso de
um roteiro que é fisicamente apropriado pelo pesquisador e, embora se apóiam
na seqüência das questões, permitem explorar estruturas relevantes trazidas do
campo (Minayo, 2006).
O material coletado qualificado foi analisado pelos integrantes da equipe
da pesquisa segundo a proposta de Attride-Stirling (2001), denominada redes de
temas. Esta proposta analítica é uma forma de organizar os dados qualitativos
categorizando os temas que surgem nos textos em diferentes níveis. A referida
proposta incluiu a codificação do material; identificação dos temas; construção
de redes temáticas e descrição e exploração das redes temáticas e por fim a interpretação dos relatos encontrados à luz da teoria.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Este item apresenta e discute os resultados encontrados ao longo da
pesquisa desenvolvida junto a mulheres beneficiárias do Programa Bolsa Família
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no município de Contagem, Minas Gerais. São expostos alguns resultados referentes à percepção que as beneficiárias apresentam sobre acerca do trabalho.
O trabalho e seus significados na visão de beneficiárias do PBF
Conforme argumentado por Itaboraí (2003), as mulheres ingressam no
mercado de trabalho por diversas razões, dentre as quais estão a necessidade
de independência financeira ou os apelos de consumo. No que tange a essa
questão, os relatos encontrados indicam que as entrevistadas expressam grande
desejo de ingressarem no mercado de trabalho e sinalizam aspectos importantes no tocante a inserção da mulher nesse universo.
Quando interpeladas a compararem suas vidas na época em que estavam
trabalhando e agora, que não trabalham as entrevistadas que não estavam
trabalhando no momento das entrevistas pontuam o seguinte:
Antigamente eu podia vestir minhas meninas, hoje já tem mais dificuldade. Meu esposo, o que ela ganha é pra casa, é comida e aluguel. Então
assim, se precisa de um sapato tem que esperar ele fazer uma hora extra
ou uma coisa assim, então é mais dificuldade. Quando eu trabalhava eu
comprava as minhas coisas, e hoje tenho que esperar por ele, se der deu,
se não der. (Entrevistada 01, casada, 02 filhos).
Nó, péssimo, hoje em dia é péssimo! Porque a gente tem que depender só daquele dinheiro ali, que talvez você nem tenha, a gente precisa
trabalhar. Eu acho que a mulher hoje em dia tem que ser independente,
tem que trabalhar. Quando a gente trabalha é outra coisa, você tem seu
dinheiro, você pode fazer o que você quer, quando não, é complicado.
(Entrevistada 03, casada, 03 filhos).
Na percepção de Sarti (2011), através do trabalho os pobres constroem
a ideia de autonomia moral, o valor moral atribuído ao trabalho compensa as
desigualdades socialmente dadas. As representações das entrevistadas nos extratos das falas supracitadas estão em conformidade com que a autora descreve
quando pontua que o trabalho pode trazer também à mulher a satisfação de
ter algum dinheiro, pouco que seja, certificando a ela, algum nível de individualidade, mesmo que seus rendimentos não se destinem para si mesma, uma
vez que a individualidade não deixa de ser referida à família.
Entretanto, ainda que as beneficiárias do PBF falem com clareza sobre
a importância do trabalho, a maior parte delas não estava trabalhando no momento da realização das entrevistas. Apesar de perceberem o trabalho como um
ponto importante para suas vidas e sentirem vontade de ingressar no mercado
formal, as entrevistas revelam que há uma dificuldade, por parte das mulheres, em conciliar as atividade s domésticas, particularmente àquelas relativas
aos cuidados com os filhos e com a casa, com as atividades do trabalho produ-
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tivo. Um grande obstáculo para a inserção no mercado de trabalho formal diz
respeito à possibilidade de encontrar quem cuide dos filhos e dos trabalhos que
precisam ser realizados em casa.
A inserção da mulher beneficiária no mercado de trabalho é atravessada
pelos vários papéis que ela ocupa dentro das relações familiares. Os depoimentos a seguir apontam alguns aspectos que contribuem para a não inserção
dessas mulheres no mercado de trabalho.
É difícil, para conciliar as duas coisas fica pesado. Igual minhas meninas
mesmo, se comia, comia, se não comia tava por isso mesmo, não é
minha filha. Meu marido me cobrava muito, apesar eu chegava dentro de
casa e já ia começar a mexer em tudo, lavar, passar, cozinhar, não tirava
nem a bolsa do lado, mas ele pedia atenção. Era pesado, é uma carga
muito pesada. Ainda mais nesse serviço de doméstica, né. A gente já
trabalha igual doido na casa dos outros, e tem que chegar e fazer tudo de
novo. (Entrevistada 01, casada, 02 filhos).
Ah, ficava uma bagunça, até que meus filhos ficavam arrumadinhos,
porque eu deixava com minha cunhada, né? Mas a casa ficava uma bagunça. Ficava tudo meio de escanteio, né? Também vai desgastando a
relação, você não vai ter tempo pra ele, você chega cansada. Quando eu
trabalhava só chegava e pensava em dormir. Chegava cansada e com dor
de cabeça, ainda tinha que cuidar de filho, stress, sabe. (Entrevistada 04,
solteira, 04 filhos).
Itaboraí (2003) argumenta que o trabalho feminino funciona como um
propulsor de autonomia para a mulher, sustentando a ideia de que o trabalho lhe
daria mais independência. Os depoimentos das beneficiárias a seguir estão em
consonância com as argumentações da autora.
A auto-estima da gente vai lá em cima, a gente que tem o dinheiro da gente
e pode comprar. Ainda mais eu que tenho menina, que gosta de andar
bem arrumada. Eu choro de depressão, eu gosto de trabalhar, mas não
tava compensando. (Entrevistada 01, casada, 02 filhos).
Eu gostava mesmo era trabalhar fora. Eu sempre gostei de trabalhar fora,
uma que descansa a mente, outra que a gente cansa o corpo, mas tem
satisfação. Você tem elogios, você é uma profissional. (Entrevistada 09,
solteira, 03 filhos).
Perpassa pela sociedade a concepção de que as mulheres que recebem o
benefício monetário proveniente do PBF não apresentam nenhuma, ou muito limitada, intenção de se inserirem no mercado formal. A idéia é de que o
benefício gera um efeito preguiça e faz com que mulheres em idade ativa não
se insiram no espaço produtivo porque se acomodam com a renda que recebem
via programa.
Na contramão do que vem sendo difundido no senso comum, e também entre alguns estudiosos, no contexto desta pesquisa, foi possível verificar
que o fato de receber o benefício via PBF não gera, para o grupo de entrevis-
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tadas, desestímulo ao trabalho. De maneira geral, o recebimento do benefício
proporcionou, e proporciona, significativas mudanças na vida material dessas
famílias, especialmente para as crianças. Contudo, as entrevistadas são bastante incisivas ao expressarem o desejo de ingressar no mercado de trabalho, mas
ressaltam, entretanto, que a baixa escolaridade e a necessidade de cuidarem dos
filhos fazem, em geral, que isto não seja vantajoso. Os resultados deste estudo,
estão em conformidade com Medeiros et al. citado por Bichir (2010) que diz ser
o valor recebido insuficiente para que haja um desestímulo ao trabalho, como
apontam as relatos a seguir:
Eu quero trabalhar, entendeu? Não dá pra ficar vivendo só as custas do
bolsa família. O bolsa família ajuda, mas minha vontade mesmo é de
trabalhar. (Entrevistada 04, soleira, 04 filhos).
Eu preciso trabalhar. É um dinheiro que ajuda, mas não supre tudo, né?
Até porque eu recebo R$32,00 pra cada criança, né? Ajuda é claro, mas se
eu for ficar só com o bolsa família não dá. É um completo que a gente tem.
(Entrevistada 12, casada, 04 filhos).
A entrada das mulheres no mercado de trabalho constitui-se algo
novo, tanto para mulheres de classe média, quanto para as mulheres de classe
baixa. O que se questiona nesse contexto, é que, o fato das mulheres entrevistadas almejarem uma inserção no mercado de trabalho sem se qualificarem, as colocaria no universo do trabalho precário e mal remunerado. Como salienta Sarti (2011), o fato de o trabalho possibilitar que a mulher veja os seus filhos bem
vestidos e bem alimentados justifica que ela se submeta à baixa remuneração e
ainda associe a atividade produtiva às atividades realizadas na esfera doméstica.
Além da baixa qualificação, o ingresso da mulher no mercado de trabalho
precário é permeado por questões de gênero o que implica também na divisão
sexual do trabalho. Citando Saffiot, Paulilo (2004) pontua que, por ter encontrado uma conjuntura social tradicional de submissão e depreciação do seu
trabalho, a mulher se insere no contexto do trabalho sob condições adversas.
Dito de outra forma, ela se tornou susceptível a aceitar baixos salários e extensivas jornadas de trabalho. Além disso, como já descrito no referencial teórico deste
trabalho, no que tange as ocupações das mulheres, no caso desta pesquisa, elas
tendem a reproduzir no âmbito do trabalho produtivo o que aprenderam durante
toda a vida, ou seja, a serem submissas e desempenhar funções relacionadas às
tarefas de cuidado com as pessoas e com a casa.
Nesse sentido, foi possível identificar que, para o grupo de entrevistadas, o tipo de trabalho não é um fator determinante para que resolva trabalhar
ou não. Assim como descrito por Sarti (2011), a falta de algo dentro de casa é o
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que impulsiona e motiva está mulher a trabalhar, a partir da necessidade a mulher mostra - se disposta a aceitar qualquer trabalho.
O papel que a mulher ocupa dentro da família é um ponto primordial a
ser considerado no contexto da inserção da mulher no mercado de trabalho.
Entretanto, a pobreza e a baixa qualificação, são desafios impostos pela vida
no contexto urbano . Embora as mulheres beneficiárias mostrem um desejo de
ingressar no mercado de trabalho formal, a baixa escolaridade, e a necessidade
de cuidar dos filhos, fazem com que em geral isto não seja vantajoso. Ou seja,
o custo seria mais elevado, já que o salário seria baixo e o que teriam que
pagar para uma pessoa cuidar dos filhos não valeria à pena. Além disso, o
fato de agregarem ao trabalho as tarefas domésticas faz com que a relações com
seus parceiros sejam afetadas. Os depoimentos a seguir ilustram estas questões
segundo as percepções das beneficiárias entrevistadas.
Se tiver menino pequeno seria bom a mulher não trabalhar não. Quando
os meus meninos mais velhos estavam bem pequenos eu não trabalhava
não, ficava só por conta deles, mas não é porque meu marido tinha
condições de me dar tudo, mas é que se eu trabalhasse o dinheiro nem
ia da pra pagar uma pessoa pra olhar eles, ia ficar mais caro. Então, era
preferível eu ficar dentro de casa olhando os meninos e ele trabalhar.
(Entrevistada 06, separada, 03 filhos).
Eu não trabalho hoje porque assim, querer eu quero demais, até arrumei
uma pessoa pra olhar meus meninos, mas não tava de acordo com o que eu
quer ia. Então abri mão do serviço por conta deles. Igual até falo com eles:
Oh, a mamãe ta abrindo mão das coisas dela pra cuidar. (Entrevistada 08,
separada, 04 filhos).
Eu arrumei um serviço, eu tava trabalhando como diarista direto, né?
Tava muito corrido meu tempo, afetou no estudo do meu filho. Eu não
tava tendo tempo de tá ali pegando os cadernos todo dia e olhando.
Eu arrumei um serviço aí e trabalhei uns tempos à noite, pouco tempo,
sabe? Questão de quarenta e cinco dias, e isso afetou, eu não tava tendo
tempo ali de ta pegando o caderno dele todo dia pra olhar. (Entrevistada 03, casada. 03 filhos).
No que tange as questões relativas a gênero, embora as mulheres possuam igualdade formal em relação aos homens na atualidade, os relatos das
entrevistas sugerem que ainda existe um predomínio das formas de relações
desiguais de gênero estabelecidas historicamente.
Eu acho que hoje em dia a mulher faz de tudo. Se precisar de um serviço
de pedreiro tem mulher que faz, se precisar de um serviço de eletricista,
mulher faz. Acho que hoje não tem acepção assim. Agora homem faz muita
acepção, se chegar numa casa não quer lavar vasilha, homem não quer fazer uma comida, fala que aquilo é serviço de mulher, mas acho que não tem
isso não. Mas pras mulheres fazer os dos homens elas faz tranquilo, [...]
a sociedade vê sempre o homem como o tal, como se ele fosse o grande.
(Entrevistada 10, solteira, 07 filhos).
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O homem sempre ganha mais que a mulher. O homem pode andar
pelado, agora a se a mulher coloca uma roupinha mais curta já não
vale nada. A mulher também não pode trair e o homem pode. A gente
sempre vê um vizinho comentando isso. Beber num boteco o homem
pode e a mulher não pode, pra mulher é feio e pega mal, mas o homem
pode. (Entrevistada 06, separada, 03 filhos).
Perucchi e Beirão (2007), ao referenciar Bilac, sinalizam que mudanças
na condição feminina, como o controle de fecundidade, a inserção na educação
formal e as conquistas no espaço público, trouxeram grandes transformações
para o universo feminino, possibilitando uma maior inserção da mulher no mercado de trabalho. No entanto, estas não foram transformações que proporcionaram uma maior igualdade nas relações de gênero no interior da família. Cabe
ainda destacar, como já sinalizado por vários estudiosos e também a partir dos
dados provenientes deste estudo, que estas modificações não abarcaram todas as
pessoas e as diferentes classes sociais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo central deste estudo foi o de apresentar os significados do
trabalho no contexto urbano a partir de percepções de mulheres beneficiárias do
Programa Bolsa Família.
Os resultados indicam que, para o grupo de entrevistadas, o trabalho
é importante em vários aspectos: no econômico, pois permite que atendam
necessidades básicas de sua família; no social, pois através do trabalho podem
conhecer pessoas e ampliar o círculo de amizades; no psicológico, pois alegam
que o fato de saírem de casa para trabalhar permite que arejem a cabeça dos
problemas que enfrentam em casa e se sintam mais valorizadas como seres humanos, já que o trabalho doméstico parece nunca ser reconhecido, ou ser pouco
reconhecido pelos demais membros da família.
Outro importante ponto a ser destacado, diz respeito ao suposto desincentivo ao trabalho motivado pela concessão do benefício financeiro via PBF.
Verificamos, no âmbito dessa pesquisa, que o fato de receber o valor monetário
não impede que as beneficiárias do programa percebam o trabalho como um
fator positivo em suas vidas. O fato de receberem uma transferência monetária
não impede que desejem trabalhar. A grande dificuldade destacada pelas entrevistadas para a não inserção no mercado de trabalho está situada na persistência
de alguns valores tradicionais relativos aos cuidados dos filhos e da casa e da
lacuna na existência dos equipamentos sociais que possam atender às demandas
de mães trabalhadoras, tais como creches e escolas em horário integral.
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A partir das entrevistas realizadas com beneficiárias do programa, foi
possível identificar que, independente do arranjo familiar, a maior parte das
mulheres expressa interesse em exercer uma atividade remunerada e se dedicarem aos estudos. A análise também evidencia que, para essas mulheres, o trabalho remunerado seria um meio para se afirmarem como pessoas mais independentes, tendo voz mais ativa em suas famílias e relacionamentos. A inserção
da mulher no mercado de trabalho é, portanto, considerada, pelas beneficiárias
do programa, permeada por grandes obstáculos. Para elas, o fato de ter filhos, as
inúmeras tarefas domésticas e, em geral, a baixa escolaridade são aspectos que
dificultam sua participação no mercado formal de trabalho.
Estas são questões que devem ser consideradas a partir de uma perspectiva de igualdade de gênero. É preciso sublinhar que, o desejo de inserção no
mercado de trabalho, compreendido por essas mulheres, como uma saída para
emancipação feminina, é percebido, como já pontuado por muitos estudiosos,
como a soma de mais uma responsabilidade, já que, necessitam assim se desdobrar para enfrentar uma dupla ou tripla jornada de trabalho. Faz-se necessário a
ampliação dos estudos e reflexões no que tange a relação existente entre trabalho
e família, principalmente quando se trata de famílias mais vulneráveis no sentido de uma maior legitimação e flexibilidade, especificamente, estas reflexões
devem se pautar na perspectiva de gênero como uma construção histórica.
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As dinâmicas lúdicas e os processos de
museificação do Museu histórico Abílio
Barreto (Belo Horizonte, Minas Gerais)
Leonardo Gonçalves Ferreira1
1. Leonardo Gonçalves Ferreira. Doutorando do PPGCS Puc Minas. Orientadora: Prof. Dr.
Luciana Teixeira de Andrade.
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Introdução
O objetivo deste artigo foi analisar um determinado processo de museificação inserido nas dinâmicas lúdicas pelas quais passam as metrópoles contemporâneas na atualidade. A proposta deste artigo é fazer uma reflexão em torno
do processo de museificação de um passado histórico, com o intuito de construir
uma identidade local, no âmbito das práticas de ludificação dos espaços.
É essencial fazer uma análise da forma como a política cultural se constitui,
no sentido não apenas da conservação, mas também da museificação, e como se
efetiva a divulgação e a recriação do patrimônio e, neste caso, da identidade local. O
presente artigo buscou refletir como um discurso constitui um traço de identificação
de maneira a se configurar em certo tipo de cultura local. Este traço identificador
apoia-se na museificação de um passado de modo a se construir uma identidade
local. Deve-se atentar ao fato de que o caso analisado trata-se de um discurso que se
encaixa em lógicas de museificação e de promoção do lúdico. (Baptista, 1999).
Para tanto, será feita uma análise do Museu histórico Abílio Barreto
(MhAB – Belo Horizonte, Minas Gerais) que, apesar de não se constituir integralmente como um exemplar conceitual de território lúdico (lugares programados
para fins lúdicos no contexto das cidades contemporâneas. Baptista, 2013), tem
na sua reconfiguração, realizada nos últimos anos, relação direta com “a programação de lugares destinados ao usufruto lúdico, desenvolvidos numa lógica de
economia do entretenimento”. (Baptista, 2013, p. 1).
Em termos metodológicos, a pesquisa se realizou por meio de uma entrevista, com uma representante do museu, que tentou elucidar os caminhos
discursivos escolhidos para fomentar o processo de museificação do passado
de Belo Horizonte, na busca por se constituir sua identidade local. É inegável
que a transformação do MhAB, realizada nos últimos anos, foi feita com vista
a atingir um público, embora local, igualmente ávido por consumir diversão e
entretenimento. Não obstante, esta premissa não impediu sua negativa, já que,
como se observou, o museu também aspira transcender as fronteiras da cidade.
Dados como eventos e programação cultural do museu foram recolhidos durante
a entrevista e também compõem o escopo da presente investigação.
A entrevista
A entrevista ocorreu, no próprio museu, na manhã do dia 30 de agosto de
2013. Com uma duração de aproximadamente três horas, ininterruptas, a entre-
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vista foi feita com uma historiadora e técnica de patrimônio cultural do museu.
O contato, e demais acertos, com a entrevistada foi relativamente simples – talvez
pelo fato desta não ter sido a primeira entrevista que realizo no museu. Apesar
de não nos conhecermos, meus precedentes de relacionamento com a instituição
pode de alguma maneira ter facilitado o nosso encontro. Inicialmente, procurei
pela diretora do museu, mas ela estava ausente naquela ocasião. Cheguei à entrevistada depois de me apresentar e explicar o objetivo da pesquisa. A entrevista
ocorreu uma semana depois do primeiro contato telefônico. A receptividade e
gentileza deste primeiro contato se estenderam à disponibilidade e presteza da
técnica durante a entrevista.
A entrevista foi dividida em três partes: a primeira parte era composta
por questões mais objetivas e visava elucidar a composição e as características
físicas, burocráticas, técnicas e financeiras do museu. Além disso, também se
objetivava coletar dados sobre exposições, eventos e público. A segunda parte
estava voltada para as possíveis práticas lúdicas desenvolvidas no museu: sua
internacionalização, sua ludificação e sua capacidade turística. Por fim, a terceira parte da entrevista era constituída por questões que buscavam relacionar a
construção de uma identidade local, pressupostamente realizada pelo museu por
meio do processo de museificação. Nesse sentido, se faz necessário destacar que
o MhAB é o museu da cidade de Belo Horizonte, dedicado à sua história. Assim,
buscou-se compreender como o traço identitário constituinte da cultura local –
belo-horizontina – se faz por meio do processo de museificação que está inserido dentro da lógica de práticas lúdicas. Como se verá adiante, de acordo com a
entrevistada, museificar significa perder função primária para se tornar portador
de memória. Apresento a seguir um breve histórico do MhAB, realizado a partir
do plano metodológico do museu.
MhAB: o museu da cidade
O MhAB foi inaugurado em 1943 com a denominação de Museu Histórico
de Belo Horizonte. No entanto, suas origens remontam a 1935 quando, o então
jornalista e escritor, Abílio Barreto foi chamado para cuidar da organização do
Arquivo Geral da Prefeitura da cidade. Assim, documentos e objetos começaram
a ser recolhidos, de forma mais sistemática e em diversos suportes, para formar
o acervo do futuro museu de história da cidade. As peças eram, então, separadas
em duas seções: relativas ao antigo Arraial do Curral del Rei (povoado praticamente todo destruído para a construção de Belo Horizonte no final do século
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XIX) e outras relativas à Nova Capital. Em 1941, a fazenda do Leitão (casarão),
um dos únicos remanescentes arquitetônicos do antigo Arraial, foi restaurada
para se tornar a sede do museu. Somente em 1967, o museu recebeu a denominação atual como forma de homenagear o seu idealizador e primeiro diretor.
A partir de 1993, o MhAB iniciou um amplo processo de revitalização
institucional. Esse processo visou reformular a sua política de atuação e transformou o museu em uma “(...) instituição cultural dedicada à história e memória de
Belo Horizonte, direcionando suas ações para a pesquisa, informação, educação
e lazer”. (Plano metodológico do MhAB, grifo meu). Em 1998 foi inaugurado
o moderno edifício-sede do MhAB, originalmente concebido e edificado para
abrigar a sua nova sede. Esse redimensionamento dos espaços foi de fundamental importância para a transformação do MhAB em um centro de convergência
cultural em Belo Horizonte. (Plano metodológico do MhAB). O edifício-sede é
composto por: mezanino, espaço expositivo, reserva técnica, loja, administração,
biblioteca, auditório e bar-café.
Atualmente o MhAB conta, além dos já mencionados edifício-sede e casarão, com uma área externa, jardim, espaços expositivos para objetos de grande e
médio porte e palco ao ar livre. Segundo o Plano Metodológico, “além de exposições de longa duração, o MhAB oferece exposições de média e curta duração
que retratam diferentes aspectos da história de Belo Horizonte, como também
intervenções realizadas fora da sede (...)”. (Plano metodológico do MhAB). O museu também realiza diversas atividades de educação patrimonial que valorizam
os bens culturais e os acervos relativos à história e à memória social de Belo Horizonte. Ainda oferece eventos de difusão cultural que reafirmam o seu papel enquanto lugar de disseminação da cultura local (Plano metodológico do MhAB).
MhAB: um museu lúdico?
A ludificação dos territórios está relacionada com uma incipiente mudança
nos usos do espaço, na medida em que diversifica as suas dinâmicas de apropriação resultantes de determinados processos de urbanização. Assim, segundo
Baptista (2005), territórios lúdicos podem ser definidos como “(...) lugares/cenários edificados de raiz para serem usados como espaços de entretenimento e de
consumo programado”. (Baptista, 2005, p. 47). No entanto, essa nova lógica de
concepção lúdica dos territórios generaliza-se a ponto de tornar os mais diversos
espaços mercantilizáveis. Nesse sentido, o autor chama a atenção à necessidade
de se pensar o conceito de territórios lúdicos de forma dupla: englobando não
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apenas os territórios pré-definidos para fins lúdicos, mas também todos aqueles que são alvo de uma reavaliação que prevê que eles se tornem ludicamente
atrativos. Por meio do conceito de territórios lúdicos é possível analisar de que
maneira as dinâmicas lúdicas atravessam o espaço físico das sociedades contemporâneas. É importante ressalvar que o conceito de territórios lúdicos tem como
foco prioritário, mas não exclusivo, as cidades cujo patrimônio é utilizado para
fins turísticos.
Na atualidade, os museus situados em grandes metrópoles, podem ser
considerados lugares que visam, dentre outras coisas, o entretenimento e o consumo dos habitantes e dos turistas, ainda que isso mude de cidade para cidade.
Não obstante, mais do que observar o surgimento e a proliferação destes museus, é significativo analisar aqueles que passam por um intenso processo de
reconfiguração. Este é, por assim dizer, o caso do MhAB. Como mencionado
anteriormente, há duas décadas, o MhAB iniciou um processo de revitalização
e de reformulação que transformou a sua política de atuação. Dentre seus novos
objetivos, o lazer é destacado como um dos vetores de direcionamento de suas
ações. Neste sentido, pode-se dizer que o MhAB se encaixa dentro da categoria,
assinalada por Baptista (2005), dos territórios que são reavaliados, política e economicamente, de maneira que se tornem ludicamente atrativos.
Dentro das discussões sobre os territórios lúdicos, pode-se dizer que o
MhAB estrutura as suas ações para ser usado como um espaço de entretenimento.
A diversão e a recreação são pensadas por meio do desenvolvimento de uma programação para usufruto lúdico. Segundo a entrevistada, o MhAB é uma instituição
que acima de tudo produz conhecimento sobre a história de Belo Horizonte. O
lazer é desenvolvido dentro de uma perspectiva mais ampla como, por exemplo,
no evento de domingo, que será analisado adiante. Contudo, ela diz que há a preocupação, por parte do museu, de sempre realizar exposições que sejam divertidas,
interativas, bonitas e interessantes. Assim como se busca sempre dar um bom
atendimento ao visitante, de modo que este se sinta à vontade no museu. Para a
entrevistada, o MhAB seria a síntese de uma instituição de produção do conhecimento, de diversão e de pensamento crítico da cidade. Ainda segundo ela, a área
externa do MhAB pode ser considerada um ponto de encontro e de lazer. O museu
é, enfim, um centro de referência da história e da memória, mas faz isso por meio
de múltiplos recortes de trajetórias possíveis. O MhAB propõe inúmeras possibilidades de se pensar Belo Horizonte, mas sempre de maneira prazerosa e lúdica.
Os usos lúdicos dados ao espaço se relacionam menos com a fixidez de
uma determinada população do que com as garantias de mobilidade espacial que
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esta possa, por ventura, vir a apresentar. Dessa maneira, para Baptista (2005), o
uso do conceito de territórios lúdicos contribui sobremaneira para refletir sobre
os diversos usos dados a estes contextos de relação social “(...) aos quais se vêm
prendendo identidades refeitas segundo lógicas de preferência (...) novas ou alvo
de novas utilizações. É nesta encruzilhada que as identidades locais ficam enredadas”. (Baptista, 2005, p. 48). Nesse sentido, o caso analisado parece ser bastante adequado para esta reflexão. Apesar de o MhAB ser um museu voltado para a
construção da memória de Belo Horizonte, seu discurso narrativo não pode se
restringir a um público local. Em função das garantias de mobilidade espacial, e
da consequente diversificação de públicos, é necessário que se repense as identidades locais que são refeitas pelo museu por meio de novas utilizações. Assim,
temos no museu, por exemplo, uma exposição que conta as possíveis trajetórias
da história do futebol em Belo Horizonte, mas que tem como alvo também os
visitantes e turistas, em potencial, aqueles que estiveram na cidade em função
desta ter sido uma das sedes para a Copa Mundial de 2014. A exposição se chama “Belo Horizonte F.C: trajetórias do futebol na capital mineira”.
A industrialização do uso dos tempos livres é hoje um entendimento que
domina as sociedades contemporâneas. O tempo disponível integra-se a uma lógica hegemônica de programação do cotidiano. A divulgação turística é uma das
maneiras pelas quais se assegura a difusão deste modo de vida lúdico que emerge da disponibilidade do tempo livre. Esta dinâmica apoia-se em uma ideologia
que se refere a um prazer que é, ao mesmo tempo, individual e universalizável.
Segundo Baptista (2005), o surgimento do modo de vida lúdico deriva da
generalização não apenas do tempo livre, mas também da predisposição econômica dos indivíduos para o consumo e do acesso individual ao transporte particular e ao transporte aéreo comercial, “(...) o que vai ter implicações práticas nas
condições objectivas de mobilidade de um número crescente de consumidores
com tempo disponível e que ideologicamente aderem a uma prática lúdica de uso
desse tempo (...)”. (Baptista, 2005, p. 51). A forma lúdica das práticas sociais se
estende para todos os domínios da vida social, como pressuposto de disponibilidade para a recreação e para a diversão. A ideologia do tempo livre se sustenta
em atividades econômicas que possibilitam o seu pleno usufruto.
Ora a ideologia das férias, incessantemente promovida por múltiplas entidades em todas as épocas do ano, com múltiplas escolhas de destinos e
de práticas lúdicas, vai promover a própria reconversão física dos lugares,
intensificando as componentes lúdicas dos lugares já destinados para o
efeito e criando tal dinâmica nos lugares isentos de tal vivência anterior.
(Baptista, 2005, p. 53).
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Com relação ao tempo livre e à ideologia das férias, nota-se que o MhAB
também desenvolve atividades que promovem a intensificação de seus componentes lúdicos dentro destas perspectivas. Em julho acontece o “Inverno no
MhAB”. São oficinas e cursos que acontecem durante as férias escolares de inverno. A participação é feita por meio de cobrança de uma taxa. De acordo com
a entrevistada, em janeiro, durante as férias de verão, o MhAB não oferece programação específica. Isso se deve ao fato de que é nesse momento em que a
equipe técnica do museu se reúne para planejar as atividades do ano, para avaliar
o trabalho e para demais organizações administrativas. No entanto, ela afirma
que o museu tem cogitado essa possibilidade uma vez que já há demanda por
parte do público para uma programação específica em janeiro. Esse fato demarca
a mencionada predisposição dos indivíduos para o consumo cultural. De toda
maneira, talvez em função das chuvas de janeiro, a visitação cai nesta época do
ano. Outro fator que pode concorrer à baixa de visitação, neste período, se refere
a não visitação de escolas, público alvo do museu, sendo a visita, assim, restrita
apenas a público espontâneo.
No que se refere ao tempo livre dos visitantes, o MhAB também promove
algumas ações de potencial lúdico. A primeira, e mais emblemática, se chama
“Domingo no MhAB”. Esse evento se divide em duas atividades, que se alternam
em finais de semanas diferentes. Em um domingo, há a apresentação de shows
musicais, para o público adulto. No outro, a atividade denominada “Brincando
no Museu” apresenta espetáculos teatrais infantis para as crianças. Sempre aos
domingos às 11h30, o “Domingo no MhAB” é considerado pela entrevistada o
carro-chefe do museu, uma vez que é o seu maior e fiel publico – já reuniu, por
mais de uma vez, aproximadamente quinhentas pessoas em um único dia.
“Oferece ainda eventos de difusão cultural em seu palco ao ar livre e no
auditório, reafirmando seu papel como lugar de disseminação e valorização da produção cultural local, entre essas atividades destacam-se as
seguintes ações: ‘Domingo no MhAB’, ‘Brincando no Museu’ e ‘Natal no
Museu’”. (Plano metodológico do MhAB).
O “Domingo no MhAB” se refere, também, ao que Baptista (2005) chama
de ideologia das férias, em que entidades promovem múltiplas práticas lúdicas em
todas e quaisquer épocas do ano. Cabe ainda incluir outras ações lúdicas desenvolvidas pela instituição como: “Natal no Museu”, quando o MhAB abriga apresentações artísticas; e programações especiais relacionadas à “Primavera de Museus”
e à “Semana no Museu”. O MhAB ainda abriga: “Festival Internacional de Corais”,
“Noite do Museu”, “Virada Cultural”, eventos diversos da Prefeitura de Belo Horizonte, além de reuniões, congressos e lançamento de livros. Todos esses eventos
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contribuem para fazer do MhAB um lugar que, para além de preservar e construir
a memória de Belo Horizonte, diversifica suas atividades de modo a se aproximar
de um público cada vez mais diverso e amplo. A oferta de distintas alternativas de
lazer e de diversão possibilitam ao MhAB se promover, junto a esse público consumidor, por meio do desenvolvimento de suas práticas lúdicas.
Os grandes eventos estão inseridos dentro de uma dinâmica de renovação
e de reordenamento do espaço urbano. É o que Baptista (2005) chama de territórios competitivos e consumíveis. Observa-se, assim, que empresas de entretenimento buscam lucrar por meio da reconversão de espaços em territórios lúdicos
através da promoção dos mais diversos programas de animação. Belo Horizonte
será uma das cidades-sede para a Copa Mundial de 2014. Por esse motivo, o
MhAB organizou a exposição “Belo Horizonte F.C: as trajetórias do futebol na
capital mineira”. Além das grandes obras de infraestrutura realizadas pelo poder
público para receber esse grande evento, a indústria do entretenimento promove
também diversos programas direcionados aos turistas e visitantes que estarão na
cidade durante o evento. Esse não é o caso direto do MhAB, mas não se pode
deixar de considerar sua sensibilidade para com o contexto no qual está inserido.
Desse modo, é necessário marcar as diferenças entre a discussão conceitual e o
objeto de análise. Existem semelhanças, mas diferenças também.
De acordo com o autor, “economicamente, o turismo (visão lúdica dos
usos dos lugares experimentados e a experimentar) revaloriza as economias locais na medida em que dá oportunidade às localidades, às regiões, às nações
de fazerem uso do seu património de modo a dele tirarem proveito”. (Baptista,
2005, p. 55). Ainda segundo o autor, “as identidades locais, empoladas graças à
valorização da tradição cultural, são reinventadas e tornam-se tão mais estimulantes quanto ganhem em visibilidade e em capacidade de se dar a conhecer”.
(Baptista, 2005, p. 55). Essa afirmação identitária faz com que as identidades
locais sejam revalorizadas em um contexto de economia global. Os lugares da
cidade são, assim, revistos dentro de uma lógica de competição que se dá entre
espaços que se entendem como autênticos.
“A fascinação que todos parecem nutrir pelas atracções locais – paisagísticas, gastrómicas, edificacionais – reinventam os lugares vistos sob o ponto de vista lúdico. Há a pretensão de os conceber como objectos lúdicos,
atraentes e únicos na medida em que têm algo a revelar de particular quanto
à sua história, à sua fisiologia, à sua actualidade”. (Baptista, 2005, p. 55).
A marca essencial de muitos territórios, na atualidade, se encontra dentro
deste processo de reorganização da vida local em que o mundo lúdico dita as
suas necessidades e configurações. O casarão se presta a esta reflexão. Construí-
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do em 1883, a sede da antiga fazenda do Leitão pode ser considerada, ao mesmo
tempo, um documento arquitetônico e um espaço de exposição. O casarão é o
primeiro objeto que consta no livro de inventário do MhAB. De acordo com a
entrevistada, o casarão é por si só, um objeto histórico, uma vez que detém a história de um passado destruído que, hoje, se tenta enaltecer. Em outras palavras,
o casarão pode ser considerado como uma parte representante da história da cidade de Belo Horizonte. Além disso, ainda segundo a entrevistada, pode-se perceber uma relação histórica entre dois momentos distintos da cidade quando se
dialoga o casarão com o edifício-sede. Ambos representam diferentes momentos
de Belo Horizonte e, por isso, podem ser considerados como objetos históricos.
Para a entrevistada, há sempre novas perspectivas sobre os objetos do museu quando estes são expostos com outro olhar. Os objetos têm múltiplas informações. O mesmo objeto pode ter várias leituras, várias possibilidades de interpretação. É nesse momento em que se faz a escolha da proposta narrativa de uma exposição. Em outro ponto da narrativa, o mesmo objeto poderia ter outro significado.
Uma memória se constrói a partir das informações que o objeto trás em
si. O casarão, por exemplo, é remanescente de uma fazenda do antigo Arraial
Curral del Rei e, ao mesmo tempo, pode ser considerado um patrimônio edificado, uma atração. Ao se mudar o olhar sobre determinado objeto, muda-se
também a composição da identidade. Deste modo, o casarão expressa uma forma
de morar característica de um determinado contexto histórico, representa um
remanescente do antigo Arraial e diz de um sistema construtivo específico, por
exemplo. Além disso, os dois andares do casarão são utilizados como espaços
para exposições. Dentro da perspectiva da educação patrimonial, a narrativa é
construída a partir do que se quer comunicar. São vários os discursos narrativos
e identitários passíveis de se comunicar a partir de um objeto. O MhAB utiliza
o casarão como atração por este se configurar, dentre outras formas, um patrimônio edificado constituinte de uma possível identidade de Belo Horizonte. O
casarão pode ser assim, concebido como objeto lúdico, por seu caráter único e
particular quanto à sua história.
Com relação a constante necessidade de renovação para a garantia do
permanente entretenimento, Baptista (2013) pontua:
“Nas últimas décadas, a organização do tempo livre disponível estruturase como um sector central de negócios, face à generalização das práticas de
consumo e às actividades que lhe estão ligadas e que necessitam de permanente inovação para garantir o permanente entretenimento de turistas
que procuram novos desafios nos períodos de interrupção da sua vida
produtiva”. (Baptista, 2013, p. 2).
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III Simpósio de Ciências Sociais: Cidade e Democracia
Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
A entrevistada afirma que a tentativa do MhAB de permanecer em constante inovação lúdica – de modo que garanta o permanente entretenimento de
turistas e do público local – está relacionada com a busca de constante novidade.
Sempre há uma tentativa de diversificar os grupos de teatros que se apresentam
no “Brincando no Museu” e os shows musicais do “Domingo do MhAB”, ambos
elegidos por meio do edital “Cena Música” da Fundação Municipal de Cultura
(FMC). Com relação às exposições, a rotatividade é feita sempre que é possível.
O MhAB realiza exposições de curta (até seis meses), média (de um a dois anos)
e longa duração (de dois a três anos). O museu também dispõe de exposições
permanentes referentes aos objetos de grande porte (coleção transporte) que se
localizam em sua área externa.
Atualmente, as exposições de curta duração do MhAB são: “Uma história,
dois personagens” (exposição sobre a história e a vida de Clóvis e de Lia Salgado,
localizada no foyer do auditório), “Pinacoteca” (exposição de quadros diversos
pertencentes à reserva técnica do museu, localizada no primeiro andar) e “Peça
em destaque” (a exposição atual, localizada no mezanino, apresenta uma cadeira
do antigo cassino da Pampulha,).
Quando da entrevista, no casarão havia duas mostras. Uma no térreo, também de curta duração, chamada “A mitra e a coroa” (realizada em parceria com a
PUC Minas e o Centro de memória da Arquidiocese). Na parte superior do casarão
se encontrava a exposição, de longa duração, “A casa e a cidade: modos de viver e
sua modificação”. De média duração, o MhAB realiza a exposição “Belo Horizonte
F.C: trajetórias do futebol na capital mineira”, localizada no principal espaço expositivo do edifício-sede. A exposição sobre o futebol ficará em cartaz até 2014 em
função da Copa. A mostra, que já tem um ano, está sendo gradualmente atualizada
com a introdução de novas informações e intervenções. Ainda de acordo com a
entrevistada, se a exposição fica parada muito tempo, se torna pouco atrativa. Nesse sentido, o MhAB está organizando o lançamento de um álbum de figurinhas e
de um livro sobre a exposição que conta a história do futebol na capital mineira.
Segundo a entrevistada, a fluidez das exposições depende de convênios e
recursos financeiros. O MhAB é um equipamento da FMC, o qual faz o repasse
de recursos para pagar os funcionários e a manutenção do museu. Além disso, o
museu concorre com a apresentação de projetos para editais de leis de incentivo
(estadual e federal) que após aprovado deve ter o recurso captado. Atualmente, o
MhAB conta com o patrocínio da Caixa Econômica Federal (para implementação
do sistema de segurança), Eletrobrás (para infraestrutura da área externa) e Manuel Bernardes (parceria institucional), Banco do Brasil, Petrobrás e Usiminas.
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Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
O tempo de lazer é programado não apenas para o período das férias dos
empregados, mas também para a disponibilidade dos estudantes e aposentados.
(Baptista, 2013). Para a entrevistada, a vocação do MhAB é ser um museu histórico. Dessa forma, o grupo alvo do museu, em princípio, seria aquele interessado
na história da cidade. No entanto, o grande público do MhAB é, na realidade, os
estudantes, o grupo acadêmico, tanto infantil quanto adulto. O museu recebe a
visitação de escolas e dispõe, para isso, de um setor educativo bastante articulado e preparado para fazer o atendimento.
A visitação do turno da noite (realizada as quartas e quintas-feiras) é
direcionada para o público universitário. É a chamada “visita orientada”. É uma
visita técnica específica que apresenta, dentre outras coisas e de acordo com os
objetivos do grupo visitante, o processamento técnico do museu, os procedimentos de conservação e o funcionamento administrativo da instituição. A “visita
orientada” é feita, principalmente, por estudantes de arquitetura, museologia,
sistemas de informação e administração. A biblioteca do museu também é outro
equipamento do MhAB que se volta, fundamentalmente, para o público estudantil, confirmando, mais uma vez, seu público alvo. Por outro lado, o MhAB não
dispõe de uma equipe receptiva para o público espontâneo. Segundo a entrevistada, esse plano ainda está em fase elaboração. No entanto, no momento não há
projeto, recurso e nem mediador.
Para os aposentados, o MhAB desenvolve o projeto “Cidade revisitada”.
A entrevistada explica que essa atividade trabalha a memória e é composta por
dois encontros. No primeiro, uma equipe do MhAB vai ao grupo apresentar a
proposta e no segundo encontro, o grupo faz a visita ao museu. O projeto tem o
objetivo de possibilitar a vivência da memória da cidade, de modo que se possam
recuperar lembranças do passado de Belo Horizonte.
O renascimento de um novo espaço-tempo de lazer, na sociedade contemporânea, implica no aumento de atividades humanas noturnas. (Baptista,
2013). O MhAB não apenas oferece atividades específicas para grupos específicos. Dentro das práticas lúdicas desenvolvidas, o museu também oferece
atividades noturnas. A entrevistada exemplifica com o evento “Noite de Museus” em que o MhAB monta uma estrutura particular para uma programação
noturna. Para ela, o “Noite de Museus” serve como aprendizado para outro
evento noturno, de maior amplitude, chamado “Virada Cultural”. Ocorrido
nos dias 14 e 15 de setembro deste ano, o MhAB apresentou uma programação
especial para o público de música. A entrevistada explica que o “Virada Cultural” é uma tradição fora do Brasil e está relacionado com uma modificação do
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Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
museu enquanto algo estático. O museu, dentro do novo contexto da economia
global, está além das exposições. O evento “Virada Cultural” acontece uma vez
por ano, é desenvolvido em sistema de rede com outras instituições culturais
de Belo Horizonte e, por ser noturno, pode vir a atrair aquele público que normalmente não vai a museus.
No contexto de economia global, as cidades são estimuladas a se programarem como uma marca de maneira que possam competir internacionalmente
na atração de populações dispostas a consumir. As marcas se expandem também
aos territórios para que torne mais fácil o seu consumo. A fim de se alavancar a
economia local, desenvolve-se uma estratégia de promoção dos territórios lúdicos, que são associados a uma marca que possa ser prontamente reconhecível.
(Baptista, 2013). Para a entrevistada, a marca do MhAB é divulgada. No entanto,
para ela, o museu não é conhecido na cidade. Ela afirma que já identificou o fato
de que a marca do MhAB não tem força suficiente para comunicar. Atualmente,
o MhAB tem investido no mote “museu da cidade”. Isso porque o fato de o museu se chamar “Abílio Barreto” causa confusão. Normalmente, as pessoas acham
que o museu é sobre o próprio “Abílio Barreto”. Apesar de a entrevistada acreditar que haja divulgação do museu, ela acredita que o museu não seja conhecido,
como mencionado anteriormente. Não obstante, ela não sabe qual seria o motivo
deste desconhecimento, já que o MhAB é o museu mais antigo da cidade.
Ainda com relação à questão da divulgação do MhAB, a entrevistada diz
que atualmente o museu não conta com um setor de comunicação. Desta maneira, a divulgação do museu é feita pela assessoria de comunicação da FMC.
Contudo, o MhAB tem investido nas novas tecnologias das mídias sociais, através de uma fanpage na Internet, para sua divulgação. Pelo fato do museu não ser
uma instituição independente da FMC, não possui site próprio. Assim, o MhAB
tem apenas uma página no site “BH faz cultura” e também se faz presente no
site da Associação de amigos do Museu histórico Abílio Barreto. Além disso, o
MhAB também lança mão de mailings, flyers eletrônicos e físicos, mas os últimos
dependem de recursos da FMC. Os releases, para televisão e jornal, também são
encaminhados através da FMC. Não há nada específico feito para a divulgação
do museu fora do país.
A falta de um setor de comunicação também dificulta a contabilização
dos dados de visitação no MhAB. Desta forma, atualmente o museu conta apenas
com o livro de assinaturas das exposições e com a estatística simples do SMAP
(sistema de monitoramento e avaliação de público). Na década de 1990, o museu
desenvolvia uma pesquisa de público por meio de uma estatística complexa,
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Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
também do SMAP, em que havia o cruzamento de vários dados. No entanto, com
a redução da equipe, e com a extinção do setor de comunicação, que fazia esse
trabalho, o museu teve que se valer de outros artifícios para mensurar seu público. Como mencionado, o livro de assinaturas, por exemplo, mas que, segundo a
entrevistada, não é completamente confiável, já que não são todos os visitantes
que assinam. Além disso, são utilizados os relatórios mensais de cada atividade
desenvolvida no atendimento às escolas. Ainda de acordo com a entrevistada,
essa deficiência produz um efeito colateral: não há como mensurar o retorno do
visitante ao museu.
No que se refere à atual mobilidade espacial das populações e às suas
consequências para o processo de ludificação dos espaços, Baptista (2013) reflete:
“(A) economia do lúdico se alimenta da mobilidade de populações urbanas que circulam pela ‘cidade, mas também e intensamente por outras
cidades. A ideia de circular entre cidades como visitante é hoje o princípio
generalizado que faz dos simbólicos espaços públicos urbanos das cidades
globalizadas, (...), lugares que não deixando de se destinar aos residentes
da cidade estão devidamente catalogados nos guias turísticos, destinados
a visitantes, que criam expectativas em relação a uma ocupação lúdica do
tempo disponibilizado para a viagem e que predestina a associação entre
o entretenimento e a experiência compensadora”. (Baptista, 2013, p. 4).
Visitar museus é uma atividade tipicamente turística no mundo contemporâneo. E esse é um grande desafio para o museu. Grande parte das exposições
do MhAB ainda são feitas somente em português. No entanto, a exposição “Belo
Horizonte F.C: trajetórias do futebol na capital mineira”, como era de se esperar, é
trilíngue (português, inglês e espanhol). Mesmo assim, as legendas dos objetos são
apenas em português. O MhAB produz alguns folders em inglês sobre determinadas exposições, mas não conta com nenhum guia bi ou trilíngue no atendimento
espontâneo. A atual equipe técnica do museu não possui esse treinamento específico e, por essa razão, segundo ela, o trabalho é feito na base do possível. Apesar
de não ter nenhuma estatística, a entrevistada diz que a visitação de estrangeiros
é esparsa, mas constante. Ela também diz que esse desafio se estende para outros
tipos de adequação necessária no museu, adequações estas não apenas para estrangeiros, mas para analfabetos, deficientes visuais e físicos, por exemplo.
Ainda com relação ao público externo, a entrevistada diz que o MhAB
cria ações para tentar atingir os turistas estrangeiros. Um exemplo disso é a própria exposição relacionada à Copa. A mostra foi pensada para a visita de fora no
momento em que se coloca o desafio de contar a história do futebol de Belo Horizonte para o mundo. Segundo a entrevistada, o MhAB, enquanto um museu da
cidade, não pode perder seu foco. O museu deve fazer a comunicação da cidade,
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mas localizando a cidade no mundo. Procurou-se, desta forma, buscar o público
de fora, que tem o interesse comum por futebol em função da Copa, contando a
história do esporte na cidade. Essa estratégia extrapola a exposição sobre o futebol. Segundo a entrevistada, a exposição do casarão “A casa e a cidade” também
procura o público de fora com a história de Belo Horizonte. A exposição fala de
uma forma de morar no mundo, do nosso cotidiano e das nossas interações com
o outro. Até mesmo a próxima exposição do casarão, “o museu e a história sem
fim”, que conta a história do museu em Belo Horizonte, tem o foco, também, no
visitante de fora.
A inovação lúdica é uma dimensão indispensável para que se possa garantir uma gestão da cidade, enquanto produto “pronto-a-consumir”, minimamente eficaz. A organização do universo lúdico pode ser considerada um fator
crucial na competição internacional das cidades. O princípio da oferta mais interessante é o que faz mover a renovação das cidades em função de suas finalidades competitivas.
“A própria ideia de perpetuação do laço depois da visita está associada
a toda uma gama de iniciativas de marketing urbano que sustentam a
inovação da imagem da cidade e que acompanham todo o ciclo de vida
da viagem. A prever sempre sem falta: a segurança pessoal e a garantia de
nova diversão que possa surpreender o visitante do ano transacto”. (Baptista, 2013, p. 7).
Atualmente, o MhAB não dispõe de nenhum meio para perpetuar o laço
com seu público depois da visita. O museu não conta com folder institucional
e nem com um mediador que poderia realizar este trabalho de perpetuação do
laço com o público depois da visita ao museu. Essa é mais uma característica
necessária para que um lugar seja considerado um território lúdico.
Como já foi mencionado, o MhAB é o museu da cidade de Belo Horizonte.
Nesse sentido, buscou-se compreender se o museu tenta afirmar uma identidade
local. A entrevistada respondeu que o MhAB não busca uma única identidade,
como se esta representasse a história oficial de Belo Horizonte, mas tenta dar
voz às múltiplas possibilidades identitárias presentes na cidade. Segundo ela,
as pluralidades representam possibilidades de recorte através de um discurso
narrativo. A ideia é dar vazão às várias memórias por meio de seu acervo histórico. O MhAB não busca uma única história oficial, visto que as especificidades
de Belo Horizonte são inúmeras, assim como são várias as suas interpretações e
múltiplas as suas identidades.
De acordo com a entrevistada, a forma com que o MhAB produz e difunde imagens de possíveis identidades belo-horizontinas se dá, principalmente,
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por meio das exposições. O MhAB também produz pesquisa e conhecimentos
que não necessariamente chegam de forma completa às exposições. Existe todo
um processo, desenvolvido pelo museu, que vai da pesquisa à doação de objetos.
As exposições são temáticas e buscam atingir a multiplicidade da própria cidade.
No entanto, a pesquisa no acervo técnico, para a montagem das exposições, é
maior do que é possível se comunicar nelas. Além disso, a entrevistada cita as
mídias sociais, como um importante meio de difusão do acervo do museu e da
história de Belo Horizonte. O MhAB também produz publicações sobre suas
pesquisas, cadernos e palestras, por meio de intercâmbio com outras instituições
culturais do Rio de Janeiro, de São Paulo, da Espanha e de Portugal.
As exposições do MhAB são construídas sobre discursos que buscam assinalar as identidades belo-horizontinas. Desta forma, as mostras tentam revelar
valor cultural e sentimento de pertencimento nos moradores da cidade. Para se
montar uma exposição, deve-se criar um discurso expositivo que leve em conta
a multiplicidade e as especificidades da cidade. A exposição sobre o futebol, por
exemplo, buscou, também, a história e a memória dos times amadores de Belo
Horizonte. Mais do que falar dos estádios e dos times oficiais, para a entrevistada, era imprescindível falar dos campos de várzea, espalhados pela cidade, assim
como de seus times amadores. Somente desta maneira, é possível, a partir da temática, construir valor cultural. E em função de um grande evento esportivo internacional, esta exposição possibilita estabelecer um diálogo entre a identidade
local e a economia global. Por isso, a exposição deve ser o mais ampla possível.
Só assim, em princípio, seria possível alargar os horizontes de multiplicidade da
cidade e, ao mesmo tempo, estabelecer sua relação com o mundo.
As histórias são apropriadas para afirmar identidades. A política de afirmação das especificidades culturais de Belo Horizonte, no MhAB, transforma as
tradições da cidade em atração. Para a entrevistada, deve-se enfatizar as especificidades, mas sem esquecer a multiplicidade. O MhAB, enquanto um museu
histórico, transforma história em atração. Para isso, busca-se montar exposições
atraentes para que as pessoas se desloquem de suas casas ao museu.
Já a política cultural de museificação do MhAB se constitui a partir do
momento em que se efetiva a recriação do patrimônio da cidade. O museu possui
uma política de acervo organizada para o processo de museificação. De acordo
com a entrevistada, museificar significa perder função primária para se tornar
portador de memória. O objeto museificado carrega uma memória, mas não tem
mais valor utilitário primário. (“Uma cadeira deixa de ser cadeira”. A cadeira
do antigo cassino da Pampulha deixa de ser um objeto destinado a se sentar e
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Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
se torna parte constituinte da história do cassino). O processo de museificação,
desenvolvido no MhAB, começa com a doação do objeto. Então, o museu faz a
identificação para reconhecer a importância e relevância do objeto. No entanto,
ainda segundo a entrevistada, o MhAB apresenta uma forma diferente de museu:
seu principal objeto é a cidade. Nesse sentido, não é possível tirar do contexto,
não é possível retirar sua função primária. A política museológica do MhAB busca, assim, aquilo que é importante para a história da cidade. Outro critério significativo que também determina a recolha de acervo é a condição de guardá-lo.
Pode-se dizer que a política de museificação do MhAB busca, por meio de
determinados objetos, ou até mesmo por meio da cidade, afirmar múltiplas identidades que compõem o espectro de Belo Horizonte. Além disso, esse processo
não se faz desatento às questões que extrapolam as fronteiras da cidade ou do
país. O processo de internacionalização pelo qual a cidade passa na atualidade,
não se dá apenas em função dos grandes eventos internacionais, mas também
pela própria garantia de mobilidade que hoje usufruem uma parcela cada vez
maior de pessoas. Desta forma, Belo Horizonte repensa seus territórios, de modo
a criar alternativas lúdicas de entretenimento, não apenas para seus moradores,
mas, também, para os turistas. Nesse sentido, transformar o patrimônio local,
material ou imaterial, em atração é uma maneira de não apenas afirmar as identidades locais, mas oferecer a quem visita a cidade motivos para consumir e,
eventualmente, retornar no futuro.
Considerações finais
Este artigo tentou analisar um processo de museificação dentro das dinâmicas lúdicas (Baptista, 2005). Buscou-se compreender a museificação de um
passado histórico para a construção de identidades locais no âmbito das práticas
de ludificação dos espaços. Para tanto, analisou-se, a partir de uma entrevista, a
política de museificação do MhAB e a possível recriação do seu patrimônio e das
identidades locais belo-horizontinas dentro da promoção do lúdico. O MhAB foi
analisado enquanto um lugar de usufruto lúdico. Assim, por meio do processo
de museificação do MhAB objetivou-se analisar a possível construção das identidades locais dentro de um contexto de consumo global.
Por meio da entrevista, percebeu-se que os caminhos discursivos das exposições do museu e o processo de museificação do passado de Belo Horizonte
podem ser fatores que dão origem às possibilidades de construção das identidades locais. É presumível que as narrativas discursivas das exposições deram ori-
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gem ao discurso identitário e histórico de Belo Horizonte, por meio das práticas
de ludificação do museu. A educação patrimonial do MhAB também pode ser
considerada uma maneira de valorizar os bens culturais relativos à história de
Belo Horizonte. Da mesma maneira, os eventos do museu podem ser analisados
como fonte de difusão cultural, o que pode reafirmar o seu possível lugar como
disseminador da cultura local por meio das práticas lúdicas.
Foi visto que as garantias de mobilidade, assim como o tempo livre e a
ideologia das férias afetaram a maneira do MhAB organizar sua política de atuação. Assim, o museu apresenta várias ações lúdicas, com foco no lazer e na diversão, como “Inverno no MhAB”, “Domingo no MhAB”, “Natal no Museu”. Participação em festivais como “Primavera de Museus”, “Semana no Museu”, “Festival
Internacional de Corais”. E em atividades noturnas como: “Noite do Museu” e
“Virada Cultural”. Todas são atividades que diversificam suas ações frente a um
público tão diverso quanto.
Observou-se, a partir da entrevista, que a afirmação identitária pode se
dar, no museu, por meio da construção de identidades locais no contexto de economia global. Assim, é possível considerar o casarão, enquanto um documento
histórico da história de Belo Horizonte, uma atração por se constituir um traço
característico e identitário da cidade. O patrimônio edificado pode se tornar um
objeto lúdico pronto a ser consumido porque único.
A atualização das exposições se faz dentro da necessidade de permanente inovação para o entretenimento. O MhAB está atento a isto quando propõe
atualizações e intervenções em suas exposições. O museu também articula ações
voltadas para públicos específicos: estudantes (visita orientada) e aposentados
(cidade revisitada). No entanto, o MhAB não dispõe de uma equipe receptiva
para o público espontâneo. A investigação também identifica que o MhAB tem
um problema de reconhecimento de sua marca. O museu também não conta,
atualmente, com o setor de comunicação, o que dificulta não apenas o seu trabalho de divulgação, mas de contabilização de seu público e de mensuração de
retorno do mesmo. Grande parte das exposições ainda é feita em português e a
equipe técnica não conta com guias bi ou trilíngues. Por fim, o MhAB não dispõe
de nenhum meio para perpetuar o laço com o público depois da visita.
O MhAB é o museu da cidade. Nesse sentido, o museu não procura uma
única identidade de Belo Horizonte. São tão inúmeras as especificidades da cidade quanto são várias suas interpretações e múltiplas suas identidades. Não
obstante, por meio da entrevista, verificou-se que o MhAB tenta buscar localizá
-la no mundo com vistas a atingir um público externo também. As exposições
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tentam estabelecer um diálogo entre as identidades locais e a economia global.
Possivelmente transformando a tradição e a história da cidade em atração por
meio de seu processo de museificação. Processo este que, de acordo com a entrevista, não se encontra alheio às práticas de ludificação.
Com esse artigo, buscou-se compreender como as características constituintes de um território lúdico se expressam no MhAB. E mais do que isso, como
essas práticas lúdicas interferem em seu processo de museificação na construção
de possíveis identidades belo-horizontinas. Apesar de ter sido possível encontrar
ações e eventos que demonstram uma aproximação do museu com os processos
de ludificação, verificou-se, também, várias dissonâncias referentes ao conceito.
Tal fato pode demonstrar um processo que se encontra ainda em desenvolvimento no museu, percalços contextuais que o travam ou simplesmente características pontuais específicas. De toda maneira, um aprofundamento empírico pode
elucidar tais questões, assim como aquelas relacionadas ao seu público.
Bibliografia de referência
BAPTISTA, Luís (2013) “A dimensão lúdica da cidade: uma perspectiva de análise a propósito da programação
global de lugares para o entretenimento urbano”. (Texto disponibilizado pelo autor).
BAPTISTA, Luís (1999) “Território e cultura saloia: a construção de uma identidade local?”. Observatório das
Actividades Culturais, OBS n 6, 1999, pp. 11-16.
BAPTISTA, Luís (2005) “Territórios lúdicos (e o que torna lúdico um território): ensaiando um ponto de partida”.
Fórum sociológico, n 13-14 (2º série), 2005, pp. 47-58.
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Instituto de
Ciências Sociais
Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
Lagoinha – Bonfim: seus copos,
seus corpos, seus caminhos tortos
Denise Pirani1
“O homem, esse fenômeno dialético, é obrigado a estar sempre em movimento. O homem, assim, nunca pode atingir o descanso final e fixar
morada em Deus. [...] Como são vergonhosos, então, todos os padrões
fixos. Quem jamais poderá fixar um padrão? O homem é uma “escolha”, uma luta, um constante vir a ser. Ele é uma imigração infinita,
uma migração dentro de si próprio, da argila a Deus; ele é um migrante
dentro de sua própria alma”. (Ali Shariati)
1. Professora Doutora do Departamento de Ciências Sociais da Puc Minas e pesquisadora do
Escritório de Integração (EI) do Departamento de Arquitetura e Urbanismo.
III Simpósio de Ciências Sociais: Cidade e Democracia
Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
Introdução
O texto que se segue é parte de uma pesquisa que foi realizada na cidade
de Belo Horizonte, mais especificamente nos bairros da Lagoinha e do Bonfim.
O objetivo da pesquisa foi, em princípio, compreender estilos de vida “marginais” e sua relação com a modernidade. Primeira cidade planejada no Brasil, Belo
Horizonte trazia no seu urbanismo todo o discurso da república e do progresso.
“A República surgiu em Minas em 1889 com uma ideia feita - a da mudança da
Capital» (Azevedo, 1904, s.p.) Essa ideia foi colocada efetivamente em prática
com o surgimento do novo regime calcado nas ideias de progresso e modernidade. Ouro Preto, até então a capital mineira, representava política e simbolicamente, o antigo regime. Era preciso adaptar o estado de Minas Gerais às novas
ordens políticas e econômicas (Fundação João Pinheiro, 1998 - Bello Horizonte,
bilhete postal). “Ouro Preto continuava representando o passado, enquanto outras regiões, principalmente a Mata e o Sul, atingiam maior riqueza econômica, fundada no
café e outras atividades. Essas regiões, como não poderia deixar de ser, queriam expandir sua área de influência e liderar a vida política, cujo domínio lhes fugia” (Iglésias,
c.f. Fundação João Pinheiro, 1998 p. 16).
O tema desse trabalho consistiu em refletir sobre “modos de vida marginais” desenvolvidos nestes dois bairros históricos na cidade de Belo Horizonte, a
Lagoinha e o Bonfim. Bairros periféricos (social e simbolicamente dizendo) têm se
tornado, progressivamente, em espaços e em temas de estudo na área de antropologia (assim como em outras ciências sociais) realizada no Brasil. Nesse sentido,
mais do que formas particulares de ocupação urbana, os bairros periféricos têm
se revelado espaços intelectualmente férteis para se refletir a questão da violência
e do crime, da exclusão social, dos movimentos sociais, da formação de novos
sujeitos políticos e também de práticas tidas como marginais ou desviantes2.
Certamente Belo Horizonte tem sido bastante mapeada cientificamente
nas duas últimas décadas, mas esses trabalhos se concentraram principalmente
na arquitetura, história, saúde e engenharia. Estudos de cunho antropológico
são ainda escassos na cidade de Belo Horizonte 3. Trabalhos na área de sociologia
2. Marginal e desviante são, neste trabalho, as mesmas ideias desenvolvidas por Becker (1977)
no que diz respeito a comportamentos. Ou seja, trata-se de condutas (e aqui, por extensão, os
modos e estilos de vida) que, de alguma maneira, estão fora dos padrões convencionais de uma
dada sociedade, mas que estão, por outro lado, igualmente ligadas “a ideia de marginalidade em
relação a fronteiras ou limites socialmente estabelecidos” (Becker, H., 1977:53).
3. Na realidade, existe ainda uma carência de estudos em antropologia na cidade de Belo
Horizonte, principalmente se comparamos com outras capitais brasileiras como São Paulo e Rio
de Janeiro.
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PIRANI, D. • Lagoinha – Bonfim: seus copos, seus corpos, seus caminhos tortos
III Simpósio de Ciências Sociais: Cidade e Democracia
Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
também têm ganhado maior atenção, muito embora os temas estudados estão
principalmente concentrados na questão da moradia, da família operária, moradores de vilas e favelas (Pádua 1988; Vellasco 1993; Fausto Neto 1978). Numa
menor dimensão, a questão da exclusão social em Belo Horizonte, as pesquisas
estão direcionadas aos adolescentes e crianças de rua (Pinto, 1992; Gouvea, 1990;
Coelho, 1992), mulheres negras (Gomes, 1994), prostituição feminina (Freitas,
1983). Mesmo que estudos sobre a exclusão social na capital mineira não constitui um campo exclusivamente “estranho” nos meios acadêmicos, estilos de vida
marginais e/ou periféricos são ainda temas poucos pesquisados em Belo Horizonte
e são justamente esses aspectos, mais do que outros temas considerados mais
nobres, que darão à cidade características efetivamente urbanas e modernas.
Mesmo que o tema não seja novo, o objetivo maior desse trabalho foi
compreender como que a modernidade se apresenta em Belo Horizonte. No entanto, diferentemente de uma grande maioria dos trabalhos intelectuais, temos
aqui como meta principal compreender a modernidade a partir de certos ângulos
marginais, de modos de vida que traduzem, a princípio, condições de vida periféricas. A modernidade (ou a pós modernidade, ou ainda a globalização) tem
sido demonstrada, tradicionalmente, a partir de aspectos centrais das sociedades
ocidentais. Na literatura acadêmica, a modernidade é analisada, principalmente,
segundo os aspectos da arquitetura, da pintura (Harvey, 1992; Clifford, 1988),
da literatura, da informática, do consumo, do cinema, dos museus (Clanclini,
1998), etc. Pouco se tem pensado a modernidade nas suas novas formas de exclusão social, nos seus atores que não participam diretamente desse progresso
mas que se vêm obrigados a readaptar a novos estilos de vida (remodelando
outras identidades sociais), estes provocados por mudanças políticas, culturais e
econômicas ocorridas nas três últimas décadas. Exclusão social e suas diferentes
formas representam, igualmente, um parâmetro para entender o grau de modernidade que cada sociedade, nas suas particularidades, vive.
Neste sentido, a zona boêmia em Belo Horizonte, desde seu início, parece ter incorporado aspectos modernos na sua estrutura urbana, “uma vez que
a configuração dessa requer, além da casa de prostituição, a existência de outros equipamentos de dancing’s, cinemas, bares, boates, restaurantes” (Liberato,
2000:80). No que concerne aos seus personagens, Belo Horizonte, e particularmente os seus territórios marginais, esses últimos apresentavam aspectos bastante cosmopolitas para uma capital tão jovem. Segundo Pedro Nava, ao descrever a rua Guaicurus, situada no limiar da cidade planejada e que faz fronteira
com a região da Lagoinha/Bonfim, descreveu essa zona boêmia como “um pedaço
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PIRANI, D. • Lagoinha – Bonfim: seus copos, seus corpos, seus caminhos tortos
III Simpósio de Ciências Sociais: Cidade e Democracia
Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
de Marselha jogado no sertão, uma torre de babel deitada, onde se falavam todas as
línguas: francês, espanhol, brasileiro do norte, do sul, mineiro de Pirapora, Januária, do
Triâgulo da Mata” (Nava, 1970:49 c.f. Liberato, 2000:88).
Finalmente, a hipótese deste trabalho é que, ao contrário de um amplo
discurso, tanto político como acadêmico, sobre as ideias modernistas em que
foi construída a capital mineira, na realidade, a modernidade, do ponto de vista
antropológico, chegou pelos estilos de vida marginais, pelos atores socialmente
desviantes.
Entradas e Saídas
No século XVIII, a região da Lagoinha e do Bonfim, assim como toda área
onde foi planejada a cidade de Belo Horizonte (que era conhecida como Arraial
do Curral Del Rey), foi povoada, a princípio, por homens e mulheres ávidos em
encontrar ouro. Pobre nesse gênero de mineral, a região passou a ser caracterizada como um território de chácaras e sítios. Abundante em rios e lagos, esses
terrenos eram ricos para a cultura de cereais e criação de animais domésticos.
Mais tarde, essa região passou a ser, eventualmente, também um território de
repouso e passagem de tropeiros4 que vinham do norte dos estados da Bahia e
de Minas Gerais e que iam, muito frequentemente, a Sabará e Ouro Preto (áreas
de exploração de ouro e carentes de produtos alimentícios) com o objetivo de
comerciarem os seus produtos (Barreto, [1936] 1995 - Belo Horizonte, memória
histórica e descritiva, FJP, Belo Horizonte).
Assim que a comissão técnica, coordenada pelo engenheiro Araão Reis,
determina a localização geográfica da construção da nova capital, a Lagoinha e o
Bonfim se tornam em áreas suburbanas. É que a área planejada da nova capital
tinha como limite o ribeirão Arrudas onde se construiu a avenida do Contorno
que “cercava”, marcava o limite da cidade. A Lagoinha e o Bonfim se convertem
em espaços liminares com relação à cidade oficial, ou seja, a cidade planejada. De
forma que, de zona rural, a região da Lagoinha e do Bonfim se transforma num
território periférico e geograficamente às margens da nova cidade. Mais do que
uma zona então periférica, com a construção da capital, a região se converte em
bairros operários. Estudos já realizados nessa região apontavam que, historicamente, a formação cultural é eclética (Liberato, 2000; Machado & Pereira, 1997;
4. Tropeiros eram, de início, tropas de bandeirantes que desbravavam terras à procura de ouro.
Mais tarde tornou-se numa atividade de pessoas que vendiam gado e outros produtos alimentícios
e que viajavam pelo país a cavalo. Nos nossos dias, com a modernização das estradas e os meios
de transporte, esse gênero de atividade praticamente desapareceu.
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Silveira & Kelles, 1990). Assim, famílias de espanhóis, de portugueses, de sírios
e libaneses, evidentemente de brasileiros, mas principalmente de italianos; ali se
instalaram. Essa configuração cultural dos bairros da Lagoinha e do Bonfim é,
a meu ver, um dos primeiros aspectos verdadeiramente modernos de Belo Horizonte, pois podemos observar o melting-pot que constitui essa região “marginal”.
Arquitetonicamente, a cidade de Belo Horizonte foi projetada da forma mais
moderna baseada nas ideias urbanísticas europeias do fim do século XIX. Essa região periférica concentrava, desde a construção da cidade, diversas culturas. Ao
contrário da cidade oficial, cujos habitantes eram, preferencialmente, antigos funcionários da administração pública de Ouro Preto e que possuíam um perfil social
e cultural muito mais homogêneo. Os novos habitantes de Belo Horizonte eram
principalmente pessoas provincianas no seu estilo e modo de vida. O que queremos dizer é que se tratava de pessoas, famílias muito ligadas à cidade de origem e
que por outro lado, muitas delas não possuíam uma experiência cultural diversificada. Ao contrário da Lagoinha e do Bonfim, bairros onde se concentravam tanto imigrantes de diversas nacionalidades como igualmente eles já possuíam uma
experiência de deslocamento, de mobilidade e de contato cultural diversificado.
Outro ponto importante é que o bairro faz fronteira5 com a ferroviária
(atualmente estação de metrô) e a rodoviária, pontos de entradas e saídas da cidade. São nessas áreas que podemos então presenciar o personagem tipicamente
urbano segundo George Simmel: o estrangeiro. Ferroviária e rodoviária formam
assim territórios de passagem, de presença de estrangeiros, de comerciantes. São
elas que alimentam, em grande parte, o dinamismo urbano. Ambas possibilitam
um fluxo constante de trânsito, de trocas, de comunicação entre as pessoas.
5. A noção de fronteira é, no quadro dessa pesquisa, utilizada como uma noção tanto social como
simbólica. No primeiro caso, trata-se de uma zona distante do “centro”, da classe dominante,
dos serviços públicos, dos meios oficiais de comunicação e cultura. No segundo aspecto,
fronteira (Pirani, 2000) representa uma espécie de “zona de exílio” (Zaremska, 1996), “lugar
de tolerância” (Foucault, 1976), dos “banidos” da cité, enfim, um espaço físico (e simbólico)
para todos os indivíduos “não conforme” à ordem social. Historicamente, são os criminosos,
os doentes mentais, os sodomitas, as prostitutas, os “estrangeiros”, os vagabundos, etc, que são
excluídos da sociedade e privados de direitos sociais básicos. Fisicamente, fronteira constitui
num território aberto (ruas, avenidas, parques, estação ferroviária) ou fechado (asilos, prisões,
hospitais). No entanto, um outro aspecto ligado à questão de “fronteira social”, estão também
as noções de “práticas transgressoras” e “zonas morais” de um grande centro urbano, como é o
caso da Lagoinha/Bonfim/Bonfim. Esse caráter trangressor da Lagoinha/Bonfim já foi apontado
por diversos autores como por exemplo Torres Silveira &Ferreira Kelles (1990) e Machado &
Pereira (1997). Dentro da perspectiva da Escola de Chicago, a Lagoinha/Bonfim/Bonfim constitui
uma espécie de “zona moral” devido seus caracteres sociais. “Zona moral” define a cidade como
composta de territórios e “zonas morais”. Essa forma de conceber a cidade em “regiões morais”,
tinha como objetivo compreender territórios onde se desenvolviam “práticas desviantes” como a
prostituição, crimes, grupos sem domicílio fixo, formação de gangs.
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Sendo a Lagoinha/Bonfim os bairros mais próximos destas “entradas e saídas”
e também do centro comercial de Belo Horizonte todo esse movimento refletiu
sobre o seu modo de vida e sua urbanização. Nos quarteirões próximos a esses lugares de passagem, a Lagoinha/Bonfim assumiu características próprias:
numerosos hotéis e pensões como também desenvolveu uma vida boêmia com
casas de prostituição, de dança, lugar igualmente de malandros. Esses aspectos
caracterizam o bairro como um espaço, por excelência, de desvio. É que, devido
seu aspecto inicial de fronteira da cidade, o bairro da Lagoinha/Bonfim desenvolveu certos tipos de práticas de transgressão. Entre essas práticas, está a prostituição (feminina e masculina), uma experiência antiga e habitual no bairro.
Entre o sagrado e o profano
Um outro aspecto a ser examinado é a característica familiar do bairro,
que contribuiu para que se desenvolvesse uma forte prática religiosa, até hoje
muito presente no bairro: “Fica bastante evidente que a Lagoinha é responsável
por algumas tradições religiosas e musicais, como a missa solene, até hoje comemorada na Matriz Nossa Senhora da Conceição, por ocasião do aniversário
de sua padroeira”, ficando “patente a coexistência de uma face conservadora,
religiosa, familiar e solidária, com uma face laica, transgressora, caracterizada
pela presença da prostituição e boemia, que também compõem a identidade do
bairro” (Machado & Pereira, 1997:44).
As práticas religiosas são traços marcantes na vida do bairro Lagoinha/
Bonfim. A vida nessa área de Belo Horizonte “foi significativamente marcada pela
vida festiva e espontânea do interior. Ao som da banda, no seio das festas juninas
e do reisado, sob as bênçãos de Nossa Senhora da Conceição, nasceu no bairro
uma estrutura de sentimento que oscilava entre a inocência do campo e o vício da
cidade. Entre as convenções de religião e família e a realidade que passavam pelo
lugar, a Lagoinha tornou-se um espaço social excepcional” (Lemos, 1996:150).
De forma que, as festividades e comemorações nas igrejas e associações
de inclinação religiosa fazem parte integrante da agenda de seus moradores marcando o ciclo de suas vidas. Mas, mais uma vez, as festas, as comemorações, as
procissões acabam em torno dos copos. Além de se tratar de espaços de sociabilidade, de convivência, todos esses eventos terminam, geralmente, em torno de
salgadinhos e refrigerantes. Como podemos perceber, os “copos lagoinha”6 são
espaços de convivência, de sociabilidade e interação de seus indivíduos.
6. Compreende-se por copo lagoinha, em Belo Horizonte, copos populares para se beber cerveja.
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Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
As famílias dos imigrantes que se instalaram na Lagoinha e no Bonfim
eram famílias religiosas e preferencialmente católicas. Apesar da devoção religiosa, eram também muito festivas e possuíam um senso comunitário muito
desenvolvido. Não foi por acaso que na Lagoinha e no Bonfim se criaram clubes
esportivos, bandas de música, de samba, orquestras sinfônicas, corais de cunho
religioso (Machado & Pereira, 1997). A localização geográfica de ambos os bairros, fazendo fronteira com o centro comercial da nova capital, proporcionou o
desenvolvimento de uma área de lazer significativa para a época. Por outro lado,
a cidade projetada não possuía espaços de lazer fechando suas portas cedo da
noite. É que Belo Horizonte, até então, constituía numa cidade praticamente
administrativa, burocrática e os primeiros espaços de lazer se formaram fora do
cinturão que estabelecia os limites da zona considerada urbana7. De forma que,
na região da Lagoinha e do Bonfim se instala os primeiros espaços de lazer e,
num sentido mais amplo, espaços de sociabilidade. Nesse território de Belo Horizonte, homens e mulheres se encontram com o objetivo de conversar, de dançar, ver filmes, jogar e também para manterem relações sexuais. Essas últimas,
de preferência, tinha um caráter comercial. Uma observação é interessante de
ser remarcada. Lagoinha e Bonfim aglutinaram características sociais aparentemente contraditórias: o sagrado (pois trata-se de bairros populares, familiares e
religiosos) e o profano (por desenvolver espaços de boemia e prostituição). Esses
aspectos se perpetuam até os dias atuais.
Como podemos perceber, a Lagoinha/Bonfim adquiriu características sociais híbridas. Nos dias atuais podemos deparar com numerosos errantes8, prostituta(o)s e pequenos traficantes9, e, igualmente, presenciar jovens operários ou
desempregados, associações religiosas, comércio tradicional de móveis.
Os bares são espaços de sociabilidade. Nesses lugares podemos conhe7. Urbano, para a comissão técnica do projeto da cidade, era considerado exclusivamente em
termos de infraestrutura material e burocrática.
8. Errantes, neste contexto, é compreendido as pessoas vindas, na maior parte das vezes, da
zona rural em busca de trabalho e do desejo de fundar uma família e que na grande cidade,
fracassaram. De relações em relações fluídas e temporárias, com os anos, as referências à cidade
são difusas e bastante restritas. Na realidade, não devemos confundi-los com os mendigos que
povoam o centro da cidade, mais precisamente nos arredores da rodoviária. Esses últimos são,
em geral, os mais desprovidos socialmente de todos os habitantes da polis. Não assimilados na
sociedade através de uma atividade trabalhista, depois de algum tempo, a mendicância parece ser
o único meio de sobrevivência e o anonimato e a carência material e afetiva são quase completos.
Os errantes da Lagoinha/Bonfim são pessoas familiares ao bairro mas que derivam de bar em bar
à procura de bebidas alcóolicas e um pouco de comida. Tarde da noite, quase sempre encontram
onde repousar a cabeça.
9. Nos últimos anos, a Pedreira Prado Lopes, situada na Lagoinha, é palco de vários conflitos
sociais devido ao surgimento do tráfico e consumo do crack.
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cer os diversos modos de vida que se cruzam: idosos, aposentados, donas de
casa, prostitutas, travestis, gigolôs, jovens, cafetinas, etc. O espaço do bar comporta igualmente práticas diversas: a prostituição, o pequeno tráfico, o jogo do
bicho, mas ele é igualmente um espaço de lazer para os adolescentes devotos
dos jogos eletrônicos, um lugar de descontração para os jovens (adeptos da caixa de música eletrônica) atraídos pelo hip-hop, pela “tecno” e pelas pichações.
Os bares são também redutos de músicos tradicionais que embalam canções
improvisadas em suas violas desafinadas!! Pessoas de inclinação mais religiosa
(muitas vezes retornando de uma reunião da Igreja, ou do coral da pastoral)
não hesitam em entrar nos bares e compartilhar do meio ambiente, de uma
cachaça, da boa prosa e do tira-gosto.
Nos finais de semana, o “churrasquinho de gato” nas calçadas, enfumaçando os transeuntes, é uma paisagem bastante familiar e constitui uma
atividade vicinal de lazer. Havendo carvão e sal, todos se sentem convidados
a participar trazendo o que podem. A “loura” e a “branca”10 são por conta de
cada um.
Esse duplo aspecto, familiar e boêmio, guarda, no cotidiano de seus moradores e na sua forma urbana, modos de vida particulares que a caracterizam.
Assim, dados os aspectos sociais que o bairro apresenta, a Lagoinha/Bonfim
destaca-se pela heterogeneidade do seu uso, de seus personagens e por uma determinada forma de urbanização que a particulariza. Esse contraste de imagens,
então boêmio e marginal e por outro lado, residencial e familiar, faz dela um
território rico para compreender certos modos de vida belorizontinos.
E são justamente estes aspectos sociais híbridos, não raro contraditórios, que apresenta a Lagoinha/Bonfim, que faz da região um território intelectualmente fértil para a antropologia. De fato, a região se revela como uma
espécie de “alteridade” com relação a cidade planejada, técnica, burocrática
e política. Ao projetá-la, engenheiros, arquitetos e políticos não poderiam
imaginar que os bairros operários engajados na construção da cidade e que,
teoricamente deveriam desaparecer após a sua finalização, iriam permanecer.
Mais do que a sua fixação nas portas da capital, Lagoinha/Bonfim (obviamente junto com outras regiões periféricas) incorporou, não somente, personagens estrangeiros e estranhos (tornando-os, antropologicamente falando,
no OUTRO) à população típica da área planejada como igualmente a região
desenvolveu identidades e práticas sociais específicas o que a caracterizou
como uma zona de alteridade.
10. Respectivamente a cerveja e a cachaça.
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Copos
Depois da implantação da nova capital, a região da Lagoinha/Bonfim sofreu um processo de urbanização e de desenvolvimento social, ambos bastante
particulares. Como já foi mencionado, de uma região rural ela passou a constituir uma região limítrofe da cidade, situada nas “portas” da cidade. O bairro
acabou por desenvolver uma rede comercial importante por estar perto da zona
central da cidade planificada, ao mesmo tempo que um grande número de famílias de operários estrangeiros aí se instalaram.
Além das pensões e dos hotéis, da prostituição, dos pequenos tráficos e
do jogo do bicho, uma forte rede de oficinas mecânicas e de casas de peças para
automóveis e motos ali se instalaram. A região é circunscrita pela avenida Dom
Pedro II que na maior parte de sua extensão é fundamentalmente caracterizada
pelo comércio de autopeças. Esse aspecto certamente refletiu pelo interior do
bairro da Lagoinha/Bonfim que possui inúmeras oficinas.
Outros pequenos comércios varejistas também se desenvolveram no bairro. São os salões de beleza, bares, padarias e também associações comunitárias para crianças, idosos, desempregados. No início da rua Bonfim existe uma
pequena mas tradicional rede de peixarias e de carnes no atacado. Todo esse
ambiente seria quase que trivial se não fosse uma característica bastante que
peculiar que o permeia. É que além da atividade comercial, eles constituem em
espaços de sociabilidade. Assim, muitas casas comerciais, principalmente essas
instaladas no interior do bairro, constituem espaços de troca mas são fortemente
marcadas por relações de sociabilidade. Seja nos salões de beleza, nas padarias,
nas associações e mesmo nas oficinas mecânicas, as relações vicinais são muito
próximas e estas giram em tornos dos “copos”. Moradores e habitués sempre são
convidados a entrar para “tomar uma” e saborear um tira gosto11 como um pretexto de uma conversa. São momentos onde se discute sobre o futebol, a política,
a religião, o ambiente do bairro, os fregueses, a família consolidando, dessa forma, as relações ao mesmo que esses lugares tornam-se espaços de sociabilidade.
Corpos
Outro aspecto já sublinhado é o fato desta região ter sido um lugar de
passagem, e igualmente situada, nas fronteiras da cidade “oficial”. Lagoinha e
11. Mesmo nos salões de beleza e nas oficinas mecânicas há sempre uma mini cozinha para
que se possa preparar algo para comer e beber de improviso. Já nas associações comunitárias, o
cotidiano é marcado pela “hora do lanche”.
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Bonfim desenvolveram certas práticas transgressoras. Esse modo de vida refletiu-se diretamente na sua forma urbana com a construção de numerosos hotéis,
motéis, casas de dança e prostituição. Assim, “na década de 20 a Lagoinha/
Bonfim passou a ser reduto do operariado desempregado, face à crise econômica
vivida pela cidade durante a guerra. Um outro tipo de ocupação, originado no
início do desenvolvimento da capital, veio consolidar a imagem da Lagoinha/
Bonfim como a de zona boêmia e de prostituição. (...) A população da Lagoinha/
Bonfim constituiu-se em um mosaico, do qual faziam parte os mais diferentes e
originais tipos. Na Vila Senhor dos Passos, mais conhecida como “Buraco Quente”; e, por fim, o espaço compreendido entre as ruas Bonfim e Caparaó, nos limites com o bairro Bonfim, onde se concentra a maior parte das casas de encontro
e o trottoir das prostitutas e dos homossexuais” (Perdesoli, A. 1992).
Um dos objetivos dessa pesquisa é compreender modos de vida da Lagoinha/Bonfim mas também entender seu aspecto boêmio. O que particulariza a
boemia nesta região da cidade, no século XXI, é o valor histórico e social12 dos
bairros. Estando territorialmente fora da cidade planificada, o bairro da Lagoinha/Bonfim sofreu tipos de segregação como a política e a social. Durante muito tempo, ela foi “ignorada” pelos engenheiros, técnicos, urbanistas, políticos e
cientistas sociais. Os únicos setores da sociedade de Belo Horizonte que fizeram
da Lagoinha/Bonfim alvo de interesse, urbanístico, higienista e moralista foram
os jornalistas e alguns escritores.
Somente com o aparecimento de problemas urbanos (violência, exclusão
e degradação) se agravando na região, é que podemos constatar um maior interesse histórico e cultural com relação à Lagoinha/Bonfim13.
Por outro lado, a Lagoinha/Bonfim apresenta, mesmo que atualmente ela
tenha sofrido várias modificações no seu aspecto urbano e social, essencialmente
como um bairro de residência de classe operária e também, como já foi dito, por
possuir uma forte prática religiosa. O bairro apresenta, assim, práticas cotidianas
- familiares, solidárias, dos pequenos comércios - que envolvem várias formas de
uso do espaço público. É que o ambiente diurno difere fortemente com este que
se apresenta a partir das 22H00. Na luz do dia, as ruas são ocupadas pelo mo12. Este aspecto do uso do espaço público por “agentes desviantes” e sua relação com a cidade
já foi apontado no estudo de Neuza Maria de Oliveira (1994) sobre os travestis no Pelourinho,
em Salvador. De fato, práticas venais exercidas em lugares que são símbolos de uma memória
coletiva, parece dar à prostituição aspectos específicos.
13. É o que podemos constatar nos trabalhos realizados por Torres Silveira & Ferreira Kelles
(1990); Machado & Pereira (1991); Perdesoli (1992); Morais & Pereira (1995); PBH/Projeto
Lagoinha/Bonfim/Bonfim (1996).
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vimento de inúmeras oficinas mecânicas ali instaladas, pelos modestos estabelecimentos comerciais, pelas donas de casa, de bordel, de motel, pela “peladinha”
das crianças, pelas prostitutas e travestis que saem às compras ou para outros
afazeres. Podemos ainda notar a presença de cachorros e gatos (e mais esporadicamente, algumas galinhas), que igualmente transitam nas vias, compondo
dessa forma o quadro de uma pequena cidade de província.
No entanto, enquanto uma região de passagem, de fronteira e de recepção de estrangeiros que no começo da construção da capital mineira, o bairro da
Lagoinha/Bonfim foi povoado por famílias operárias portuguesas, italianas e espanholas e de outras regiões do Brasil e do estado de Minas Gerais. Atualmente,
os estrangeiros da região da Lagoinha/Bonfim são pessoas e famílias oriundas do
interior do Estado de Minas Gerais ou ainda de outros estados brasileiros, que
lá se instalaram. “Esta população levou para o bairro a boemia de suas cidades
elegendo-a como o locus por excelência da deambulação” (Lemos, 1996:147).
Estes aspectos possibilitam, em certos pontos do bairro, práticas noturnas simbolicamente muito diferentes destas observadas à luz do dia.
Atualmente, nas sociedades modernas, os mais diversos “corpos” (personagens) se misturam e a diferença dos discursos e representações estão associadas ao mundo simbólico no qual eles pertencem, que se manifestam através
da linguagem, de códigos. O fato de existir, na Lagoinha e no Bonfim, múltiplos
grupos sociais criam, como aponta Gilberto Velho (que por sua vez se apoia em
Shutz), diversas províncias de significado. De acordo com o contexto, cada “corpo”,
mesmo inserido numa determinada esfera social, pode estar sujeito a mudanças
de papéis e de identidades. As cidades modernas “permitem e sustentam possibilidades de trânsito e circulação, não só em termos sociológicos, mas entre
dimensões e esferas simbólicas (Velho, 1999:27).
Os “corpos” da Lagoinha/Bonfim transitam entre os domínios do trabalho, do lazer, da boemia, da malandragem, do sagrado, numa interseção ininterrupta de diferentes mundos, de múltiplos papéis, em função de diferentes planos
em que nesta região se movem.
Uma última questão deve ser brevemente abordada. Um dos aspectos que
abordado nessa pesquisa é a prostituição. Na realidade, este é um tema já bastante estudado no meio acadêmico brasileiro e na última década a preocupação
intelectual maior, tem se debruçado, muitas vezes, sobre seus diversos gêneros
e formas. Nesse trabalho, as práticas venais (mas igualmente outras atividades
ilícitas desenvolvidas na Lagoinha/Bonfim) foram tratadas como aspectos modernos, possuindo uma função “civilizadora” no processo de construção e im-
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plementação da nova capital. Na mesma perspectiva dos estudos de Rita Liberato
(2000)14 e Margareth Rago (1991)15 sobre a prostituição feminina, o comércio
sexual (realizado por mulheres e homens) e outros tipos de escambos, produziam formas de sociabilidade tipicamente modernos já que “homens de idade,
profissões e nacionalidades diversas participavam desse microcosmo, discutindo
política, jogando cartas, bebendo, dançando, acompanhados pelas cocotes ou
pelas meretrizes mais pobres” (Rago, M., 1991: 25). De forma que, mesmo tratando de uma região que possui um perfil preferencialmente operário e religioso
essa característica não impediu que outros estilos de vida menos convencionais
e católicos fossem desenvolvidos e que o “centro” (ou a ordem) e a “margem” (ou
o desvio) pudessem se manifestar em espaços bem próximos.
Caminhos tortos
A noção de modernidade tem como função dar um melhor perfil ao “homem marginal” da cidade de Belo Horizonte. No entanto, é preciso esclarecer que
empregaremos o termo modernidade para designar os tempos atuais, o século XXI.
Existe, nos nossos dias, uma imensa bibliografia que discute as noções
de modernidade, pós-modernidade, modernidade e capitalismo tardio, desenvolvimento sustentável, globalização, mundialização. Por questões práticas definiremos, tout court, o que entendemos por sociedades contemporâneas (que
nesse trabalho será designado como sociedades modernas ou modernidade). Na
realidade, todas essas noções são, de fato, abstrações intelectuais para explicar as
mudanças de estrutura de sentimento (Harvey, 1993), da forma como percebemos
e sentimos o mundo ainda que essas transformações impliquem também em
mudanças econômicas, tecnológicas, geográficas e políticas.
Tomaremos a modernidade segundo a descrição de Berman (1987) que a
considera como um corpo de experiência: “os ambientes e experiências modernos
cruzam todas as fronteiras da geografia e da etnicidade, da classe e da nacionalidade, da religião e da ideologia, nesse sentido, pode-se dizer que a modernidade
une toda a humanidade. Mas trata-se de uma unidade paradoxal, uma unidade
da desunidade” (:56). Transferindo esse corpo de experiência da modernidade para
Belo Horizonte, é certo que, para Minas Gerais, a capital é o principal centro de
14. Liberato, Rita de Cássia, 2000 - “Segregação espacial de uma atividade marginal: a prostituição
feminina em Belo Horizonte no período de 1940-1950” (tese de mestrado, PUC-Minas).
15. Rago, Margareth 1991 - “Os prazeres da noite: prostituição e códigos de sexualidade feminina em
São Paulo (1890-1930)”, Paz e Terra, Rio de Janeiro.
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Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
poder dominante e em termos de modo de vida, a mais moderna. Não só pela sua
arquitetura e administração política, mas na qualidade de possuir novas formas de
boemia, de estilo de vida émigré16, espaços que oferecem aventura, alegria, sociabilidade, descontração, transformação de si, características que formaram as várias
identidades dos bairros da Lagoinha e do Bonfim. A unidade, o corpo de experiência
que caracteriza socialmente ambos os bairros, é composta de diversos gêneros de
ambientes, de diversos espaços morais, de diversas práticas sociais. Uma unidade
fragmentada, onde o território físico é composto de muitas fronteiras simbólicas.
Por outro lado, a relação da região Lagoinha/Bonfim com a cidade planejada foi, sob a forma burocrática (polícia, mídias, prefeitura, escritores e médicos), bastante tensa. No imaginário do belohorizontino, os bairros da Lagoinha
e do Bonfim compõem um território insalubre, precário, de baixo meretrício e
delinqüente17. Jovem capital, a modernidade em Belo Horizonte foi igualmente
marcada pelo crescimento urbano explosivo, pela desordem urbanística, pela
forte migração rural, pela industrialização. Artística e politicamente, participou
de importantes movimentos urbanos nacionais.
Como já foi esclarecido, a região da Lagoinha/Bonfim constitui uma espécie de alteridade com relação à cidade planejada. Também foi mencionado as
características sociais e culturais híbridas que formaram historicamente esses
bairros. A população que os compõem é “marginal” possuindo uma estrutura de
sentimento particular. Ou seja, “os homens e mulheres marginais” da Lagoinha/
Bonfim, através de suas práticas sociais, desenvolveram uma sensibilidade que os
especificam num modus vivendi moderno. São sujeitos que assumem, de acordo
com as circunstâncias, identidades diferentes em diferentes momentos e que não
estão agrupados em torno de uma única instituição ou de uma estrutura de vida
“coerente”. Ao contrário, na Lagoinha e no Bonfim há identidades contraditórias,
formando redes sociais em diferentes direções, de tal modo que as identificações
dos indivíduos são continuamente deslocadas. Nas sociedades contemporâneas
como a cidade de Belo Horizonte, “à medida em que os sistemas de significação
e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das
quais poderíamos nos identificar - ao menos temporariamente” (Hall, 1998:23).
16. Em termos estatísticos, a migração estrangeira em Belo Horizonte declinou fortemente com
a finalização da construção da cidade (ver Machado & Pereira, 1990).
17. As comemorações dos 100 anos da cidade de Belo Horizonte obrigaram os intelectuais,
técnicos urbanísticos, políticos, etc, a mudarem as suas visões sobre a região da Lagoinha e do
Bonfim. De uma região social e moralmente degenerada, passou a ser considerada como um
território historicamente importante na formação da identidade cultural da capital mineira.
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PIRANI, D. • Lagoinha – Bonfim: seus copos, seus corpos, seus caminhos tortos
III Simpósio de Ciências Sociais: Cidade e Democracia
Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
Definições de modernidade e seus derivados podem parecer muito fluidos
teoricamente, intelectualmente flutuantes e muitas vezes acabamos por nos perder
num emaranhado de suposições, noções, idéias e conceitos. Para que possamos dar
uma base teórica mais precisa às questões do homem marginal e da modernidade, achamos necessário acrescentar, as noções de zona moral e de rede social. A
primeira noção e segundo a corrente teórica de Park e Burgess (1926) de ecologia
humana, a cidade, território onde se aglomera inúmeras tradições culturais, não é
simplesmente uma construção material ou artificial. Ela está diretamente implicada
em processos vitais dos indivíduos que a compõem. “É um produto da natureza e,
particularmente, da natureza humana”. Se a vida e a cultura urbana são variadas
e complexas, para a corrente da ecologia humana a cidade está dividida em espaços socialmente definidos que os separam por “distâncias morais”. De forma que,
cada grupo cultural possui seu próprio espaço físico não se misturando, moralmente, com outros grupos. Segundo Park (1926), “o crescimento de uma comunidade
tem como consequência a seleção e a segregação sociais onde há, de um lado, a
criação de grupos sociais naturais e de outro, de zonas sociais naturais. (...) as zonas
naturais constituem o habitat dos grupos naturais: toda zona natural abriga uma
seleção original do conjunto da comunidade. Nas grandes cidades, muitas vezes,
existe uma divergência espantosa entre as maneiras de ser, os modos de vida, e as
perspectivas em cada uma das zonas urbanas» (c.f. Grafmeyer & Joseph, 1984:202 e
205). Essa definição, direta ou indiretamente, tem por efeito «discriminar» os grupos
urbanos acentuando as suas diferenças e fixando-os em espaços, em papéis sociais e
identidades morais mais ou menos estáveis18. Apesar dessa concepção, das formas de
vida na cidade, ser verdadeira, esta afirmação se aplica em especial e historicamente nos centros urbanos do princípio do século XX. A visão e as noções da ecologia
humana/urbana, desenvolvida pela Escola de Chicago sobre a organização espacial,
estilos de vida nas metrópoles, estão, em grande parte, obsoletas quando as aplicamos nos dias atuais, nas sociedades modernas.
Conclusão: a vida e suas redes
Na realidade, podemos dividir a cidade em territórios, onde em cada região pode prevalecer certas práticas coletivas sobre outras, particularizando-a,
18. Essa visão da ecologia urbana não desconsidera a mobilidade social. Ao contrário, a organização
industrial e a ordem moral (nas próprias palavras de Robert Park, 1922), ou seja, a divisão do trabalho no
sistema capitalista implica, entre outras coisas, numa disposição à mobilidade social bastante intensa.
Sobre esse aspecto ver o artigo de Park (1922) sobre Sugestões de pesquisas sobre o comportamento
humano no meio urbano in Velho, O (org.) [1967] “O fenômeno urbano”, , Zahar Editores.
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PIRANI, D. • Lagoinha – Bonfim: seus copos, seus corpos, seus caminhos tortos
III Simpósio de Ciências Sociais: Cidade e Democracia
Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
assim, em zonas sociais específicas. Concordo igualmente que a cidade pode
ser repartida em áreas residenciais, comerciais, industriais, culturais, étnicas,
etc, como fizeram Park e Burgess. O problema teórico está, penso eu, na divisão
realizada através da noção de distância moral entre os territórios. A noção de zonas morais propõe uma visão muito homogênea de cada uma das áreas urbanas,
ou seja, apesar do hibridismo social que caracteriza o modo de vida nos centros
urbanos, essa noção nos dá uma imagem um tanto reduzida da cidade. É que
a noção de zona moral implica em unidade, numa prática dominante que dá
coerência a um certo grupo ao mesmo tempo que o distinguiria/distanciaria dos
demais outros.
Como vimos, a região da Lagoinha/Bonfim na cidade de Belo Horizonte
apresenta uma divisão territorial, mas suas práticas sociais são altamente diversificadas, heterogêneas e moralmente contraditórias. O sagrado e o profano se
revelam, na Lagoinha e no Bonfim, como práticas e relações que se completam
e se mantêm. Não existe uma zona moral mas diferentes “micro regiões morais”
que habitam um mesmo espaço ou território e não raro um mesmo indivíduo.
Nesse sentido, seria teoricamente mais proveitoso substituir zona moral pelo
conceito de sedimentação de experiências coletivas, desenvolvido por Luckman e
Berger (1978).
A sedimentação das experiências coletivas é que proporciona uma estrutura
de sentimento possibilitando a percepção de mundo e as relações sociais entre os
indivíduos. Para melhor compreendermos como que esse processo é possível,
e em particular no caso da Lagoinha e do Bonfim, introduziremos uma outra
noção: o de rede social. John Barnes (1954) elaborou a ideia de rede para estudar
as classes sociais em Bremmes, pequeno vilarejo de pescadores e coletores na
Noruega19 e conclui que um campo social é, na realidade um conjunto de redes:
“a imagem que tenho é a de um conjunto de pontos, alguns dos quais estão unidos por linhas. Os pontos da imagem são pessoas, às vezes grupos, e as linhas
indicam quais as pessoas interagem entre si. Uma rede desse tipo não possui
nenhum limite externo” (Mayer, [1966], 1987:131).
Certamente, adaptei as noções de rede e conjunto de rede ao campo empírico deste trabalho mas creio que elas ajudaram melhor analisar as relações sociais
de um território tão diversificado como apresenta a região da Lagoinha e do Bon19. Como podemos notar a reflexão de redes sociais não é um privilégio dos estudos urbanos.
De fato, podemos fazer uma distinção entre sociedade tradicional e sociedade moderna e
suas diferentes redes sociais. Na última, as redes são mais fluidas uma vez que existem mais
possibilidades de relações e menos conhecimento comum do que numa sociedade em escala
demográfica e industrialmente menor (Hannerz, 1983).
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III Simpósio de Ciências Sociais: Cidade e Democracia
Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
fim. De fato, um indivíduo dispõe de vários tipos de engajamentos, isto é, de papéis sociais e as situações e ocasiões podem combinar das mais variadas formas
não havendo apenas um repertório ou um repertório central. Nessa pesquisa,
os sistemas de referência são diversos onde, a cada vez que seus membros estão
representando um tipo de papel social, esse último corresponde a várias relações
com o outro, permitindo às pessoas um forte trânsito entre diversas redes sociais.
É que, o vasto repertório de papéis e as múltiplas redes sociais (ou conjunto de
redes) produzem combinações sui generis e inovadores nas experiências coletivas dos grupos e indivíduos.
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Instituto de
Ciências Sociais
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CIDADES, PERCEPÇÃO AMBIENTAL
E EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS:
ALGUNS HORIZONTES TEÓRICOS E
METODOLÓGICOS A PARTIR DE TIM INGOLD
Carolina Rezende de Souza
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Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
INTRODUÇÃO
No cenário contemporâneo evidenciamos contextos cotidianos marcados por mudanças e transformações sociais, que exigem, inclusive, a ressignificação das funções tradicionais das cidades, que passam a estar vinculadas
ao exercício da cidadania, da responsabilidade, do compromisso e das possibilidades que os cidadãos e cidadãs têm de redescobrir e se apropriar dos seus
espaços e, assim, de suas possibilidades e potencialidades educativas. Nesta
perspectiva, devemos, em nossas pesquisas acadêmicas e práticas pedagógicas, considerar o potencial educativo das cidades. Inclusive na viabilização de
abordagens e perspectivas, para além dos estereótipos e visões que ocultam a
realidade e o entendimento da complexidade dos processos de formação de
jovens e adultos trabalhadores da Educação de Jovens e Adultos, que valorizem as percepções ambientais que estes atores sociais têm sobre as cidades,
nas quais estão inseridos e que estão vinculadas às suas trajetórias, percursos
e histórias de vida. Neste contexto, os pressupostos teóricos e metodológicos
de autores como o antropólogo Tim Ingold, apresentam grandes contribuições,
que devem ser valorizadas.
Considerando-se tais questões, este trabalho revela-se inserido no contexto de estudos, que buscam estabelecer diálogos entre Antropologia e Educação, tendo em vista a viabilização de olhares interdisciplinares em relação às
cidades na sua interface com a Educação de Jovens e Adultos. Este artigo, pautado em uma pesquisa bibliográfica, tem como objetivo principal compreender a
relevância das interlocuções entre a temática das cidades, percepção ambiental e
a Educação de Jovens e Adultos, a partir das contribuições teóricas e metodológicas do antropólogo Tim Ingold.
Pode-se perceber que a categoria percepção ambiental na perspectiva deste teórico, articulada ao estudo da cidade revela-se fundamental para pensarmos
novos horizontes na formação de jovens e adultos trabalhadores, considerando
que esta modalidade educativa, ainda costuma enfatizar conteúdos e atividades
voltadas à aquisição da leitura e da escrita, que valorizam práticas reducionistas,
etnocêntricas e, assim, desvalorizam os saberes e conhecimentos trazidos pelos
educandos às salas de aula, inclusive as leituras e percepções, que estes atores sociais realizam em relação às cidades em que vivem, trabalham e constroem suas
histórias. Este antropólogo procura, a partir de seu conceito de percepção ambiental, romper com determinadas dicotomias e binarismos estabelecidos como
corpo- mente- natureza- cultura, considerando que o ser humano é cultural e
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biológico e revela modos de agir e perceber o mundo, ligados a habilidades e
engajamentos ativos com os ambientes que os cercam.
Nesta perspectiva, denomina de Ecologia da Vida tudo o que envolve e
perpassa por diferentes modos e formas de habitar o mundo. A Antropologia
proposta por Ingold analisa a existência humana em desenvolvimento, dentro de
um ambiente que está em constante movimento e devir, sendo construída a partir dos inúmeros deslocamentos e de processos constantes de criação e recriação
das relações entre o ambiente e os diferentes atores sociais.
Assim, tais pressupostos teóricos e metodológicos deste autor, fornecemnos diretrizes para a valorização das percepções ambientais de jovens adultos
trabalhadores sobre as cidades nas quais se encontram inseridos, vinculadas às
suas trajetórias, percursos e histórias de vida, para que, a partir delas possam ser
elaboradas estratégias didáticas e metodológicas, que visem à formação destes
atores sociais no âmbito formal e não formal. E, mais do que isto, possam preconizar o estímulo ao protagonismo e fomentar, por parte destes sujeitos socioculturais, buscas pelo direito à apropriação da cidade e à cultura, como condições
essenciais ao exercício da cidadania e do empoderamento político.
A título de conclusão, é importante considerar, que tais questões exigem
necessariamente, a ampliação da esfera pública de direitos e, sem dúvida, a
promoção dos direitos subjetivos, principalmente no que diz respeito a grupos
historicamente marginalizados. Esta articulação somente será possível, quando inscrita na esfera da experiência da vida concreta e imaterial, da vida em
sociedade e, portanto relacionadas às percepções ambientais, que estes atores
sociais têm das cidades e, neste sentido, a diferentes modos de habitarem e engajarem-se no mundo como nos mostra Tim Ingold. Portanto, como substância
das relações da vida, as cidades devem ser vistas como locais da percepção ambiental por parte de diferentes atores sociais como os educandos da Educação
de Jovens e Adultos.
Questões estas fundamentais para a garantia, promoção e reparação de
direitos humanos e subjetivos no universo da formação de jovens e adultos e,
para referendar-nos, estes atores sociais, enquanto protagonistas de suas trajetórias individuais e coletivas, de suas vidas, de seus percursos, identidades e seus
projetos, em movimentos, onde a escola garanta a promoção da escolarização,
aliada à promoção dos direitos subjetivos, que permita a identificação, o enraizamento, o pertencimento, o direito à apropriação da cidade, que acolha e reconheça a diversidade cultural como possibilidade de efetivação democrática dos
direitos e não como a naturalização das desigualdades sociais.
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III Simpósio de Ciências Sociais: Cidade e Democracia
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Este artigo revela-se dividido em 5 partes principais: 1- Introdução; 2- A
Educação de Jovens e Adultos no Brasil: entre a educação formal e a formação humana; 3- Os estereótipos e estigmas em relação aos educandos e educandas da Educação
de Jovens e Adultos; 4- Cidades, percepção ambiental e Educação de Jovens e Adultos:
Alguns horizontes teóricos e metodológicos, a partir do antropólogo Tim Ingold ; 5- Considerações Finais; 6- Referências bibliográficas.
A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS NO BRASIL:
ENTRE A EDUCAÇÃO FORMAL E A FORMAÇÃO HUMANA
Segundo Cavaco (2002) o termo Educação de Adultos apresenta um conteúdo polissêmico, nesse sentido, compreende um conjunto de modalidades educativas amplas e distintas, que abarcam processos educativos presentes ao longo da
vida: a alfabetização, o ensino formal, a formação profissional, a educação extraescolar, os contextos formais e informais. Portanto, engloba o estudo do processo
de formação de adultos, na riqueza e diversidade dos contextos de formação experiencial. Contudo, esses processos, como questiona Cavaco (2002), adotados na
educação de adultos apenas vinculam-se aos espaços da educação formal. Por sua
vez, na visão de Streck & Santos (2011), essa modalidade educativa esteve relacionada a um conjunto de referenciais que a vinculavam à escolaridade não realizada
ou interrompida e baseada em um paradigma compensatório.
Esses atributos concorreram para o seu enclausuramento nas rígidas
referências curriculares, metodológicas, de tempo e espaço. Além disso, inspiravam-se na escola de crianças e adolescentes, relações pedagógicas verticais
e desconectadas da realidade, desconsiderando-se as especificidades dos diferentes indivíduos e grupos sociais envolvidos. Considerando-se essas questões, como adverte Gomes (2005), é preciso compreender que a Educação de
Jovens e Adultos está relacionada com diferentes processos, políticas e práticas
educacionais referentes à juventude e aos sujeitos adultos, dentro e fora do
contexto escolar.
Segundo Dayrell (2005) a Educação de Jovens e Adultos revela-se bastante
ampla e não se reduzindo apenas à escolarização, à mera transmissão de conteúdos,
mas também abrangendo processos educativos de formação humana, revelados
pelo importante legado deixado por Paulo Freire. No que se refere à compreensão
da complexidade desta modalidade de educação no Brasil, são valorizadas tanto
as experiências realizadas no âmbito escolar, quanto às iniciativas realizadas em
processos educativos não formais, voltados para a formação humana.
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SOUZA, C. R. • Cidades, percepção ambiental e educação de jovens e adultos...
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Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
Trata-se, pois de reconhecer as modalidades educativas não escolares, os
saberes e conhecimentos resultantes da formação experiencial (CAVACO, 2002).
A esse respeito, ressalta-se que, embora a concepção dominante na sociedade
costume vincular a Educação de Jovens e Adultos à escola tem se ampliando, face
das demandas e das necessidades da sociedade, apontando para a necessidade
da valorização de espaços educativos diferenciados. Vale lembrar, que aqui, não
se trata de desvalorização das experiências escolares de ensino formal desenvolvidos com jovens e adultos, mas apenas considera-se importante o resgate
da contribuição dessa modalidade de educação para os processos educativos de
formação humana, que vão além da definição dos sujeitos da Educação de Jovens
e Adultos enquanto alunos (DAYRELL, 2005).
Enfim, trata-se de valorizar os saberes dos educandos dessa modalidade
de ensino, como sujeitos históricos e inseridos em realidades socioculturais diversas, suas histórias de vida, temáticas relacionadas à defesa, à garantia dos direitos, à participação social, ao desenvolvimento local e à promoção da ressignificação da vida na sua relação com o saber escolar (STRECK & SANTOS, 2011).
Nessa perspectiva, a educação é reconhecida como formação humana, capaz de
valorizar as experiências, as vivências, as trocas, as relações com o mundo dos
educandos, consigo mesmos e com o outro, como ensina Paulo Freire.
OS ESTEREÓTIPOS E ESTIGMAS EM RELAÇÃO AOS
EDUCANDOS E EDUCANDAS DA EDUCAÇÃO DE
JOVENS E ADULTOS: ALGUMAS REFLEXÕES
Para Peixoto Filho (1994) as concepções em relação aos analfabetos foram
construídas em torno de imaginários populares no contexto acadêmico e escolar,
capazes de qualificar estes sujeitos como ignorantes, trazendo à baila concepções
que não abarcaram a complexidade dos processos de ensino e aprendizagem
destes atores sociais. Para Cavaco (2002) nesta mesma perspectiva, a construção
da problemática do analfabetismo foi permeada por um imaginário que o pensava enquanto problema social, e, que teve como base a elaboração de um discurso
bastante singular sobre o que vem a ser os sujeitos analfabetos.
Este discurso segundo esta mesma autora visava à sensibilização da opinião pública e política para a gravidade da situação, a fim de garantir a mera
obtenção de recursos financeiros. Sendo assim, foram produzidos discursos que
culminaram em efeitos perversos de estigmatização aos analfabetos, trazendo à
baila a falsa ideia de homogeneidade, de ideias pré-estabelecidas, e mais do que
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SOUZA, C. R. • Cidades, percepção ambiental e educação de jovens e adultos...
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isto que se revelaram formas etnocêntricas de legitimação da responsabilização
e da culpabilização destes sujeitos. Neste sentido, possibilitaram a interiorização
de estigmas e a desvalorização dos saberes e da cultura destes atores sociais,
acarretando consequências e impactos essencialmente negativos em relação aos
sujeitos analfabetos e seus processos formativos (CAVACO, 2002).
Arroyo (2005) discute acerca do imaginário comumente associado aos
sujeitos da Educação de Jovens e Adultos, que os analisa apenas pelas suas
trajetórias escolares truncadas: evasão, reprovação, problemas de frequência,
carências e lacunas. As contribuições de Rummert (2007) são fundamentais
na medida que esta autora reflete sobre os processos de internalização e interiorização da culpabilização dos sujeitos analfabetos. Esta autora considera
o público da Educação de Jovens e Adultos como possuidor de “marcas de
longa duração”, que foram sedimentadas ao longo de séculos de dominação no
Brasil: “estigma das relações escravocratas”; autoritarismo (tutela em relação
aos trabalhadores); modernização pelo alto; práticas populistas; entre outras à
maioria da classe trabalhadora.
Paulo Freire (1989) nas suas discussões sobre os sujeitos oprimidos apresenta contribuições acerca destes imaginários sociais estigmatizantes e reducionistas em relação aos sujeitos analfabetos, na medida em que favoreceram ao desprezo por si mesmos, o convencimento e a internalização de sua incapacidade
intelectual. O autor afirma:
A concepção na melhor das hipóteses, ingênua do analfabetismo o encara
ora como uma “erva daninha” daí a expressão corrente erradicação do analfabetismo, ora como uma enfermidade que passa de um ao outro, quase por
contágio, ora como uma “chaga ”deprimente a ser curada e cujos índices
estampados nas estatísticas de organismos internacionais, dizem mal dos
níveis e civilização, mas ainda o analfabetismo (FREIRE, 1989, p.119)
Diante destes vários estereótipos relacionados aos sujeitos da Educação de
Jovens e Adultos podemos considerar que ao longo de sua trajetória os processos
de alfabetização e letramento foram pensados através de concepções reducionistas, caracterizados por um caráter não-humanista, desprovido de reflexão e
valores éticos, que não possibilitou a compreensão da história e do sentido do
conhecimento produzido (MATOS, 2006 a) impossibilitava o diálogo, a tolerância e o encontro com o outro (MATOS, 2006 b).
Provocou um inconformismo intelectual e social, em relação a um conhecimento que não tem finalidade e sentido para os educandos, a partir de
procedimentos pré-definidos, que conferem à educação um efeito de barbárie
(MATTEI, 2002). Enfim, por iniciativas em visões urbanas e hegemônicas, que
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SOUZA, C. R. • Cidades, percepção ambiental e educação de jovens e adultos...
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Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
desconsideraram os saberes e modos de vida destes trabalhadores e trabalhadoras, submetidos à construção e à hegemonia do capital. A necessidade de leitura
e escrita deveria ser enquadrada na reestruturação capitalista, atendendo, assim
às demandas do capital e desta forma desprovidas de perspectivas emancipatórias, voltadas à cidadania e à formação humana destes sujeitos, que deveriam ser
objetos de uma alfabetização massificadora, mecânica e instrumental (ALMEIDA
& FREIRE, 2006).
Todo um imaginário historicamente construído no Brasil do que ser os
processos de alfabetização e aquisição da leitura e da escrita pelos jovens e adultos trabalhadores, que se revelou e ainda tem se revelado extremamente importante para a reprodução e perpetuação de diferentes formas de discriminação e
preconceitos em relação aos jovens e adultos da Educação de Jovens e Adultos,
que se encontram enraizados no imaginário social, caracterizados por percepções reducionistas da realidade destes sujeitos (CANDAU, 2003). Tais visões de
alfabetização apenas buscaram pensar a aquisição da leitura e da escrita enquanto processos de mera aquisição de habilidades e técnicas, descontextualidados da
realidade sociocultural destes sujeitos (PEIXOTO FILHO, 2004).
Nessa direção são de extrema importância, as reflexões de Ferraro (2004).
Ele reflete sobre uma sucessão de desconceitos que associaram os sujeitos analfabetos a características como: ignorância, cegueira, preguiça, doença e incapacidade. Desde o período da reforma eleitoral, no final do Império pela Lei Saraiva
de 1881, já promoviam a estigmatização dos sujeitos analfabetos. Essas concepções esconderam e mascararam a realidade, revelando-se, assim, construções
ideológicas, que engendraram silenciamentos e dominação, e, além de visarem à
rotulação e à exclusão dos sujeitos analfabetos (FERRARO, 2004).
Por sua vez, Rodrigues (2008), discute o conceito de analfabetismo que
imperou na Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos (CEAA) e, que
inclusive, foi bastante criticada por Paulo Freire no II Congresso Nacional de
Educação de Adultos. Para essa autora, essa concepção via o analfabetismo
como uma erva daninha que precisava ser exterminada, uma enfermidade ou
chaga. O analfabeto era visto, então, como um homem perdido que necessitava da luz dos civilizados e cuja salvação encontrava, meramente, na repetição
de palavras de forma mecânica. Era encarado como ser desprovido de saber,
cultura e história, restando-lhe, apenas, aceitar e silenciar-se (RODRIGUES,
2008). Estas questões dialogam com Peixoto Filho (1994) ao discutir a visão
de sujeitos analfabetos, do professor Cândido Jucá, extremamente elitista, autoritário e de culpabilização. Para esse professor, os analfabetos deveriam ser
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despertados pelo espírito da curiosidade que caracterizava os homens ditos
civilizados (PEIXOTO FILHO, 1994).
Estes estereótipos revelam-se nas formas de simplificação da realidade que
não permitem ou dificultam a sua devida compreensão e, consequentemente o
não reconhecimento do outro, no caso os sujeitos de pesquisas, desta forma nos
impedindo de refletir e problematizar a realidade a ser investigada em sua complexidade, evidenciando preconceitos e verdades que são colocadas ao investigador
(COSTA, 2002). Em processos marcados por definições acabadas, consolidadas,
canonicamente definidas, que adotam posturas acríticas, no que se refere à produção do conhecimento em educação (BORBA, PORTUGAL & SILVA, 2008).
Estas simplificações da realidade obscurecem a própria compreensão da
mesma, nos desafiando-nos a refletir criticamente sobre os sujeitos e as realidades de nossas investigações (TAVARES, 2009). Autores como José de Souza Martins revelam-nos importantes reflexões sobre as dificuldades dos pesquisadores
que dedicam às classes populares, tendo em vista os inúmeros preconceitos que
dificultam o diálogo (TAVARES, 2009). José de Souza Martins (2000) considera
que se corre o risco de fazer uma ciência estrangeira em relação aos sujeitos das
classes populares.
Esses preconceitos e diferentes formas de discriminação devem ser vistos
como formas de violência simbólica. Como salienta Lopes (2006), a violência é
uma categoria multidimensional, capaz de englobar diferentes aspectos de ordem socioeconômica, política e cultural e relacionados a desigualdades de ordem
econômica e social, que atingem diferentes instâncias, de forma silenciada, reproduzida e reforçada pela ideologia hegemônica dominante.
É importante considerar que esta modalidade educativa, ainda costuma
enfatizar conteúdos e atividades voltadas à aquisição da leitura e da escrita, que
valorizam práticas reducionistas, etnocêntricas e assim, desvalorizam os saberes
e conhecimentos trazidos pelos educandos às salas de aula, inclusive as leituras
e percepções, que estes atores sociais realizam em relação às cidades que vivem,
trabalham e constroem suas histórias e trajetórias de vida. Destacam-se neste
contexto práticas e pressupostos que enfatizam visões mágicas e mecânicas da
leitura e da escrita, que desconsideram o papel que estes processos têm no desenvolvimento da criticidade dos educandos envolvidos, e que devem ser realizados a partir das suas realidades, como nos ensina Paulo Freire (1979).
Nesta perspectiva, revelam-se de extrema relevância abordagens e perspectivas para além destes estereótipos e visões que ocultam a realidade e o entendimento da complexidade dos processos de formação de jovens e adultos
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trabalhadores e que viabilizem nas práticas desenvolvidas com estes atores sociais, pressupostos teóricos e metodológicos que levem com conta as trajetórias,
percursos e histórias de vida, como será evidenciado a seguir e para que a partir
delas possam ser elaboradas estratégias didáticas e metodológicas, que visem à
formação destes atores sociais no âmbito formal e não formal e consequentemente o empoderamento, emancipação e a viabilização do direito à apropriação da
cidade por parte dos educandos e educandas da Educação de Jovens e Adultos
que habitam as diferentes cidades brasileiras e ao redor do mundo.
CIDADES, PERCEPÇÃO AMBIENTAL E EDUCAÇÃO DE
JOVENS E ADULTOS: ALGUNS HORIZONTES TEÓRICOS E
METODOLÓGICOS, A PARTIR DO ANTROPÓLOGO TIM INGOLD
São evidenciados contextos de mudança e transformação social existentes no cotidiano das sociedades contemporâneas, que passam a exigir que as
mesmas tenham suas funções tradicionais e papeis ressignificados. Sendo assim,
passam a assumir funções agora vinculadas ao exercício da responsabilidade,
do compromisso político, que possibilitem aos cidadãos e cidadãs processos de
redescobrimento de seus espaços de ação e de criação de novas formas de intervenção social e urbana (AIETA & ZUIN, 2012).
Neste contexto, um conceito importante é colocado em discussão o conceito de cidades educadoras. Foi com o relatório de Edgard Faure na Primeira
Comissão Mundial de Educação publicado pela UNESCO em 1973, com o título
Aprender a Ser, que se acolheu a proposta de cidade educativa como visão da educação a ser preconizada nos últimos tempos (AIETA & ZUNIN, 2010). Segundo a
Carta das Cidades Educadoras é educadora aquela que assume a função de educar
com a mesma intencionalidade, que assume as suas funções tradicionais:
A cidade será educadora quando reconheça, exercite e desenvolva, para
além das suas funções tradicionais (económica, social, política e de prestação de serviços) uma função educadora, quando assuma a intencionalidade e responsabilidade cujo objetivo seja a formação, promoção e desenvolvimento de todos os seus habitantes, começando pelas crianças e
pelos jovens.
Neste sentido, mais do que nunca, a relação entre cidades, educação e
cidadania passou a ser valorizada, como evidenciado pelo discurso do educador
Paulo Freire, no II Congresso Internacional das Cidades Educadoras realizado ,
em Gotemburgo, Suécia, nos dias 25 e 27 de Novembro de 1992 citado por Aieta
& Zunin( 2012):
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A cidade converte-se em cidade educadora a partir da necessidade de educar, de aprender, de imaginar...; sendo educadora, a cidade é, por sua vez,
educada. Uma boa parte da sua tarefa como educadora está ligada ao nosso posicionamento político e, obviamente, ao modo como exercemos o
poder na cidade e ao sonho e utopia que impregnam a nossa política, no
serviço do que e de quem servimos a política de despesa pública, a política
cultural e educativa, a política de saúde, transporte e lazer (II Congres-
so Internacional de Cidades educadoras, Gotenburgo, Suécia, 25-27
Novembro, 1992).
Para Aieta & Zunin( 2012) o conceito de cidade educadora, deve abarcar a oferta de atividades sociais e culturais aos cidadãos, objetivando a potencialização de suas capacidades educativas do ponto de vista formal e informal,
tendo em vista uma gama de papeis contextualizados e na sua relação com seus
habitantes, o território e políticas, nas quais os diferentes programas e serviços,
passam a ter sentidos e significados para os diferentes atores sociais envolvidos.
De acordo com Villar Caballo (2001), a Cidade Educadora que deve ser vista nas
múltiplas relações de sua totalidade de elementos, capazes de proporcionar vivências estéticas, ambientais, de convivência, encontro, comunicação, tendo em vista
uma pluralidade de agentes envolvidos nestes processos.
Nesta mesma perspectiva, reflete Moacir Gadotti (2006), em seu artigo
“Cidade educadora e educanda”, as cidades apresentam grandes possibilidades educadoras, na medida em que possibilitam vivências e processos de aprendizagens
singulares, que devem ser valorizados. Para o autor sobre as cidades: “Elas nos falam, ás vezes gritam, chamam nossa atenção ao proclamar seus feitos, sua história.
Precisamos parar para escutá-las. Nesse sentido, elas também nos educam.”( p.2)
Inspirados nos horizontes que nos fornecem estes autores, devemos considerar o potencial educativo das cidades, inclusive na viabilização de abordagens e perspectivas, para além dos estereótipos e visões que ocultam a realidade
e o entendimento da complexidade dos processos de formação de jovens e adultos trabalhadores da Educação de Jovens e Adultos, que valorizem estes atores
sociais como sujeitos ecológicos, socioculturais e históricos, que constroem e
reconstroem, cotidianamente, percepções ambientais sobre as cidades, as quais
se revelam inseridos e que estão vinculadas, neste sentido, às suas trajetórias,
percursos e histórias de vida. Neste contexto, os pressupostos teóricos e metodológicos de autores como o antropólogo Tim Ingold, fornecem-nos importantes
horizontes, como será evidenciado a seguir.
Este antropólogo, inserido no chamado paradigma ecológico (VELHO,
2001), ao longo de sua trajetória acadêmica, realizou diferentes etnografias dos
povos caçadores e coletores da América do Norte, buscando a compreensão das
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interações não hierárquicas entre os diferentes seres e seus ambientes a partir
de uma perspectiva que possibilitasse o deslocamento e rompimento do sujeito cartesiano e da noção de ambiente como cenário inerte, mas agora pensado
como algo dinâmico, permeado por relações históricas que formam as paisagens,
a partir das interações entre os diferentes seres (INGOLD, 2002; CARVALHO,
2009; CARVALHO & STEIL, 2009. 2013, DEUS, 2007; SILVA, 2011).
Assim sendo, inaugura uma proposta renovada de análise, a partir de seu
inovador paradigma ecológico, que buscou desfazer fronteiras, processos biológicos e culturais, tendo em vista a compreensão antropológica de formas de
estar no mundo, participação integrativa com todos os seus elementos, contatos,
habilidades práticas, formas de engajamento e desenvolvimento no mundo (INGOLD, 2002; CARVALHO, 2009; CARVALHO & STEIL, 2009. 2013, DEUS,
2007; SILVA, 2011).
Este teórico buscou o desenvolvimento de epistemologias ecológicas caracterizadas por tentativas não reducionistas de operar tensão na dualidade sujeito e ambiente e recair em determinismos culturalistas ou biológicos, tendo em
vista a compreensão dos fluxos e movimentos dos objetos, dos corpos, sujeitos e
ambientes, no entrelaçamento vida e interação entre organismos humanos e não
humanos (INGOLD, 2002; CARVALHO, 2009; CARVALHO & STEIL, 2009.
2013, DEUS, 2007; SILVA, 2011).
O antropólogo Tim Ingold procura então, a partir de seu conceito de percepção ambiental, romper com determinadas dicotomias e binarismos estabelecidos como corpo- mente- natureza- cultura, considerando que o ser humano
é cultural e biológico e revela modos de agir e perceber o mundo, ligados a habilidades e engajamentos ativos com os ambientes que os cercam, apresentando
novos aportes ecológicos na compreensão do humano e das relações entre os
diferentes seres, tendo em vista sua noção de habitar o mundo, influenciada pelos fundamentos filosóficos acionados por Merleau Ponty (INGOLD, 2002; CARVALHO, 2009; CARVALHO & STEIL, 2009. 2013, DEUS, 2007; SILVA, 2011).
Para Tim Ingold (2002), são de extrema importância o estudo das aprendizagens que são construídas e reconstruídas historicamente, a partir das relações que as pessoas e os seres humanos e não humanos realizam , tendo em vista
o estabelecimento de modos de habitar o mundo, a partir do que ele denomina
de educação pela atenção (INGOLD, 2002; CARVALHO, 2009; CARVALHO &
STEIL, 2009. 2013, DEUS, 2007; SILVA, 2011). Para ele, a aprendizagem se dá na
vida e nas interações das pessoas com o mundo e com os outros seres que também habitam as paisagens. O aprender pressupõe adquirir habilidades, tendo em
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vista o engajamento prático no ambiente material e simbólico, a partir dos processos de habitar o mundo (dwelling) e se movimentar dentro de uma paisagem
e dos campos relacionais, tecidos na experiência na totalidade e relacionados ao
que ele denomina de Ecologia da Vida (VELHO, 2001).
Diante de tudo que foi dito, podemos considerar que a perspectiva teórica
e metodológica de Tim Ingold, revela horizontes importantes no que se refere
ao redimensionamento das relações de ensino e a viabilização de aprendizagens
mais significativas para os educandos da Educação de Jovens e Adultos, capazes
de acolher, aceitar a sua cultura, sua linguagem e mais do que isto, rompendo-se,
dessa forma, com perspectivas etnocêntricas que marginalizam e excluem esses
atores sociais (PÉREZ, 2003). E de desconstrução de didatismos e estereótipos
comumente associados aos sujeitos da Educação de Jovens e Adultos (RUMMERT, 2007). A partir da valorização das percepções ambientais e das diferentes
formas de habitar, educar, perceber e engajar-se no mundo e, no caso, relacionadas às vivências e experiências das cidades na qual estão inseridos. A cidade,
nesta perspectiva, pode ser considerada como lócus contextualizado no fluxo da
vida destes educandos e educandas e, assim como lócus de diferentes formas de
aprender, a partir de singulares formas de habitar e se engajar no mundo, que
estão em constante movimento ao longo do processo histórico.
Neste sentido, os pressupostos de Tim Ingold, no seu diálogo com o estudo das cidades e com a Educação de Jovens e Adultos, devem ser valorizados a
fim de pensarmos a escola e a cidade como espaços privilegiados de apropriação
e produção da cultura (LEITE, 2004; FREIRE, 1989), a partir da valorização de
percepções ambientais, que estes atores sociais têm da cidade, que, como já foi
mencionado, revelam modos de aprender, habitar e engajamento no mundo, para
que, a partir delas, possam ser elaboradas estratégias didáticas e metodológicas,
que visem à formação destes atores sociais no âmbito formal e não formal. E,
mais do que isto, possam preconizar o estímulo ao protagonismo e fomentar, por
parte destes sujeitos socioculturais, buscas pelo direito à apropriação da cidade e
o acesso à cultura, como condições essenciais ao exercício da cidadania e do empoderamento político, como reflete Gadotti (2006). E, que, assim, de fato valorize uma educação comprometida e dialógica no contexto das cidades educadoras,
a partir dos pressupostos teóricos e pedagógicos de Paulo Freire.
Portanto, a categoria percepção ambiental na perspectiva deste teórico,
articulada ao estudo da cidade, revela-se fundamental para pensarmos novos horizontes na formação de jovens e adultos trabalhadores, considerando, que esta
modalidade educativa, ainda costuma enfatizar conteúdos e atividades voltadas
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à aquisição da leitura e da escrita, que devem valorizar as percepções, que estes
atores sociais realizam em relação às cidades que vivem, trabalham e constroem
suas histórias. Para que a partir delas possam ser elaboradas estratégias didáticas
e metodológicas, que visem à formação destes atores sociais no âmbito formal e
não formal, e garantam o protagonismo, a cidadania, a partir do estabelecimento
de formas de apropriação do espaço da cidade (GADOTTI, 2006) e assim, uma
educação com qualidade social, tendo em vista a mobilização da sociedade para
a conquista de direitos, participação direta da população na gestão pública da
vida nas cidades (GADOTTI, 2004).
Enfim, para que se tornem cidades educadoras, pensadas enquanto complexos educacionais populares, que sejam capazes de proporcionar espaços de
“educação inclusiva, de formação permanente e de humanização das relações sociais” (GADOTTI, 2004, p. 45). A partir da valorização das percepções ambientais,
que grupos marginalizados como os sujeitos da Educação de Jovens e Adultos têm
das cidades que os cercam, como nos ensina o antropólogo Tim Ingold.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pode-se perceber que a categoria percepção ambiental na perspectiva da
Antropologia e paradigma ecológico de Tim Ingold, articulada ao estudo da cidade revela-se fundamental para pensarmos novos horizontes na formação de
jovens e adultos trabalhadores, considerando, que esta modalidade educativa,
ainda costuma enfatizar conteúdos e atividades voltadas à aquisição da leitura
e da escrita, que valorizam práticas reducionistas, etnocêntricas e assim, desvalorizam os saberes e conhecimentos trazidos pelos educandos envolvidos. Portanto, como substância das relações da vida, as cidades devem ser vistas como
lócus da percepção ambiental, de formas de habitar e engajar-se no mundo, sob
a perspectiva de Tim Ingold, por parte dos diferentes atores sociais como os
educandos da Educação de Jovens e Adultos, em movimentos, onde a escola
garanta a promoção da escolarização, aliada à promoção dos direitos subjetivos,
que permitam a identificação, o enraizamento, o pertencimento, o direito à apropriação da cidade e a viabilização das chamadas cidades educadoras, tendo em
vista a promoção da sustentabilidade em amplos aspectos: ambientais, sociais,
culturais e econômicos, que, de fato contribuam para a emancipação humana e a
transformação social, culminando em melhorias das condições socioambientais
dos diferentes atores sociais, que habitam o universo das cidades brasileiras e ao
redor do mundo como um todo.
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Instituto de
Ciências Sociais
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FRONTEIRAS NA CIDADE:
CAMINHADAS PELA RUA GUAICURUS
EM BELO HORIZONTE
Talitha Couto Moreira Lara1
Resumo: O presente artigo discute uma experiência de caminhada, com intuito
de uma análise etnográfica, pela Rua Guaicurus na cidade de Belo Horizonte,
Minas Gerais. Essa rua se destaca dentro do que foi chamado de “quadrilátero
da zona”, sendo o local mais conhecido e de maior concentração das atividades
de prostituição e boemia na cidade. As reflexões giram em torno da temática
das fronteiras simbólicas, relações e conflitos concernentes ao espaço público
constituído por essa rua, à luz das produções provenientes das Ciências Sociais
sobre espaço urbano. Concluiu-se que é impossível não se considerar as
diferenças existentes entre os diversos espaços da cidade, contudo são tênues
as fronteiras, muitas vezes invisíveis, mas que se fazem sentir entre tais espaços.
Perceberam-se também desvios relativos a uma espécie de sentido literal
único atribuído ao espaço observado, cujo simbolismo remete às atividades de
prostituição, num discurso limitador e disciplinador dominante.
Palavras-Chave: Espaço público, práticas sociais, Rua Guaicurus, fronteiras.
Abstract: This article discusses a hiking experience, with the intention of an
ethnographic analysis about the Guaicurus Street in the city of Belo Horizonte,
Minas Gerais. This street stands in what was called “quadrilateral zone”, being
the best known and highest concentration of prostitution and bohemian activity
in the city. The reflections revolve around the theme of symbolic boundaries,
relationships and conflicts pertaining to public space constituted by this street,
in the light of the productions from the field of Social Sciences on urban space.
It was concluded that it is impossible not to consider the existing differences
between different areas of the city, however the boundaries are blurred, often
invisible, but which are felt between such spaces. Was also realized shifts in
relation to a kind of single literal meaning attributed to the space observed,
whose symbolism refers to prostitution activities, in a limiter and disciplinarian
dominant discourse.
Keywords: Public space, social practices, Guaicurus Street, boundaries.
1. [email protected]
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Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
INTRODUÇÃO
Nas cidades brasileiras, a região que ocupava as atividades de prostituição
e boemia era chamada de zona, sendo o lugar mais conhecido e de maior concentração dessas atividades (ANDRADE e TEIXEIRA, 2004). No caso da cidade
de Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais, a zona localizava-se na
parte mais baixa da cidade, próxima ao local onde se situa atualmente a rodoviária, e à Praça da Estação. Atualmente, no chamado “quadrilátero da zona”,
delimitado pelas ruas da Bahia, Caetés, Curitiba e Oiapoque, a Rua Guaicurus se
destaca (NAVA, 1985 apud ANDRADE e TEIXEIRA, 2004).
O presente estudo dedica-se a descrever uma experiência de caminhada, com intuito de uma análise etnográfica, na Rua Guaicurus em Belo Horizonte. Minhas reflexões giram em torno da temática das fronteiras simbólicas,
relações e conflitos concernentes ao espaço público constituído por essa rua.
Como espaço público aproprio-me da noção formulada por Rogério Proença
Leite, como “[...] um local de dialógica interação política e exteriorização dos
conflitos e das discordâncias” (2002, p. 116). Mas por que falar em espaço e
não lugar? Qual é a diferença entre essas duas noções? Michel de Certeau traça
uma distinção inicial entre a noção de lugar e espaço, sendo o lugar referente “à
ordem (seja qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas relações de
coexistência” (1998, p. 201). Um lugar, assim sendo, implica em uma configuração instantânea de posições, sendo por isso uma indicação de estabilidade. Já
o espaço, para Certeau, “é o efeito produzido pelas operações que o orientam,
o circunstanciam, o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais ou de proximidades contratuais” (1998, p. 202).
Em suma, para o autor “o espaço é um lugar praticado”, o que é semelhante a
dizer que uma rua, lugar geograficamente definido, é transformada em espaço
pelos pedestres. O lugar remete a uma noção de algo estático, inerte, enquanto
o espaço remete a operações, ou seja, os lugares tornam-se espaços através da
ação de sujeitos históricos.
Leite (2002) esclarece que um espaço urbano só se torna um espaço
público quando se conjugam nele certas configurações espaciais e um conjunto
de ações. Quando essas ações atribuem sentidos a certos espaços urbanos, e
também as espacialidades atribuem sentidos para essas ações, espaços urbanos
podem constituir-se como espaços públicos. São locais onde as diferenças se
tornam públicas e confrontam-se politicamente. Uma questão fundamental a
ser tratada na análise dos espaços públicos é sobre o tipo de uso público que
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neles ocorre, ou em que medida esse uso público caracteriza-se como uma
construção de espaço público e qual o papel desempenhado pela construção
dos lugares nesse processo.
Segundo Andrade e Teixeira, a história da territorialidade das atividades
de prostituição em Belo Horizonte, desde a fundação da cidade em 1897 diz
respeito a processos sociais de ocupação territorial de duração relativamente
longa, pelo fato de essas atividades não estarem sujeitas a mudanças constantes,
por demandar uma ocupação e conquista de território e a identificação desse
território pelos clientes (2004, p. 138). A prostituição, assim como as prostitutas,
eram fortemente condenadas, contudo havia uma certa tolerância com relação
à frequência dos homens nos cabarés. Era vista como um mal necessário, pois
a sexualidade masculina, ao contrário da feminina, era entendida como uma
necessidade que precisava ser satisfeita (2004, p. 139).
Os autores abordam a relação entre as atividades de prostituição e o ideal
de cidade planejada vigente nesta época, sendo o período desde a fundação da
cidade até 1930, o que mais expressa suas consequências (2004, p. 141). O crescimento e ocupação de Belo Horizonte foram controlados dentro de princípios
higienistas que orientaram reformas na cidade. A cidade tentará manter, assim,
a prostituição sobre o controle de tal higienização. O principal local de prostituição neste período constitui o cabaré, que reúne várias prostitutas sob o controle
de uma cafetina ou cafetão.
A região dos cabarés era considerada uma “região moral” (PARK, 1987 apud
ANDRADE e TEIXEIRA, 2004). Ali, formas desviantes e marginais eram toleradas, habitavam misturas de classes, e as reformas urbanas do final do século XIX
procuravam excluí-las. Em Belo Horizonte, o planejamento urbano feito por Aarão
Reis em 1894, procurou destinar as áreas centrais para os estratos médios e altos
da sociedade, sendo os mais baixos deslocados para zonas suburbanas (2004, p.
143). A permanência de regiões boêmias nas áreas centrais mostra, para os autores,
a incapacidade do poder público de controlar todas as instâncias.
O período a partir de 1970, como retratam os autores, vivenciou transformações na atividade da prostituição e sua localização. Emerge a prostituição masculina, além da feminina, já evidente, altera-se consideravelmente a
forma da prostituição feminina e há uma profunda reorganização espacial
das atividades de prostituição (2004, p. 148). Desaparecem os cabarés e aparece uma nova forma de prostituição dentro de hotéis, que possuem numerosos quartos que podem ser alugados pelas prostitutas para a prestação de
serviços sexuais.
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Dentro de tais hotéis, a relação entre os gerentes e as prostitutas que alugam pelos quartos é mais impessoal do que a anteriormente estabelecida entre as
meretrizes e cafetinas e cafetões nos cabarés. Há uma liberdade das prostitutas
para mudarem de hotel e definir seus horários de trabalho conforme acharem
conveniente (2004, p. 148). Mais impessoal também é a relação das prostitutas
com seus clientes, uma vez que não há mais os espaços de socialização como
pista de dança ou bar, sendo também muito curta a duração dos programas.
O período brasileiro de crescimento urbano-industrial entre 1890 a 1930,
segundo Margareth Rago, é caracterizado por uma intensa rotulação e perseguição
das práticas de prostituição. Indícios de supostas “anormalidades sociais”, como
as práticas populares de vida e lazer dos trabalhadores fabris, dos “improdutivos”,
dos pobres, das mulheres públicas, de crianças abandonadas pelas ruas passam a
ser objeto de profunda preocupação de médicos higienistas, autoridades públicas
e setores da elite burguesa industrial, assim como filantropos e reformadores sociais, nas décadas iniciais do século XX (1985, p. 12). Sobre a classe operária em
formação nos inícios da industrialização no Brasil se constrói paulatinamente uma
vasta empresa de moralização, com o eixo principal sendo a formação de uma nova
figura do trabalhador: “dócil, submisso, mas economicamente produtivo” (1985, p.
12). Tal tentativa de domesticação da classe operária passaria necessariamente pela
construção de um novo modelo de comportamento e de vida.
Esse novo modelo de comportamento envolveria a redefinição da família
como peça mestra, o que implicava construir um modelo imaginário de mulher,
voltada para a intimidade do lar, além de um cuidado especial com outras esferas
da vida, dentre elas a intimidade operária.
Consideradas mulheres de má vida, meretrizes, insubmissas, impuras,
insignificantes, a preocupação daqueles que se envolviam com o projeto disciplinar de cidade, como coloca Rago, era o que fazer com as prostitutas, que
“recusam o aconchego do casamento, que negam a importância do lar e preferem
circular enfeitadas pelas ruas [...] surdas aos discursos masculinos moralizadores e que perseguem a todo o custo a satisfação do prazer” (1985, p. 85). Nesse
contexto, a prostituição, assim como a masturbação foi classificada pelo saber
médico e criminológico como “vício”, que tenderia a se alastrar por todo o tecido
social se não lhe opuserem barreiras que contenham seus ímpetos2.
Médicos sanitaristas brasileiros invadem nesse período o submundo da
prostituição, classificando as mulheres como “degeneradas”, investigando seus
2. A autora faz referência ao relatório apresentado pelo secretário de polícia Cândido Motta ao
Exmo. Dr. Chefe de Polícia em São Paulo: Prostituição, Polícia de Costumes, Lenocídio (1897).
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hábitos e gostos, diagnosticando doenças, a fim de acumular conhecimentos sobre a mulher pública e difundir o estereótipo da “puta”, a partir do qual elas
serão situadas fora do campo da normalidade sexual e social (1985, p. 86).
Em sua análise do discurso difundido sobre as mulheres prostitutas Rago
escreve:
[...] o retrato da mulher pública é construído em oposição ao da mulher
honesta, casada e boa mãe, laboriosa, fiel e dessexualizada. A prostituta
construída pelo discurso médico simboliza a negação dos valores dominantes, ‘pária da sociedade’ que ameaça subverter a boa ordem do mundo
masculino (1985, p. 90).
Sendo assim, a mulher pública deveria ser enclausurada em casas de tolerância e bordéis, que constituiriam espaços higiênicos de confinamento da
sexualidade extraconjugal, regulamentados e vigiados pela polícia e por autoridades médicas e sanitárias (RAGO, 1985, p. 90). Além de confinar as mulheres
prostitutas dentro de espaços especiais, marginalizados e vigiados, os regulamentaristas defendiam que tais casas de tolerância deveriam ser localizadas em
bairros distantes das escolas, igrejas, internatos e bairros residenciais. Tais concepções tiveram um papel extremamente relevante na instituição de políticas
urbanas de cunho higienista, segundo a autora. Pergunto-me se tais concepções,
fundadas em uma época tão distante, estão ultrapassadas na atualidade, ou se
ainda são compartilhadas por um grande contingente de pessoas. Temo que a
última opção seja verdadeira.
“CAMINHADAS PELA CIDADE”3
Diante de tais informações, começo neste momento a narrativa de minha caminhada pelo espaço público da Rua Guaicurus, no centro da cidade de
Belo Horizonte.
Depois de uma grande dúvida sobre como deveria ir ao centro, se deveria
ir de carro ou pegar um ônibus, acabo indo de carro, e consigo parar na própria
Rua Guaicurus. É um domingo de tarde, e o movimento de carros e ônibus está
bem mais tranquilo em relação aos outros dias da semana. Estaciono um pouco
antes de onde ficam os hotéis onde trabalham as prostitutas. Lembro-me que
há algum tempo este quarteirão era um quarteirão sem saída, contudo hoje está
disponível para livre circulação.
Um medo inconsciente de deixar o carro estacionado ali invade minha
cabeça, mas penso um pouco, olho ao redor, onde não há nenhum motivo para
3. Subtítulo do livro A Invenção do Cotidiano: Artes de fazer, de Michel de Certeau (1998).
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que eu tenha medo. O início da caminhada é bem tranquilo, está um dia muito
quente, uma tarde de domingo. Vejo muros com artes de grafite e os desenhos
sugerem mensagens interessantes. Há casas que parecem estar abandonadas,
devido ao acúmulo de sujeira e ao mal cuidado, pelo menos na parte externa.
Continuo a caminhar e aos poucos a apreensão de caminhar no centro da cidade
vai ficando menor, conforme vou me familiarizando com o lugar. A caminhada,
como coloca Michel de Certeau (1998), é uma prática do espaço. Totalmente
diferente da experiência que se tem andando de carro pela cidade, avistandose uma cidade-panorama, onde há um esquecimento e desconhecimento das
práticas, o caminhar possibilita vivenciar as práticas e os praticantes ordinários
da cidade (1998, p. 171). Vejo então os tais hotéis onde acontecem os programas
da Rua Guaicurus, com as janelinhas fechadas. Há seguranças e um detector de
metais em frente a uma escada íngreme, nas portas dos hotéis. Eles não são muito chamativos à luz do dia, a pintura está antiga e mal cuidada para os padrões
das cidades modernas. Não há muito movimento dentro deles, e só se consegue
imaginar o que acontece por detrás daquelas janelas fechadas.
Mas não é preciso que haja movimento dentro dos hotéis para se supor
o que ali acontece. O espaço daquela rua deixa de ser somente um instrumento
que os atores sociais utilizam em seus processos de interação, esse espaço passa
a comunicar. Como escreve Frehse (2008) a respeito das concepções de Erving
Goffman a respeito do espaço físico, o autor chama a atenção para um caráter
semiótico do espaço nas interações. Concebe o espaço não como instrumento
nem como cenário que viabiliza as atividades comunicativas face a face, mas é
em si comunicativo, expressivo. Nesse sentido ele é signo mas não só, pois existe
como tal pela existência de corpos passíveis de ocupa-lo podendo transformá-lo
e a si mesmos também em signos, o que faz do espaço físico um “ambiente de
signos” (FREHSE, 2008, p. 160). O sociólogo entende que nas interações entre as
pessoas estão envolvidas associações de sentido entre expectativas de condutas
comportamentais e lugares, o que indica que o espaço físico é mais do que um
signo a ser manejado (GOFFMAN, 1959 apud FREHSER, 2008). No caso dos
hotéis da Rua Guaicurus, este espaço se presta a ambiente onde são manejadas
impressões típicas, e as próprias características físicas desse espaço são tidas
como signos, que comunicam afinal o que se pode fazer ali. Nessa concepção, o
espaço físico é um idioma.
Na calçada onde estou andando dorme um homem no chão. Como coloca
Arantes, há ali uma intimidade delimitada por paredes invisíveis, mas presentes,
que faz com que o transeunte sinta-se um intruso em invadir aqueles limites
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(2000, p. 196). É a moradia no espaço público, e não a casa e a rua como espaços
dissociados e contrapostos.
Logo depois estão algumas pessoas na calçada, sentadas em cadeiras em
volta de uma churrasqueira com muitos espetos de carne, estão conversando e
parecem muito felizes. Um dos homens brinca com uma pequena menina que
está sentada em uma das cadeiras. Intimidades que habitam o espaço aparentemente invisível das relações e afetos da rua. Novas relações ocupam o espaço
público, afetos re-territorializados (2000, p. 196).
Na esquina seguinte há um homem bem velho sentado no que parece ser
uma cadeira de rodas, com o braço machucado, conversando com uma mulher.
Outras socialidades, outras formas de ocupar a rua, de usar o espaço público.
Vou avistando outro hotel, com as mesmas características, janelinhas fechadas,
porta com seguranças e uma escada bem íngreme com detector de metais. Há
alguns estacionamentos pagos, mas estão fechados. Em frente aos hotéis, do outro lado da rua, passo por alguns cinemas, num deles há uma bilheteria com o
vidro fumê. Algumas fotos de mulheres nuas nas paredes indicam que não são
cinemas como os que frequento nos shopping centers da cidade, mas exibem
filmes eróticos. Chego até o final desse quarteirão e volto pelo mesmo caminho.
Vou vendo os mesmos estabelecimentos, e uma mulher sai de uma das portas
dos hotéis. Sua aparência não sugere ao meu olhar impregnado de estereótipos,
que trabalha neles. Ela sai rapidamente com uma pasta nas mãos, usa roupas
fechadas e óculos de grau. Imagino o que ela estaria fazendo lá, e percebo, assim
que ela sai, que vários homens que vigiavam as entradas começam a olhá-la e
parecem estar tão curiosos quanto eu sobre o que ela fazia lá.
Quando continuo andando, avisto uma construção bem diferente que se
ergue por trás dos hotéis das prostitutas. Um grande prédio de aspecto espelhado, ainda em fase de finalização. Fico imaginando o que seria essa construção,
com que fins se ergue, já que é tão diferente das construções ao seu entorno. Mas
não é apenas um prédio que se ergue, pois com ele erguem-se relações potenciais de conflito, jogos de poder e violência, que poderão se fazer presentes nesse
espaço (ARANTES, 2000, p. 196). Afinal de contas, o que a construção de um
prédio tão pomposo, lado a lado com uma tradicional rua que concentra atividades de prostituição em Belo Horizonte, pode acarretar em termos de projetos
urbanísticos e políticas públicas? Estariam os hotéis das prostitutas ameaçados
de não mais poderem ali habitar?
Ao continuar minha caminhada, me dou conta de como são diferentes o
clima, os cheiros dessa rua, com relação à realidade em que vivo, assim como
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os usos que são feitos dela, ou as formas de ocupá-la. Espaço da diferença.
Eu sou uma dessas diferenças, constituo conflitos e tensões apenas por estar
ali, mas uma sensação de que nada é tão diferente assim me interpela. Sinto
uma proximidade com relação a vários acontecimentos que ali se mostram ao
meu olhar. O caminhar que excita a imaginação, libera emoções. “A lembrança
constitui o trajeto, obscurece as distâncias, põe em relação” (ARANTES, 2000,
p. 198). Vejo uma fila de pessoas esperando por seus ônibus, e em seguida passo por uma igreja “Deus é amor”, que tinha as portas abertas. Lá dentro alguns
fiéis, um grande espaço com muitos bancos e um som abafado. Proximidades
entre mundos teoricamente distantes, os hotéis de prostituição residindo na
mesma rua que uma igreja. Seria essa proximidade acidental ou intencional?
Mas onde estava a fronteira entre esses dois mundos? O que os separa? A cidade, como coloca Arantes, é “um pulsar de espaços e lugares interpenetrados,
confronto entre singularidades, num amplo cenário explicitamente político”
(2000, p. 200).
Vejo algumas pichações no alto de alguns prédios bem grandes, e me
pergunto como alguém conseguiu escrever em um lugar tão alto? A escrita revela
códigos que transmitem uma mensagem que eu não consigo ler. Ali esteve alguém. As marcas dizem algo. Vejo novamente as pinturas de grafite nas paredes
quando me dirijo novamente para meu carro, intacto como eu o deixei.
Nessa tarde de domingo, ambiente mais tranquilo seria impossível, poucas pessoas nas ruas. Conversas, sociabilidades, pessoas comendo juntas nas
calçadas. Confesso não ser exatamente o que eu esperava encontrar ali. Lixos
jogados na rua, cheiro de esgoto, revelam um espaço esquecido pelo poder público. Ou seria ignorado? Afinal, o que poderia levar os serviços de saneamento até
ali? A pomposa construção de espelhos que se ergue? Ou as vidas ali presentes?
Lembro-me da história da personagem de Hilda Furacão, que se passa ali, na
famosa Guaicurus.
Outro dia em que vou em direção à rua Guaicurus. Saio de carro novamente com meu marido, que ainda está apreensivo em me deixar ir sozinha até
lá. É um domingo novamente, descemos pela Avenida Afonso Pena e tivemos
que fazer um desvio pois hoje é dia de feira hippie. Dessa vez paramos o carro
em frente ao museu de Artes e Ofícios na Praça da Estação, e fomos andando até
a Rua Guaicurus. Vejo alguns moradores de rua que construíram suas casas ali,
em plena calçada, com pedaços grandes de tecido. Domicílios delimitados por
paredes tão tênues, a estabelecer limites simbólicos no espaço público. Qual a
fronteira entre o público e o privado, a casa e a rua?
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Do outro lado da rua está o Espaço CentoeQuatro, com exposições de arte
destinadas a um público de classe média. Chegamos ao início da Rua dos Guaicurus, ainda um ambiente rotineiro, com a igreja, vendedores ambulantes, uma
distribuidora em que posso ver crianças lá dentro brincando no grande espaço, as
mães trabalhando. A primeira sensação que me atinge é o cheiro forte de esgoto.
Vamos andando e vejo uma das pinturas em grafite na parede que diz:
“Retome sua vida”. Aquilo me faz pensar em para quem esta frase se dirige? Continuamos andando e percebo que atravesso um portal invisível até o quarteirão
seguinte, com mais moradores de rua nas calçadas, roupas que jazem abandonadas no chão, e do outro lado um movimento masculino que está crescendo.
Um homem brinca com uma mulher e lhe dá um tapa que parece ser carinhoso,
em seu bumbum. Ele fala algo para ela que a faz rir. Passamos em frente a um
grupo de moradores de rua que nos pede dinheiro, um deles chama meu marido
de Barão. Meu marido não interrompe sua caminhada, fica irritado. Uma tensão
passageira se instala, uma guerra entre mundos, que logo se desfaz. Mais em
frente começam a aparecer os cinemas eróticos, vejo um dos filmes em cartaz:
“Dona de Casa”. Do outro lado da rua estão os hotéis, com suas janelas fechadas,
seguranças nas portas e detectores de metais que dão para uma escadaria. Ali nitidamente trata-se de um outro território, apesar de pertencer à mesma rua. Este
quarteirão é diferente do quarteirão mais próximo à Praça da Estação. Ali, todo o
comércio, desde os estacionamentos privativos, até os cinemas de filmes eróticos
e os bares, parecem atender à demanda dos programas que são realizados nos
hotéis, parecem ser feitos para o público que frequenta os hotéis.
É como cruzar uma membrana invisível entre os espaços dessa rua, uma
fronteira que não se sabe bem onde se localiza, mas que definitivamente se faz
sentir e comunica. Como escreve Sharon Zukin (2000) o espaço incita e imita a ambiguidade. Sítios específicos da cidade moderna são transformados no
que ele chama de “espaços liminares pós-modernos”, que falseiam ao mesmo
tempo que fazem uma mediação de relações. Misturando funções e histórias,
o espaço liminar situa o usuário em um caminho do meio entre instituições, o
que dificulta o esforço de construção de uma identidade espacial (2000, p. 82).
O autor acredita que a experiência contemporânea urbana “propicia a formação
de uma complexa arquitetura de territórios, lugares e não-lugares, que resulta na
formação de contextos espaço-temporais flexíveis, mais efêmeros e híbridos do
que os territórios sociais identitários” (2000, p. 191).
Ao observar de longe os hotéis da Guaicurus, vejo um homem que desce
de uma das escadarias dos hotéis, e parece bem tranquilo. As casas e prédios
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desta rua são em sua maioria bem antigas, algumas parecem ser abandonadas,
sem muitos cuidados. Atravesso a rua e passo em frente às portas dos hotéis. Sinto vergonha e adrenalina ao mesmo tempo, vergonha de olhar, e adrenalina de
estar tão perto dos famosos hotéis, onde as mulheres vivem de uma maneira que
eu ao mesmo tempo admiro e não compreendo. Não vejo nenhum movimento
vindo de dentro dos hotéis. São realmente casulos, onde sexualidades insubmissas encontram-se escondidas, ou mantidas fora da visão dos transeuntes.
Uma das portas dos hotéis tem um cartaz que diz ser proibida a hospedagem de público masculino. Pergunto-me o que significa aquela proibição. Seria
com relação à prostituição masculina? Não há ali nenhum sinal de policiamento. Num carro uma mulher está esperando com duas crianças. Uma vendedora
ambulante e um homem estão na calçada junto com uma pequena criança, que
brinca sobre a tampa da caixa de isopor. Mais adiante, a mesma distribuidora
de antes mostra um galpão cheio de mercadorias e as crianças que brincam ali
dentro. Uma delas está usando um chapéu de papel, e o espaço parece ser bem
amplo e interessante para as crianças brincalhonas.
Conforme caminho, aproprio-me daquele lugar. Realizo aquele lugar espacialmente, como coloca Certeau (1998, p. 177). Essa caminhada implica relações entre posições diferenciadas, contratos pragmáticos sob a forma de movimentos. É um espaço de enunciação (1998, p. 177).
Na terceira vez que vou à Rua Guaicurus é uma quarta-feira de manhã.
Saio de minha casa bem cedo e vou dirigindo até o bairro Funcionários, onde
estaciono o carro. Lá pego um táxi-lotação. Trata-se de um táxi que é compartilhado por até quatro pessoas, mais prático com relação aos ônibus, que param
várias vezes ao longo da Avenida Afonso Pena, e mais barato do que seria pegar
um táxi comum. Dessa vez vou apertada com mais duas mulheres no banco de
trás. Ao descer a Afonso Pena percebo como aos poucos a paisagem vai mudando. A quantidade de pessoas nas ruas aumenta cada vez mais. Desço quase na
esquina com a Avenida Santos Dumont. Vou pela Rua São Paulo até cruzar com
esta avenida. Vejo as novas instalações do Move, um novo sistema de transporte
público na cidade, implementado para a chegada da Copa do Mundo no Brasil.
As ruas ali pareciam mais arejadas do que anteriormente à obra, também mais
planas, e de certa forma tudo agora estava à vista, cada canto da rua, o que dava
a sensação ao mesmo tempo de mais segurança e de uma certa aridez. Espaço
controlado, higienizado. De longe avisto a imensa construção de espelhos que se
ergue por detrás da Rua Guaicurus, e sei que caminho devo seguir. Atravesso a
avenida, desço um quarteirão e já estou em frente às janelas fechadas dos hotéis
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onde acontecem os programas. Um expectador desinformado não diria que esta
atividade seria feita ali. O ambiente é extremamente rotineiro, pessoas esperam
pelos ônibus, há um açougue, um sacolão, uma igreja, abertos e em funcionamento. Dessa vez, além das janelas, as portas dos hotéis também estão fechadas,
o que indica uma ausência de atividade nesse horário.
Vou observando as pessoas passarem apressadas, se dirigindo para seus
destinos, alguns homens parados nas calçadas, um casal de pessoas mais velhas
passa de mãos dadas. Um mendigo se levanta do chão, pega sua mochila e sai andando. Sinto medo de passar perto dele, e ando mais depressa, sem interrupções.
Outro morador de rua parece estar finalizando uma construção de um abrigo com
um carrinho e lonas em plena calçada. Imagino se há alguém lá dentro. Vejo novamente os cinemas de filmes eróticos, discretos em sua propaganda, mas ao mesmo
tempo passando a mensagem do que se pode fazer ali. Há dois filmes em cartaz,
um deles se chama “Eu quero mais”, e o outro não consigo lembrar o nome. Desta
vez caminho sozinha, sem meu marido, e não consigo conter a sensação de nervosismo. Para me tranquilizar procuro pela presença de outras mulheres naquele local, mas tenho a impressão de que naquele quarteirão especificamente, a presença
de mulheres é mais escassa, pelo menos no espaço público.
Termino minha caminhada pela rua e vou subindo a Rua São Paulo em
direção à Avenida Afonso Pena. Passo pela esquina com a Rua Caetés e vejo o
Centro Cultural Juscelino Kubitschek, que parece ter sido restaurado. Contudo,
já há pichações nas paredes. Uma mulher em sua cadeira de rodas está sentada
lendo um jornal em plena calçada. Uma loja faz uma liquidação de lençóis, com
uma banda de música a tocar na porta, e um homem que chama a todos com um
microfone. Muitas mulheres se amontoam para olhar os lençóis, que parecem
realmente estar com um preço muito bom.
Os cheiros são bons nesse horário, está perto da hora do almoço. Cheiro de comida caseira, me transporto para o interior de Minas Gerais. Todas as
mercadorias são muito baratas. Vou chegando à Afonso Pena e estou tranquila.
Há sim pessoas que caminham em direção contrária, e são muitas. Mas nada de
muito tumulto. Chego à Praça Sete, vejo o “Pirulito”, o UAI, o Cine Teatro Brasil
do outro lado, muito bonito, parecendo ter sido restaurado. Fico interessada em
entrar e olhar, mas passo reto em direção ao ponto de ônibus. Vejo alguns jovens
que vendem artesanatos no chão, muitas pessoas sentadas no que parece ser
uma pracinha em uma rua lateral. Uma mulher está fazendo bolhas de sabão e
elas ocupam o ar naquele espaço, o que incomoda a alguns passantes, mas não
a mim. Sinto que há diferenças entre o centro da cidade com relação ao bairro
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onde moro. Aqui as pessoas utilizam mais o espaço das ruas, seja para estar ou
apenas para passar de um lugar a outro. Até mesmo os vendedores de lojas ficam
nas portas, observando o movimento da rua. Há também muitos vendedores
ambulantes, anunciando fotos, dentistas, ouro, chips de celular. A ameaça de
assalto de que tanto se fala com relação ao centro, parece distante. As pessoas
andam relativamente tranquilas, muitas falando ao celular, com fones de ouvido.
Mesmo assim, por uma precaução difícil de abandonar, mantenho minha bolsa
protegida pelas minhas mãos e braços.
Na volta de ônibus vejo a Prefeitura e o Palácio da Justiça, com as esculturas de homens segurando pesadas pilastras nas costas. Depois o prédio dos Correios. O Conservatório da Universidade Federal de Minas Gerais, do outro lado o
Parque Municipal, Palácio das Artes. Uma tristeza me invade quando passo pelo
DEOESP e quando vejo o memorial feito para as vítimas da ditadura militar no
Brasil, e vou voltando ao bairro Funcionários, onde desço do ônibus.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É impossível não considerar que existem sim diferenças entre os diversos
espaços da cidade. Há uma separação de práticas sociais e visões de mundo, no que
Arantes (2000) chama de “guerra dos lugares”. Contudo, tênues são as fronteiras,
muitas vezes invisíveis, mas presentes, que se fazem sentir, entre esses lugares. Tais
fronteiras, como coloca o autor, ordenam categorias e grupos sociais, aproximam
ou afastam, nivelam ou hierarquizam (2000, p. 191). Nesse cruzamento de
fronteiras, também moralidades se contradizem, aproximam-se mundos que ao
mesmo tempo encontram-se irremediavelmente apartados (2000, p. 192).
O que posso dizer com relação à experiência que vivenciei ao caminhar
pelo centro de Belo Horizonte, mais especificamente na Rua Guaicurus, é que
mesmo que tenha havido contrastes com relação à realidade em que vivo, eu
esperava ver e sentir coisas muito distintas do que presenciei. Levei comigo uma
série de expectativas quanto à moralidade presente naquela rua, devido a seu estigma ligado às atividades de prostituição. Mas o que encontrei, pelo menos nos
dias em que lá estive, foram expressões variadas de afetos e conflitos, religião,
erotismo, crianças brincando e adultos sentados conversando nas calçadas, convivendo naquele espaço. Encontrei também abandono, pobreza, cheiro de esgoto,
moradias de rua, trabalhos nas ruas. A prostituição, se estava acontecendo, não
a vi. Estava muito bem escondida dentro dos hotéis de janelas fechadas e portas
vigiadas. Aí o controle social se manifesta não na presença de policiamento, que
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não pude perceber, mas na interdição daquilo que é considerado simbolicamente
coisa suja e perigosa (ARANTES, 2000, p. 192).
Com relação aos usos do espaço público da Rua Guaicurus, retomo as
reflexões de Rogério Proença Leite, de que é possível repensar a construção
dos lugares no contexto urbano contemporâneo a partir dos usos e contra-usos
que se faz dos espaços (2002, p. 121). Assim, os usos feitos nos espaços podem
alterar a paisagem e imprimir outros sentidos ou contra-sentidos que diferem
daqueles esperados pelas políticas urbanas, contribuindo para a diversificação
dos sentidos dos lugares. No caso da cidade de Belo Horizonte, as atividades
de prostituição passaram por regulações baseadas em princípios higienistas
de cidade planejada, que tentaram manter a prostituição sob controle e fora do
campo de visão dentro de estabelecimentos como cabarés e hotéis, como os que
existem atualmente. Mas seria possível pensar na concentração das atividades de
prostituição em tais hotéis, na rua Guaicurus, como uma forma de contra-uso
que difere do que seria esperado para esses estabelecimentos? Seria uma forma
de resistência dessas práticas, que continuam a existir naquela rua, mesmo com
interdições a sua visibilidade? Não mais em cabarés, comandados por cafetões e
cafetinas, mas em hotéis e seus gerentes?
A diferenciação entre tática e estratégia, segundo Certeau, indica caminhos de reflexão sobre o uso dos espaços. A estratégia para ele se refere a uma
regulação ou manipulação de forças, postulando um lugar suscetível de ser circunscrito como um próprio, num mundo enfeitiçado pelos poderes invisíveis do
outro (1998, p. 99). É relacionada ainda com um domínio dos lugares pela vista,
transformando forças estranhas em objetos que podem ser medidos, observados,
incluídos ou excluídos da visão. Pode-se relacionar a noção de estratégia com o
controle do espaço público da Rua Guaicurus pelo poder público, que impõe um
controle ou mesmo confinamento das práticas de prostituição dentro de espaços
restritos à visão.
Já a noção de tática implica na ausência de um próprio, onde nenhuma delimitação de fora lhe fornece a condição de autonomia. Este estatuto de
não-lugar lhe permite uma mobilidade, utilizando as falhas que as conjunturas
particulares abrem na vigilância do poder proprietário, criando surpresas, conseguindo estar onde ninguém espera (1998, p. 101). A tática é assim determinada
pela ausência de poder, como a estratégia é organizada pelo postulado de um
poder. Seriam, nesse sentido, as atividades de prostituição nos hotéis da Rua
Guaicurus espécies de táticas, surpresas em meio à vigilância do poder, no sentido de resistirem ao que esse poder espera que aconteça no espaço dessa rua?
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Seriam possibilidades de existência, em meio a um ideal de cidade planejada?
Afinal são atividades que acontecem em hotéis com diárias que as trabalhadoras
pagam para ali se hospedarem, como uma possiblidade de se exercer a profissão
relacionada ao sexo, em um país onde a exploração das atividades de prostituição alheia é considerada crime, mas não a prostituição em si.
Através do olhar proposto por Certeau, uma análise das práticas microbianas, singulares, ao mesmo tempo que plurais, deixa vir à tona pequenos acontecimentos, tão inesperados ao olhar inexperiente e preconceituoso, que são eles
mesmos as práticas do espaço, condições determinantes da vida social (1998, p.
175). Trata-se da percepção de um espaço vivido, em movimento, e não de um
espaço pré-concebido, fixado por regulamentações e discursos limitados. Essas
práticas estão a todo momento moldando esses espaços, as motricidades dos pedestres formando sistemas reais cuja existência faz efetivamente a cidade (1998,
p. 176). E é isso que se observa ao longo da caminhada pelos lugares, muito além
do que é dito acontecer ali.
As práticas do espaço correspondem a manipulações sobre os elementos
de base de uma ordem construída; são também desvios relativos a uma espécie
de “sentido literal” definido pelo sistema urbanístico (1998, p. 180). Dessa forma, é desviar do que pretende o discurso limitador e disciplinador dominante,
é não aceitar de bom grado as distinções impostas à cidade, às pessoas, entre
mulheres “plurais” e mulheres honestas.
O espaço que presenciei é também onde certos conflitos sociais ganham
visibilidade. Como coloca Arantes (2000), são expostos publicamente problemas que revelam uma falta de direitos de cidadania de uma grande parte dos
integrantes da cidade, identificadas por exemplo na construção de moradias nas
ruas, no sub-emprego, mendicância, na oferta de uma vida melhor através de
pregações religiosas, entre outros sinais (2000, p. 192).
Não poderia tratar os espaços em questão como territórios de delimitações bem definidas. A Rua Guaicurus, assim como os locais no centro de Belo
Horizonte pelos quais caminhei, não mostram transições claras e simples de
serem compreendidas. Pelo contrário, tratam-se de complexas liminaridades formando o que Arantes chama de “labirintos”. Nesses labirintos, as fraturas físicas
e simbólicas se confundem, e uma fluidez obriga o observador a flexibilizar as
categorias de análise (2000, p. 201). Dessa forma, na mesma rua chamada de
Guaicurus, havia várias práticas de espaço diferentes, que constituíam vários
mundos, como o mundo da prostituição, o mundo dos fiéis da igreja, o mundo
dos passantes que esperam por seus ônibus, dos comerciantes com suas famílias,
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dos vendedores ambulantes, dos moradores de rua, dos simples ocupantes das
calçadas. Mundos efêmeros. Nessas transições de um mundo a outro, percebe-se
muito mais um entrecruzamento, uma sobreposição de espaços do que separações e fraturas. Voltando às reflexões sobre espaço público trazidas por Rogério
Proença Leite, tratam-se de “locais onde as diferenças se publicizam e se confrontam politicamente” (2002, p. 116). Espaço aberto a todos.
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In: Cadernos Metrópole, n. 11, pp. 137-157, 2004. Disponível em < http://revistas.pucsp.br/index.php/
metropole/article/view/8817/6538> Acesso em 6 set. 2014.
ARANTES, Antonio Augusto. Guerra dos Lugares: mapeando zonas de turbulência. In: Paisagens Paulistanas: transformações do espaço público. Campinas: Editora UNICAMP, 2000.
CERTEAU, Michel de. Caminhadas pela cidade. In: A invenção do cotidiano: Artes de Fazer. Petrópolis: Vozes,
1998, 3 ed.
FREHSE, Fraya. Erving Goffman, sociólogo do espaço. RBCS. V. 23, n. 68, out., 2008, pp. 155-166.
GOFFMAN, Erving. The presentation of self in every-day life. Nova York, Anchor Books, 1959.
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Augusto (Org.). O Espaço da diferença. Campinas: Papirus, 2000.
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Ciências Sociais
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Tão perto e tão longe: os mapas de
movimento como representação espacial
das barreiras de acesso ao bairro da
Lagoinha em Belo Horizonte
Janaina Maquiaveli Cardoso
Resumo: Por meio de mapas de movimento, técnica de pesquisa
amplamente utilizada pela antropologia e pela sociologia urbanas norteamericanas, este artigo pretende demonstrar o estrangulamento e o
isolamento físico a que vem sendo acometido o bairro da Lagoinha, em
Belo Horizonte, em decorrência das barreiras e obstruções impostas tanto
pelo complexo viário de mesmo nome quanto, mais recentemente, pela
implantação do sistema de Transporte Rápido por Ônibus (BRT) na Avenida
Antônio Carlos. Espera-se ainda, por meio de representações cartográficas,
apresentar a Lagoinha como metonímia da matriz de cidade que o Projeto
Nova BH poderá acarretar, obstruindo as passagens entre-bairros e
impedindo a interação entre as pessoas em favor de cenários urbanos e
interesses pouco afeitos à democracia, ao direito à cidade e ao dinamismo
das sociabilidades urbanas que, pelo menos em tese, deveriam ser próprias à
vida cotidiana numa grande cidade.
Palavras-chave: Sociabilidades urbanas. Nova BH. Lagoinha. Mapas de
movimento.
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Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
Introdução
Todos os dias, cerca de 200 mil pessoas circulam pelas 19 estações do
metrô de Belo Horizonte, distribuídas ao longo dos 28,2 km da linha única que
liga as estações Vilarinho e Eldorado, entre as regiões Norte e Noroeste da capital. São poucos quilômetros, se comparados aos 74,3 km e 40,9 km de extensão
que têm as linhas do metrô de cidades como São Paulo e Rio Janeiro, respectivamente. Quase nada, quando confrontados a metrópoles como Xangai, Londres e
Nova York, com seus aproximadamente 400 km de linha.
Figura 1 – Mapa da linha única do metrô de Belo Horizonte. Em destaque, as estações
Central e Lagoinha.
Fonte: Ilustração de Mariana Fonseca para a autora
Em Belo Horizonte, a estação Lagoinha, no hipercentro, está entre as quatro com maior número de usuários por dia, embora pesquisa realizada em 2011
pela Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU, 2014) tenha indicado que
apenas 8,4% dos passageiros tiveram nela o seu ponto de origem ou destino. Ainda assim, cerca de 20 mil pessoas transitam diariamente por ali, entrecruzando-se, a despeito da proximidade geográfica, no único percurso de ligação para
pedestres entre o centro da cidade e o bairro: a passarela suspensa que conecta
o Terminal Rodoviário, a estação do metrô – com entrada pela Avenida do Contorno – e as imediações da Praça Vaz de Melo, ponto limítrofe entre as avenidas
Nossa Senhora de Fátima e Pedro II.
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Figura 2 – Mapa indicativo da localização do bairro Lagoinha, em Belo Horizonte
Fonte: Ilustração de Mariana Fonseca para a autora
Vista do alto da passarela de pedestres, a Praça do Peixe, como ficou
conhecida a Praça Vaz de Melo, não evoca mais o tempo em que a Lagoinha foi
reduto do samba e da boemia de Belo Horizonte. Ocupada no final do século
XIX por imigrantes e operários empregados nas obras de construção da capital,
seu nome permanece no copo de botequim; mas no entorno da praça, o cenário
é de degradação. A escultura “Peixes”, obra do artista plástico Álvaro Apocalypse,
foi desgastada pela ação do tempo e dos pichadores. Criada e instalada em 2000,
não bastou para requentar a iniciativa mal-formulada e mal-sucedida de revitalização urbana promovida pela Prefeitura na segunda metade dos anos 1990.
Supostamente inspirado na reabilitação do centro de Lisboa, o Projeto Lagoinha1
limitou-se a reconfigurar o edifício e os frequentadores do Mercado Popular da
Lagoinha, na Avenida Antônio Carlos, por meio de ações fomentadas pelas secretarias municipais de Cultura, Desenvolvimento e Planejamento Urbano. Ao
promover espetáculos de artistas expoentes no cenário musical belo-horizontino
de então, esperava-se criar novos padrões de uso e ocupação do mercado e seu
entorno, imprimindo a um bairro em estado evidente de vulnerabilidade econômica e social uma vocação artística e cultural reinventada. Não deu certo.
1. Sobre a história do bairro e o Projeto Lagoinha, ver: Flores (2003); Freire (2011); Borges de
Moraes&Goulard (2002).
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Sob os peixes ao vento, usuários de crack estendem seus cobertores no
gramado sem viço da Praça Vaz de Melo2, perambulando vez ou outra pela Rua
Bonfim, onde, até o início dos anos 1990, havia dezenas de peixarias e casas
especializadas em frutos do mar. Hoje restam apenas sete. A maioria parece ter
dado lugar a um centro de atendimento de operadoras de telefonia celular – ramo
da economia que, segundo Jessé Souza (2010), tem atraído milhares de trabalhadores precariamente qualificados, seduzidos pela ilusão de pertencimento ao
que se vem chamando de nova classe média brasileira.
De cima da passarela também se podem ver os milhares de veículos que
trafegam pelo Complexo da Lagoinha, um sistema viário arterial que cruza o
centro de Belo Horizonte. Formado pelos viadutos A, B, Leste e Oeste, pelo
Túnel Lagoinha-Concórdia e pelas avenidas Cristiano Machado, Antônio Carlos e Pedro II, o complexo foi inaugurado no início dos anos 1970 e ampliado
periodicamente desde então; a última vez sob o pretexto das obras de mobilidade urbana para a Copa do Mundo de 2014. Que os carros, e não as pessoas,
têm sido prioridade na formulação de políticas de planejamento urbano em
diferentes cidades ao redor do mundo não é novidade. No caso brasileiro, entretanto, e no de Belo Horizonte, em especial, incomoda ver repetidos modelos
ultrapassados de urbanização em larga escala, típicos dos anos 1950, quando
a indústria automotiva ainda era uma grande – senão a única – promessa de
desenvolvimento e prosperidade.
A falência de Detroit – que em 2013 pôs fim aos anos de ouro de um dos
maiores centros de produção automotiva dos EUA – já nos deveria ter ensinado
que o ronco dos motores pode ser como o canto das sereias. Arruinada por dívidas de aproximadamente 20 bilhões de dólares, Detroit tornou-se uma espécie
de cidade-fantasma repleta de mansões e avenidas abandonadas, às quais só se
pode chegar trafegando pelas vias expressas que marcaram os modelos tipicamente americanos de suburbanização: grandiosos, porém controversos. Em Tudo
que é sólido desmancha no ar, por exemplo, Marshall Berman descreve, constrangido, a experiência de trafegar pela Via Expressa Cross-Bronx, em Nova York,
como uma das grandes desventuras da modernidade:
2. Os deslocamentos e principais espaços de permanência de usuários de crack na região da Lagoinha foram
identificados por meio de observações etnográficas durante a pesquisa empreendida para o presente estudo.
Do ponto de vista da permanência, observou-se uma concentração de usuários na Praça do Peixe e, durante
os finais de semana, sobretudo após o fechamento do comércio local, aos sábados, embaixo da passarela de
pedestres, nas proximidades da Rua Além Paraíba e nos espaços vazios formados no entrecruzamento dos
viadutos que se sobrepõem à região. Já no que tange ao deslocamento, há uma proveniência evidente de
usuários de crack da Pedreira Prado Lopes, que chegam à Lagoinha pela Avenida Antônio Carlos ou pelas
imediações do Hospital Odilon Behrens até a Rua Além Paraíba, ambos levando à Praça do Peixe.
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A estrada, embora entupida com tráfego pesado dia e noite, é rápida, mortalmente rápida; os limites de velocidade são rotineiramente transgredidos, mesmo nas rampas de entrada e de saída, perigosamente inclinadas;
constantes comboios de imensos caminhões, com motoristas sinistramente
agressivos dominam as linhas de visão; os carros serpenteiam de um lado
para outro entre os caminhões: é como se cada pessoa nesta estrada estivesse tomada de urgência incontrolável, desesperada para deixar o Bronx tão
velozmente quanto as rodas o permitam. Uma olhada de relance à paisagem
urbana ao norte e ao sul (é difícil conseguir mais que rápidos relances, pois
a maior parte da estrada fica abaixo do nível do solo, cercada por muros de
três metros de altura) poderá indicar o motivo: centenas de edificações cercadas de tábuas e vazias e carcaças de construções carbonizadas e queimadas; dúzias de quarteirões cobertos com nada mais que tijolos espalhados
e sucata. Dez minutos nesta estrada, um suplício para qualquer pessoa, são
especialmente horríveis para aqueles que relembram o Bronx como costumava ser; que recordam essas cercanias como foram um dia, e vicejaram,
antes que essa mesma estrada trespassasse seu coração e fizesse do Bronx,
acima de tudo, um lugar do qual se queira sair. (Berman, 1986, p. 275)
Na Nova York dos anos 1960, após décadas de protestos inúteis de milhares de cidadãos, a resistência liderada pela urbanista e ativista Jane Jacobs contra
o construtor Robert Moses, “o homem que tornou tudo isso possível”, foi paradigmática na revisão dos modelos norte-americanos de planejamento urbano.
Ao impedir a demolição de parte do SoHo e de Little Italy para que se construísse
uma via expressa monumental, a Lower Manhattan Express, o discurso preservacionista de Jacobs fez das críticas à urbanização em larga escala um legado acerca
do que consiste, efetivamente, a natureza peculiar das cidades: a diversidade
resultante da combinação de usos e apropriações do espaço urbano.
Com o propósito de resolver problemas de tráfego, habitação e violência,
Moses e sua equipe soterravam comunidades e vizinhanças inteiras para a construção de pontes, viadutos, avenidas e edifícios monumentais, ícones de uma urbanidade supostamente racional e progressista. Para seus críticos, no entanto, ele
representava uma visão distorcida acerca do que são as cidades, pois privilegiava
os carros em detrimento das pessoas. Desconsiderava que a vivacidade urbana,
sobretudo nas grandes cidades, resulta das interações sociais cotidianas que só o
mundo da rua pode oferecer. Prescindia do espaço público em favor dos espaços
especiais: “as pessoas andam em torno deles, ou ao longo deles, mas não através
deles”. (Jacobs, 2007, p. 291)
O polêmico projeto de construção da Lower Manhattan Express foi suspenso em 1962. Mais de cinquenta anos depois, é curioso ver como as iniciativas
de planejamento urbano em Nova York vêm sendo (re)formuladas. Nos últimos
anos, críticas duríssimas foram feitas ao antecessor do prefeito atual, Bill de Blasio, o republicano Michael Bloomberg, que governou a cidade entre 2002 e 2013.
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Bloomberg, um magnata com raízes no mercado financeiro, foi acusado de ter
governado Nova York para os ricos, colocando os indicadores de desigualdade
social da cidade entre os maiores do país. Do ponto de vista do planejamento
urbano, a maior parte das críticas deve-se às mudanças no zoneamento promovidas pela Prefeitura em favor das construções de alto luxo, da especulação
imobiliária e, com elas, da gentrificação.
Por outro lado, há mudanças de escala que indicam um certo distanciamento dos modelos monumentais que asseguraram a Robert Moses fama e repúdio internacionais. Entre 2008 e 2012, por exemplo, sob o comando da ex-secretária de transportes de Nova York, Janette Sadik-Kha, foram construídos cerca de
450 km de ciclovias, resultantes – ao contrário do que vem ocorrendo em Belo
Horizonte – do estreitamento e, em alguns casos, como no de Times Squares, do
fechamento das pistas destinadas aos carros nas regiões mais movimentadas
da cidade. A mudança tinha como objetivos reduzir o número de acidentes de
trânsito e aquecer o comércio local, estimulando a frequência e a permanência
de pedestres nas ruas por meio de um desenho urbano mais apropriado à circulação de pessoas e às interações sociais cotidianas. (Lores, 2014)
Em 2012, uma pesquisa realizada pelo Departamento de Trânsito de
Nova York para avaliar esta “nova métrica das ruas” indicou que as mudanças
resultaram em redução dos congestionamentos, diminuição do número de acidentes e de mortes no trânsito e crescimento do comércio varejista local. Na Oitava e na Nona Avenidas, em Manhattan; na Rua Pearl, no Brooklyn e na Avenida
Fordham, no Bronx, onde as mudanças foram implantadas e minuciosamente
monitoradas houve um crescimento de respectivamente 49%, 172% e 71% no
comércio local. (New York City Department of Transportation, 2014)
Em Belo Horizonte, ao contrário, a construção desenfreada de pistas
exclusivas e de alta velocidade para o Transporte Rápido por Ônibus (BRT)
chegou a provocar quedas de até 80% nas vendas do comércio varejista local,
segundo dados da Câmara de Dirigentes Lojistas de Belo Horizonte (Lobato,
2014). Além do mais, a combinação de viadutos, elevados e vias expressas tem
resultado num desenho urbano muito pouco amigável e propício ao trânsito de
pessoas. O alargamento de vias expressas e pistas para ônibus de alta velocidade, a ausência de faixas para pedestres, passeios públicos e pontos de travessia
e permanência estão tornando as ruas no entorno da Lagoinha, em particular,
e de Belo Horizonte, em geral, inacessíveis e inviáveis às pessoas, ao comércio
de rua e, por conseguinte, ao dinamismo da vida urbana que, numa grande
cidade, deveria ser peculiar.
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O título de Vida e morte das estradas urbanas, um estudo publicado em
2013 pelo Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento, foi claramente
inspirado no clássico de Jane Jacobs, Morte e vida das grandes cidades, de 1961. A
pesquisa, realizada em 2012, apresenta inúmeros casos em que rodovias urbanas
vêm sendo demolidas para a construção de espaços mais adequados ao convívio
social e, portanto, às sociabilidades urbanas. (Bocarejo, 2013)
Em Belo Horizonte, por outro lado, ainda seguimos entregues ao encanto
destes seres imemoriais, os carros. Formulado pela Prefeitura em 2013, o Projeto Nova BH3 – operação urbana consorciada que inclui o BRT – pretende reconfigurar a paisagem urbana da cidade por meio de centenas de alterações no
Plano Diretor e nas Leis de Uso e Ocupação do Solo (Prefeitura Municipal de
Belo Horizonte, 2014). O resultado? Torres comerciais e corredores de tráfego
em diversas regiões da cidade, cercados de vazios por todos os lados, em cujo
entorno espera-se que surjam, talvez magicamente, o dinamismo que faz da vida
cotidiana nas grandes cidades algo tão particular. A realidade, contudo, prova o
contrário: corredores viários, trincheiras e viadutos criam mundos propícios aos
veículos, não às pessoas. São, por natureza, barreiras ao pedestre e ao comércio
de rua, dois dos mais importantes geradores de diversidade e vitalidade urbana
nas grandes cidades. Constituem espaços inacessíveis e intransponíveis, exceto
por sociabilidades tão marginais quanto eles próprios.
Por meio de mapas de movimento, técnica de pesquisa amplamente
utilizada pela antropologia e pela sociologia urbanas norte-americanas, este
artigo pretende demonstrar o estrangulamento e o isolamento físico a que vem
sendo acometido o bairro da Lagoinha, em decorrência das barreiras e obstruções impostas tanto pelo complexo viário de mesmo nome quanto, mais
recentemente, pela implantação do sistema de Transporte Rápido por Ônibus
(BRT) na Avenida Antônio Carlos. Espera-se ainda, por meio de representações
cartográficas, apresentar a Lagoinha como metonímia da matriz de cidade que
o Projeto Nova BH poderá acarretar, obstruindo as passagens entre-bairros e
impedindo a interação entre as pessoas em favor de cenários e interesses pouco afeitos à democracia, ao direito à cidade e ao dinamismo das sociabilidades
3. O Projeto Nova BH, formulado pela Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, prevê alterações urbanas
em cerca de 25 Km2 da cidade, marcadas pela implantação de corredores viários, corredores de transporte
coletivo, “revitalização” de estações de metrô e construção de estações de BRT/MOVE nas regiões dos
Corredores Antônio Carlos-Pedro I, Cristiano Machado e Leste-Oeste, que inclui as avenidas dos Andradas,
Tereza Cristina e Via Expressa. Trata-se de uma operação urbana consorciada por meio da qual o mercado
(construtoras e investidores imobiliários) compra potencial construtivo, gerando recursos financeiros a
serem (supostamente) investidos pela Prefeitura na requalificação urbana e na construção de equipamentos
sociais – como parques, praças e alamedas – nas áreas da operação.
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CARDOSO, J. M. • Tão perto e tão longe: os mapas de movimento como representação espacial...
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urbanas que, pelo menos em tese, deveriam ser próprias à vida cotidiana numa
grande cidade.
Abaixo, na Figura 3, foram representadas a linha de tráfego rápido concluída, recentemente, na Avenida Antônio Carlos, e a estação Lagoinha, situada
no ponto limítrofe entre o bairro e seus circunvizinhos na região Leste da cidade. No mapa de movimento, a linha é apresentada como elemento indicativo de
barreira ou zona de fronteira que se expande no espaço, em grandes proporções.
Figura 3 – Linha MOVE/BRT Antônio Carlos
Fonte: Ilustração de Mariana Fonseca para a autora
Metodologia de pesquisa empregada e
apresentação cartográfica dos resultados
Segundo Setha Low (2000) e Miles Richardson (1982), o movimento de
pedestres e de veículos é um importante indicador da vida cotidiana nas grandes
cidades. Ele revela o ritmo de uma determinada região ou localidade e pode ser
reproduzido por meio dos mapas de movimento: representações espaciais construídas com vistas a simbolizar as (im)possibilidades de acesso e de circulação
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nos locais pesquisados. Por tratar-se de representações cartográficas da realidade
cotidiana, os mapas de movimento provêm de pesquisas de natureza etnográfica
e constituem uma técnica bastante apropriada à coleção de evidências físicas de
deslocamento no espaço urbano investigado.
Para os fins deste estudo, as pesquisas de campo4 que resultaram nas
descrições e nos mapas de circulação e movimento do Bairro Lagoinha foram
realizadas entre os meses de maio e agosto de 2014 em diferentes dias da semana
e horários do dia e consistiram das seguintes etapas, abaixo apresentadas:
• Mapeamento dos limites geográficos e dos principais pontos de acesso
de pedestres e de veículos ao bairro.
• Identificação e mapeamento, resultantes dos primeiros esforços de investigação preliminar e de sondagem, das inúmeras barreiras físicas de
acesso à Lagoinha, decorrentes do modelo de urbanização e das obras
viárias que circundam o bairro.
• Identificação, por meio de esforços deliberados de transposição, das
fronteiras físicas que impedem o acesso e o deslocamento de pedestres do
centro ao bairro e dos bairros vizinhos à Lagoinha.
• Classificação, num esforço taxionômico, da natureza das zonas de fronteira identificadas, apontando seus possíveis efeitos funcionais sobre a
vizinhança urbana pesquisada.
• Adoção de estratégias narrativas que pudessem revelar, na análise das
conformações urbanas estudadas, os aspectos processuais a elas relacionados, a fim de estabelecer, no sentido proposto por Becker (2007), correlações e variâncias como características naturais do cenário.
• Utilização do método de Indução Analítica (IA) com vistas a identificar
não só as possíveis variáveis de teste e análise da hipótese de “enclausuramento” do bairro, mas dos aspectos processuais que o antecederam.
Esperava-se com isso demonstrar de que maneira o acesso de pedestres à
Lagoinha vem sendo impedido pelas barreiras físicas que o circundam e
como as barreiras e obstruções físicas similares reproduzidas pelo Projeto
Nova BH tendem a replicar pela cidade o mesmo padrão de enclausuramento ocasionado pelo modelo de urbanização em larga escala típico do
entorno da Lagoinha.
Por meio de observações de natureza etnográfica, procurou-se vivenciar
as microgeografias da vida cotidiana do bairro, de modo que as representações
cartográficas pudessem respaldar os objetivos centrais deste estudo que são
4. Colaborou: Mariana Fonseca Freitas.
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apontar as barreiras físicas de acesso à Lagoinha entrepostas pela estrutura viária ao seu redor e indicar possíveis correlações entre as interposições e o evidente
estado de degradação ou comprometimento da diversidade urbana do bairro, a
despeito de sua proximidade geográfica com o centro de Belo Horizonte. Espaço público versus espaço especial:
as zonas de fronteira desertas
De acordo com Jane Jacobs (2007), fronteiras urbanas são formadas quando um determinado aproveitamento territorial se expande no espaço, em grandes proporções, limitando áreas comuns da cidade a usos de natureza exclusiva
ou simplificada. Linhas férreas, orlas, campi universitários, vias expressas, parques e estacionamentos muito extensos são zonas de fronteira e constituem obstáculos à livre circulação e ao movimento de pessoas e veículos. Com isso, zonas
de fronteira também podem ser consideradas barreiras funcionais, pois exercem
uma influência ativa sobre sua vizinhança urbana imediata, afetando o espaço e
as sociabilidades ao seu redor.
As fronteiras tendem, assim, a formar hiatos de uso em suas redondezas.
Ou, em outras palavras, devido ao uso supersimplificado da cidade em
certo lugar, em grande escala, elas tendem a simplificar também o uso que
as pessoas dão às áreas adjacentes e essa simplificação de uso – que significa menos frequentadores, com menos opções e destinos a seu alcance – se
autoconsome. (Jacobs, 2007, p. 287)
Isso significa que as zonas de fronteira não comportam a diversidade de
apropriações necessárias à vitalidade e ao dinamismo do espaço urbano, ou seja,
são simplistas e restritas em suas configurações e funções. Em geral, são elementos urbanísticos monotemáticos, em termos de ocupação, assim como os espaços
vazios deles decorrentes. É o caso do entorno das passarelas de pedestres, dos
vãos formados embaixo e ao redor de viadutos e elevados ou das áreas mortas
que se formam no entrecruzamento de vias expressas, dos quais a Lagoinha
está repleta. Zonas de fronteira são espaços limítrofes e, portanto, destinos finais que não podem ser ultrapassados. Consequentemente, a marginalidade que
lhes é própria, assim como aos seus entornos imediatos, tende a expandir-se,
progressivamente, num fenômeno definido por Jane Jacobs como “espraiamento
gradativo”, comprometendo o dinamismo e a vitalidade do entorno e acirrando a
tensão entre o espaço público e os chamados espaços especiais que representam.
Segundo David Harvey (2013), uma das características mais importantes
do espaço público é permitir que os direitos individuais e coletivos de acesso aos
recursos urbanos resultem na liberdade de escolher os tipos de sociabilidade,
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os estilos de vida e os vínculos sociais que desejamos ter. Para Jacobs (2007),
espaços públicos são lugares em que as pessoas se movimentam livremente de
um lugar a outro, ou seja, por livre escolha. Já os espaços especiais não são normalmente utilizados como via pública pelos pedestres. O acesso a eles é restrito,
já que constituem obstáculos geográficos. Isso não significa que possamos desconsiderar a importância dos chamados espaços especiais como necessários e até
mesmo imprescindíveis à mobilidade e à livre circulação pelo espaço urbano de
uma grande cidade. Muitas vezes, cabe justamente a eles viabilizar o trânsito e o
deslocamento de pessoas e veículos por entre bairros e regiões.
No entanto, todo espaço especial interfere no uso do espaço público. Por
isso, se os espaços especiais se estendem ou multiplicam de maneira indiscriminada, eles acabam por restringir as possibilidades efetivas de interligação entre as
regiões que, naturalmente, limitam, subdividem ou fracionam, desequilibrando
assim a tensão natural existente entre eles e o espaço público. Sob esse aspecto,
os espaços especiais passam a “acomodar-se” no espaço urbano com uma intensidade de uso e ocupação do solo muito baixa em relação às proporções do
perímetro ocupado, comprometendo a diversidade urbana em seus contornos
imediatos e além, assim como as sociabilidades e os vínculos sociais que costumam dela [da diversidade] resultar.
Esse é um princípio que os comerciantes do centro urbano compreendem
muito bem há muito tempo e, por se tratar de um princípio, é mais fácil
explicá-lo com as palavras deles. Sempre que um “lugar morto” significativo
surge numa rua do centro, ele provoca uma diminuição na intensidade do
trânsito de pedestres e no uso da cidade naquele ponto. À vezes, a queda
tem um efeito econômico tão grave, que ocorre uma queda no comércio de
um lado ou do outro do lugar morto. Esse lugar morto pode ser um espaço
vazio ou algum monumento pouco utilizado, ou pode ser um estacionamento de automóveis ou simplesmente um conjunto de bancos que fecham as
portas depois das 15 horas. Seja o que for especificamente, o papel do lugar
morto como obstáculo geográfico para o espaço público superou seu papel
de contribuir com usuários para o espaço público. A tensão diminuiu. Todavia, a tensão entre os dois tipos de espaço pode desfazer-se inteiramente
ou pode não ser anulada ou compensada naturalmente, se o espaço especial
tornar-se um obstáculo muito grande. (Jacobs, 2007, p. 292)
Ao contrapor o espaço público e os espaços especiais da Lagoinha, fica
evidente o quão extensos estes últimos se tornaram, constituindo barreiras e
obstáculos intransponíveis entre o bairro e as regiões central e leste da cidade, a
despeito da proximidade física entre elas.
Com isso, tanto a multiplicidade quanto a sobreposição das zonas de
fronteira impedem que haja inter-relações entre o bairro e o centro ou entre a Lagoinha e suas vizinhanças imediatas, já que as únicas vias de acesso ou conexão
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entre elas resumem-se: (i) à passarela de pedestres que liga a estação Lagoinha à
Rodoviária e (ii) à transposição da via de tráfego rápido do BRT Antônio Carlos, o
que levará o pedestre a ter de “escalar” uma escada encravada no muro de arrimo
que separa a avenida do Bairro Concórdia, caso queira deslocar-se até os bairros
Colégio Batista e Floresta ou, a partir deles, rumo ao centro.
Figura 4 – Mapa (arterial) de movimento da região da Lagoinha em Belo Horizonte
Fonte: Ilustração de Mariana Fonseca para a autora
Já na figura 5, que mostra em detalhe as zonas de fronteira, também é
possível observar como as vias de trânsito local terminam nas diferentes barreiras que circundam a Lagoinha, formando becos sem saída para a maioria das
pessoas que queiram por elas transitar. Tais ruas constituem pontos finais para
moradores e frequentadores do bairro. Ao observá-las em suas sociabilidades
cotidianas durante o período da pesquisa, ficou evidente o quanto se tornaram
lugares desertos, com poucos frequentadores e usos restritos, quando não inexistentes. Não há nelas uma circulação normal de pessoas ou mesmo de veículos,
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de modo que suas ocupações tendem a reproduzir, em diferentes dias da semana
e em diferentes horários do dia, sobretudo à noite, a natureza marginal que caracteriza as zonas de fronteira: desertas, perigosas, intransitáveis e degradadas.
Segundo Jacobs, “isso é grave, porque a mistura constante e literal de pessoas,
que se fazem presentes por finalidades diferentes, é o único meio de preservar a
segurança nas ruas. É o único meio de cultivar a diversidade derivada. É o único
meio de estimular a formação de distritos em vez de bairros ou lugares ermos
fracionados, fechados e estagnados”. (Jacobs, 2007, 288)
Figura 5 – Detalhe do mapa (arterial) de movimento da região da Lagoinha
Fonte: Ilustração de Mariana Fonseca para a autora
Isso significa que, por mais relevantes que sejam os argumentos em favor
da implantação de modelos de urbanização em larga escala, marcados por viadutos e largas avenidas em prol da mobilidade que parecem demandar o trânsito
caótico e a necessidade de se encurtarem as distâncias que marcam as grandes
cidades, é preciso ponderar os impactos que causam nas regiões onde são construídos. É inútil esperar que o entorno das zonas de fronteira resultem em espa-
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ços marcados pelo dinamismo da vida urbana, único elemento capaz de impedir
que ruas, quarteirões ou bairros inteiros se tornem degradados e decadentes.
Transitar pelas ruas da Lagoinha é lamentar que a vitalidade urbana de um bairro tenha sido negligenciada em favor das barreiras monumentais e supostamente
progressistas que o circundam.
Conclusões
A existência de ruas e locais de transposição ou passagem capazes de ligar
as zonas de fronteira à malha urbana mais próxima; a opção por quadras curtas
pelas quais o pedestre possa deslocar-se, com segurança; o incentivo a usos e
ocupações de natureza mista – com a conjunção de moradias, espaços de lazer,
edifícios públicos, privados e comércio – voltadas a fomentar a diversidade urbana são alguns dos recursos capazes de impedir o espraiamento gradativo das
funções simplificadas, da monotonia e do esvaziamento de que são feitos, por
natureza, os espaços especiais.
No entanto, a maioria das intervenções urbanas, sobretudo as de larga escala que têm se multiplicado no entorno da Lagoinha, vêm causando o estrangulamento do bairro e seu paulatino isolamento em relação à cidade, esvaziando as
ruas adjacentes e promovendo a degradação de grande parte do bairro. As inúmeras restrições de circulação de pedestres impostas pelas avenidas, viadutos e vias
expressas não são resolvidas com a existência de uma única rota de transposição,
como é o caso da passarela de pedestres que liga o bairro ao centro. Ao contrário, ela só reforça os impedimentos à livre circulação, sobretudo em determinados
horários, pois não considera a segurança e a fluidez com que as pessoas precisam
circular pelo espaço público para que dele possam se apropriar livremente.
Ao andarmos pela Lagoinha, deparamo-nos com uma espécie de subversão a tudo aquilo que costuma assegurar o dinamismo das ruas, a diversidade de
pessoas no espaço urbano, a multiplicidade de usos e funções que resultam na
ebulição de interações sociais que faz a vida das grandes cidades.
O curioso é que, conforme ressaltou Harvey (2013), na maioria dos grandes projetos de reconfiguração urbana ao redor do mundo, os investimentos em
infraestrutura viária sempre se apresentaram como instrumentos de aquecimento da economia local, respaldados pelas promessas encantadas e encantadoras
do mundo moderno. No entanto, a Paris do final do século XIX ou a Nova York
de meados do século XX, às quais ele se refere, nos colocam, em Belo Horizonte,
120 anos distantes, em média, do discurso da modernidade. Mesmo a substi-
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tuição do mundo da via expressa por espaços sociais elitizados, de especulação
imobiliária e consumo cultural gentrificado, como os da Nova York reformulada
por Michael Bloomberg, nos fazem perguntar a que(m) têm servido as intervenções urbanas que nos vêm sendo impostas, por aqui, a despeito da obsolescência
dos princípios que um dia regeram sua formulação ou mesmo dos casos comprovados de degradação e decadência das regiões onde, outrora, foram implantadas.
Andamos pelas ruas da Lagoinha, em Belo Horizonte, e nos damos conta
de que não cabemos mais nelas. Cedemos espaço às vias de trânsito rápido que,
em tese, nos deveriam permitir transitar por diferentes regiões da cidade. A experiência de pesquisadores que saem à rua, no entanto, mostra o contrário: tanto
o bairro quanto seu entorno imediato foram estrangulados; tornaram-se restritos
à aventura de pedestres que ainda teimam em transpor as zonas de fronteira que
o isolam da cidade real e cotidiana, em favor de um suposto ordenamento do
espaço urbano que o cerca. Nada poderia ser mais revelador do desequilíbrio de
tensões entre espaço público e espaços especiais. Nada poderia ser mais indicativo do quão pouco afeitos à democracia e aos direitos individuais e coletivos de
acesso aos recursos urbanos têm se tornado a Lagoinha, este bairro tão perto e
tão longe do centro de Belo Horizonte.
Mas se o modelo de urbanização em larga escala tornou-se a tônica de
um discurso cuja finalidade é fazer de Belo Horizonte uma nova BH, talvez seja
preciso perguntarmo-nos, assim como fizera Harvey (2013), a quem se destinam
os recursos urbanos em construção e que tipos de sociabilidade, estilos de vida
e vínculos sociais desejamos ter, pois somente com os direitos individuais e coletivos assegurados de se participar de decisões tão imprescindíveis ao futuro da
cidade onde vivemos nos permitirá aproximar o duo Cidade e Democracia.
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Instituto de
Ciências Sociais
Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
Ritmo de trabalho, ritmo da cidade:
a vigência da teoria do valor na
organização do tempo nas metrópoles
Mônica Hallak Costa
É recorrente, entre autores identificados ou não com a tradição marxista, o questionamento da análise de O capital na apreensão da especificidade
da vida social no capitalismo contemporâneo, momento em que a tecnologia domina o trabalho produtivo e o mercado mundial modifica as relações
de poder entre os países e penetra o cotidiano a ponto de chegar ao espaço
doméstico da maioria dos seres humanos do planeta todos os dias. Vários
aspectos da vida cotidiana no espaço urbano poderiam ser analisados para
demonstrar a pertinência da lei do valor na análise da vida social contemporânea. Neste artigo apenas um deles será desenvolvido: o tempo de trabalho.
Pretende-se, pois, demonstrar a validade da teoria do valor para compreender
a organização do tempo nas cidades nos dias atuais.
Com a diminuição do tempo de trabalho necessário para a reprodução, grande parte do investimento produtivo pode migrar para setores não necessariamente voltados para a perpetuação direta da vida (como Marx mostra
na análise dos livros II e III de O capital). Isso significa efetivamente aumento
de consumo e, portanto, de necessidades sociais. Estas tendem a se ampliar
e a transformar o supérfluo em necessário e, na verdade, a ampliação do
consumo torna impossível distinguir com clareza as mercadorias que podem
ser classificadas em uma ou outra categoria, pois são necessidades criadas
historicamente e não fundadas na natureza ou meramente na necessidade de
sobrevivência. Como afirma Marx (2011, p. 435), a “remoção do solo natural
sob o solo de toda indústria e a transposição de suas condições de produção
para fora dela em uma conexão universal – por conseguinte, a transformação
daquilo que aparece supérfluo em algo necessário, em necessidade historicamente produzida – é a tendência do capital”. O autor demonstra, assim,
que o “desenvolvimento da indústria abole essa necessidade natural, assim
como aquele luxo” (MARX, 2011, p. 435), tornando uma e outra necessidades
III Simpósio de Ciências Sociais: Cidade e Democracia
Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
sociais, mesmo que na sociedade burguesa isso só possa ocorrer “de um modo
antitético” pois impõe-se uma “certa norma social como a norma necessária frente ao luxo” (MARX, 2011, p. 435) . Com isso pretende-se que haja uma medida
natural para as necessidades em um momento em que elas já foram há muito superadas pela forma produtiva. A questão é que, sob o domínio do capital, a vida
humana continua sempre limitada à necessidade de sobrevivência e, por isso,
a medida natural, aquela da reprodução material mínima, continua operando
como referência da vida social. Na forma social capitalista, a reprodução da vida
humana se mantém, para todos os homens, presa às necessidades de sobrevivência, pois mesmo os responsáveis por encarnar o querer do valor (os capitalistas),
como caracteriza Marx nos Manuscritos 1861-63, não podem se distanciar de suas
determinações. Mas, “a própria necessidade é mutável, uma vez que as necessidades são produzidas tanto quanto o são os produtos e as diferentes habilidades
de trabalho” (MARX, 2011, p. 435). Para Marx (2011, p. 435):
Quanto mais necessidades, elas próprias historicamente postas – necessidades geradas pela própria produção, as necessidades sociais – necessidades que são elas próprias resultado da produção e relações sociais,
são postas como necessárias, tanto mais elevado é o desenvolvimento da
riqueza real. Materialmente considerado, a riqueza consiste unicamente na
diversidade das necessidades.
Como “todas as necessidades se resolvem com certo tempo de trabalho,
o qual deve ser orientado a finalidades diferentes e despendido em atividades
particularizadas” (MARX, 2011, p. 434), “ramos de trabalho particulares e separados aparecem como necessários” (MARX, 2011, p. 434). Na sociedade organizada em torno da produção do valor, essa
necessidade reciproca é mediada pela troca sobre a base do valor de troca e se evidencia precisamente no fato de que cada trabalho objetivado
particular, cada tempo de trabalho especificado e materializado de modo
particular se troca pelo produto e símbolo do tempo de trabalho universal,
do tempo de trabalho objetivado por excelência, por dinheiro, e, desse
modo pode se trocar novamente por qualquer trabalho particular (MARX,
2011, p. 434-5)
O aumento do valor, que é o interesse do capitalista, expande, portanto,
o consumo que sustenta a reprodução dessa forma social reafirmando o acesso
aos bens produzidos de forma exterior ao processo produtivo e às possibilidades
individuais - ou seja, no mercado de compra e venda, que inclui e pressupõe
compra e venda de força de trabalho. O fato é que mesmo sob essas condições,
a diminuição do tempo de trabalho para a reprodução da vida material significa
aumento de tempo para outras atividades, pois, como afirma Marx nos Grundrisse (2011 p. 119):
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Quanto menos tempo a sociedade precisa para produzir trigo, gado, etc.
Tanto mais tempo ganha para outras produções, materiais ou espirituais.
Da mesma maneira que para um indivíduo singular, a universalidade de
seu desenvolvimento, de seu prazer e de sua atividade, depende da economia de tempo. Economia de tempo, a isso se reduz afinal toda economia.
Da mesma forma, a sociedade tem de distribuir apropriadamente seu tempo para obter uma produção em conformidade com a totalidade de suas
necessidades; do mesmo modo como para o indivíduo singular, tem de
distribuir seu tempo de forma correta para adquirir conhecimentos em
proporções apropriadas ou para desempenhar suficientemente as variadas
exigências de sua atividade.
As exigências variadas dos indivíduos e grupos humanos não se restringem às necessidades materiais exteriores, mas ao desenvolvimento das habilidades e da convivência humana. Como produto histórico, a diversidade das
necessidades se afirma como substância da riqueza. A maior necessidade é,
portanto, a necessidade de tempo livre e é justamente do tempo do trabalhador, como força de trabalho, que o capital se apropria, como Marx mostra no
livro I de O capital.
Ou seja, Marx não trata simplesmente da economia de tempo com vistas
à análise da ampliação do valor nos marcos da produção capitalista. Na verdade,
ele aponta para a dimensão transcendente dessa possibilidade que se desenvolve
na sociedade burguesa. Ele afirma que a
criação do não tempo de trabalho aparece, da perspectiva do capital, assim
como de todos os estágios anteriores, como não tempo de trabalho, tempo
livre para alguns indivíduos. O capital dá o seu aporte aumentando o tempo
de trabalho excedente da massa por todos os meios da arte e da ciência,
porque a sua riqueza consiste diretamente na apropriação de trabalho excedente; uma vez que sua finalidade é diretamente o valor, não o valor de uso.
Desse modo, e a despeito dele mesmo, ele é instrumento na criação dos
meios para o tempo social disponível, na redução do tempo de trabalho de
toda a sociedade a um mínimo decrescente e, com isso, na transformação do
tempo de todos em tempo livre para seu próprio desenvolvimento (MARX,
2011, p. 590 – grifos em itálicos do autor e negrito nosso).
Mas, Marx esclarece em seguida que a tendência do capital “é sempre, por
um lado, criar tempo disponível, por outro lado, de convertê-lo em trabalho excedente”
(MARX, 2011, p. 90). O problema é que quando consegue realizar essa conversão satisfatoriamente “o capital sofre de superprodução e, então, o trabalho necessário é interrompido porque não há trabalho excedente para ser valorizado pelo
capital” (MARX, 2011, p. 90 – grifos do autor). XXX
Alguns autores exploraram a perspectiva do tempo livre como questão
importante na obra madura de Marx, principalmente nos Grundrisse. É o caso,
por exemplo, do sétimo capítulo de A formação do pensamento econômico de Karl
Marx de Enest Mandel (1978). O referido capítulo intitula-se Os Grundrisse ou a
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dialética do tempo de trabalho e tempo livre e nele Mandel faz algumas considerações que dizem respeito à vida cotidiana contemporânea. Diz ele:
A redução do tempo de trabalho nos países capitalistas mais industrializados é um fato, um fato do qual o próprio Marx celebrou o alcance progressista na ocasião da introdução da jornada de dez horas na Grã-Bretanha. É
verdade que a tendência à redução da jornada de trabalho esfriou no curso
dos últimos decênios e que houve mesmo recaídas (como na França). A
extensão progressiva da distância do domicílio do trabalhador para seu
lugar de trabalho compensa, aliás, em parte a redução do tempo de trabalho. A fadiga nervosa aumentada, ao mesmo tempo pelo fato da técnica
contemporânea, do barulho invasor, da poluição do ar, da tensão cada
vez mais grave subjacente a todas as relações sociais, deve também ser
levada em conta. No entanto, se é excessivo falar de uma “civilização do
lazer”, é certo que importantes setores da massa dos assalariados gozam
hoje evidentemente de bem mais “tempo livre” do que na época de Marx
(MANDEL, 1978, p. 116).
Também Mészáros (2007) em O desafio e o fardo do tempo histórico recorre
principalmente ao esboço de 1857-8 para relacionar tempo livre e emancipação.
Outro titulo que merece destaque, apesar de não tratar diretamente da perspectiva do tempo livre, é o instigante Condição Pós-moderna, no qual Harvey (1992)
trata da compressão espaço-temporal como característica da chamada pós-modernidade. O autor americano esclarece que como “[...] a tendência de super acumulação nunca pode ser eliminada sob o capitalismo” a questão é sempre “como
exprimir, conter, absorver ou administrar essa tendência de maneira que não
ameace a ordem social capitalista” (HARVEY, 1992, p. 170). Todas as estratégias
tendem a gerar, por sua vez, novas contradições e a ampliar o mercado mundial.
Lucien Sève (1972) em Marxismo e teoria da personalidade também trata
do tema e mais recentemente Moishe Postone (2003) em Tempo, trabalho e dominação social desenvolveu uma análise que será reproduzida brevemente a seguir.
Os autores mencionados acima buscam em passagens dos Grundrisse e
de O capital referências para discutir o aspecto temporal da teoria do valor e seu
significado para a organização da vida social e, portanto, da própria experiência
individual no decorrer da existência. Para Sève, “cada personalidade humana
se nos apresenta antes de tudo como uma enorme acumulação de atos muito
diversos no tempo”1 (SÈVE, 1972, p. 279). Por isso, eles também reforçam a
compreensão de Marx de que a sociedade organizada em torno da produção de
1. Cf. SÈVE, 1972, p. 136. Lucien Séve busca outras conexões com a vida cotidiana. Em
Marxismo e teoria da personalidade ele se pergunta: “[...] como é possível ler em O capital, por
exemplo, as páginas dedicadas à distinção entre trabalho concreto e abstrato, o valor da força de
trabalho e a taxa do salário, a divisão do trabalho e a manufatura capitalista, o efeito do dinheiro
nas relações mercantis, a extorsão da mais-valia absoluta e relativa, a lei geral da acumulação
capitalista etc. até as últimas páginas dedicadas às classes sociais, sem compreender que se trata
de indivíduos humanos para além de categorias econômicas?”.
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valor proporciona, ao mesmo tempo, a perspectiva de superação do valor como
medida da riqueza social. Segundo Postone (2003, p. 27):
[...] para Marx, a superação do capitalismo envolve a abolição do valor
como a forma social de riqueza, a qual, por sua vez, exige a superação do
modo determinado de produzir desenvolvido sob o capitalismo. Explicitamente afirma que a abolição do valor significa que o tempo de trabalho
não mais serviria como medida de riqueza, e que a produção de riqueza
não mais seria efetuada primordialmente pelo trabalho humano direto
aplicado ao processo de produção.
Ele cita os Grundrisse para confirmar sua afirmação: “Tão logo o trabalho
na sua forma imediata deixa de ser a grande fonte de riqueza, o tempo de trabalho deixa, e tem de deixar, de ser sua medida e, em consequência, o valor de
troca deixa de ser [a medida] do valor de uso.” (MARX, 2011, p. 588). A crescente redução do tempo de trabalho necessário para a produção, portanto, não só
propicia efetivamente a ampliação do acesso de grande parte da população aos
valores de uso, como torna mais e mais miserável o fundamento sobre o qual
repousa o trabalho atual: o “roubo de tempo de trabalho alheio” (MARX, 2011, p.
588 – grifos do autor). E isso por que:
O trabalho não aparece mais tão envolvido no processo de produção
quando o ser humano se relaciona ao processo de produção muito mais
como supervisor e regulador [...] Não é mais o trabalhador que interpõe
um objeto natural modificado como elo mediador entre o objeto e si mesmo; ao contrário, ele interpõe o processo natural, que ele converte em processo industrial, como meio entre ele e a natureza inorgânica, da qual se
assenhora. Ele se coloca ao lado do processo de produção, em lugar de ser
o seu agente principal. Nessa transformação, o que aparece como a grande
coluna de sustentação da produção e da riqueza não é mais nem o trabalho
imediato que o próprio ser humano executa nem o tempo que ele trabalha,
mas a apropriação de sua própria força produtiva geral, sua compreensão e
seu domínio da natureza por sua existência como corpo social – em suma
o desenvolvimento do indivíduo social.(MARX, 2011, p. 588).
Tanto Sève quanto Postone valorizam 2 em suas análises o desenvolvimento do indivíduo social como resultado da produção da riqueza. Mas Postone chama também a atenção para o fato de a dinâmica capitalista, a partir
do trabalho e tempo abstratos – duas dimensões do mesmo processo – impor
um determinado ritmo temporal à vida social. Ritmo que ele denomina “efeito
rotina” (treadmill effect) pois torna o tempo homogêneo e divisível em unidades
constantes “abstraídas da realidade sensorial da luz, da escuridão, das estações”
(POSTONE, 2003, p. 213) assim como “a igualdade e divisibilidade relativa do
valor, expressa na forma dinheiro, é uma abstração da realidade sensorial dos
diferentes produtos” (POSTONE, 2003, p. 13). Para a reflexão desenvolvida aqui
2. Além de muitos outros como, por exemplo, Agnes Heller e Henri Lefebvre e Lukács.
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essa discussão é mais do que oportuna, pois reafirma a análise do livro II de
O capital, de que na sociedade que se reproduz produzindo mercadoria, a vida
social só pode transcorrer de forma enfadonha e repetitiva 3. Postone identifica,
assim, a “tirania do tempo” na sociedade capitalista como uma dimensão central
da análise de Marx, pois “o gasto de tempo de trabalho é transformado em uma
norma temporal” (POSTONE, 2003, p. 214) que está acima da ação individual e
a determina. O autor mostra que isso ocorre “justamente quando o trabalho se
transforma de ação dos indivíduos em princípio alienado geral da totalidade à
qual os indivíduos estão submetidos” (POSTONE, 2003, p. 214) e assim “o gasto
de tempo se transforma de um resultado da atividade em uma medida normativa
para a atividade (POSTONE, 2003, p. 215). Mas é claro que essa medida envolve
toda a vida social pois, como afirmam Braga e Contesini (2009, p. 14), o tempo
de trabalho “torna-se um tipo de dominação coisal que submete os produtores e
sua vida cotidiana” visto que essa “imposição não se restringe aos domínios da
produção e constitui o efeito rotina” (grifos do autor) que organiza a existência
diária dos indivíduos. A temporalidade capitalista é então entendida como a relação entre tempo concreto e tempo abstrato que gera a dialética tempo-trabalho.
O efeito rotina é explicado por Postone a partir da referência à dupla dimensão do valor que expressa o duplo caráter do trabalho no capitalismo: simultaneamente atividade produtiva ou trabalho concreto e atividade social mediadora, trabalho abstrato. Segundo ele, a “relação dinâmica entre valor e valor de uso
está intimamente ligada à interação entre produtividade e valor, que só pode ser
plenamente desenvolvida quando a forma dominante na produção é a mais-valia
relativa” (POSTONE, 2003, p. 215). Nesta forma, como se sabe, o incremento da
produtividade, de modo a reduzir o tempo de trabalho socialmente necessário
para a reprodução da força de trabalho, é o meio determinante de aumentar o
tempo de trabalho produtor de mais valor. Quando ocorre a generalização da
mais valia relativa na produção social são gerados mais valores de uso por unidade de tempo e assim “o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de uma dada mercadoria é reduzido”, o que modifica a “magnitude do valor
de cada mercadoria individual” (POSTONE, 2003, p. 216). Mas, o tempo de trabalho continua o mesmo, apenas cabendo a cada unidade de tempo uma quantidade maior de mercadorias. Para Postone, o efeito rotina ocorre porque a cada
novo nível de produtividade socialmente estabelecido observamos um retorno
do valor ao seu ponto de partida, ou seja, há uma tendência à homogeneização
3. Paulo Netto (2007) caracteriza a vida cotidiana no capitalismo como “eterno retorno, uma
plena tautologia” (CARVALHO & NETTO, 2007, p. 88).
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quando um novo patamar de produtividade é atingido já que os capitalistas que
primeiro alcançam o novo nível de produtividade tem seus ganhos aumentados
no curto prazo e os demais precisam se adequar a esse novo padrão se quiserem
se manter no mercado. Por isso, Postone afirma que há um movimento à frente
no tempo na base da produtividade capitalista, pois “cada nível de produtividade,
uma vez convertido em socialmente geral, não somente re-determina a hora de
trabalho social como [...] é re-determinado por essa hora como o ‘nível básico’
da produtividade” (POSTONE, 2003, p. 289). Braga e Contesini (2009, p. 17)
afirmam que esse “movimento à frente no tempo [...] exprime a interação entre
as dimensões do trabalho na mercadoria e a produtividade, ou melhor, entre a
medida do valor e o valor de uso”.
Postone caracteriza o efeito rotina como uma objetivação social “que necessita [portanto] da ação humana para existir” embora seja “independente da
vontade dos homens” (BRAGA & CONTESINI, 2009, p. 17), o que significa que
apesar de se sustentar no movimento do eixo temporal abstrato, ele só pode, de
fato, ocorrer a partir das mudanças efetivas da produtividade do trabalho, ou
seja, no espaço. Por isso, no entender de Postone, as modificações qualitativas
no tempo não podem ser expressas no tempo abstrato, pois este tempo é quantitativo, vazio, sem qualquer manifestação qualitativa. A categoria tempo histórico,
desenvolvida por Postone, é a expressão do movimento do tempo através da
transformação qualitativa permanente do trabalho, da produção, da vida social.
O tempo histórico corresponde ao acúmulo de riqueza material, expresso tanto
na produção presente (que envolve o trabalho passado) quanto (crescentemente)
no nível de conhecimento científico e técnico do processo produtivo.
Na compreensão de Postone, “a crescente desproporção entre a força produtiva do trabalho e o valor por ela criado [...] só pode ser apreendida quando se
distingue o tempo histórico – que revela as alterações da riqueza material pelo
efeito da elevação da produtividade – do tempo abstrato – determinante do valor” (POSTONE, 2003, p. 293). Como vimos anteriormente, o trabalho imediato
tende a perder a “função de motor do processo produtivo e a dar lugar ao trabalho concentrado (acumulação de conhecimento e experiências da humanidade)”
(BRAGA & CONTESINI, 2009, p. 19). Mas esse deslocamento não se completa
automática e espontaneamente, pois “o tempo histórico não suprime o tempo
abstrato, uma vez que é a expressão das modificações na produtividade engendradas pela lógica do valor” (POSTONE, 2003, p. 295). Na realidade, portanto, o
“tempo histórico afirma o tempo abstrato enquanto medida da riqueza, embora
contenha a possibilidade da superação da sociedade organizada em torno do
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tempo abstrato por uma sociedade estruturada com base no tempo histórico”
(POSTONE, 2003, p. 295). Assim, a interação entre tempo histórico e tempo abstrato não pressupõe a superação do segundo pelo primeiro, mas afirma o tempo
abstrato e, no limite, o valor como modo de estruturação social. Por isso, “ao
mesmo tempo em que o desenvolvimento da produtividade eleva a quantidade
de valores de uso também re-determina o tempo de trabalho social – o tempo
abstrato – e, por conseguinte, naturaliza a forma de trabalho no capitalismo”
(BRAGA & CONTESINI, 2009, P. 19, grifos nossos). Braga e Contesini sustentam
que, desse modo, o valor é reafirmado “como conector social que emerge para
os sujeitos como algo natural” (BRAGA & CONTESINI, 2009, p. 19). Ou, nas
palavras de Postone (2003, p. 299):
Cada novo nível de produtividade é estruturalmente transformado na assunção concreta da hora de trabalho social, permanecendo a quantidade de valor produzida por unidade de tempo constante. Neste sentido, o movimento
do tempo é continuamente transformado em tempo presente. Na análise de
Marx, a estrutura básica das formas sociais capitalistas é tal que a acumulação
de tempo histórico não debilita [...] a necessidade representada pelo valor, isto
é, a necessidade do presente. Desta forma a necessidade presente não é “automaticamente” negada senão paradoxalmente reforçada, é lançada adiante
no tempo como presente perpétuo, como uma aparente necessidade eterna.
É, em síntese, naturalizada.
Braga e Contesini mostram que Postone, na passagem acima, “deixa claro
como a realidade capitalista se constituiu em dois momentos muito diferentes.
Por um lado, uma constante transformação da vida social em todas as suas múltiplas facetas; por outro, a reafirmação do valor como uma inalterável condição
da vida social” (BRAGA & CONTESINI, 2009, p. 20). A realidade só pode ser
adequadamente compreendida na apreensão simultânea dessas duas dimensões,
o que, segundo Postone, dificilmente ocorre, pois, apesar de as estruturas sociais
mudarem em uma velocidade vertiginosa, esta mudança conserva estruturas
fundamentais da sociabilidade capitalista que aparecem como formas naturais
do ser e da vida sociais. Com efeito, as posições em relação às transformações
do capitalismo frequentemente se apresentam em dois vieses: um puramente
otimista, que destaca as maravilhas da sociedade do consumo e da livre iniciativa a cada nova perspectiva que se abre na vida social – e muitas se abrem de
fato – e outro negativista, que só vê a estagnação do capitalismo por baixo de
seu aparente dinamismo. Mas, será que se pode afirmar que toda a base geradora
da dinâmica social está submetida da mesma forma à lei do valor ou que ela
é só conservadora? Postone afirma que a dificuldade em se apreender a dupla
dimensão do tempo no capitalismo tem como possível resultado que “as possi-
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bilidades de um futuro qualitativamente diferente na sociedade moderna podem
ser veladas” (POSTONE, 2003, p.301). Isso não significa que as mudanças no
capitalismo sejam só aparentes, mas que elas não se apresentam imediatamente
em sua potência transformadora. Para Postone (2003, p. 300):
[...] esses dois momentos – a progressiva transformação do mundo e a
reconstituição da estrutura valor-determinado – são mutuamente condicionados e intrinsecamente relacionados: ambos se enraízam nas relações
sociais alienadas constitutivas do capitalismo e juntos eles definem essa
sociedade.
E ambos são reais, fazem parte do mesmo processo contraditório de afirmação do mundo humano na forma capitalista de produção, na qual, de acordo
com o autor, há uma “interação alienada entre passado e presente” (POSTONE,
2003, p. 301), já que a própria atividade só se realiza de forma exterior aos
indivíduos que a executam. Deste modo, o trabalho passado é tão exterior e
indiferente em relação ao produtor quanto o trabalho presente. Para Postone,
aliás, a “alienação é o processo de objetivação do trabalho abstrato” (POSTONE,
2003, p. 162). Na forma produtiva atual, “a necessidade do trabalho humano direto se perpetua [...] independente do nível de desenvolvimento tecnológico e da
acumulação material de riqueza” (POSTONE, 2003, p. 302), o que, como Marx
mostra na passagem reproduzida a seguir, naturaliza a condição do indivíduo
como trabalhador:
O tempo de trabalho como medida da riqueza põe a própria riqueza como
riqueza fundada sobre pobreza e o tempo disponível como tempo existente apenas na e por meio da oposição ao tempo de trabalho excedente, ou
significa pôr todo o tempo do individuo como tempo de trabalho, e daí a
degradação do individuo a mero trabalhador, sua subsunção ao trabalho.
Por isso a maquinaria mais desenvolvida força o trabalhador a trabalhar agora
mais tempo que o fazia o selvagem ou que ele próprio com as ferramentas mais
simples e rudimentares. (MARX, 2011, p. 591 – grifos do autor).
Neste pequeno trecho, a interpretação de Postone encontra apoio em mais
de um aspecto. Não só em relação ao tempo de trabalho, como visto acima, mas
também quanto à superação da condição de trabalhador como dimensão central
da análise de Marx. Na citação dos Grundrisse, Marx considera claramente uma
degradação transformar todo o tempo de um indivíduo em tempo de trabalho,
o que, na lógica da produção do valor e mais valor, continua a ocorrer com o
aperfeiçoamento da maquinaria.
Em Salário, preço e lucro (1980) encontra-se uma afirmação similar. Diz Marx:
Nas tentativas de reduzir a jornada de trabalho [...] e de contrabalançar o
trabalho excessivo por meio de um aumento de salário [...] os operários
não fazem mais que cumprir um dever para com eles mesmos e a sua raça.
Limitam-se a refrear as usurpações tirânicas do capital. O tempo é o cam-
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po do desenvolvimento humano. O homem que não dispõe de nenhum
tempo livre, cuja vida, afora as interrupções puramente físicas do sono,
das refeições, etc., está toda ela absorvida pelo seu trabalho para o capitalista, é menos que uma besta de carga (MARX & ENGELS, 1980, p. 371).
É nessa condição de “menos que uma besta de carga” que a massa de
trabalhadores continua a acordar todos os dias na mesma hora para desenvolver
um trabalho com vistas à valorização do capital. As consequências do redimensionamento constante do tempo de trabalho, em função do aumento da produtividade, podem ser facilmente observadas no cotidiano das grandes cidades:
transito intenso, stress, todos com pressa sempre. E isso ocorre com todos os
vendedores de força de trabalho e não somente aqueles envolvidos diretamente
em atividades produtivas. Tanto as atividades vinculadas à circulação de mercadorias (transporte e comércio, principalmente) quanto os serviços se estruturam
na mesma lógica de compra e venda de força de trabalho. Os comerciários ou
prestadores de serviços, mesmo não produzindo mais-valor, participam do valor
produzido socialmente e inserem-se no mercado em um ritmo temporal similar
ao dos trabalhadores produtivos.
Mas, esse movimento amplia também o trabalho humano e o mercado
mundial e, portanto, se é no espaço urbano que a aceleração do ritmo de vida,
em resposta às necessidades de valorização do capital, é mais evidente, é nele
também que a diversidade das possibilidades de individuação se apresenta com
maior intensidade. É neste aparente paradoxo que os indivíduos que vivem nas
cidades se movimentam todos os dias.
Por isso é importante considerar que mesmo sob as circunstâncias do
trabalho alienado, há uma crescente socialização do trabalho que coloca a atividade social como mais decisiva em relação às atividades individuais, visto ser
pela articulação do trabalho social e historicamente desenvolvido que os homens
reproduzem sua existência. Se, na época de Marx, ele mencionou que a “natureza não constrói máquinas nem locomotivas, ferrovias, telégrafo elétrico, teares
mecânicos etc.” (MARX, 1985a – II, p. 115), hoje nós podemos acrescentar que
ela também não cria computadores, aviões, alimentos transgênicos, tratamento
de doenças com células-tronco e mais uma infinidade de novos produtos sociais
resultado da ação conjunta dos homens na história que são, assim como aqueles
mencionados por Marx,
[...] produtos da indústria humana, materiais naturais transformados em
órgãos da vontade humana sobre a natureza ou para realizar-se nela. São
órgãos do cérebro humano criados pelas mãos do homem, a potência objetivada do saber. O desenvolvimento do capital fixo indica até que ponto
o saber social geral, o conhecimento se converteu em força produtiva di-
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reta e, portanto, até que ponto as condições do processo social de vida se
encontram submetidas ao controle do intelecto geral e transformadas com
relação a ele. Até que ponto as forças produtivas sociais são produzidas
não só sob a forma do saber senão como órgãos diretos da práxis social,
do processo real da vida (MARX, 2011, 589).
Esse desenvolvimento, por outro lado, não transforma por si só as relações de produção. O avanço da cooperação sob o capitalismo ocorre, como
vimos, perpetuando o tempo de trabalho como medida, o que significa objetivamente que mesmo com o desenvolvimento das forças produtivas o trabalhador continua sendo remunerado pelo seu desempenho individual. O capitalista,
assim, não paga pelo poder combinado do trabalho que, por isso, aparece como
poder do próprio capital. No entender de Postone, a alienação aparece aqui em
mais um aspecto4: aquele em relação à “dimensão social do trabalho concreto
como atividade produtiva” (POSTONE, 2003, p. 328).
No tom otimista, típico dos Grundrisse, Marx, mesmo reconhecendo o caráter alienado do trabalho no capitalismo, indica as perspectivas para além dele.
O autor se expressa a respeito das possibilidades abertas pela combinação social
do trabalho da maneira que se segue:
O mais-trabalho da massa deixará de ser condição para o desenvolvimento
da riqueza geral, o mesmo que a ausência de trabalho dos poucos deixará
de ser condição para o desenvolvimento das potencias gerais da cabeça do
homem. Com isso cairá por terra a produção baseada no valor de troca e o
processo direto da produção material se despojará de sua forma e de suas
contradições miseráveis. A redução do tempo de trabalho necessário, que
já não beneficiará o mais trabalho, permitirá o livre desenvolvimento da
individualidade. Os ócios e os meios postos ao alcance de todos farão que
a redução do mínimo de trabalho social necessário favoreça ao desenvolvimento artístico, científico, etc. de cada qual. O capital é a contradição posta
em movimento: tende a reduzir ao mínimo o tempo de trabalho, ao mesmo
tempo em que faz dele a fonte única e a medida da riqueza [...]. De um lado,
o capital põe em marcha todas as forças da ciência e da natureza, estimula
a cooperação e o intercâmbio social para fazer a criação da riqueza (relativamente) independente do tempo de trabalho; mas, de outro lado, trata de
medir em tempo de trabalho as imensas forças sociais criadas, condenando-as com isso a manterem-se dentro dos limites necessários para manter
como valor o valor já criado. As forças produtivas e as relações sociais – dois
aspectos distintos do desenvolvimento do indivíduo social – não são nem
significam para o capital outra coisa senão simples meios para que possa
manter-se sobre seu estreito fundamento (MARX, 2011, 588).
Nada disso, porém, elimina a perspectiva apontada por Marx, segundo
a qual:
A economia do tempo de trabalho é igual ao aumento do tempo livre, ou
seja, tempo para o pleno desenvolvimento do individuo, e que, por sua vez,
4. Três aspectos, portanto, já foram considerados por Postone (2003): a alienação em relação à
qualidade específica do trabalho (1), em relação ao tempo de trabalho (2) e à sua dimensão social (3).
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repercute como maior força produtiva sobre a produtividade do trabalho. Do
ponto de vista do processo imediato de produção, se o pode considerar como
produção de capital fixo; este capital fixo é o próprio homem [em inglês no
original: being man himself] [...] O tempo livre – que é, por sua vez, ócio e
tempo para atividades superiores – transformará, naturalmente, a seu possuidor em um sujeito distinto e, assim, como sujeito novo entrará no processo
imediato de produção. No que se refere ao homem em formação, cujo cérebro
é receptáculo dos conhecimentos socialmente acumulados, é exercício, ciência experimental objetivamente criadora e realizadora. E, para um e outro, é
ao mesmo tempo esforço por quanto que o trabalho exige, como na agricultura, a manipulação ativa e o livre movimento. (MARX, 2011, p. 593-4).
Livre movimento que nem sempre ocorre na objetivação do trabalho abstrato, a qual “[...] se manifesta de fato como um processo de alienação [Entäusserung5] ou, do ponto de vista do capital, como um processo de apropriação do
trabalho estranho – esta inversão e esta confusão são reais, e não puramente
imaginárias, como se só existissem na cabeça dos trabalhadores e capitalistas”
(MARX, 1985a – II, p. 234-5 – perto da 705). Logo, elas operam na vida cotidiana e abrem a perspectiva de sua superação, uma vez que
[...] ao abolir-se o caráter imediato do trabalho vivo como puramente individual ou como algo externamente geral, ao postular-se a atividade dos
indivíduos como uma atividade diretamente geral ou social, os momentos
objetivos da produção se despojam de sua forma de estranhamento (Entfremdung); se postulam, assim, como propriedade, como o corpo social
orgânico em que os indivíduos se reproduzem como tais indivíduos, mas
enquanto indivíduos sociais. Mas é preciso que as condições para isso na
reprodução de sua vida, em seu processo de vida produtiva, se postulem
primeiramente por meio do próprio processo econômico histórico; tanto
as condições objetivas como as subjetivas, que não são senão duas formas
distintas das mesmas condições (MARX, 1985a – II, p. 235).
As condições objetivas e subjetivas têm se realizado historicamente sob a
forma antagônica do mais-trabalho, que é complementado, por outro lado, pelo
“puro ócio de uma parte da sociedade” (MARX, 1985, p. 273), como afirma Marx
no terceiro livro de O capital. É neste momento também que ele destaca o que
chamou de aspecto civilizador do capital, conforme se lê no trecho abaixo:
Um dos aspectos civilizadores do capital é que ele extrai esse mais-trabalho de uma maneira e sob tais condições que são mais vantajosas para o
desenvolvimento das forças produtivas, das relações sociais e para a criação dos elementos para uma nova formação mais elevada do que sob as
formas anteriores da escravidão, da servidão etc. Por um lado, leva assim
a um nível em que desaparece a coerção e a monopolização do desenvolvimento social (inclusive de suas vantagens materiais e intelectuais) por
meio de uma parte da sociedade à custa da outra; por outro lado, produz
os meios materiais e o germe para relações que, numa forma mais elevada
da sociedade, permitem unir esse mais-trabalho a uma limitação maior
do tempo em geral dedicado ao trabalho material (MARX, 1985, p. 273).
5. Cf MARX, 1974, p. 716.
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Produz, portanto, os pressupostos para que a necessidade de tempo possa
aparecer como prioritária, porque
[...] A riqueza real da sociedade e a possibilidade de constante expansão
de seu processo de produção não depende [...] da duração do mais-trabalho, mas de sua produtividade e das condições mais ou menos ricas
de produção em que ela transcorre. O reino da liberdade só começa,
de fato, onde cessa o trabalho determinado pelas necessidades e pela
adequação a finalidades externas; portanto pela própria natureza da
questão, isso transcende a esfera da produção material propriamente
dita. Assim como o selvagem tem de lutar com a natureza para satisfazer
suas necessidades, para manter e reproduzir sua vida, assim também o
civilizado tem de fazê-lo e tem de fazê-lo em todas as formas de sociedade
e sob todos os modos de produção possíveis. Com seu desenvolvimento,
amplia-se esse reino da necessidade natural, pois se ampliam as necessidades; mas, ao mesmo tempo, ampliam-se as forças produtivas que as
satisfazem. Nesse terreno, a liberdade só pode consistir em que o homem
social, os produtores associados, regulem racionalmente esse seu metabolismo com a natureza, trazendo-o para seu controle comunitário, em
vez de serem dominados por ele como se fora por uma força cega; que o
façam com o mínimo emprego de forças e sob as condições mais dignas e
adequadas à sua natureza humana. Mas este sempre continua a ser um
reino da necessidade. Além dele é que começa o desenvolvimento das
forças produtivas, considerado como um fim em si mesmo, o verdadeiro reino da liberdade, mas que só pode florescer sobre aquele reino
da necessidade como sua base. A redução da jornada de trabalho é a
condição fundamental. (MARX, 1985, p. 273, grifo nosso).
Só se transcende a esfera da produção material propriamente dita quando
essa produção chega a tal nível de desenvolvimento que a reprodução física dos
indivíduos não se apresenta como um problema para a humanidade. Isso significa que os homens podem se dedicar a outros objetivos não restritos à reprodução
material (e não que todos os indivíduos vivam igualmente voltados para essa
reprodução, como ocorreu no chamado socialismo real) em uma sociedade que
não se organiza em torno dela (como no capitalismo).
A história já tem mostrado, como previu Marx e reforçou Lukács, que, no
processo de desenvolvimento das forças produtivas, há uma crescente integração dos grupos humanos que tende a aproximar interesses e questionamentos
dos indivíduos de todo o planeta. Sobre a universalização dos indivíduos no contato social, mesmo na forma exterior típica da sociedade burguesa, Marx afirma
nestes enormes parênteses no início dos Grundrisse:
(Tem-se dito e pode afirmar-se que o belo e o grande deste sistema reside
precisamente no saber e querer dos indivíduos independentes e se baseia precisamente em sua recíproca independência e indiferença, na conexão entre si
que ele pressupõe, no metabolismo material e espiritual. E não há dúvida de
que esta concatenação objetiva (sachlich) deve preferir-se à falta de concatenação ou a uma concatenação puramente local baseada nos vínculos naturais
de sangue e nas relações de domínio e servidão. Assim como não há dúvida
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de que os indivíduos não podem dominar suas próprias relações sociais antes de havê-las criado. Mas é absurdo conceber estes nexos objetivos como
puramente emanados da natureza, inseparáveis da própria natureza da
individualidade e imanentes a estas em contraste com o saber e a vontade
reflexivos. Estes nexos são o produto dos indivíduos, um produto histórico.
Correspondem a uma determinada fase do desenvolvimento individual. A
heterogeneidade e a dependência destes nexos que se alçam frente aos indivíduos demonstram que eles se encontram ainda em processo de criar as
condições de sua vida social em vez de haver começado a partir delas. É a
concatenação natural dos indivíduos nas relações de produção ilimitadas e
determinadas. Os indivíduos universalmente desenvolvidos, cujas relações
sociais, como suas próprias relações comuns, se encontram também submetidas ao seu próprio controle comum, não são um produto da natureza, senão
da história. O grau e a universalidade do desenvolvimento das faculdades
tornam possíveis semelhante individualidade, mas pressupõem precisamente
uma produção baseada no valor de troca. Este modo de produção cria, pela
primeira vez, ao mesmo tempo que o estranhamento [Entfremdug] geral do
indivíduo frente a si mesmo e aos outros, a universalidade e a totalidade de
suas relações e faculdades. Em fases anteriores do desenvolvimento, o indivíduo particular aparece mais pleno precisamente porque não teve desdobrado
ainda a plenitude de suas relações sociais para postulá-las frente a ele enquanto potências e relações sociais autônomas. Tão ridículo é sentir nostalgia
desta plenitude primitiva como crer que há que deter-se nesse vazio total. A
concepção burguesa não se elevou nunca acima da oposição a esta concepção
romântica, razão pela qual esta a acompanhará até seu final feliz) (MARX,
2011, p. 110, grifo nosso).
Kostas Papaioannou (2001, p. 58) seleciona parte do trecho acima e designa-o Necessidade da alienação identificando possivelmente a interdependência
indiferente da reciprocidade alienada, a concatenação coisificada e o estranhamento do indivíduo, frente a si mesmo e aos outros, como elementos que justificam
o título escolhido. Certeiramente, ele deixa de fora o trecho por nós grifado que
pontua como o saber e a vontade reflexivos possibilitam ao homem construir um
mundo fora de si à sua imagem e semelhança e, assim, criar suas próprias condições de vida. Para isso, precisa construir as bases de sua existência dia após
dia, geração após geração. E efetivamente o faz, mesmo que, muitas vezes, sob
condições desfavoráveis ao desenvolvimento da maioria dos indivíduos. Ainda
assim, afirma Chasin (2009):
O homem e o seu mundo são produções de seu gênero – a interatividade
universal e mutante dos indivíduos em processualidade infinita, que tem
por protoforma o trabalho, a atividade especificamente humana, porque
consciente e voltada a um fim. Único ser que trabalha, através da sucessão
e multiplicidade de seus fins básicos e imediatos, constitui igualmente a
si mesmo, não importa quão radicalmente contraditória e, de fato, cruel,
perversa e mutiladora seja a maior parte dessa trajetória sem fim. A prática
é, pois, a prática mesmo da fabricação do homem, sem prévia ideação ou
télos último, mas pelo curso do “rico carecimento humano”, aquele pelo
qual a própria efetivação do homem [aparece] “como necessidade interior,
como falta” (CHASIN, 2009, p. 92-3, grifo do autor).
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Trata-se, em síntese, de repensar a organização social sob nova perspectiva, em uma direção que já estava presente nos escritos de Marx, mas agora se
torna impossível não identificá-la cotidianamente na vida social. Na realidade
atual, porém, os próprios elementos reconhecidos por Marx são distintos, pois:
[...] a revolução social do homem que produz com máquinas a vapor é distinta da revolução do homem que produz por meio de artefatos elétricos.
A revolução social da humanidade que tem por instrumentos a eletrônica
e a biotecnologia implica elevação e complexidades, antes de tudo espirituais, da individualidade humana revolucionária nunca dantes cogitadas,
nem muito menos exigidas. Todo pensamento revolucionário até aqui foi
matrizado pelos estágios primários do desenvolvimento da capacitação
humana de efetivação material e de realização de si mesmo, enquanto tais
são a lógica do passado, que não mais leva à inteligibilidade do presente e
nem muito menos ao horizonte possível do futuro (CHASIN, 2001, p. 73).
O que significa buscar referências para o futuro sem conexão com os
esquemas do passado (tanto na compreensão quanto nas propostas de mudança). Mesmo o homem cercado de velhos problemas, a construção de si mesmo
envolve a sua inteira interpenetração com todo o conjunto social, pois os “[...]
processos de individuação [são] reconhecidos na qualidade de sínteses máximas
de todas as ordens de determinação” e por isso “se impõem como tema e esfera
privilegiados na percepção e delineamento das perspectivas de futuro. Isso implica a análise exaustiva da relação fundante e matrizadora entre formas de sociabilidade e individuação, e só por esta via podem ser concretamente examinados”. (CHASIN, 2001, p. 55). Tal exame, por sua vez, não pode ser bem sucedido
sem o abandono de velhos recortes que sustentam a compreensão do indivíduo
em conexão com o todo social a partir de análises que consideram as efetivas
mudanças na vida material/espiritual como restritas ao aparente. Conhecer os
indivíduos, com seus velhos e novos problemas, significa considerá-los na contraditória interseção entre riqueza e pobreza que socialmente constitui a vida humana. E desse modo, a perspectiva de transformação social pode ser recuperada
a partir da elucidação “do processo formativo da individualidade, de modo que
a história real e ideal ou concreta e reflexiva da formação do humano constitui
a base – para o entendimento e a escolha teleológica possível – do tracejamento
que divisa e projeta o passo para além dos limites das mazelas atuais” (CHASIN,
2001, p. 55). Tal entendimento ainda pode se beneficiar das perspectivas apontadas por Marx na formulação da teoria do valor, pois para o autor quanto mais
se desenvolve a contradição entre tempo disponível e tempo excedente,
tanto mais se evidencia que o crescimento das forças produtivas não pode
ser confinada à apropriação do trabalho excedente alheio, mas que a própria massa de trabalhadores tem de se apropriar do seu trabalho exceden-
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te. Tendo-o feito – e com isso ‘o tempo disponível’ deixa de ter uma existência contraditória – então, por um lado, o tempo de trabalho necessário terá
sua medida nas necessidades do indivíduo social, por outro, o desenvolvimento da força produtiva social crescerá com tanta rapidez que, embora
a produção seja agora calculada com base na riqueza de todos, cresce o
tempo disponível de todos. Pois a verdadeira riqueza é a força produtiva
desenvolvida de todos os indivíduos. Nesse caso, o tempo de trabalho não
é mais de forma alguma a medida da riqueza, mas o tempo disponível.
(MARX, 2011, p. 591)
Uma mudança como a prevista na citação representa a transformação das
grandes cidades em espaços de desenvolvimento dos indivíduos e da ação combinada de suas atividades e não de valorização do capital, que tem sido o centro
de organização da vida urbana. Mas, independente das possibilidades de futuro
apontadas por Marx, vista por muitos, como utópicas, não é possível simplesmente desprezar as suas previsões sobre a capacidade da forma produtiva capitalista
produzir crises e contradições inerentes à sua própria lógica de desenvolvimento.
Por tudo isso, a teoria do valor ao contrário de ser negada ou inadequada
para caracterizar o capitalismo nos dias atuais, nos ajuda a entender o que nos
mantêm na repetitiva e enfadonha rotina cotidiana, ao mesmo tempo em que a
vida social se torna cada vez mais dinâmica e diversificada. Superar a forma social torna-se, assim, superar a fragmentação histórica, a ela inerente, de alocação
de tempo entre tempo de trabalho e tempo livre, algo além de romper as relações
de propriedade ou de mercado.
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Instituto de
Ciências Sociais
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SOCIALIDADES: CONFLITO E COOPERAÇÃO
ENTRE OS JOVENS MEMROS DA TORCIDA
ORGANIZADA GALOUCURA
Flavia Cristina Soares
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INTRODUÇÃO
Muitos campeonatos de futebol são realizados nas mais diversas regiões
do Brasil e da América do Sul anualmente. O Campeonato Brasileiro e a Copa
do Brasil são os mais almejados pelos clubes de futebol, uma vez que conquistar
o título é símbolo de status e prestígio, tanto para o clube, quanto para os jogadores, e acima de tudo para os torcedores. Além disso, a conquista de tais campeonatos possibilita inserir o clube na Copa Libertadores da América – um dos
campeonatos mais almejados por aqueles que possuem afinidade com o futebol.
Para tanto, existem poucos estudos que investigam o início da formação
de torcidas no Brasil e o processo de surgimento das torcidas organizadas, bem
como, as relações estabelecidas entre os membros e os seus rivais, ou seja, as
cooperações e os conflitos.
Entre as décadas de 1900 à 1920, os torcedores já acompanhavam os
clubes, mas com algumas distinções que observamos em relação aos dias atuais.
Neste período, o termo torcedor não fazia parte da Língua Brasileira, mas eram
conhecidos como sportsman (MELO, 2012), uma palavra que demonstrava a participação do público nas arquibancadas dos mais diversos esportes disputados
no Brasil. Com o processo de urbanização e a melhoria do transporte público,
principalmente, na cidade do Rio de Janeiro, a maioria dos torcedores que compunham as arquibancadas era composto por mulheres, uma vez que os “chefes
de família” eram sócios dos clubes a qual pertenciam e possuíam o direito de
serem acompanhados por suas esposas e por duas filhas solteiras. Victor de Andrade Melo (2012, p. 50) expressa que “tratava-se sim de conquista de espaço
pelas mulheres, mas também de uma liberdade controlada e concedida”, pois
ainda se encontravam submetidas aos cuidados do marido.
Infelizmente, o comportamento das mulheres nas arquibancadas foi se
tornando um problema durante o campeonato Sul-Americano, em 1919, uma
vez que elas não pagavam os ingressos e os clubes necessitavam de recursos para
o financiamento dos custos administrativos. Com a popularização do futebol,
os clubes passaram a vender ingressos – a preços populares – com a finalidade
de financiar as agremiações esportivas. Mesmo que os estádios fossem divididos
em cadeiras numeradas, geralmente, ocupadas pela “elite” das classes, as arquibancadas e as gerais ocupadas pela classe média e baixa, respectivamente, a
grande maioria do público começou a ser frequentado por homens. As distintas
camadas frequentavam os estádios com as suas diferenças sociais, econômicas e
culturais. A população brasileira passou a frequentar os espetáculos futebolísti-
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cos, aos finais de semana, como forma de lazer e diversão. Os estudos escassos
em relação ao tema apontam para a presença de homens e mulheres nos campos
de futebol - contorcendo os corpos, gesticulando as mãos com sinais e gritando
palavras ofensivas aos juízes, jogadores e torcedores rivais. Porém, essas características foram modificando com o tempo. Segundo João Malaia:
[...] Nossa hipótese é a de que um dos costumes mais habituais nos estádios no início do século XX foi abolido para o Sul-Americano. Os sócios
efetivos que comprassem seus ingressos não poderiam levar mais as filhas
solteiras e a esposa ao jogo sem que as mesmas pagassem para entrar. Tal
expediente visava uma maior obtenção de renda pois, até então, o sócio
podia levar até três pessoas consigo sem pagar [...] (MALAIA, 2012, p. 69).
Este é um breve histórico da formação dos torcedores no futebol brasileiro. A partir da década de 1950, a constituição das torcidas organizadas passou
a se expandir em várias capitais do Brasil, primordialmente, no Rio de Janeiro
e São Paulo. Além das competições entre os times de futebol, o jornal esportivo
da época, criou o duelo de torcidas com o propósito de premiar a torcida mais
animada, iniciando o processo de competição entre as organizadas. Àquelas que
possuíam o maior número de papéis picados, fogos de artifícios, bandeiras, faixas, cânticos, coreografias e os mais diversos materiais que pudessem embelezar
as arquibancadas recebiam o título de melhor torcida, obtendo status, prestígio e
o reconhecimento perante às demais torcidas.
[...] Afora esse caso, em que a disputa pelo poder de mando se tornou mais
visível entre dois personagens, todas as demais cizânias tinham um elevado tom retórico, que a pouco e pouco foram sendo lidas como a dramatização de um ‘conflito de gerações’, ocorrida tanto na sociedade quanto nas
arquibancadas. Na ‘microfísica do poder’ torcedor, os estádios eram igualmente campos de conflitos, arenas de disputas por espaço, representação
e modos de dominação. Era de poder, em última instância, que se tratava
[...] (BUARQUE DE HOLANDA, 2012, p. 109)
Em 1984, a Torcida Organizada Galoucura – TOG – surge com o intuito de
apoiar o Clube Atlético Mineiro. No entanto, todo esse contexto da competição entre
as torcidas já se encontrava instituído na relação estabelecida entre as organizadas.
A Galoucura passou a ser mais uma torcida que começou a participar dessa “trama”,
culminando em conflitos, rivalidades e hostilidades entre membros de grupos rivais. Alguns autores pesquisam a violência entre as torcidas organizadas (PIMENTA,
2000; MURAD, 2007). Porém, este trabalho pretende demonstrar uma outra peculiaridade: a relação dos membros da Galoucura com os simbolismos e os rituais. Não
é importante descrever o histórico de rivalidades e violência entre os torcedores, mas,
principalmente, a honra e a defesa dos símbolos e os rituais assimilados do catolicismo para o interior do próprio grupo e suas respectivas distinções: as penitências
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e os momentos de comunhão. Além disso, os objetos sagrados como, por exemplo,
as camisetas da Galoucura, as bandeiras e os bandeirões, assim como, as divindades, ultimamente representado pelo “Santo Victor”1. Também, os estádios, as sedes2
e as subsedes3 da Galoucura se tornaram espaços urbanos sagrados pelos jovens.
As estratégias realizadas nas reuniões para defenderem os “patrimônios” (bandeiras,
bandeirões, camisetas e outros materiais) e adquirirem os objetos sagrados da torcida
rival como os “troféus”, símbolo de poder e superioridade do grupo em relação aos
rivais serão descritos e analisados no presente artigo.
A pesquisa etnográfica - vivenciando o cotidiano do grupo - a realização
de entrevistas em profundidade, bem como, a análise de vídeos e fotografias foram os principais procedimentos metodológicos adotado para a realização dessa
investigação. Assim, o objetivo principal dessa pesquisa consiste em descrever as
relações estabelecidas entre os membros pertencentes à Galoucura com os seus
simbolismos e rituais.
FIGURAS 1 – A primeira e a segunda foto, ilustram a conquista de camisetas e bandeiras da
Máfia Azul pelos membros da Galoucura Noroeste (GNO). A terceira e a quarta foto, constatamse frases de poder, reconhecimento e superioridade dos integrantes em relação aos rivais.
FONTE: Foto cedida por um membro da torcida.
1. “Santo Victor” é uma expressão utilizada pelos torcedores do Clube Atlético Mineiro para se
referir aos pênaltis defendidos pelo goleiro nos jogos decisivos da Copa Libertadores da América.
2. Sede da Torcida Organizada Galoucura é o local onde se concentra atividades administrativas,
reuniões, treinos de artes marciais e salas de musculação.
3. A TOG possui nove subsedes espalhadas pelas periferias das nove regionais da cidade de Belo
Horizonte: Barreiro, Centro-sul, Leste, Nordeste, Noroeste, Norte, Oeste, Pampulha e Venda Nova.
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Além da fabricação de bandeiras nos dias que antecedem os “clássicos” e
os ensaios da bateria da Galoucura aos sábados, outras atividades são realizadas
pela diretoria do grupo para motivar a presença do maior número de torcedores
na sede: o campeonato de truco. Enquanto alguns tocam, outros cantam e dançam, bem como frequentam o bar localizado próximo à sede, outras pessoas se
dispõem a jogar cartas para se divertirem. Os jogadores devem se inscrever com
antecedência com o propósito de obterem informações sobre os regulamentos
do campeonato. Os prêmios concebidos aos vencedores são camisetas, bonés ou
moletons com as marcas da Galoucura.
Concomitante a todas essas atividades de lazer e diversão, os integrantes
da Galoucura Noroeste (GNO) se reúnem com o intuito de decidir as estratégias
de comportamento dos membros para o próximo jogo do Clube Atlético Mineiro. Na sala de musculação da sede, em torno de quarenta integrantes do sexo
masculino, tanto adolescentes quanto jovens, se encontram com o propósito de
incentivar uns aos outros a obterem disposição às lutas corporais. O líder determina regras de conduta como não “surfar” nos ônibus, não fazer uso de drogas,
entorpecentes e não furtar dentro e aos arredores do estádio. Um membro da
Galoucura Noroeste ressalta:
[...] Os componentes não podem desrespeitar a frente da torcida, tem toda
uma regra, por exemplo, caravana, eles têm que saber respeitar, não pode
usar drogas dentro da torcida, entendeu? Dentro da sede, dentro de ônibus, é difícil de evitar, mas dentro desses locais, eles não podem usar, entendeu? Eles têm que tá sempre... tem que obedecer a linha da torcida [...].
[...] Quando os componentes acabam cometendo algum ato que não procede
com a torcida, ele, geralmente, é chamado a atenção pela primeira vez, se não
tiver resultado, ele sai no ‘corredor’, isso é meio para ele poder, ele ver que torcida não é brincadeira, entendeu? Porque é o seguinte: se ele passa no ‘corredor’, depois ele não aprendeu, ele é expulso da torcida, ele não ‘cola’ mais [...].
Assim, as regras de conduta são repassadas aos membros, uma vez que
os policiais podem apreendê-los por qualquer comportamento considerado pelos
representantes do Estado como “desordeiros” e prejudicar a torcida organizada.
A partir da Lei 12.299 /10 – Estatuto do Torcedor – que “dispõe sobre medidas
de prevenção e repressão aos fenômenos de violência por ocasião de competições
esportivas; altera a Lei nº 10.671, de 15 de maio de 2003; e dá outras providências”, os líderes passaram a estabelecer normas de conduta para que os membros
da Galoucura Noroeste não promovam “desordens”; pratiquem ou incitem a violência. Para isso, é necessário que os líderes cobrem uma atitude de responsabilidade dos iniciantes, uma vez que qualquer comportamento negativo pode
prejudicar a torcida. Por exemplo, os membros da Galoucura podem ser proibi-
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dos de levar qualquer simbolismo para dentro do estádio como as camisetas, as
bandeiras, os bandeirões ou a bateria no período máximo de até 720 (setecentos
e vinte dias); os torcedores identificados por tais atos poderão ficar durante um
período sem frequentar aos estádios de futebol.
O controle social que deveria ser realizado pelo Estado passa a ser feito
pelos integrantes do grupo. Àqueles que não obedecerem às regras estipuladas
pelo líder passam pelo “corredor da morte”. O “corredor” é um lugar localizado
em presídios que abrigam condenados para a morte e espera uma execução.
Porém, os jovens adaptaram essa expressão para punir os integrantes através da
violência, ou seja, eles formam duas fileiras e o jovem que causou “desordens”
nos dias de “clássicos” devem ser punidos através de agressões. Mesmo com a
humilhação provocada pelo próprio grupo, este membro agradece aos parceiros
pela possibilidade de se tornar homem, no sentido viril. Por mais que a mídia
estampa matérias de jornais ou revistas expressando a violência entre as torcidas organizadas e no interior delas é necessário problematizar o conceito de
violência na relação estabelecida entre os integrantes que compõem a Galoucura
Noroeste, uma vez que pode ser considerada, inclusive, como “positiva”, pois
estabelecem as mais diversas formas de socialidades com os demais jovens. Um
membro ressalta que “[...] era tanta ‘porrada’, mas tanta ‘porrada’ que no final a
gente ficava amigo de tanto bater uns nos outros”. De forma alguma, a violência
deve ser incentivada, mas este fenômeno deve ser relativizado e repensado pela
sociedade, inclusive, como uma cultura periférica em que os jovens se relacionam dessa maneira, pois em momento algum eles demonstram constrangimentos por passar pelo “corredor da morte”, mesmo porque eles têm liberdade para
se retirarem do grupo quando acharem conveniente. Abaixo, há um trecho de
uma reportagem publicada no “O Tempo” - jornal diário de Minas Gerais – citando o Estatuto do Torcedor:
“Quatro torcedores atleticanos, incluindo um menor de 17 anos, foram
detidos na tarde deste sábado (16) por incitar a violência e infringir o
Estatuto do Torcedor, na porta do Estádio Independência, durante o clássico entre Atlético e Cruzeiro. Segundo a Polícia Militar (PM), todos os
torcedores são integrantes da Galoucura e estavam reunidos na rua Pitangui, na entrada do portão 3 do estádio, cantando músicas com temáticas
relacionadas a brigas, violência e até estupro, na presença de mais de dez
mil pessoas (...)”.4
Os líderes são legitimados pelos integrantes e, por isso, eles têm o poder
para punir eventuais transgressões. Os membros conferem a legitimidade aos “ca4. http://www.otempo.com.br/cidades/membros-da-galoucura-s%C3%A3o-detidos-por-incitara-viol%C3%AAncia-1.790044
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beças” do grupo, pois reconhecem como autoridades legítimas, ou seja, respeitam
as pessoas investidas nessa posição de dominação. Os agradecimentos dos jovens
pelas punições dizem respeito ao reconhecimento das regras, pois sabem que as
violou, respeitando a posição que o líder ocupa. Eles destacam que essa violência
seria uma forma de torná-los mais fortes para encarar os problemas da vida.
Além disso, o uso de drogas ou entorpecentes afetam o Sistema Nervoso
o que pode acarretar na falta de atenção do membro para se proteger de possíveis ameaças externas. A proibição do uso de drogas e entorpecentes se refere
a impossibilidade do jovem estar em boas condições para lutar contra os rivais.
Nos dias de “clássicos”, o perigo se torna ainda mais evidente, uma vez que ambas as torcidas estão circulando pela metrópole. A regra estabelecida entre os
integrantes da Galoucura Noroeste diante dos encontros marcados nos espaços
da cidade denominado por eles de “pista” está relacionada com a integridade dos
jovens, ou seja, as lutas corporais só podem ser realizadas enquanto os torcedores podem se defender. Caso algum deles se entregue, ou seja, não consiga estar
com o corpo erguido para a luta, ele é respeitado. No entanto, são nesses espaços
da cidade, invisíveis aos olhos do Estado que os membros se confrontam para
adquirir “troféus” ou até mesmo para impor a sua masculinidade. Assim, às vésperas dos “clássicos”, os membros da Galoucura se divertem através dos ensaios
da bateria, encontro com os amigos e campeonatos de truco. Através dos líderes,
a Galoucura Noroeste como a “linha de frente” da torcida define estratégias de
comportamento, assim como, pune alguns jovens que não respeitam as regras
determinadas por eles. Segundo o relato de um líder:
“O líder é responsável pela região, que ele tá sempre... ele que passa toda
a caminhada feita pela sede, pela matriz, passa, passa, união entre os integrantes, é, resolve problemas compra os ingressos, material da região, é
a ‘linha de frente’ da torcida mesmo, sabe? Tudo que tem pra região é os
líderes que tem que fazer, promove ação social, é, festas, caravanas”.
FIGURA 2 – Foto demonstrando a fachada da sede da Torcida Organizada Galoucura.
FONTE: Créditos da autora.
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COOPERAÇÕES
A construção da sede da Galoucura e das subsedes são espaços urbanos
demarcados pelos jovens para estabelecer fronteiras identitárias. As subsedes
são pontos de encontro dos jovens, principalmente, os moradores de periferia
para conversarem sobre a torcida e o futebol. Enquanto a sede possui uma boa
estrutura com salas de reuniões, salas de musculação, salas de treinamento de
Jiu-jitsu, lojas que vendem produtos da Galoucura e uma ampla área utilizada
para fazer churrascos e festas, as subsedes não possuem qualquer estrutura. Os
espaços são demarcados pelos jovens, como, por exemplo a quadra de futebol localizada na regional noroeste, um espaço da “quebrada” apropriado pelos jovens.
José Guilherme Magnani (1992) caracteriza os espaços apropriados pela
juventude de “pedaço”. Este termo, inclusive, é utilizado pelos membros ao se
referir ao local onde moram, como, por exemplo, “[...] lá no meu pedaço a Galoucura se organiza diferente”. Segundo o autor, estes jovens estão situados em uma
particular rede de relações caracterizadas por códigos que ordenam, separam e
classificam quem pertence ou não àquele “pedaço”. Os integrantes da Galoucura
Noroeste se reconhecem, pois portam símbolos, compartilham valores e modos
de vida semelhantes estabelecendo o vínculo identitário dos jovens em relação ao
território que habita, levando este estilo para os mais diversos locais da cidade.
Diante dessas considerações, descreveremos o modo pelo qual os jovens
pertencentes à Galoucura Noroeste se apropriam dos espaços urbanos e circulam
pela cidade estabelecendo uma rede peculiar de relações e os identificando e
distinguindo dos demais grupos.
Às sete horas da manhã no dia do “clássico”, os jovens da Galoucura e
moradores da Regional Noroeste se encontram em um local denominado por eles
de “subsede GNO” - um ponto de encontro da Galoucura Noroeste. Este local foi
estrategicamente apropriado, uma vez que eles residem próximos e se encontram
para circularem juntos pela cidade e se protegerem das ameaças externas. Logo,
utilizam do transporte público para chegarem até a sede. Dentro do ônibus, os
jovens cantam as músicas da Galoucura, muitas vezes, adaptadas de alguma
situação específica. Como é o caso da letra de música ilustrada na figura 3. A
palavra “alemão” se refere ao inimigo; o Serrano e Ivaí são dois bairros da capital
mineira; a Copa Itatiaia é um campeonato anual, realizado pela Rádio Itatiaia,
em Minas Gerais; Maria faz referência ao time rival; BR é uma rodovia; Abílio
Machado é uma das principais vias da Regional Noroeste; Raposa é o mascote
da Máfia Azul e, urso, o mascote da Torcida Pavilhão Independente (PVI) que
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representa o Cruzeiro Esporte Clube, mas é rival tanto da Galoucura quanto da
Máfia Azul. Logo após a letra da música, há alguns relatos dos jovens pertencentes à Galoucura Noroeste.
FIGURA 3 – Letra da música criada pelos membros da Galoucura Noroeste relatando
algumas situações em que se encontraram com os inimigos.
FONTE: Foto cedida por um membro da GNO.
[...] A do nono comando aí é o que aconteceu foi ensaio da bateria da Galoucura no Carnaval, aí eles foram e deram... o pessoal do nono pegou dois
meninos da Galoucura lá na estação do Minas Shopping, aí nós foi e colou
lá, a Galoucura Noroeste foi lá, nós foi e quebrou os cara lá dentro da “quebrada” deles. Nós tava de nove caras da Galoucura Noroeste e quebrou uns
30 cara lá na “quebrada” deles, nós entramos dentro da favela e quebramos
os cara dentro da favela [...].
[...] O da BR, o que aconteceu? Era jogo Cruzeiro e San Lorenzo, semifinal
da Libertadores. Aí a Máfia Azul tava indo pro jogo, aí nós fomo e paramos
o ônibus deles, aí nós colocou eles pra correr na BR, nós quebramo eles na
BR e colocou eles pra correr [...]
[...] Na Abílio Machado aí foi o seguinte: era “clássico” Atlético e Cruzeiro,
jogo de uma torcida só, era só torcida do cruzeiro no Independência, aí
eles tava reunido numa praça da Abílio Machado que fica em frente ao
Batalhão de Polícia, aí nós fomos e chegou lá com umas quinze cabeça lá,
quebramos os cara e roubamos os ingressos deles, e eles não entrou pro
jogo não, pois nós roubamos os ingresso deles tudo. Roubou acerca de uns
50 a 60 ingresso [...].
[...] Já bati em raposa, já bati na máfia azul. Já bati no urso, o urso é o mascote do TPI – pavilhão, entendeu? [...]
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Além do espaço apropriado pelos jovens na Regional Noroeste denominado por eles de subsede e o percurso realizado dessa região até à sede através
de ônibus, pode-se avistar diversas pixações5 nos suportes urbanos que são reconhecidas pelos pares. Na figura abaixo, leia-se: GNO, área de risco, os pit bull
estão sem coleira! e, ao lado direito o nome dos jovens que realizaram essa marca
pelas ruas de Belo Horizonte.
FIGURA 4 – Foto demonstrando a pixação da Galoucura Noroeste (GNO) na parte acima.
Abaixo, a frase escrita “os pitbull estão sem coleira” no trajeto da subsede até a sede.
FONTE: Foto cedida por um membro da torcida.
Ao chegar à sede, os Policiais Militares se encontram posicionados para
proteger os jovens que estão no local, uma vez que este espaço pode ser alvo dos
rivais em busca de torcedores, aquisição de camisetas, bandeiras ou bandeirões
da Galoucura – os “patrimônios”, símbolos dos “troféus”. Então, nos dias de “clássicos”, os PM’s fazem segurança no local com o propósito de evitar qualquer tipo
de confronto entre as torcidas rivais.
Enquanto os membros da Galoucura vão se aglomerando dentro e aos
arredores da sede, as ruas próximas se transformam em uma grande festa com
diversas bandeiras espalhadas pelas mãos dos integrantes. Para balançar as
bandeiras, é preciso que o jovem tenha um porte físico adequado, pois o material é pesado. Além disso, os integrantes festejam a possível vitória com cervejas e cachaças, jovens pulam e cantam músicas remetendo que a torcida
rival é “Maria” ou “frouxos”, uma forma de expressar que eles não possuem
disposição para combater. Este é o ambiente de um dia de “clássico”, permanecendo durante horas. Por volta das 14 horas, os membros se juntam e fazem
um cortejo até o estádio.
5. A pixação escrita com “x” foi um termo descrito por Alexandre Barbosa Pereira em sua
dissertação de mestrado intitulada “De rolê pela cidade: os pixadores em São Paulo” (2005) para
diferenciar a pixação advinda de uma cultura de rua em relação às pichações políticas escritas
com “ch” quem seriam frases de contexto político.
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No trajeto até a Arena Independência, a emoção toma conta do corpo.
Por quilômetros, eles percorrem juntos com camisetas brancas estampando o
símbolo da Galoucura chamado de “Pulgão”. À frente desse agrupamento de jovens, observam-se Policiais Militares. Logo, um automóvel responsável por levar as bandeiras e os instrumentos da bateria se localiza atrás destes policiais,
pois é a única forma de proteger os símbolos. Se não houver qualquer proteção
policial, os dias de “clássicos” podem se transformar em verdadeiras batalhas.
Uma das bandeiras fica hasteada com a finalidade de demonstrar que a Galoucura está se aproximando do local sagrado, ou seja, o estádio. Esse trajeto da
sede até a Arena da Independência se assemelha às procissões realizadas pelas
Igrejas Católicas.
DISTINÇÕES
Com apenas atleticanos no Estádio do Independência, aos poucos, cada
torcedor vai se apropriando de um determinado lugar de acordo com o seu pertencimento às torcidas ou como sócio torcedor6. Por exemplo, a Galoucura se localiza atrás do gol. Todos são torcedores do mesmo clube de futebol, mas há hostilidade entre esses grupos. O sócio torcedor se refere aos torcedores organizados
como “marginais”. Em contrapartida, eles relatam que os demais torcedores são
“burgueses”. A distinção econômica, social e cultural na metrópole está implícita
nas relações entre os demais torcedores da capital mineira dentro dos estádios,
fato que não se pode igualar as torcidas como uma unidade. As relações sociais
são pautadas pelas animosidades dentro da Arena Independência.
No que diz respeito à Galoucura, as distinções podem ser verificadas
através das vestimentas e dos comportamentos dos jovens pertencentes às subsedes. Ao invés da camiseta padrão do Clube Atlético Mineiro (preta e branca),
os torcedores organizados vestem uma camisa fabricada apenas para os jovens
pertencentes à Galoucura. Por detrás da camisa, verifica-se o mascote e, logo, a
escrita de qual regional o jovem reside, distinguindo cada subgrupo. Assim, os
jovens pertencentes a mesma regional se localiza lado a lado nas arquibancadas, justamente, para demonstrar companheirismo, amizade e, principalmente,
a proteção que necessitam caso sejam provocados por qualquer outro membro.
Durante os jogos, os torcedores da Galoucura possuem diversas bandeiras
espalhadas pela arquibancada. Além disso, a bateria da Galoucura entusiasma os
torcedores a serem “mais um no campo” cantando as músicas elaboradas por eles
6. O sócio torcedor do Clube Atlético Mineiro é denominado de “Galo na veia”.
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através de gestos e coreografias, motivando os jogadores a alcançar com sucesso
a vitória tão almejada nas partidas de futebol.
FIGURA 5 – À esquerda, a camisa referente à Torcida Organizada Galoucura,
especificamente, a Galoucura Noroeste (GNO). À direita, a camisa dos torcedores do Clube
Atlético Mineiro.
FONTE – Primeira ilustração: Foto cedida por um membro da torcida. Segunda ilustração:
futfanatics.com.br
Além das bandeiras, existe mais um simbolismo que representa a grandiosidade e a força de uma torcida organizada: os bandeirões. Na Figura 6, observa-se o bandeirão recobrindo toda a torcida Galoucura. Os próprios torcedores não visualizam o espetáculo da sua torcida, pois o que interessa é impactar
o externo. Para àqueles que participam desse espetáculo não há como descrever
a sensação de pertencer a uma torcida organizada, uma vez que desperta sentimentos experenciados no corpo através das paixões e das emoções.
FIGURA 6 – Foto mostrando o “bandeirão” da Galoucura recobrindo os torcedores na
arquibancada.
Fonte: Foto cedida por um membro da torcida.
Além dos simbolismos, dos espaços urbanos apropriados pelos jovens das
torcidas organizadas, do processo de constituição de identidades e as mais diversas
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formas de estabelecer relações sociais dentro e fora do grupo, é preciso indagar sobre
o significado que as torcidas organizadas possuem para tantos membros. Em primeiro lugar, o jogo seria uma atividade realizada dentro de certos limites de tempo e espaço acompanhadas, primordialmente, por sentimentos de tensão e alegria distintos
da vida cotidiana. A beleza do futebol e o espetáculo da arquibancada como um dos
laços que unem o jogo à beleza com a estetização dos corpos e das formas de torcer
trazem à tona toda o sentimento dos torcedores. O futebol com todas essas peculiaridades das torcidas organizadas implica na eliminação da vida cotidiana proporcionando a sensação de liberdade através das formas de torcer (HUIZINGA, 1938).
Em segundo, a constituição do grupo para a defesa do bom nome da região
onde habitam, por isso, a disposição dos membros a lutarem fisicamente contra os
rivais. Como bem destaca Elias e Dunnig (1992, p. 372), “[...] o nivelamento por idade, a segregação dos sexos e a identificação territorial parecem ser os determinantes
cruciais da estrutura social interna”. Além disso, cabe destacar que torcer através dos
xingamentos e expressões corporais proporcionam elevados níveis de excitação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A charanga do Flamengo, fundada por Jaime de Carvalho, em 1942, foi o
primeiro movimento de formação das torcidas organizadas brasileiras com o objetivo de “carnavalizar” o futebol. A Torcida Uniformizada de São Paulo (TUSP)
foi a primeira torcida organizada de forma uniformizada e independente criada
no Brasil. A partir desses dois momentos históricos, várias outras torcidas brasileiras foram surgindo com o objetivo de apoiar o clube de futebol. Até o final da
década de 1950, a torcida era marcada pela “carnavalização”. Após esse período
e com a Ditadura Militar, a “carnavalização” passou a ser “militarizada” incorporando para dentro das torcidas organizadas o caráter ditatorial durante o período
da Ditadura Militar no Brasil (BUARQUE DE HOLANDA, 2012).
“Pari passu com o desenvolvimento de tais grupos, outro significado histórico seria atribuído às torcidas no intervalo que marcou o regime militar
no Brasil. Apenas com o encerramento da ditadura, no início dos anos
1980, este significado apareceria mais nítido nos relatos jornalísticos e nas
análises sociológicas. A incorporação de um ‘espírito de época’ apontaria
para uma transição do fenômeno das torcidas, cujo sentido ia da carnavalização à militarização” (BUARQUE DE HOLANDA, 2012, p. 115).
Por fim, as torcidas organizadas e suas respectivas alianças e rivalidades
nos remete a repensar sobre a complexificação do futebol como um fenômeno social, do qual é necessário realizar pesquisas para discutir sobre a violência entre os
integrantes de uma mesma torcida e com seus rivais. Com a Copa do Mundo, o Es-
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tado foi criando várias intervenções para evitar qualquer tipo de violência dentro e
aos arredores dos estádios com o intuito de “disciplinar os corpos”. O Estatuto do
Torcedor e a reforma dos estádios com as cadeiras numeradas é um exemplo dessa atuação. No entanto, os próprios jovens modificaram a dinâmica das relações
combinando por meio das redes sociais encontros invisíveis aos olhos dos Policiais
Militares. Se todo esse contexto está presente nas relações estabelecidas entre as
torcidas organizadas, principalmente, nos dias dos “clássicos” é preciso relativizar
o termo violência para tais grupos. Será que realmente eles consideram essa violência como negativa, assim como, a sociedade e a mídia? Qual é a importância
das torcidas organizadas para os jovens moradores das periferias excluídos geograficamente, socialmente, economicamente e culturalmente do contexto urbano?
As torcidas organizadas seria uma forma desses jovens circularem pela cidade? A
presença de torcedores dentro dos estádios não poderia diminuir a criminalidade
violenta que encontramos nas “quebradas” de Belo Horizonte? Estes são alguns
questionamentos para refletir sobre essa proposta de pesquisa.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BUARQUE DE HOLANDA, Bernardo Borges. A festa competitiva: formação e crise das torcidas organizadas
em 1950 e 1980. In: TOLEDO, L.H.; MALAIA, J.; BUARQUE DE HOLANDA, B.; ANDRADE DE MELO, V.
(orgs). A torcida braisleira. Rio de Janeiro: Sete Letras, 2010. p. 86-121.
ELIAS, Norbert; DUNNING, Eric. A Busca da excitação. Lisboa: Difel, 1992, 421p.
GRABIA, Gustavo. La Doce: a explosiva história da torcida organizada mais temida do mundo. São Paulo:
Panda Books, 2008, 208p.
HUIZINGA, Johan. Natureza e siginificado do jogo como fenômeno cultural. In: HUIZINGA, Johan. Homo
Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1938. p. 5-23.
Lei nº 10.671/03 e Lei nº 12.299/10, retiradas do site www.planalto.gov.br
MAGNANI, José Guilherme C. (1984), Festa no pedaço: cultura popular e lazer na cidade. São Paulo:
Editora Hucitec, 1984.
MALAIA, João M. C. Torcer, torcedores, torcedoras, torcida (bras.): 1910-1950. In: TOLEDO, L.H.; MALAIA, J.; BUARQUE DE HOLANDA, B.; ANDRADE DE MELO, V. (orgs). A torcida braisleira. Rio de Janeiro:
Sete Letras, 2010. p. 53-85.
MELO, Victor de Andrade. Sportsmen: os primeiros momentos da configuração de um público esportivo no
Brasil. In: TOLEDO, L.H.; MALAIA, J.; BUARQUE DE HOLANDA, B.; ANDRADE DE MELO, V. (orgs). A
torcida braisleira. Rio de Janeiro: Sete Letras, 2010. p. 21-52.
PEREIRA, Alexandre Barbosa. De rolê pela cidade: os pixadores em São Paulo. 2005. 126f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2005.
REFERÊNCIAS DA INTERNET
http://torcidagaloucuragt.blogspot.com.br/2011/01/camisa-galoucura-noroeste.html. Acesso em: 25/06/2014.
http://futfanatics.com.br. Acesso em: 25/06/2014
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Instituto de
Ciências Sociais
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Circuito Cultural Praça da Liberdade:
turismo e narrativas
Clarissa dos Santos Veloso1
Luciana Teixeira de Andrade2
1. Cientista social, mestranda do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC Minas.
2. Professora do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC Minas. Pesquisadora
da Fapemig, CNPq e Observatório das Metrópoles. Bolsista Capes Proc. n. 9452/13-3.
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Introdução
A Praça da Liberdade em Belo Horizonte é mais do que uma praça, é um
espaço público rodeado por um palácio e prédios governamentais. Esse importante espaço simbólico foi planejado para ser a sede do poder do estado de Minas
Gerais na nova capital mineira, construída entre os anos de 1894 e 1897. Inicialmente, o conjunto arquitetônico era composto pela Praça, pelos edifícios das Secretarias de Estado e pelo Palácio do Governo situado em uma de suas extremidades, todas as edificações influenciadas pelo estilo eclético. Ao longo do tempo
o conjunto recebeu construções de outros estilos, como edifícios modernos – o
da Biblioteca Pública Estadual Professor Luís de Bessa, o Edifício Niemeyer3 e o
edifício do Ipsemg4 – e uma construção pós-moderna, o prédio conhecido como
Rainha da Sucata5 (MARCOLINI et al., 2010). Além disso, a Praça sofreu alterações no seu projeto paisagístico, pois de início seguiu o estilo de jardim inglês e
após 1920, o estilo francês. O novo projeto paisagístico foi inspirado nos jardins
do Palácio de Versalhes e a Praça ganhou caminhos ortogonais e formas geométricas, além de fontes luminosas. Foi com esse paisagismo que foi lembrada por
Carlos Drummond de Andrade no poema Jardim da Praça da Liberdade, em seu
primeiro livro de poesias: “Jardim da Praça da Liberdade; Versailles entre bondes./ Na moldura das Secretarias compenetradas/ a graça inteligente da relva/
compõe o sonho dos verdes.” (ANDRADE, 1930, p. 20).
Em função de abrigar instituições públicas, e também por ser um lugar
de forte simbologia para a cidade, o conjunto da Praça da Liberdade foi preservado, diferentemente de outras edificações da época da construção da cidade,
que não existem mais. Por ter recebido, ao longo do tempo, novas edificações,
o conjunto é também representativo de diferentes momentos da história da arquitetura na cidade. O reconhecimento deste patrimônio ocorreu oficialmente
em dois momentos. Em junho de 1977 quando foi protegido pelo tombamento
como conjunto arquitetônico e paisagístico pelo Instituto Estadual do Patrimô3. A Biblioteca Pública Estadual Prof. Luís de Bessa e o Edifício Niemeyer, ambos projetados
pelo arquiteto Oscar Niemeyer, foram inaugurados, respectivamente, em 1955 e 1961.
4. O edifício do Ipsemg (Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais) foi
projetado pelo arquiteto Raphael Hardy Filho e inaugurado em 1965.
5. Construído no final da década de 1980 e projetado pelos arquitetos Éolo Maia e Sylvio de
Podestá, esta edificação destaca-se pelo seu caráter pós-moderno e pela utilização de diversos
tipos de materiais característicos de Minas Gerais na fachada e nas laterais da edificação. O uso
do ferro e de elementos decorativos foi o que o associou ao nome de uma novela da Rede Globo
de televisão, Rainha da Sucata. Sua personagem principal, uma mulher em processo de ascensão
econômica, era filha do dono de um ferro-velho.
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nio Histórico e Artístico (IEPHA) e em novembro de 1994, como parte central do
Conjunto Urbano Praça a Liberdade e Adjacências, pelo Conselho Deliberativo
do Patrimônio Cultural do Município de Belo Horizonte.
A importância do conjunto está ligada ao seu valor histórico-cultural bem
como ao fato de ser o centro de poder do Estado e, portanto, local de manifestações oficiais e civis. Isso sem esquecer o seu relevante uso como espaço de
sociabilidade, tendo em vista que é um local para encontros, atividades culturais
e de lazer e, mais recentemente, práticas esportivas. Entre as diferentes formas
de sociabilidades, destacam-se, na primeira metade do século passado, o footing,o
carnaval e outras atividades culturais e de lazer. No final dos anos 1960, começa a acontecer na Praça a Feira de Arte e Artesanato que ficou conhecida como
Feira Hippie. O crescimento dessa feira, que acabou se tornando uma referência
turística da cidade, levou a sua abertura às quintas-feiras à noite e também a uma
nova feira no sábado, de objetos antigos e de comidas típicas. Essa expansão,
aliada a uma falta de controle em relação aos produtos e número de expositores,
levou a um movimento, nos anos 1990, de retirada das feiras da Praça que, por
sua vez, enfrentou forte reação dos comerciantes. A justificativa estatal dessa
medida era que as feiras estragavam a Praça, davam-lhe um caráter comercial e
impediam outros usos daquele espaço público. A retirada se consumou em 1991
com a transferência das feiras para outros espaços da cidade. Com a Praça livre,
teve início a sua reforma. Começa aqui um processo de parcerias público-privada que será a marca do circuito cultural que discutiremos a seguir. A reforma
foi financiada em parte pelas Minerações Brasileiras Reunidas (MBR) e depois
passou a ser controlada pela empresa de mineração Vale, que desde o final da
reforma até os dias de hoje é responsável pela manutenção de seus jardins dentro
de um programa municipal chamado Adote o Verde. Fez parte dessa reforma
urbanística uma mudança nos usos, com a proibição de vendedores ambulantes
e um maior controle sobre os comportamentos na Praça. Catadores de materiais
recicláveis e vendedores ambulantes não são permitidos. Além disso, o policiamento constante não permite que as pessoas sentem na grama e nem que os
bancos sejam usados para deitar, além de outros comportamentos considerados
como indesejáveis6. Ou seja, a Praça se firma como um lugar de contemplação,
6. As entrevistas com os policiais com o intuito de compreender o processo de controle dos
comportamentos na Praça não foram bem sucedidas, uma vez que eles se mostraram muito contidos
e bem treinados para não dizer nada que contrariasse os direitos civis. No entanto, conversas
com pessoas responsáveis pela limpeza da Praça dão conta da expulsão de catadores de materiais
recicláveis. Também tivemos a oportunidade de observar de muito perto um acompanhamento pela
polícia de um grupo de jovens que durante uma manhã de sábado bebia, ria e falava animadamente.
Entre os expedientes estavam a passagem dos policiais mais de uma vez ao lado do grupo e a
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com seus jardins sempre muito bem cuidados e floridos, e com usos e comportamentos muito regulados.
Após a reforma e como expressão de uma cultura de cuidado com o corpo, a Praça passou a ser muito utilizada no início da manhã e no final da tarde
para caminhadas pelos moradores do entorno, um bairro de classe média alta.
Nos depoimentos colhidos durante as entrevistas os usuários explicam a sua
escolha da Praça por considerá-la um lugar seguro, bonito e bem frequentado.
Se os usuários das caminhadas durante a semana são predominantemente os moradores dos bairros vizinhos, nos finais de semana, os eventos culturais
atraem públicos de outros lugares da cidade e da região metropolitana, assim
como turistas.7 A tradição de uso da Praça para manifestações culturais, como
shows de música, apresentações teatrais entre outras, a maioria delas promovidas pelo estado, vem se mantendo ao longo dos anos. Em dezembro a Praça é
decorada com muitas luzes para o Natal, o que atrai ainda mais visitantes.
O conjunto arquitetônico da Praça e os seus distintos usos ao longo do
tempo mostram a importância continuada desse espaço, seja pela sua centralidade e monumentalidade, seja pelas diferentes atividades – oficiais ou não – que
ali têm lugar. Tudo isso contribui para a atração de moradores e de turistas. Em
termos de conjunto arquitetônico expressivo da cidade, a Praça, junto com a
Pampulha, são os espaços que mais atraem turistas. Com a vantagem, para a
Praça, da sua centralidade uma vez que está entre o centro tradicional e a região
da Savassi, esta uma nova centralidade surgida nas décadas de 1960 e 1970.
Em 2010 tem início uma mudança que irá alterar de forma mais radical
os usos e sentidos da Praça. Trata-se da inauguração do Circuito Cultural Praça
da Liberdade após a transferência das secretarias para o novo Centro Administrativo do Estado na região norte da cidade. Com essa mudança a Praça perde
o movimento dos funcionários públicos e de cidadãos que ali procuravam por
serviços e, com a inauguração do Circuito Cultural, intensifica-se a presença de
estudantes durante a semana, levados pelas escolas, e no final de semana, de
turistas e frequentadores locais das atividades dos espaços culturais.
O projeto Circuito Cultural da Praça da Liberdade, consiste primordialmente na alteração do modo de uso dos edifícios que integram o conjunto arquitetônico da Praça que passaram a abrigar museus e espaços culturais e outras
entrada na Praça do carro da polícia com a sirene ligada. O grupo não reagiu imediatamente, mas
logo em seguida se dispersou. Além de policiais militares e agentes da guarda civil, um carro da
polícia fica constantemente parado no interior da Praça e com as luzes acessas.
7. Os dados sobre a origem dos frequentadores da Praça foram coletados em pesquisa de campo
que utilizou, entre outros instrumentos, a realização de entrevistas.
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instituições governamentais de caráter cultural, situadas nas imediações. Estas
últimas, pré-existentes ao circuito, foram a ele incorporadas. Como se trata de
um projeto ainda em andamento, novos espaços ainda serão inaugurados. Ao
todo, doze estabelecimentos já estão em funcionamento.
O Circuito Cultural teve como objetivo criar um espaço de grande projeção, uma vez que o lugar é um dos mais importantes simbolicamente para a
cidade. Segundo as palavras de seus promotores, o governo estadual: “Impossível passear por Belo Horizonte e não conhecer o Circuito Cultural Praça da
Liberdade. Um belo local para aprender um pouco sobre a história da capital
de Minas” (MINAS GERAIS, s.d.). A concentração em um só espaço e a ideia de
circuito procuram dar densidade às atividades turísticas, assim como às narrativas presentes em cada um dos museus. Quanto ao público, busca-se atrair tanto
os locais como os turistas. Função esta, reforçada pela cidade ter sido escolhida
como uma das sedes da Copa do Mundo de 2014. Uma característica do projeto,
como já mencionado, é o uso das parcerias entre o governo estadual e a iniciativa
privada. Daí que os museus e centros culturais levem o nome das empresas que
participam dessa parceria, sendo, portanto, um meio de propagandeá-las além
de outros aspectos que serão discutidos adiante.
Este artigo toma como objeto de pesquisa três espaços do Circuito Cultural
abrigados em edifícios do conjunto arquitetônico da Praça da Liberdade: o Museu
das Minas e do Metal (MM Gerdau)8, o Memorial Minas Gerais Vale (Memorial
Vale) e o Centro Cultural Banco do Brasil de Belo Horizonte (CCBB BH). Essa
escolha teve como critérios a relevância que os dois primeiros espaços atribuem à
representação da identidade do estado de Minas Gerais nas suas exposições permanentes e o segundo é um contraponto, uma vez que vem de uma experiência
anterior fora do estado, ou seja, tem um caráter mais amplo, nacional e internacional, e cuja marca são as exposições temporárias. No MM Gerdau e no Memorial
Vale as exposições são voltadas para a apresentação do estado de Minas Gerais e,
de modo secundário, para abordagens sobre a cidade de Belo Horizonte. Já o CCBB
BH, promove atividades diversificadas nas áreas de artes plásticas, artes cênicas e
música e possui espaços para realização de eventos, espetáculos e exposições temporárias que, por vezes, trazem obras de artistas mineiros.
O objetivo deste artigo é analisar as diferentes narrativas, presentes no
MM Gerdau, no Memorial Vale e no CCBB, a partir da concepção geral do cir8. Até novembro de 2013, durante a parceria entre governo de Minas e EBX, o nome do Museu
era Museu das Minas e do Metal (MMM). Após a mudança de gestão, o Museu passou a se chamar
MM Gerdau – Museu das Minas e do Metal. A mudança de gestão do Museu será abordada
posteriormente nesse artigo.
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cuito de apresentar o estado de Minas Gerais enquanto um valor patrimonial e
museológico para consumo de locais e de turistas. Nos deteremos nos elementos
que compõem essas narrativas, nos processos seletivos utilizados e na influência
das empresas que suportam os museus na composição das narrativas. Enfim,
o artigo analisará os processos de construção das narrativas dos museus e seus
efeitos na atração de público local e de turistas. A hipótese principal é que ao
privilegiar um olhar voltado para o Estado, o Circuito reforça uma já consolidada
“tradição do estado”, ao mesmo tempo em que secundariza a cidade e o que há
de mais contemporâneo na vida urbana.
O Memorial Minas Gerais Vale
O Memorial Minas Gerais Vale, inaugurado em 2010, ocupa o prédio que
foi construído para ser sede da Secretaria do Estado da Fazenda de Minas Gerais
e como todos os outros prédios que abrigavam outras funções, este passou por
várias reformas.9 O projeto original da edificação é de autoria do arquiteto pernambucano José de Magalhães, e a decoração interna, de autoria do artista e pintor alemão, Frederico Antônio Steckel. (OLIVEIRA, Benedito, 2010). O Memorial
é resultado de uma parceria entre o governo de Minas e a mineradora Vale10 e
dedica-se à apresentação do patrimônio histórico e cultural mineiro através da
exposição de manifestações contemporâneas, populares e folclóricas que remetem à história e às características de Minas Gerais (MINAS GERAIS, s.d.). O projeto de intervenção é de autoria dos arquitetos Humberto Hermeto, Carlos Maia,
Débora Mendes, Eduardo França e Igor Macedo11. A curadoria e museografia do
9. Houve à época intenso debate e reações contrárias ao Circuito, que mobilizaram vários
profissionais e parcela da população preocupados com a memória e com o patrimônio da cidade,
em geral motivados pela natureza das intervenções e a forma pouco aberta e pouco participativa
como o Circuito foi pensado e implementado pelo governo do estado. Apesar da importância desse
debate, ele foge aos objetivos desse artigo, mas importa sim, registrar, que a proposta do Circuito
foi objeto de crítica já no seu início, ainda que mais concentrada nesse momento nas intervenções
no patrimônio e na ideia de centralizar a cultura em um espaço já rico em atividades culturais. Esta
última crítica, juntamente com o caráter não participativo do projeto levou-o a ser considerado,
nessas avaliações, como um projeto elitista. Ver: Oliveira, Benedito, 2010, e Marcolini, 2008.
10. A Companhia Vale é uma mineradora internacional com sede no Brasil e atuação em outros
15 países do mundo. A empresa foi criada pelo governo Vargas e privatizada em 1997 no governo
de Fernando Henrique Cardoso.
11. Os cinco profissionais são arquitetos formados pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Em 2005 fizeram uma parceria e venceram o concurso de projeto arquitetônico para a Sede
da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, que seria instalada na antiga Secretaria do Estado da
Fazenda. Contudo, após o abandono da proposta de adaptação da edificação para esses fins, os
arquitetos ficaram responsáveis pelo projeto do Memorial Minas Gerais Vale.
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Memorial Vale são assinadas por Gringo Cardia12, que teve a tarefa de conceber a
ocupação dos três pavimentos do edifício. Ele contou com o auxílio de uma equipe de historiadores da Universidade Federal de Minas Gerais, bem como com
a participação de diversos consultores e cenógrafos. Segundo Gringo Cardia, a
concepção dos espaços no Memorial Vale é multissensorial (visual, tátil e sonora)
e estruturada por três conceitos centrais: a história (Minas Imemorial), a cultura
(Minas Polifônica) e o modernismo (Minas Visionária), que estão presentes nos
três andares do edifício. Não há uma sequência determinada para percorrer as
31 salas das exposições do Memorial Vale e Gringo Cardia denomina-o como
“museu em legendas”, com temas condensados em exposições cenográficas e
multimídias (Apud, GRUNOW, s.d.). Para a direção do Memorial, o uso da tecnologia e da interatividade nas exposições é primordial para criação dos espaços:
“Caracterizado como MUSEU DE EXPERIÊNCIA, o Memorial Minas Gerais Vale
traz a alma e as tradições mineiras contadas de forma original e interativa. Cenários reais e virtuais se misturam para criar experiências e sensações que levam
os visitantes do século XVIII ao século XXI.” (MINAS GERAIS, s.d.)
O que se destaca na concepção do Memorial é, por um lado, o uso
da tecnologia, como forma de torná-lo mais atrativo e moderno, e por outro
lado, a representação da identidade mineira. Esta será mostrada pelas manifestações do patrimônio cultural e histórico, com destaque para o Ciclo do
Ouro e a arte barroca e, secundariamente, o modernismo, dois momentos
ricos da produção cultural do estado. Ganham destaque alguns artistas que
foram considerados artistas-símbolos da identidade mineira. Lugar de nascimento, alma mineira e emoção são os principais elementos utilizados na
constituição do que se chama, no Memorial, de identidade mineira. Todos
os textos que acompanham as exposições foram escritos por professores da
Universidade Federal de Minas Gerais.
No primeiro pavimento, as salas expositivas dedicam-se a mostrar a vida
e obra de grandes artistas mineiros. Além disso, estão localizados no primeiro
andar espaços de convivência e exposição: o Café Temático, que conta com mostra de cachaças, moda e fotografias, o Cyber Lounge, o Espaço Ler e Ver (Sala de
Leitura) e a Midiateca. Além dessas instalações, o primeiro pavimento conta com
um jardim de inverno.
12. Waldimir Cárdia Júnior, conhecido como Gringo Cardia, nasceu na cidade de Uruguaiana,
no Rio Grande do Sul, é artista e arquiteto formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Trabalha também com design, arte gráfica, direção de videoclipes e direção de arte. Já assinou
trabalhos com a Companhia de Dança Deborah Colker e com vários artistas brasileiros, tais como
Skank, Elza Soares, Chico Buarque e Rita Lee.
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No segundo andar estão exposições focadas em elementos da história e
da identidade mineiras, tais como: as vilas e arraiais mineiros nos séculos XVIII e
XIX; as fazendas mineiras, com destaque para o cinegrafista Humberto Mauro; a
Casa da Ópera de Ouro Preto e as artes cênicas em Minas durante o final do século XVIII; os caminhos dos bandeirantes na exploração do território, conciliados
com uma abordagem sobre turismo ecológico e de aventura em Minas; o barroco
mineiro; o povo mineiro, através de uma abordagem sobre a obra de Darcy Ribeiro e os povos indígenas, africanos e imigrantes em Minas; a arqueologia e a arte
rupestre em Minas; a inconfidência mineira e a tradição política do estado, com
ênfase em personagens históricos como Tiradentes, Joaquim Silvério dos Reis, Bárbara Heliodora, Tomás Antônio Gonzaga; a formação do povo mineiro; a família
mineira; e, por fim, a história de Belo Horizonte e lendas sobre a cidade. Como se
pode ver, o foco é o século XX e a capital merece apenas uma sala.
O terceiro pavimento se dedica à exposição de exemplares das cerâmicas
artesanais do Vale do Jequitinhonha, bem como à abordagem sobre o impacto
do modernismo no Brasil durante o século XX. Além disso, a exposição denominada Celebrações objetiva mostrar o artesanato, o bordado, a viola caipira, o
batuque dos tambores, os rituais sagrados, as festividades profanas e as danças
que constituem manifestações culturais típicas de Minas Gerais. A Sala Vale,
também localizada neste andar, é um espaço dedicado à empresa para exposição
de assuntos ligados à tecnologia, e atividades econômicas, entre outros temas
que envolvem a companhia Vale. O terceiro andar do Memorial Vale ainda conta
com uma sala de exposições temporárias, uma sala de vídeo, um auditório e o
Corredor das Artes, que consiste num espaço com registros de artistas mineiros
das artes plásticas e espaços culturais do estado.
O Museu das Minas e do Metal
O Museu das Minas e do Metal (MM Gerdau), inaugurado em 2010, ocupa
integralmente o edifício da antiga Secretaria de Estado da Educação, conhecido
como Prédio Rosa. O projeto do edifício é de autoria do arquiteto pernambucano
José de Magalhães e seguiu as tendências neoclássicas francesas da época de sua
construção. De início, a edificação foi projetada para sediar a Secretaria do Interior
e antes da inauguração recebeu as instalações da Repartição de Terras – órgão da
Secretaria da Agricultura – e o Tribunal da Relação. Já em 1930, passou a abrigar a
Secretaria de Educação e Saúde, mas em 1948 passou a sediar apenas a Secretaria
de Educação, desempenhando esta função por um período de tempo mais longo,
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até 1990. Durante os anos 90, com a transferência das atividades da Secretaria da
Educação para o bairro da Gameleira, foram instalados no prédio o Centro de Referência do Professor (CRP) e o Museu da Escola. A mudança mais recente no uso
do prédio refere-se ao funcionamento do local como sede do Museu. O projeto de
reforma foi realizado pelo arquiteto Paulo Mendes da Rocha13 e o projeto museográfico é do curador e designer Marcello Dantas14, criador da companhia Magnetoscópio – produtora de filmes e eventos culturais, especializada em convergências
artística de história e tecnologia. Assim como no Memorial Vale, a concepção e a
curadoria das exposições do Museu contaram com o trabalho de uma equipe de
pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais.
Do ano de sua inauguração até novembro de 2013, o grupo EBX15, em parceria com o governo de Minas, era responsável pela gestão e manutenção do museu. Após o fim do convênio com a EBX16, a gestão do museu ficou sob a responsabilidade da Gerdau através de um acordo entre a empresa e o governo de Minas17.
Os três pavimentos do edifício possuem ao todo 18 salas com 44 instalações sobre os temas mineração, minérios e metais. O terraço é reservado aos eventos especiais, realizados esporadicamente no local. No andar térreo, designado
pela instituição como Nível Liberdade, localiza-se a recepção, dois auditórios, uma
praça de conveniência com espaço para exposições temporárias e uma exposição
permanente sobre a Gerdau. Além disso, na entrada principal está instalada uma
13. O arquiteto Paulo Mendes da Rocha, nascido em Vitória (ES), é professor da Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da USP, foi o ganhador de prêmios como o Grande Prêmio Residência
da República na VI Bienal de São Paulo em 1961, o prêmio Mies Van der Rohe de Arquitetura,
em Barcelona no ano 2000 e o Pritzker Prize em 2006. Sua obra é conhecida nacional e
internacionalmente. (CICACCIO; KON, 2006)
14. Marcello Dantas nasceu no Rio de Janeiro em 1967 e seu currículo conta com projetos
renomados de curadoria, produção de documentários e exposições no Brasil e em outros países.
Ele estudou Direito em Brasília, História da Arte em Florença e graduou-se em Filme e Televisão
na Universidade de Nova Iorque.
15. O Grupo EBX, do empresário Eike Batista, é uma holding brasileira formada por seis
companhias que abrangem negócios nas áreas de petróleo, energia, logística, mineração, indústria
naval e mineração de carvão.
16. O convênio com o governo de Minas não foi renovado devido a uma crise econômica que
afetou o Grupo EBX. O instituto EBX, responsável pelas ações sociais e culturais no Grupo
EBX, ficou à frente do museu até o dia 30 de Novembro de 2013. A reportagem de Gustavo
Werneck no Jornal Estado de Minas reporta o fato, disponível no link: http://www.em.com.
br/app/noticia/gerais/2013/10/08/interna_gerais,457279/crise-no-grupo-de-eike-batista-afetamuseu-na-praca-da-liberdade.shtml.
17. A Imprensa Oficial do Governo do Estado de Minas Gerais publicou a assinatura do
convênio com a Gerdau em Novembro de 2013 e a empresa assumiu a manutenção do Museu a
partir de Dezembro de 2013. Disponível no link: http://www.iof.mg.gov.br/index.php?/acao-dogoverno/acao-do-governo-arquivo/Convenio-passa-a-Gerdau-a-gestao-do-Museu-das-Minas-edo-Metal.html.
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exposição que conta com uma tela para reprodução de vídeos sobre Belo Horizonte, a Praça da Liberdade e a edificação onde está localizado o museu.
O primeiro andar, denominado Museu das Minas, abriga exposições sobre a atividade mineradora, a história da mineração e do estado de Minas Gerais
e a relação entre o homem e o metal. O segundo andar, denominado Museu do
Metal, possui como tema principal os metais e as exposições abordam conteúdos
relativos à tabela periódica, à existência de substâncias minerais no corpo humano, ao uso de metais e sua evolução, aos processos de transporte do minério
após sua extração, entre outros.
No que se refere às exposições temporárias e eventos, o Museu possui
programação cultural que conta com as seguintes atividades regulares às quintas feiras ou aos domingos: Café com Poesia, Língua Afiada, Super Tela, Muito
MMMais, e Era uma vez no MMM.
O Centro Cultural do Banco do Brasil
O Centro Cultural do Banco do Brasil de Belo Horizonte, inaugurado em
Agosto de 2013, ocupa o prédio da antiga Secretaria do Estado de Segurança
Pública. O projeto do edifício de estilo eclético é do arquiteto Luiz Signorelli18.
Construído entre 1926 e 1930 pela empresa Carneiro Rezende, a edificação foi
projetada com o intuito de abrigar a Secretaria de Segurança e Assistência Pública. Pouco tempo depois da inauguração, durante a Revolução de 1930, o edifício
passou a abrigar o Comando Geral das Forças Revolucionárias. Antes da transferência da administração do Estado para a Cidade Administrativa, a edificação
abrigava a Secretaria da Defesa Social e a Procuradoria Geral do Estado. As obras
para adaptação e restauração do edifício para instalação do CCBB foram iniciadas em 2009. O projeto de restauração arquitetônica e artística foi assinado pelo
arquiteto Flávio Grillo19 e a arquiteta Eneida Silveira Bretas20 ficou responsável
18. O arquiteto Luiz Signorelli nasceu em Cristina, Minas Gerais, e formou-se em Arquitetura
pela Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro em 1925. Dentre os projetos de Luiz
Signorelli em Belo Horizonte destacam-se os prédios das antigas secretarias de Agricultura e de
Segurança Pública, o prédio sede do Automóvel Clube, a Casa da Família Falci, a casa paroquial
da Igreja da Boa Viagem e o prédio do atual Museu Mineiro.
19. Flávio Grillo é arquiteto pós-graduado em Restauração de Monumentos e Centros Históricos.
Participou do projeto de recuperação de três igrejas importantes em Ouro Preto e do projeto de
restauração da Praça da Estação de Belo Horizonte.
20. Eneida Silveira Bretãs possui graduação em arquitetura e urbanismo pela Universidade
Federal de Minas Gerais e pós-graduação (lato-sensu) em Gestão e Inovações Tecnológicas na
Construção, pela Universidade Federal de Lavras, em 2007.
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pela elaboração do projeto arquitetônico de adaptação do prédio para criação dos
espaços necessários para as atividades do centro cultural. Assim como os centros
culturais do Banco do Brasil localizados nas cidades do Rio de Janeiro, de São
Paulo e de Brasília, o CCBB de Belo Horizonte atua nas áreas culturais ligadas
às artes cênicas, ao cinema, às exposições de arte e à música. Além disso, são
promovidos programas educativos com temas diversos, ligados às exposições e
à história do edifício.
O CCBB BH dispõe de uma galeria com um total de 12 salas localizadas
no primeiro, segundo e terceiro pavimentos do prédio, sendo 2 salas de exposições permanentes e 10 salas para exposições temporárias. O centro cultural
ainda conta com um pátio interno de 330m2 que é utilizado para a realização de
exposições temporárias e eventos, uma sala multiuso para a realização de manifestações artísticas diversas um teatro com 264 lugares. Além disso, o centro
cultural possui uma sala para programas educativos, café e lanchonete.
A programação do CCBB Belo Horizonte é modificada de acordo as exposições temporárias, bem como conforme o calendário de apresentações de teatro,
cinema e música. O programa educativo também funciona com programação
variável e inclui visitas guiadas e realização de atividades relacionadas com a
programação que está em cartaz.
Representações da identidade mineira no MM
Gerdau e no Memorial Vale e a atuação do CCBB
Historicamente, os museus tiveram como função a representação de identidades culturais, seja a nível nacional, regional ou comunitário. No caso de
instituições designadas para a representação de identidade coletiva dos Estados
Nacionais, é possível encontrar em museus de arte, ciência ou história discursos
historicistas, científicos e universalizantes cujo objetivo é associar objetos a um
imaginário nacional reconhecido e compartilhado entre os membros da nação
(SANTOS, 2000). Nesta perspectiva são valorizadas e expostas as narrativas de
origem da nação, os exemplos de heróis nacionais, os símbolos de identificação
da nação, entre outros itens considerados como fundamentais para a construção
e reforço dos elos de solidariedade entre os indivíduos de uma mesma nação.
Na Europa, os museus criados para representar a identidade da nação se desenvolveram rapidamente durante o século XIX, devido ao intenso fervor patriótico
da época, enquanto no século XX o decréscimo deste sentimento significou uma
maior discrição dessas instituições. Já nos Estados Unidos, esse processo foi mais
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tardio, ocorrendo apenas a partir de meados do século XX (POULOT, 2013). No
Brasil, o primeiro museu criado com o intuito de representar a identidade nacional
foi o Museu Real, de 1818. Posteriormente, recebeu o nome de Museu Nacional e, assim como os museus europeus da época, se dedicava à constituição dos imaginários
nacionais e de início, foi considerado um museu de história natural, por expor o que
os europeus consideravam ser o legado do Brasil: sua natureza (SANTOS, 2000).21
A representação da identidade cultural nos museus torna-se assunto de
discussão na medida em que a noção de identidade passa a ser problematizada.
Segundo Meneses (1993), a eleição da identidade cultural era um dos objetivos
perseguidos pelos museus, mas em geral feita de forma acrítica, desconsiderando, na maioria das vezes, o caráter seletivo da identidade e a sua dimensão social:
“Daí, considerar-se a identidade como uma substância, quintessência de valores
e qualidades a priori positivas, imunes a qualquer crivo. E o museu como seu
santuário.” (MENESES, 1993, p. 208). Ao definir identidade, suas funções e desdobramentos – tal como a criação de um sentido de semelhança e a produção, em
consequência, da diferença – Meneses reforça o caráter diverso das identidades,
contrariamente à sua representação pelos museus, que dissipam as diversidades,
as contradições, os conflitos e as hierarquias, homogeneizando-as e reforçando
estruturas de dominação e hierarquização vigentes (MENESES, 1993).
Para efeitos de identificação dos museus que estão sendo analisados neste
texto vamos tratar conjuntamente e classificar o MM Gerdau e o Memorial da
Vale como museus regionais uma vez que ambos abrigam exposições permanentes que remetem ao estado de Minas Gerais e o CCBB como um museu nacional,
uma vez que a sua programação segue uma definição externa que está ligada
com todos os outros Centros Culturais do Banco do Brasil.
No caso dos dois museus regionais, eles padecem de um processo acrítico
de apresentação da identidade regional. O MM Gerdau em função de ter a sua
temática totalmente vinculada ao interesse das empresas que o suportam (mineradoras), constrói uma representação extremamente positiva e, portanto, unilateral, dos usos e efeitos da mineração. O Memorial também busca uma visão muito
positiva, acrítica e limitada da identidade mineira, seja pelo recorte temporal
extremamente limitado, seja pela seleção de temas e personagens. Esses limites
ficam evidentes na forma como os conteúdos são apresentados. Não são problematizados e nem buscam um diálogo efetivo e interpretativo com o seu público.
Ao contrário, buscam transmitir uma interpretação fechada e livre de conflitos.
21. Para uma abordagem sobre o Museu Nacional e a construção da identidade nacional, ver
Santos (2000).
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No caso do Memorial da Vale, vamos tomar como exemplos analíticos as
escolhas de personagens e temas. O primeiro comentário se refere aos artistas
e intelectuais homenageados: Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade,
Sebastião Salgado, Lígia Clark e Darcy Ribeiro. Todos tiveram suas vidas marcadas por uma experiência fora do estado, condição essa devido ao fato de Minas,
como outros estados da federação, ser, por muito tempo, mas também até os
dias de hoje, uma capital periférica em relação aos centros Rio de Janeiro e São
Paulo. Por essa razão o estado, durante muitos anos, exportou seus intelectuais.
Em geral eles passavam por Belo Horizonte, mas a nova capital não oferecia
ambiente intelectual e instituições, fossem elas estatais ou privadas, nas quais
eles pudessem desenvolver suas carreiras. Esse movimento diminuiu na medida
em que algumas instituições se firmaram no estado e, mais recentemente, em
função do desenvolvimento e democratização de vários meios de comunicação
que facilitam a produção cultural e intelectual à distância. Essa característica do
estado de Minas Gerais, partilhada também por outros estados da federação, é o
que explica a “diáspora” dos artistas e intelectuais mineiros.22 Entre os artistas e
intelectuais homenageados pelo Memorial é importante ter em conta que a maioria desenvolveu sua carreira longe do estado, algumas vezes em íntima conexão
com o estado, outras não.23 De toda forma, somaram às suas experiências locais,
outras novas, adquiridas em outros contextos em função desses deslocamentos.
Em vez de enfrentar essa dúbia condição o que se fez foi tentar fincar no estado
pessoas e obras. A não explicitação dessa tensão acabou por conferir ao local de
nascimento, no caso o estado de Minas Gerais, a fonte essencialista da identida22. O sentido de diáspora empregado aqui não se refere aos fenômenos de migração forçada
por alguma contingência política ou econômico-social, mas por uma necessidade, misturada
com opção e projeto de vida, marcada pela busca de uma carreira mais promissora nos centros
culturais e políticos do país. Desse movimento, o que interessa destacar aqui é a particular relação
desses intelectuais com a cidade natal ou a cidade da juventude, no caso Belo Horizonte, uma vez
que parte deles chega à capital vindo do interior do estado. Tal relação é marcada por distâncias e
proximidades com a capital e o estado e também por uma maior complexidade das identidades,
produzidas nessas condições (HALL, 2003).
23. Tendo feito carreira diplomática, Guimarães Rosa passou pelo menos 10 anos de sua vida
fora do país, entre Genebra, Bogotá e Paris. Carlos Drummond de Andrade mudou-se para o
Rio de Janeiro aos 32 anos e não retornou mais a Belo Horizonte. Lígia Clark nasceu em Belo
Horizonte e mudou-se para o Rio de Janeiro aos 27 anos. Viveu entre Rio de Janeiro e Paris.
Darcy Ribeiro nasceu em 1922 em Montes Claros foi para São Paulo estudar. Morou em Brasília,
onde ocupou cargos políticos, e no Rio de Janeiro. Esteve exilado no Chile com passagens por
vários outros países da América Latina. Morreu em Brasília. Humberto Mauro tem uma trajetória
distinta, pois apesar de sair do estado, retorna. Passou sua infância em Cataguases, foi para Belo
Horizonte estudar, mas abandonou o curso no primeiro ano, voltando para Cataguases. Em 1916
foi trabalhar no Rio de Janeiro, mas dois anos depois retornou para Cataguases onde morreu em
1983. Sebastião Salgado nasceu no interior de Minas em 1944 e mudou-se para Paris em 1969,
aos 25 anos, onde continua a viver.
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de. Mais rico e aberto seria problematizá-la, deixando ao visitante as margens de
interpretação de identidades que carregam em si, tensões, oposições, proximidades e distâncias.
Se as tecnologias pretendem ser mesmo interativas, a interação deveria se
dar nesse plano da abertura a novas interpretações, e não apenas colocando o
expectador (o termo é proposital) diante de uma interpretação que pretende conferir unicidade e coerência a uma experiência que é nitidamente problemática e
aberta a novas e distintas leituras.
As outras entradas para a apresentação da identidade mineira se apegam
a temas já consolidados e, como no exemplo acima, não foram questionados.
São eles: a religião (principalmente o catolicismo), a cultura rural ou da pequena
cidade, o tradicionalismo cultural, o barroco, os índios, a arte do Vale do Jequitinhonha e os escritores mineiros. A diversidade é evocada a partir da fala de
Guimarães Rosa: “Minas são várias” e o cosmopolitismo e o universalismo são
vistos como produtos desse olhar voltado para dentro do estado. O diálogo com
o outro, o diferente, seja na dimensão geográfica, seja nas ideias e nas experiências daqueles que atravessam as fronteiras, chegando ou saindo do estado, se
estabelecendo ou apenas transitando, os migrantes e viajantes, não é levada em
conta. É nessa experiência de afastar-se, mesmo que temporalmente, mesmo que
abstratamente, do lugar de nascimento, que se pode usufruir do cosmopolitismo.
Caso contrário, o que floresce é o localismo.
A identidade brasileira (e mineira) é abordada a partir da ideia da confluência de diferentes povos, ameríndios, europeus e africanos, para formar o
povo brasileiro e uma nação unificada, certa de sua identidade nacional, como
a teria concebido o antropólogo mineiro Darcy Ribeiro. Em Minas essa mistura
teria acontecido de forma ainda mais equilibrada, para “formar o jeito mineiro
de ser”. Essa história, narrada de forma escolar, destacando a contribuição desses
diferentes povos, é limpa de conflitos e de contradições. Supondo, portanto, um
espectador que deve receber um conjunto de informações fechado e com a aura
da narração da verdade histórica.
Seguindo uma narrativa histórica, o Memorial encerra sua narrativa com o
movimento modernista da primeira metade do século em Belo Horizonte, deixando de fora mais de um século de história, o que acabou por conferir um papel bastante reduzido à capital e às questões urbanas em geral. Belo Horizonte aparece em
vídeo, no final da exposição, cuja história é contada por meio de algumas lendas.
Ainda dentro do tema da interação e da possibilidade de múltiplas interpretações, Victoria Dickeson advoga que as instituições museológicas, suas ex-
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posições e conteúdos devem ser pautados democraticamente e de forma radical
(DICKESON, 2012). Para explicitar sua concepção de radicalidade ela se refere
ao Museu Canadense de Direitos Humanos como um exemplo de museu que se
aproxima dessa concepção de museu radicalmente democrático. Segundo Dickeson (2012), a configuração desse museu considera as opiniões e as experiências
de pessoas comuns, bem como de especialistas, para a composição do conteúdo
das exposições. Ainda segundo a autora, a instituição em questão encoraja e
possibilita uma atitude altamente participativa de seus visitantes, permitindo
múltiplas interpretações sobre o conteúdo exposto e transformando o museu em
local de debate acessível a todos.
No MM Gerdau, um dos módulos expositivos da Sala das Minas se dedica
à história da mineração na Mina de Morro Velho. O visitante entra numa estrutura de vidro que simula a descida de elevador pela mina e durante este trajeto
imaginário, a projeção do vídeo conta com o discurso e a imagem de D. Pedro
II e da Princesa Isabel, personagens históricos que contam parte da história da
mineração na Mina do Morro Velho no século XIX. O enfoque da exposição é
o período inicial das atividades da mina, ainda durante o Brasil colonial, e a
entrega da exploração às companhias inglesas, após a independência do Brasil24.
Entretanto, nada é dito sobre as condições de trabalho dos mineiros após a abolição da escravidão e, sobretudo, durante o século XX. Ou seja, os mineiros não
têm voz no Museu das Minas e do Metal. O argumento da falta de fontes não
se justifica. A pesquisadora Yonne Grossi (1981) em “Mina de Morro Velho: A
Extração do Homem”, mostra a visão dos trabalhadores da mina e a organização
dos mesmos para defesa de direitos trabalhistas no período de 1932 a 1964. A
autora, baseada em entrevistas e histórias orais, explicita as condições precárias
e hostis vividas por eles, que corriam riscos de vida, passavam cerca de 10 horas
por dia nas instalações da mina e eram obrigados a morar em habitações negociadas com a mineradora, que era proprietária das mesmas. Ela também aborda
a luta dos trabalhadores para a conquista de direitos trabalhistas ao longo dos
anos, ressaltando as conquistas obtidas durante o governo Vargas e no período
posterior, no qual a ação coletiva dos mineiros ganhou consistência e assumiu
ligação forte com o Partido Comunista Brasileiro, o que ocasionou criação de lideranças políticas na comunidade dos mineiros de Morro Velho (GROSSI, 1981).
24. O módulo expositivo também aborda tópicos e curiosidades sobre a escravidão e seu processo
de abolição, as características do período imperial de D. Pedro II, a profundidade da mina, as
riquezas que a exploração mineral do local gerou, entre outros. No vídeo disponível no seguinte
endereço é possível visualizar o simulador de elevador do módulo expositivo e ouvir o texto que
é narrado sobre a Mina de Morro Velho: <http://www.youtube.com/watch?v=RLwzj83CyqU>.
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A questão trabalhista na Mina de Morro Velho é uma das vertentes históricas relevantes da Mina que não foi abordada pela exposição. Retomando o
que foi colocado por Dickeson (2012) sobre museus radicalmente democráticos,
é possível apontar que no caso da história da Mina de Morro Velho apresentada
pelo Museu foi realizada a escolha de determinada parte da história e de pontos
de vista sobre a mesma. Não se trata de apresentar todo o conteúdo histórico
relativo a um determinado tema, pois esta seria uma tarefa impossível para a
estruturação de um módulo expositivo. O que está em questão é a possibilidade
de dar voz a outros personagens. Neste caso, não desconhecidos, porque objeto
de pesquisa anterior, mas ignorados.
O posicionamento das instituições museológicas frente aos temas polêmicos e contraditórios é outro ponto de debate e neste contexto Elizabeth Merritt
(2012) questiona como museus de arte e ciência – que lidam com públicos muito
diversificados no que se refere, por exemplo, às crenças religiosas – devem se
posicionar para propor conversas sobre os temas e, ao mesmo tempo, respeitar
opiniões e crenças. Ao discutir as abordagens dos museus americanos de história
natural sobre evolução e mudança climática, a autora coloca que é muito difícil
para os museus se comportarem como moderadores e facilitadores do aprendizado e da descoberta ao invés de se comportarem como autoridades e especialistas
exclusivos nos seus temas (MERRIT, 2012).
Essa discussão sobre o papel moderador e facilitador dos museus é relevante no que tange o Museu e a influência da empresa que o suporta na composição das narrativas apresentadas pelas exposições, isto é, o posicionamento
do Museu sobre os impactos ambientais causados pela mineração e sobre o uso
de minerais. As exposições Descomissionamento25, Ábaco26, Bebê Brasileiro27 e
Livro das Leis28, abordam a temática da mineração, dos impactos que esta atividade gera no meio ambiente e do uso de minerais pelo ser humano. São apresentadas aos visitantes algumas informações sobre as vantagens e as desvantagens
da atividade mineradora e da utilização dos metais, sem que seja estabelecida
25. Descomissionamento é o processo de recuperação da área de uma mina, quando a mesma
é desativada. A referência utilizada na exposição é a Mina de Águas Claras, localizada n Serra do
Curral e desativada desde 2002.
26. Instrumento virtual de cálculo que ajuda a calcular os benefícios e malefícios da atividade
mineradora.
27. Uma tela apresenta a estimativa de substâncias minerais consumidas por um brasileiro ao
longo de sua vida.
28. Livro virtual que apresenta as leis brasileiras que regulam a atividade mineradora no Brasil.
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de modo explícito uma posição específica sobre esses temas29. Assim, supõe-se
que o Museu objetiva atuar como facilitador e busca apresentar as informações
para que o visitante tire suas próprias conclusões. Entretanto, esta posição pode
ser questionada. A configuração dos módulos expositivos citados não apresenta
ao visitante oportunidades e motivações para que ele reflita e pondere sobre as
vantagens e as desvantagens da atividade mineradora. No caso do Descomissionamento, não há uma comparação entre o antes e o depois da região na qual foi
realizada a atividade mineradora e, de certo modo, isso passa a impressão de que
o local foi recuperado com êxito após todo o processo de operação da mina e de
exploração mineral.
O CCBB BH, desde sua inauguração, contou com uma programação diversificada de exposições de arte, teatro, cinema, apresentação musical e outros eventos e neste contexto, cabe destacar aqui 4 exposições de destaque30 já realizadas
no Centro. A exposição de inauguração do CCBB BH foi a mostra “Elles: Mulheres
artistas na coleção do Centro Pompidou”, organizada pelo Centro Georges Pompidou e com obras da coleção do Museu Nacional de Arte Moderna de Paris. A
exposição trouxe a Belo Horizonte obras de grandes mulheres das artes plásticas,
como Frida Kahlo, Diana Arbus, Louise Bourgeois e as brasileiras Lygia Clark e
Rivane Neuenschwander. Posteriormente, foi realizada a exposição “Olhares sobre
o Brasil: a fotografia na construção da imagem da nação”, que retrata um período
de 170 anos da história do país através da seleção de mais de 300 fotografias, tiradas entre 1883 e 2003. O material dessa exposição foi selecionado e organizado
a partir de quatro grandes eixos temáticos: política, sociedade, cultura e artes e
cenários. Em 2014 duas exposições merecem destaque. A mostra “Olhares Múltiplos Sobre Cinco Cidades” mostrou paisagens e monumentos de cinco cidades
brasileiras (Belo Horizonte, Brasília, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo) através
da exposição de obras de quatro artistas (Altino Caldeira, José Octávio Cavalcanti,
Júlia Bianchi e Roberto Marques). A exposição mais recente realizada no Centro é
a mostra “Resistir é Preciso”, que objetiva contar através da linha do tempo de 1960
a 1985 a história da resistência à ditadura militar no Brasil. A mostra foi idealizada
pelo Instituto Vladimir Herzog e apresenta as lutas pela reconstrução democrática
do país através de materiais do fotojornalismo, de vídeo-depoimentos e de variada
documentação do período. (CCBB, s.d.)
29. Em entrevista com a equipe do museu, a representante do departamento educativo declarou
que o papel do MMM é ser mediador frente às questões que envolvem a mineração e seus
impactos no meio ambiente.
30. As exposições realizadas nos Centros Culturais do BB percorrem, normalmente, as quatro
unidades no Brasil: Belo Horizonte, Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo.
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O Centro Cultural, assim como outros espaços do Circuito, também realiza exposições com temas ligados à arte e cultura de Minas Gerais, tais como a
exposição de comemoração dos 90 anos do escritor mineiro Fernando Sabino e
a exposição das obras do artista mineiro Amílcar de Castro na exposição “Repetição e Síntese” que possuem esse caráter e fazem parte do intuito do Circuito
de apresentar Minas Gerais. Contudo, as exposições citadas anteriormente, com
conteúdos e temas abrangentes, nacionais ou internacionais, são primordiais na
programação do Centro Cultural, o que permite reconhecê-lo como distinto dos
outros museus aqui analisados, e do Circuito como um todo. Aliás, ele foi um
fator de propaganda para o Circuito à medida que suas exposições passaram a
atrair um público maior que, a partir de então, começou a se interessar por outros espaços do Circuito, assim como o público que já conhecia os outros espaços, mas são atraídos pelas exposições temporárias do CCBB.
O CCBB diferencia-se dos outros dois espaços aqui abordados por ser financiado por um órgão público e não por uma empresa privada31 – o que supostamente o colocaria numa condição de maior autonomia, algo no entanto que deve
ser problematizado – e porque parte de suas exposições tem como temas questões
nacionais e internacionais, fugindo, portanto da abordagem focada no estado do
Memorial Vale e do MM Gerdau. Diferencia-se também pelo fato de suas exposições serem itinerantes e não manterem acervo, enquanto os outros dois museus
são marcados por exposições permanentes e pela guarda do acervo da exposição.
Algumas Considerações
Buscando recuperar o que foi apresentado, essas considerações visam levantar algumas questões de pesquisa a partir da natureza das ações culturais
dessas instituições reunidas nesse grande empreendimento cultural estatal, que
é o Circuito Cultural Praça da Liberdade, assim como os seus possíveis efeitos
sobre a cidade, o turismo e o acesso à cultura.
A primeira delas relaciona-se à escolha do lugar para o circuito: um espaço
simbólico que em si já é um atrativo, um patrimônio da cidade e do estado, o que
reforça a relação entre patrimônio, cultura e turismo. Dada a sua monumentalidade, a aura de patrimônio cultural, somadas à sua localização em uma das regiões
mais elitizadas da cidade, o Circuito reforça a visão da cultura como algo elitizado,
31. O Banco do Brasil é uma empresa pública, na medida em que está sob controle do governo
e é um agente financeiro do Tesouro Nacional e é também uma empresa privado, pessoa jurídica
de direito privado que é aberto à participação de acionistas privados, o que caracteriza-o como
empresa de economia mista.
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assim como enobrece ainda mais esse espaço da cidade. Nas observações e entrevistas até agora realizadas, nota-se uma presença diminuta de grupos com baixo
poder econômico e cultural. Um levantamento realizado pelo CCBB de São Paulo
em 2009 revela o seguinte perfil dos seus frequentadores: “predominantemente
profissionais liberais e/ou funcionários públicos, entre 25 e 40 anos, com curso
superior completo, com equilíbrio entre gêneros. Há forte presença de estudantes
universitários, média de 200 a 300 estudantes por dia.” (Apud, GOULART e FARIAS, 2012, p. 345). Trata-se de um círculo: áreas nobres recebem investimentos
culturais que as tornam ainda mais nobres. A cultura também se enobrece nesses
espaços reforçando a sua fruição por um grupo seleto.
O segundo ponto tem a ver com a forma de gestão da cultura, baseada
em parcerias, seja com instituições privadas, seja com instituições públicas. Em
todos os casos aqui analisados as instituições nomeiam os museus e centros com
a sua marca comercial, ou seja, o investimento, em geral fruto de renúncias fiscais por meio das leis de incentivo à cultura, têm um nítido conteúdo comercial:
difundir as marcas das empresas e associá-las a um bem de prestígio, a cultura e
o turismo cultural. Para atingir esse fim, nada melhor do que exposições divertidas, com conteúdo de fácil assimilação e pouco comprometidas com a reflexão e
a crítica, mas sem perder a aura de “espaço nobre da cultura”. Até porque o que
interessa as empresas é a atração de um público social e culturalmente sofisticado, como consumidores e propagadores de suas ações. Chama a atenção, por
exemplo, como espaços que oferecem jogos e acesso à internet e são um atrativo
para os jovens, como é o caso do Cyber Lounge no Memorial Vale, permaneçam
quase sempre vazios. Os jovens de classe média não precisam ir ao museu para
acessá-los e os de classe mais baixa que deles poderiam se beneficiar parecem
não se sentir confortáveis nesse espaço.
O terceiro ponto, na verdade uma síntese dos dois primeiros, refere-se às
consequências da entrega, pelo Estado, da gestão da cultura às agências privadas e
ou estatais. Consolidando o que foi dito acima, essas ações se pautam pelos interesses das empresas, não estimulam um olhar crítico e aberto a novas interpretações,
enfim, confirmam o que há de estabelecido nas representações da identidade. Não
se observa uma abertura para novos atores nem para aqueles que tradicionalmente
ficaram de fora das tradicionais representações das identidades nacionais e regionais: os trabalhadores, os negros, os índios, as mulheres. Não como partes que
contribuíram para a formação da identidade brasileira, mas como agentes históricos e também ativos na sociedade brasileira contemporânea. Enfim, o Circuito se
projeta na contramão dos museus contemporâneos que buscam questionar, abrir
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Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
espaços para atores que tradicionalmente estiveram fora dos espaços dessas instituições, ou seja, torná-los de fato mais democráticos e interativos. Para isso as
tecnologias podem ser uma ferramenta útil, mas desde que o conteúdo seja de fato
novo e que os espaços sejam de fato abertos e convidativos. Importante salientar
aqui que o recurso de não cobrar ingresso não é suficiente para tornar os museus
convidativos para aqueles que não costumam frequentá-los.
Como quarto ponto é importante destacar as ações dos gestores públicos
na criação de espaços turisticamente atrativos, como cartões postais da cidade
Além da dimensão econômica, a preservação e a utilização do patrimônio histórico e cultural para fins turísticos mobilizam a exploração da herança, da invenção de tradições e da memória cultural através da renovação e requalificação
de áreas por meio de uma espécie de facelift material, isto é, pequenas mudanças
que objetivam, no caso das áreas reutilizadas, a adaptação do patrimônio histórico e cultural para o novo uso (SHELLER e URRY, 2004).32 É possível apontar
que a iniciativa do Circuito Cultural evidencia a construção de uma realidade
voltada especificamente para o turismo através do novo uso dado ao patrimônio histórico e cultural do Conjunto Arquitetônico da Praça da Liberdade e o
objetivo de criar em Belo Horizonte locais que sejam atrativos para os turistas.
Outras iniciativas recentes na capital mineira reforçam essa perspectiva e entre
elas é possível destacar a reinauguração do Cine Theatro Brasil em acordo com
a Vallourec, a revitalização do Teatro Francisco Nunes pela Unimed através do
Programa Adote um Bem Cultural da Prefeitura de Belo Horizonte e o projeto de
transformação do Cine Santa Tereza em um espaço cultural através de acordo
com a Vale. Medidas estas que, em conformidade com o que foi colocado anteriormente no terceiro ponto sobre a problematização da entrega da gestão da
cultura às agências privadas, colaboram para a mercantilização da cultura e da
cidade que é oferecida como um objeto turístico.
Por fim, cabe colocar que este artigo é fruto de uma pesquisa em curso e
as considerações aqui colocadas deverão ser melhor desenvolvidas e aprofundadas até a conclusão da pesquisa.
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32. Para um exemplo de tentativa de requalificação urbana realizada no Brasil para fins de
turismo e lazer ver o caso da “revitalização” do Bairro do Recife Antigo em: Leite, 2002.
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Instituto de
Ciências Sociais
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TENDÊNCIAS ESPACIAIS DO MERCADO IMOBILIÁRIO
DA REGIÃO METROPOLITANA DE BELO HORIZONTE
Renan Pereira Almeida
Resumo: O trabalho discute as tendências espaciais do mercado imobiliário
da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), à luz de um referencial
teórico relativo à reestruturação urbana contemporânea, conjuntamente com
as teorias de renda da terra urbana. Dentre essas tendências, destacam-se dois
fenômenos: a “implosão” e a “explosão”. A implosão significa, neste contexto,
um processo de degradação ou revitalização da área central da metrópole.
Como pode ser visto em diversas cidades do mundo ao longo das últimas
décadas, a área central se tornou um espaço de decadência, passando a abrigar
atividades mal-remuneradas, migrantes recém-chegados, usuários de drogas,
focos de prostituição, congestionamento das vias, prédios abandonados, e
mesmo, degradação estética do espaço construído. Por outro lado, também
são numerosas as experiências de revitalização e recuperação dessas áreas
centrais, em projetos geralmente capitaneados pelo Estado – a partir de
investimentos em novas amenidades urbanas e bens públicos, como parques,
museus, praças, novos edifícios públicos, etc. Já o fenômeno da “explosão”
informa um amplo processo de expansão e dispersão urbana, conurbação,
crescimento nas franjas metropolitanas, ressignificando o sentido de “subúrbio”
e “periferia” e dos atores sociais que nelas habitam. Essas áreas de expansão
levaram a autores a usar expressões como “cidades galácticas”, “cidade de 100
milhas”, “metrópole invertida”, “megacidades”, “cidades externas”, etc. – todas
essas expressões tentando de alguma maneira captar esse amplo processo
chamado neste trabalho de “explosão”. Os subúrbios não são mais apenas
áreas distantes da centralidade principal, mas configuram novas centralidades,
sendo ocupados tanto por loteamentos precários quanto por condomínios
fechados destinados às elites. Além disso, essas áreas ocupadas em decorrência
da “explosão” da metrópole apresentam relevância econômica diferenciada,
simultaneamente com serviços de alta intensidade tecnológica e atividades
informais de baixa produtividade. Após apresentar uma discussão que esclarece
e liga o corpo teórico referente a essas tendências às teorias de renda fundiária
urbana, o trabalho apresenta uma breve discussão sobre os pressupostos que
serão adotados a respeito do mercado imobiliário. Os diversos tipos de renda
fundiária urbana (renda absoluta, renda diferencial do tipo I, renda diferencial
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do tipo II, renda de monopólio de segregação) são usados para explicar alguns
aspectos da dinâmica imobiliária da região em questão.
Quanto ao mercado imobiliário, considera-se que a terra urbana possui
particularidades: é um bem imóvel, não fungível, heterogêneo; é a base, ou
suporte, para quase todas as atividades econômicas; e possui divisibilidade
limitada, uma vez que precisa possuir um tamanho mínimo para vários usos.
Além disso, o mercado imobiliário possui agentes que atuam de forma bastante
peculiar, fazendo com que a demanda e a oferta neste mercado mereçam uma
análise mais específica.
A partir dessa discussão, o artigo realiza uma descrição empírica dos
fenômenos que vem ocorrendo na RMBH, a partir de estatísticas descritivas
e mapas temáticos sobre preços e quantidades do mercado imobiliário dessa
metrópole. Para a implosão, foram usados dados advindos do Imposto sobre
Transação com Bens Imóveis Inter-Vivos (ITBI), fornecidos pela Prefeitura
de Belo Horizonte (PBH) e tratados pela Fundação Instituto de Pesquisas
Econômicas, Administrativas e Contábeis de Minas Gerais (IPEAD), para os
períodos 2007 e 2013. Para a explosão, foram usados dados inéditos, obtidos
a partir do site de anúncios de imóveis “NetImóveis”, para o ano de 2014.
Essa técnica foi empregada devido à debilidade das prefeituras de municípios
da RMBH fornecerem uma base de dados adequada para o ITBI, e trata-se de
uma estratégia já usada para outros países com o mesmo tipo de limitação em
relação à disponibilidade de dados. Os resultados mostram que as tendências
de “explosão” da metrópole ao longo do tecido urbano e de “implosão” de
sua centralidade podem, de fato, serem captadas pelos preços e volumes do
mercado imobiliário, e que a implosão do Centro de Belo Horizonte se dá em
caráter de decadência na hierarquia imobiliária urbana.
Palavras-chaves: mercado imobiliário, renda da terra, reestruturação
urbana, RMBH.
Introdução
As metrópoles contemporâneas vêm passando por um profundo processo
de reestruturação, que se dá de diversas maneiras, alterando múltiplos aspectos
urbanos ao longo das últimas décadas. Dentre os aspectos afetados por essa reestruturação estão as esferas econômicas e territoriais, as primeiras remoldadas
sob a lógica da acumulação flexível e da financeirização globalizada1, e as segundas sob vários fenômenos espaciais que ocorrem no interior e para além das
antigas áreas metropolitanas. (HARVEY, 1992; MONTE-MÓR, 2007).
1. Para uma discussão detalhada da acumulação flexível e da financeirização atuais, ver Harvey
(1992), que discorre sobre as novas tendências da economia mundial a partir da década de 70.
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Nesse contexto, dois fenômenos espaciais são destacados no presente trabalho: a descentralização, o espraiamento, a dispersão urbana, a urbanização
extensiva, ou quaisquer outros termos que poderiam ser usados para captar a
tendência de expansão espacial das regiões metropolitanas; e a redefinição das
centralidades na metrópole, seja no sentido da degradação das áreas dos antigos
Central Business Districts (CBDs) ou da revitalização, adensamento e cristalização
dessas centralidades. Para o primeiro tipo de fenômeno exposto, o termo escolhido para capturar esse processo é a chamada “explosão”. Para definir e captar a
segunda tipologia fenomenológica exposta acima, a expressão adotada neste trabalho é a da chamada “implosão”. Explosão e implosão são termos que advém da
obra de Lefebvre (1999) e são esclarecidos por Brenner (2014), Monte-mór (2006)
e Tonucci filho (2013), dentre outros. Essas duas tendências espaciais também
são investigadas na obra de Soja (2000), outro importante autor sobre a reestruturação urbana recente. As ideias de “implosão” e “explosão” são discutidas mais
aprofundadamente no referencial teórico deste artigo.
Portanto, uma das contribuições deste trabalho é fornecer um referencial
teórico para que se possa tentar compreender as tendências espaciais recentes
das metrópoles (explosão e implosão), a partir de dois autores relevantes dessa
literatura, Lefebvre (1999) e Soja (2000) – sendo essa conexão entre os autores
pouco explorada até o momento. A outra contribuição no plano teórico é encaixar a dinâmica imobiliária em tal referencial, relação ainda menos abordada,
pelo que se tem conhecimento através do levantamento bibliográfico realizado.
Essa última relação, entre as tendências espaciais e o mercado imobiliário, é feita aqui através da teoria da renda urbana e do processo de produção
imobiliária (ALQUIER, 1971; HARVEY, 1974; LEMOS, 1988; LOJKINE, 1981;
PLAMBEL, 1987; SMOLKA, 1979; TOPALOV, 1979, 1984).
Além dessas contribuições teóricas, este artigo trás uma tentativa de exploração empírica para os fenômenos supracitados, para o caso da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). Nessa região certamente se configuram
os processos espaciais mencionados, com vários tipos expansões em suas periferias metropolitanas “explodidas”, e com revitalizações e degradações de sua
centralidade principal “implodida”. De maneira específica, objetiva-se verificar
se os fenômenos acima descritos se materializam e se transmutam nos preços e
volumes dos estoques imobiliários da metrópole em questão, e como isso pode
ser caracterizado. Logo, este trabalho visa preencher uma lacuna existente na
literatura, em relação às tentativas de exploração empírica desses fenômenos espaciais das metrópoles.
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Assim, este trabalho se estrutura de outras quatro seções além desta introdução. Na seguinte, o referencial teórico explana e detalha a abordagem utilizada. Então, é exposta a metodologia do trabalho, assim como os bancos de
dados. A partir disso, são discutidos os resultados empíricos obtidos. Por fim,
segue uma seção que sumariza as principais conclusões.
Referencial Teórico
Como foi exposta na Introdução, uma das contribuições deste trabalho
é estabelecer a conexão entre as teorias sobre a estruturação do espaço urbano
contemporâneo e a teoria da renda fundiária urbana. A outra contribuição relevante, do ponto de vista teórico, é tornar mais clara a definição dos fenômenos
espaciais em questão – o que é feito através das obras de Lefebvre (1999) e Soja
(2000). Ademais, estabelecer o diálogo entre esses dois autores constitui também
em uma das contribuições deste artigo.
Dessa forma, as duas tipologias de fenômenos espaciais contempladas
neste artigo são a “explosão” e a “implosão” que vem ocorrendo nas regiões metropolitanas. Como foi dito na introdução, uma gama de outros termos tem sido
empregados na literatura para tentar capturar esses dois tipos de tendências espaciais (SOJA, 2000). Dentre esses termos, para o caso da “explosão”, podem-se
citar as expressões “dispersão urbana”, “espraiamento”, “crescimento nas franjas
metropolitanas”, “urbanização extensiva”, “metrópole invertida”, “urbanização
periférica”, etc. Sudjic (1992) usa o termo “100 Mile City” para denotar a escala
expandida e a forma galáctica das metrópoles contemporâneas, e Muller (1976)
utiliza a expressão “Outer City”. Todos eles, de alguma maneira, estão tentando
relatar o que está ocorrendo nas últimas décadas nas periferias das metrópoles,
que expandem suas dimensões físicas e reconfiguram uma série de novas relações socioeconômicas. Como ilustra Castells (1996:207), “megacidades são constelações descontínuas de fragmentos espaciais, pedaços funcionais, e segmentos
sociais”. Mais explicitamente, Monte-Mór (2006:9) assevera que “a explosão se dá
sobre o espaço circundante, com a extensão do tecido urbano”.
Já para o caso daquilo que este trabalho trata sob o termo de “implosão”,
outras expressões empregadas são “deterioração do centro”, “decadência do urbanismo monocêntrico”, “revitalização das áreas centrais”, etc. Nesse caso, o que
se quer significar são dois tipos de tendências que vem ocorrendo nas centralidades: a revitalização e consolidação de algumas e a decadência de outras. Sobre
esse primeiro sentido da implosão, Monte-Mór (2006:9) afirma que “a implosão se
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dá na cidadela sobre si mesma, sobre a centralidade (...) que se adensa e reativa
os símbolos da cidade ameaçada pela lógica (capitalista) industrial”. A respeito
do segundo sentido da implosão, Soja (2000:242) expõe que “em um estranho
movimento contrapontual, os mais densos centros urbanos em lugares como
Nova Iorque estão se tornando menos densos”.
Nesse ponto, vale mencionar que Soja (2000) desenvolve a ideia de “Exópolis”, que atende aos dois tipos de tendências espaciais apresentadas. Embora
esse autor não mencione nessa parte de sua obra o constructo teórico de Lefebvre
(1999), eles parecem estar tratando da mesma tipologia de fenômeno. Esta proximidade é percebida apenas em Tonucci Filho (2013), pelo que se tem conhecimento até o momento. Segundo Soja (2000), a Exópolis é produto de:
“Ambas descentralização e recentralização, desterritorialização e reterritorialização, contínua extensão e nucleação urbana intensificada, crescente
homogeneidade e heterogeneidade, integração e desintegração sócio espacial, e mais. A complexa Exópolis pode ser metaforicamente descrita como
a “cidade virada de dentro para fora”, como na urbanização dos subúrbios
e na ascensão da Outer City. Mas ela também representa “a cidade virada
de fora para dentro”, a globalização da Inner City que traz todas as periferias do mundo para o centro. (...)”.(Soja, 2000).
Portanto, “explosão” e “implosão” são as duas tendências espaciais que tais
autores discutem e este trabalho procura operacionalizar - pela busca de evidências a partir de dados do mercado imobiliário formal. Para o caso da “explosão”,
por exemplo, uma grande porção relativa do estoque imobiliário e/ou nível de
preços dos imóveis relativamente altos em municípios da RMBH distantes da área
central de Belo Horizonte podem ser vistos como evidências. Sobre a “implosão”,
há duas possibilidades, uma delas que mostraria uma desvalorização relativa dos
imóveis do Centro na hierarquia de preços de imóveis da metrópole ou uma valorização destes – ou ainda, movimentos diferentes em partes diferentes da área
central, podendo haver uma parte em decadência e uma em valorização relativa.
Uma vez definidas as tendências espaciais tratadas neste artigo, seguem
as especificações da abordagem escolhida para lidar com o mercado imobiliário
formal na RMBH. Um arcabouço teórico básico para se trabalhar com a questão
do preço da terra e a estrutura urbana é aquele que se baseia em modelos de maximização do uso de certas localidades para empresas e famílias. Entre os modelos
elaborados nessa tradição destacam-se as variáveis densidade e distância (ALONSO, 1964; HAIG; MCCREA, 1974; MILLS, 1973; MUTH, 1968; WINGO, 1961).
Entretanto, é entendido que tais modelos não são aplicáveis para o estudo
de caso em questão, uma vez que seus pressupostos parecem se distanciar de
maneira definitiva da realidade empírica sobre a qual se pretende inferir. Neste
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artigo, são consideradas as seguintes características da terra enquanto mercadoria: i) é um bem imóvel, ou seja, não pode ser transportado; ii) é um bem não
fungível, o que significa que não é consumido enquanto é utilizado, o que leva a
esse bem possuir valor de uso atual e futuro, e valor de troca potencial; iii) é um
bem heterogêneo, por possuir características específicas que o tornam propício
para atividades específicas; iv) é a base, ou suporte, para quase todas as atividades econômicas; v) possui divisibilidade limitada, uma vez que precisa possuir
um tamanho mínimo para vários usos (HARVEY, 1973; PLAMBEL, 1987).
Esses traços aliados à instituição da propriedade privada e ao funcionamento do sistema de mercado possibilitam a existência da renda da terra.
Na explicação para a renda da terra rural, surge o conceito de renda diferencial. A renda diferencial 1 decorre de diferenças de características próprias
da terra, como condições de localização e produtividade daquela área. Essa
renda independe do capital. Já a renda diferencial 2 emerge da quantidade de
capital invertida em determinada porção de terra, que possibilita a existência de lucros extraordinários em relação às terras marginais. Há também a
renda absoluta, que resulta da propriedade da terra, já que a terra não possui
preço nulo ou negativo. Por fim, a renda de monopólio de segregação é caracterizada pela escassez de determinadas porções de terra, fazendo com que a
demanda específica por esses lugares os tornem mais caros. Esses conceitos,
criados para o caso rural, foram facilmente trazidos para o urbano por autores como Alquier (1971), Lemos (1988), Lojkine (1971), Yujnovsky (1977),
entre outros.
A partir dessa exposição sobre as particularidades do bem em questão e
do comportamento dos agentes nesse mercado, vê-se que as hipóteses de concorrência perfeita (flexibilidade da oferta, informação perfeita e independência dos
mercados) não se aplicam para o mercado da terra urbana. Destarte, conforme se
for discutindo e analisando os resultados da pesquisa, o que se terá em mente é
a teoria da renda da terra urbana, conforme as hipóteses levantadas acima sobre
os bens imóveis.
Metodologia
Banco de dados.
O mercado imobiliário sempre se apresenta como um tema desafiador
para pesquisadores que buscam elaborar abordagens empíricas, uma vez que a
existência de dados para esse tema é profundamente problemática e limitada,
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em várias partes do mundo. Não há nenhum grande banco de dados nacional
ou internacional, devidamente atualizado e espacializado, que vise atender as
especificidades de estudos regionais ou urbanos. Podem-se encontrar discussões
sobre essa dificuldade para países como Brasil, Estados Unidos, França, Alemanha, e cidades dos países não desenvolvidos em geral (ADEF, 1991; BERRY;
MCGREAL, 1995; DOWALL, 1991; GILBERT, 1991; MELAZZO, 2007, 2010;
SMOLKA, 1992).
Então, para atender ao objetivo de verificar empiricamente os fenômenos espaciais discutidos nesse trabalho, foram usados dois tipos de dados. O
primeiro deles é o uso de dados do Imposto sobre Transação com Bens Imóveis
Inter-Vivos (ITBI), fornecidos pelas Prefeituras dos municípios, e é amplamente
utilizado na literatura de mercado imobiliário brasileiro (AGUIAR; SIMÕES,
2012, 2010; PAIXÃO; ABRAMO, 2008; PONTES; PAIXÃO; ABRAMO, 2011).
Nesse tipo de dado, cada observação é gerada no ato do registro da troca no
cartório, para pagamento do imposto, e também são declarados os atributos do
imóvel transacionado junto com o valor da troca. Vale ressaltar, contudo, que
os dados de ITBI podem conter um considerável viés para baixo, decorrente de
um efeito de subdeclaração ou desatualização cadastral. Entretanto, a sistematização e informatização dos dados do ITBI pelas prefeituras ainda é uma prática institucional pouco comum no Brasil. Dessa maneira, a produção científica
sobre mercado imobiliário que conta com esse tipo de dado fica restrita aos
poucos municípios que podem fornecer essas informações. Isso pode justificar
o fato de não ser encontrada na literatura sobre mercado imobiliário, usando
dados de ITBI, uma abordagem para a RMBH como um todo – as análises se
limitam à capital.
Para este trabalho, esses dados foram úteis para verificar o fenômeno da
“implosão”, a qual foi testada para a área central de Belo Horizonte em relação
ao resto do município. A unidade espacial escolhida foi a Unidade de Planejamento (UP), que agrega um ou mais bairros. Belo Horizonte possui um total
de 430 bairros e 80 UPs2. Foram comparadas as observações dos anos de 2007
com os de 2013.
O segundo banco de dados utilizado neste artigo é advindo dos anúncios
de imóveis em sites especializados. Esta é uma metodologia recente para construir bancos de dados para o setor imobiliário. Para a construção desse banco de
dados, foi necessária a implementação de um software específico para “baixar”
essas informações dos sites dos anúncios. Após testar essa técnica em alguns si2. Essa escolha também foi feita por Aguiar e Simões (2010, 2012).
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tes, foi escolhido o site “NetImóveis”3, que proporcionou um banco de dados com
cerca de 57 mil observações, coletadas em março de 2014, para toda a RMBH.
Até o momento, foi encontrado registro de uso de técnica semelhante para a Alemanha (AN DE MEULEN; MICHELI; SCHMIDT, 2011).
Essa técnica visa substituir a prática empregada nesse tipo de estudo de
se utilizarem dados de anúncios de jornais, como nos estudos elaborados por
Plambel (1987) e UFMG (2011) para a RMBH, e Melazzo (2007, 2010) para algumas cidades ditas “médias” do Brasil. Essa estratégia pareceu inadequada para a
realidade dos anúncios do mercado imobiliário formal atual da RMBH, pois hoje
há enorme relevância dos meios eletrônicos nesses tipos de anúncios. Ademais,
esse banco de dados é de mais fácil verificação (é possível ver fotos e entrar em
contato com o anunciante rapidamente) e pode ser mais facilmente atualizado.
Esse modo de trabalho também se mostrou sem grandes problemas de seletividade, uma vez que todos os municípios apresentam anúncios, além de diversas
faixas de preços terem sido captadas. Nesse sentido, o banco de dados conta com
anúncios que vão desde R$15 mil até R$72 milhões.
Como essa técnica descrita acima representa uma inovação metodológica para o caso da RMBH, não seria possível realizar uma análise temporal (no
sentido de dinâmica imobiliária) dos fenômenos espaciais discutidos neste trabalho usando os dados da Internet. Assim, para RMBH, este trabalho consiste em
uma análise de uma “foto” do mercado imobiliário formal da RMBH - já para o
município de Belo Horizonte, tem-se dois períodos. Argumenta-se que essa foto
pode mostrar a hierarquia de preços, os locais de maiores transações e estoques,
fornecendo algumas evidências para as tendências espaciais discutidas.
Métodos empregados
Dado que este trabalho não foca na questão de técnicas avançadas para tentar
discutir as contribuições que pretende estabelecer, são realizadas análises descritivas
dos dados espacializados. Dessa forma, faz-se o uso de classificações, mapas temáticos, divisões em tipologias e gráficos para se tratar com os fenômenos em questão.
3. “A Netimóveis Brasil S.A. é uma rede nacional composta de importantes imobiliárias que
trabalham compartilhando as suas carteiras, filosofias e procedimentos, buscando ofertar aos
seus clientes uma forma mais rápida, segura e eficaz para vender, comprar ou alugar imóveis. A
Netimóveis Brasil não é... ...uma franquia, portanto não participa financeiramente nos resultados
das suas associadas. Isso significa que as imobiliárias credenciadas Netimóveis ficam com 100%
das suas receitas e ainda podem manter o seu nome e a sua marca (...)”.Vale mencionar que, hoje,
a Netimóveis é responsável por mais de 90% dos negócios das suas empresas associadas, sendo o
principal anunciante de imóveis nas cidades onde opera. Disponível em: http://www.netimoveis.
com/institucional/quem-somos.aspx. Acessado em 28 de abril de 2014.
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Resultados
Análise Exploratória sobre o fenômeno da “Implosão”
Um dos objetivos empíricos deste trabalho é verificar se a tendência espacial da implosão está ocorrendo na área central de Belo Horizonte. E, no caso
afirmativo, de que maneira isso vem ocorrendo - através da revitalização ou da
degradação. A área central de Belo Horizonte é visualizada na Figura 1, com as
Unidades de Planejamento (UPs) que a compõe em evidência.
Figura 1 - Belo Horizonte e sua Área Central
Fonte: Resultados da Pesquisa
Dessa maneira, como mostram a Tabela 1 e o Mapa 1, a área central
de Belo Horizonte apresenta diferentes movimentos em relação à hierarquia no
mercado imobiliário. Além disso, a partir desses dados, é possível perceber a
enorme variação dos preços médios dos imóveis entre 2007 e 2013. Para a média
do município, essa valorização foi de 235,67%. Do Mapa 1, ainda pode ser percebido o desaquecimento desse mercado no período analisado, com significativa
queda no número de transações, o que pode ser visualizado pela redução do
tamanho dos círculos pretos nesse Mapa.
Como pode ser apreendido da Tabela 1, a UP “Centro”, que é composta
apenas pelo próprio bairro Centro, decaiu na hierarquia de preços do mercado
imobiliário de Belo Horizonte – muito embora tenha se valorizado acima da
média da cidade. Isso significa que outras UPs se valorizaram muito acima dessa
média. Assim, essa UP caiu seis posições nesse ranking, passando a ser apenas a
42º mais cara, em um total de 80 UPs.
Isso mostra que os modelos que definem o CBD como a área aonde o
preço da terra é mais alto e decai a partir dali em algum gradiente envolvendo
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distância e/ou densidade não parecem contribuir para entender o mercado imobiliário belorizontino e a estrutura urbana da cidade. Do ponto de vista de renda
da terra, esse fenômeno pode ser explicado por uma queda relativa na renda
diferencial tipo I e/ou na renda diferencial tipo II. Para o tipo I, isso significa
que a produtividade média obtida a partir de investimentos realizados no Centro teria se reduzido comparada com o restante da cidade, e/ou que essa UP se
tornou uma localização relativamente menos privilegiada (do ponto de vista de
rentabilidade de negócios, por exemplo). Para o tipo II, essa decadência relativa
do Centro pode indicar que os investimentos sobre essa terra diminuíram, significando um descaso do Estado e/ou um menor interesse do setor privado nessa
parte da cidade.
Tabela 1 - Preços médios, Variações Percentuais e
Colocação no Ranking entre 2007 e 2013 para as UPs
BH
Centro
Preço
Médio_2007
125.910,52
77.279,11
Preço
Médio_2013
422.641,03
276.314,97
235,67
257,55
Ranking
(2007)
36º
Ranking
(2013)
42º
F. Sales
123.391,63
332.238,95
169,26
16º
33º
Savassi
Barro Preto
223.652,04
59.613,87
738.227,30
364.713,42
230,08
511,79
7º
48º
4º
25º
Variação (%)
Fonte: Resultados da Pesquisa
Uma queda ainda mais substancial pode ser vista para a UP Francisco
Sales, que recebe o nome de uma Avenida que corta parte dos bairros Floresta e
Santa Efigênia. Essa UP teve um preço médio que se elevou bem abaixo da média
da cidade, fazendo da 16ª para a 33ª colocação no ranking. Essa UP é caracterizada por ser uma área bastante antiga no processo de ocupação da cidade, relacionada com a boemia por um lado, e com a área hospitalar, por outro. Assim, as
rendas diferenciais podem ter decaído relativamente nessa região devido a uma
perda de centralidade de seus serviços de entretenimento e saúde.
Se o Centro e Francisco Sales apresentam evidências de uma implosão,
no sentido de decadência e desadensamento4, a UP Savassi mostra uma cristalização de sua centralidade. Essa UP é composta pelos bairros Funcionários,
Boa Viagem, Savassi, Lourdes e Santo Agostinho. Ali se encontram os principais
bares e restaurantes, dois shoppings centers, a Praça da Liberdade (antiga sede do
Governo de Minas que cedeu espaço recentemente para um Circuito Cultural,
com a maior parte dos Museus da cidade), “o local da festa”, no sentido lefebvre4. Podem ser encontrados vários prédios abandonados nessas UPs, bem como pontos de
prostituição e consumo de drogas.
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ano, dentre outras amenidades. Isso possibilita enormes rendas diferenciais I e,
principalmente, do tipo II.
Mapa 1 - Preço Médio e Volume Total de Transações de Imóveis por UP (2007-2013)5
Fonte: Resultados da Pesquisa
Dessa forma, essa UP avançou no ranking de preço médio dos imóveis
de Belo Horizonte, passando da 7ª para a 4ª mais cara, tendo um preço médio
que é quase o dobro da média da cidade. Mais uma vez, a ideia de distância para
explicar o preço da terra urbana parece pouco razoável, já que essa UP é contígua a todas as outras mostradas na Tabela 1. Mesmo tendo uma variação menor
do que a média da cidade entre 2007 e 2013, o avanço no ranking indica que a
UP Savassi teve maior variação no preço médio do que outras UPs que estão no
topo do ranking.
Quando se analisa a UP Barro Preto, novamente a ideia de distância se
torna pouco explicativa para o mercado imobiliário, uma vez que essa UP, contígua ao Centro e à Savassi, destoa de suas vizinhas em todas variáveis. Em 2007,
seu preço médio era bastante inferior ao de todas as outras UPs dentro da área
da Avenida do Contorno, e sua valorização no período considerado foi discrepante tanto da média da cidade quanto das outras UPs: 511,79%. Por isso, essa
5. As UPs em branco indicam que não houve transações, como em áreas isentas e no Campus
da UFMG.
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UP (que é composta apenas pelo próprio bairro do Barro Preto) passou de 48º
para 25º no ranking dos preços médios. Uma possível explicação é um reajuste
histórico – os preços em 2007 estariam muito defasados. Porém, do ponto de
vista do arcabouço teórico aqui discutido, isso pode ser explicado pelas obras da
PBH que tentaram revitalizar esse bairro e investimentos do setor privado nessa
área – elevando a renda diferencial II.
Portanto, a partir dessa perspectiva, a área central de Belo Horizonte
apresenta evidências do fenômeno da implosão – tanto no sentido de revitalização quanto no sentido de decadência. Entretanto, a discussão apresentada acima
pode ser melhorada ao se proceder a uma divisão por tipologia de imóveis, uma
vez que foi visto que a tipologia “apartamento” tende a ser mais homogênea e
evita o viés relacionado ao tamanho dos imóveis – já que não havia a variável
“área” disponível para se realizar uma análise por metro quadrado.
Tabela 2 - Preços médios de Apartamentos, Variações Percentuais
e Colocação no Ranking entre 2007 e 2013 para as UPs
BH
Centro
Preço
Médio_2007
129,288.40
56,622.17
Preço
Médio_2013
597,385.98
265,285.72
362.0569
368.5191
Ranking
(2007)
34º
Ranking
(2013)
33º
F. Sales
137.697,02
414.882,80
345.9571
11º
16º
Savassi
275,597.16
1,068,036.28
287.5353
4º
2º
Barro Preto
75,765.98
475,896.01
528.1130
26º
11º
Variação (%)
Fonte: Resultados da Pesquisa
Nesse sentido, ao se analisar a Tabela 2 e o Mapa 2, a lógica do mercado
imobiliário formal de Belo Horizonte para se alterar substancialmente. Para o
mercado de apartamentos, todas as UPs da área central estão em posições mais
elevadas no ranking por preço médio do que no caso dos imóveis em geral. Isso
indica a verticalização que caracteriza essa área: a tipologia apartamentos é predominante na área central, enquanto casas e lotes aparecem com mais frequência em áreas mais periféricas. Como estes dois últimos tipos são em geral mais
caros do que os apartamentos (devido à área total do imóvel), a Tabela 1 tendia a
subestimar a importância relativa da área central.
Além disso, todas as UPs consideradas na Tabela 2 mostraram valorização relativa ao restante da cidade, exceto a UP Francisco Sales. Mais uma vez, a
UP Barro Preto se destacou, tendo uma valorização média de 528%, e avançando 15 posições. A UP Savassi também confirma sua centralidade no mercado
de apartamentos, sendo a 2ª mais valorizada entre todas as UPs de BH. Nesse
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recorte, o Centro não apresenta sinais de decadência, ganhando uma posição.
Dessa forma, para esse submercado, só há evidências da implosão no sentido de
decadência para UP Francisco Sales.
Mapa 2 - Preço médio de Apartamentos por UP (2007-2013)
Fonte: Resultados da Pesquisa
Ainda são dignos de nota outros aspectos mais gerais do mercado imobiliário de BH que este banco de dados pode fornecer. Os Mapas anteriores mostram
que, além da prevalência da Zona Sul como área mais valorizada e verticalizada,
destacam-se a Região da Pampulha e da Avenida Cristiano Machado, na região
Nordeste da cidade (resultado comungado por Paixão e Abramo, 2008). Ademais,
as regiões Norte e Venda Nova apresentaram importante valorização. Por outro
lado, tanto para 2007 e quanto para 2011, e para todas as tipologias, a UP Mangabeiras (que contém o bairro de mesmo nome) foi com maior preço médio. Isso
evidencia, mais uma vez, a derrocada da distância como variável explicativa da estrutura urbana: essa UP dista cerca de cinco quilômetros do CBD da capital. Nesse
caso, é possível que a chamada renda de monopólio de segregação, representada
por um bairro relativamente menos acessível do que outros da regional centro-sul
e composto por casas com grandes muros, explique também parte desses preços.
Análise Exploratória para a Explosão
Para a tendência espacial chamada de Explosão, os resultados foram gerados a partir dos dados do site NetImóveis, contemplando toda a RMBH. Nesse
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caso, a unidade de análise é o município. Para estes dados, a variável “área” está
disponível, de maneira que é possível realizar uma análise de preços por metro
quadrado, evitando o viés que pode surgir devido ao tamanho do imóvel.
Assim, o Mapa 3 mostra, através de suas cores, as tendências espaciais
relativas ao preço médio por metro quadrado para a RMBH para Março de 2014.
Os círculos pretos mostram a quantidade de anúncios para cada município. Dessa forma, é notável a superioridade hierárquica de Belo Horizonte sobre sua Região Metropolitana, seja em termos de preços quanto em termos de volumes.
Logo, é possível compreender que na capital, a renda da terra é mais elevada do
que nas outras que compõe a região, por motivos de localização e investimentos.
Essa característica é, inclusive, apontada como uma das principais fragilidades
dessa Região Metropolitana (MONTE-MÓR; RUIZ, 2010).
Entretanto, essa centralidade da capital em relação aos demais municípios
da Região não impede que existam evidências da explosão da metrópole. Os
municípios contíguos a Belo Horizonte estão entre aqueles que se apresentam no
primeiro ou segundo quantil superior da distribuição de preços médios por metro quadrado - dando uma noção do espraiamento e expansão da metrópole por
sua região através do mercado imobiliário. As únicas exceções são os municípios
de Santa Luzia, caracterizado pela precariedade de moradias e pela pobreza marcante de grande parte do Vetor Norte da RMBH, e Brumadinho, que apresenta
uma parte mais valorizada adjacente à Nova Lima, na localidade de Casa Branca,
e uma grande parte vinculada ao Vetor Sudoeste, menos valorizada (SOUSA et
al., 2009). Contagem, Betim, Ibirité e Sabará também se encontram no quantil superior, junto com Belo Horizonte. Além disso, o Mapa 3 mostra a grande
quantidade de ofertas de imóveis em outros municípios da RMBH, com destaque
para Contagem, Betim, Nova Lima, Ibirité, Lagoa Santa, Jaboticatubas e Esmeraldas. Estes dois últimos, distam, respectivamente, cerca de 65km e 40km do
Centro da capital, evidenciando a “urbanização extensiva” (Monte-Mór, 2006)
atual e forma galáctica da metrópole contemporânea (SOJA, 2000).
Essa tendência de expansão se manifesta também pela verticalização nos
outros municípios da RMBH. O caso de Sabará é emblemático. Apesar de ser
identificado como um município precário, Sabará apareceu no primeiro quantil
da distribuição de preços médios dos imóveis, o que causou estranheza inicial
nos autores (UFMG, 2011). Porém, foi constatado que se trata de um efeito relativo ao tipo de ocupação que vem ocorrendo na divisa dos municípios de Sabará
com Belo Horizonte. Nessas áreas, ocorre um processo de verticalização, que se
reflete na construção de pequenos prédios, de apartamento de 2 e 3 quartos, com
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áreas em torno de 50 - 70 m² cada um. Como a lógica de produção nesse espaço
se vincula à dinâmica específica de Belo Horizonte e não ao que se passa na sede
do município de Sabará, os preços de tais apartamentos se assemelham aos apartamentos de mesmo padrão da capital. Evidentemente, esse fenômeno de verticalização na divisa dos municípios também acontece em outros municípios da
RMBH, porém, em Sabará, praticamente não existem anúncios em outros pontos
do município. Destaca-se, especificamente, o bairro Ana Lúcia. Isso evidencia,
também, a importância da autoconstrução nesse município, fazendo com que o
mercado formal esteja presente apenas nas áreas contíguas à capital.
Mapa 3 – Preço Médio do m² dos Imóveis na RMBH
Fonte: Resultados da Pesquisa
Dessa maneira, a maior parte dos anúncios do Vetor Leste, cujo município
mais representativo é Sabará, concentra-se na tipologia apartamentos. Isso pode
ser visualizado a partir do Gráfico 1, que mostra a porcentagem dos anúncios
de cada tipologia em relação ao total de cada vetor. Chama à atenção, também,
a grande oferta de lotes no Vetor Sul, direção caracterizada pela expansão de
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condomínios para as classes altas a partir dos anos 70. Nesse caso, a renda de
monopólio de segregação se torno ainda mais evidente. Por outro lado, há a prevalência de apartamentos no eixo industrial, o Vetor Oeste6.
Distribuição Percentual de Anúncios
por tipo e vetor
100%
80%
Apartamento 2 e 3 quartos
Apartamento 4 ou mais
Casa
Lojas e Salas
Lote
Outros
60%
40%
20%
0%
297
422
3027
10597
1497
4759
Leste
Noroeste
Norte
Oeste
Sudoeste
Sul
Vetores
Gráfico 1 - Distribuição percentual de anúncios por tipo e vetor
Fonte: Resultados da Pesquisa
Conclusões
Este trabalho procurou contribuir para a temática das tendências espaciais das metrópoles, através do mercado imobiliário da RMBH, utilizando dados
espacializados. Ademais, constitui-se em uma tentativa de contribuição para a
compreensão do próprio mercado de terras na RMBH - tema tão relevante para o
planejamento municipal e metropolitano e ainda pouco estudado.
Do ponto de vista teórico, este artigo pretendeu esclarecer duas das principais tendências espaciais das metrópoles, optando e justificando a escolha dos
termos “implosão” e “explosão”. Sobre esse assunto, estabeleceu o diálogo entre
autores como Lefebvre (1999) e Soja (2000). Ainda, realizou uma apreciação crítica sobre o mercado imobiliário e os modelos neoclássicos de estrutura urbana
6. O Vetor Sul contém municípios de Raposos, Nova Lima, Rio Acima, Brumadinho. O Vetor Leste
é composto pelos municípios de Nova União, Sabará, Caeté, Taquaraçu de Minas. O Vetor Norte
abrange os municípios de Santa Luzia, Vespasiano, São José da Lapa, Lagoa Santa, Jaboticatubas,
Baldim, Confins, Pedro Leopoldo e Matozinhos. O Vetor Noroeste contém os municípios de Ribeirão
das Neves e Capim Branco. O Vetor Oeste é composto por Betim, Juatuba, Mateus Leme, Florestal,
Esmeraldas e Contagem. Por fim, O Vetor Sudoeste abrange os municípios de São Joaquim de
Bicas, Igarapé, Itatiaiuçu, Itaguara, Rio Manso, Mário Campos, e Ibirité.
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e preço da terra, e apresentou os conceitos de renda da terra urbana, que foram
usados para explicar algumas tendências no estudo de caso.
Empiricamente, a implosão, no sentido de degradação da área central, foi
verificada para a UP Francisco Salles tanto para imóveis em geral quanto para
apartamentos. Para a UP Centro, isso ocorreu apenas no caso de imóveis em geral.
Por outro lado, a implosão parece se manifestar na forma da “cidadela que implode
sobre si mesma” (Monte-Mór, 2006:9) para as UPs Savassi e Barro Preto, isto é,
como uma consolidação dessas UPs como áreas valorizadas da estrutura urbana.
Para a tendência à explosão, temos que o mercado imobiliário de Belo Horizonte de fato se estende, atualmente, sobre toda sua região metropolitana. Os
preços médios mais elevados se encontram naqueles municípios mais próximos da
capital, com esse preço médio convergindo e colocando essas unidades espaciais
no mesmo quantil. Chama à atenção a grande quantidade de anúncios fora de Belo
Horizonte, em especial, no Vetor Oeste, formado principalmente por Betim e Contagem - cidades com as segunda e terceiras maiores rendas per capita da RMBH e
marcadas pela industrialização. Sabará e Nova Lima evidenciam a vertilização nas
áreas conurbadas com a capital, a primeira com um mercado para classe média
e baixa e a segunda com um mercado de alto padrão - confirmando o Vetor Sul
como a direção radial de expansão das elites na RMBH (VILLAÇA, 2001).
Nesse panorama, considera-se que trabalhos futuros devem ser realizados utilizando metodologias mais sofisticadas - como análises de clusters e/ou
métodos de análises regionais. Nesse sentido, este trabalho fornece motivações
teóricas e descritivas para o uso dessas técnicas. Além disso, o banco de dados
advindo do NetImóveis pode ser explorado mais vastamente, fornecendo análises mais específicas e detalhadas do que as realizadas aqui.
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ALMEIDA, R. P. • Tendências espaciais do mercado imobiliário da região metropolitana...
Democracia e produção do espaço urbano
Grupo de Trabalho 3
III Simpósio de Ciências Sociais: Cidade e Democracia
Instituto de
Ciências Sociais
Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
Participação dos moradores e desafios no
processo de democratização de decisões
na cidade - a experiência do Orçamento
Participativo Digital 2011 em Belo Horizonte
Ana Maria Rodrigues de Oliveira1
Resumo: Considerando-se a importância das experiências de participação
direta dos moradores em cidades, este artigo enfoca a relação entre
informação, participação política e processo de democratização, com base
na experiência do Orçamento Participativo Digital (OPD) de Belo Horizonte
edição 2011. O foco são as possibilidades criadas a partir da troca de
informações e de formas inovadoras de comunicação entre os moradores
e a Prefeitura, como também a existência de problemas na relação de
confiança entre os moradores e a PBH, o que se refletiu numa queda
expressiva da participação dos moradores no OPD 2011, se comparado
às edições anteriores de 2008 e 2006. São utilizados aportes teóricos das
áreas de Ciências Sociais e Comunicação Social, com referências a trabalhos
ligados à questão da informação, sua relação com a prática da democracia
e à experiência do OPD. Na pesquisa de campo, foi priorizado o método
qualitativo (entrevistas semiestruturadas; o acompanhamento do site do
OP, conteúdo de blog, diálogos travados no Facebook) e também houve a
compilação de dados estatísticos comparativos, baseados nos relatórios sobre
as votações nos OPDs 2011, 2008 e 2006. Algumas conclusões apontam
para alguns desafios que se colocam ao processo de democratização na
cidade.
Palavras chave: Informação. Participação. Democracia. Orçamento
Participativo.
1. Doutora em Ciências Sociais pela PUC Minas. Professora na Faculdade de Comunicação
e Artes.
III Simpósio de Ciências Sociais: Cidade e Democracia
Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
INTRODUÇÃO
Um dos objetivos deste trabalho é discutir em que medida, em processos
de cunho democrático como o Orçamento Participativo Digital de Belo Horizonte, a informação é um elemento fundamental, se ela deve estar acompanhada
de processos comunicacionais _ de interação entre os moradores e a Prefeitura,
como também entre eles mesmos _ e se, para a consecução de um processo de
debate e decisão, com resultados efetivos para a cidade, outros fatores podem
gerar influência.
Alguns desses fatores são o da disposição política e dos investimentos
feitos, ou não, pela Administração municipal, o que gera impactos ao processo
democrático. Um terceiro aspecto é se há possibilidade de os moradores protagonizarem uma ação política relevante
Diversos autores ligados às Ciências Sociais consideram o Orçamento Participativo um instrumento inovador em termos de planejamento urbano e de geração de oportunidade para a participação direta dos moradores na definição de
prioridades quanto à realização de empreendimentos na cidade. Admitem, ao mesmo tempo, que esse instrumento de política pública, dada a sua complexidade e as
exigências que sua prática impõe, precisa ser constantemente aperfeiçoado.
Em Belo Horizonte, a exemplo de algumas outras cidades no país, o Orçamento Participativo tem sido adotado de forma ininterrupta. De 1993 a 2014,
há cerca de 21 anos, a cidade mantém a experiência, através de três modalidades:
o OP Regional, que se realiza com rodadas de assembleias; o OP Digital, em que
os cidadãos votam em obras para a cidade através da Internet; e o OP Habitação,
que tem uma dinâmica diferente dos demais.
O OP Regional foi criado em 1993, na gestão do Prefeito Patrus Ananias
(1993-1996), do Partido dos Trabalhadores (PT); a cada dois anos, os moradores
se reúnem nos bairros e em assembleias regionais para escolherem, através do
voto direto e da escolha de delegados, as obras a serem executadas pela Prefeitura (PBH). Implantado em 1996, o OP Habitação possibilita à população decidir
sobre como devem ser aplicados os recursos para a construção de moradias,
envolvendo ainda o Conselho Municipal de Habitação.
O OP Digital foi implementado em 2006 e, desde então, teve edições em
2008, 2011 e 2013. Inicialmente, deveria ocorrer de dois em dois anos, mas,
para evitar que sua realização coincidisse com anos eleitores, a PBH decidiu
transferi-lo para os anos ímpares. Sua dinâmica consiste na utilização do portal
da Prefeitura onde é hospedado o site que contém os mecanismos para a votação
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OLIVEIRA, A. M. R. • Participação dos moradores e desafios no processo de democratização...
III Simpósio de Ciências Sociais: Cidade e Democracia
Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
dos moradores2. Em 2011, a gestão do Prefeito Márcio Lacerda (2009-2012), do
Partido Socialista Brasileiro (PSB), implementou alguns mecanismos inovadores
para a interação entre os moradores e a PBH, como a implementação de sua página nas redes sociais, Facebook e Twitter, a realização de cinco chats (conversas
virtuais), tendo o suporte da Assessoria de Comunicação Social (ASCOM) e da
Secretaria Municipal Adjunta de Planejamento e Gestão.
Para efetivar o OP Digital na cidade, a PBH precisa contar com o trabalho
e empenho dos servidores públicos, especialmente ligados às áreas de Planejamento, Gestão Compartilhada, Comunicação Social, informática, através da
PRODABEL (Empresa de Informática e Informação do Município de Belo Horizonte) e das nove Administrações Regionais3.
Em função de alguns desafios, o processo de preparação do OPD 2011começou dois anos antes. Na avaliação feita pela equipe da PBH após o OPD 2008,
foram detectados alguns problemas quanto aos procedimentos de segurança na
votação por meio digital, o que demandou certos ajustes, sob o acompanhamento do Ministério Público Estadual (MPE). Um deles foi a ocorrência de listas irregulares de votação. A PBH criou, então, um Grupo de Trabalho (GT), constituído
por representantes dos órgãos ligados à execução do OP, da Auditoria Geral,
Procuradoria Geral do Município e do MPE.
A fase de preparação incluiu decisões sobre a forma de seleção das obras
a serem apresentadas à população, a definição dos recursos a serem aplicados,
que foi estipulado em um total de R$ 50 milhões, as estratégias de comunicação e de mobilização, as linhas gerais para a preparação do site do OPD e
aplicativos para o processo de votação. Ficou estabelecido que, diferentemente
de 2008, em que os cidadãos escolheram uma só obra de caráter estruturante na cidade, os moradores poderiam escolher uma obra por Regional, como
aconteceu em 2006.
PARTICIPAÇÃO E INFORMAÇÃO
Na etapa de preparação do OPD, começam a ser registrados alguns problemas relacionados à falta de participação dos moradores. Apesar de as lideran2. No OPD votam os cidadãos com título eleitoral em BH. Em dezembro de 2011, o
município possuía cerca de 2,3 milhões de habitantes, entre os quais 1,8 milhão de eleitores
aproximadamente, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) e PBH.
3. As nove administrações regionais são as do Barreiro, Centro-Sul, Leste, Nordeste, Noroeste,
Norte, Oeste, Pampulha e Venda Nova.
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Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
ças ligadas ao OP já terem feito reivindicações para participarem do processo de
seleção das obras, elas não foram convocadas pela PBH.
Essa questão pôde ser constatada em diversas entrevistas com lideranças
de quatro Regionais _ Barreiro, Leste, Noroeste e Norte4. O processo de decisões
foi conduzido, basicamente, de forma interna pela Prefeitura. Uma representante
da Gerência do Orçamento Participativo, ligada à Secretaria de Planejamento5,
explicou que alguns critérios nortearam a escolha das obras, como a existência
de algumas já aprovadas e ainda não concluídas na cidade; estudos técnicos sobre a viabilidade de várias delas;; a apresentação de sugestões feitas por lideranças nas reuniões do Planejamento Participativo Regionalizado (PPR), instância
criada pela gestão Lacerda para ouvir os moradores e, com base em suas reivindicações, propor um planejamento a longo prazo para o município.
No entanto, membros das COMFORÇAS (Comissões de Acompanhamento e Fiscalização da Execução do Orçamento Participativo)6 nas Regionais
tinham a expectativa de serem ouvidos nessa etapa. Além disso, em 2010 havia
sido constituída a Comissão Municipal do OP, a chamada COMFORÇA Mu nicipal, que reúne lideranças das nove Regionais. Esta Comissão também não foi
chamada a opinar. Um representante da Secretaria de Planejamento reconhece
que a criação da Comissão visou aprofundar o processo de representação, dando
às COMFORÇAS um papel maior do que apenas o de fiscalizar a execução das
obras, e possibilitar uma discussão mais geral sobre a cidade, gerando-se um
processo de aprendizado e de formação.
Nas reuniões do GT na Prefeitura, foram propostas algumas estratégias de
informação e de comunicação para o OPD 2011 a fim de mobilizar os moradores
e divulgar o OPD em toda a cidade.
Nessa etapa da análise, torna-se necessário situar os conceitos de informação e comunicação. A distinção e as semelhanças são trabalhadas por autores
como Cohn (2001) e Wolton (2010). Segundo eles, a Comunicação tem a ver com
conteúdos e sua circulação, ao passo que a Informação se refere ao modo como
estes entram ou não na circulação. O domínio da Informação é o da seleção do
que terá valor significativo e comporá o campo dos conteúdos a integrarem a
4. As entrevistas compuseram parte do trabalho de campo realizado em tese de doutorado
defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC Minas, em fevereiro de
2014, sob o título “Comunicação, Participação Política e Tensões da Democracia no Governo
Local – a experiência do Orçamento Participativo Digital 2011 em Belo Horizonte’’.
5. Neste artigo, optou-se por omitir os nomes de entrevistados para garantir seu anonimato.
6. As COMFORÇAS foram criadas no OP Regional e participam ativamente das várias
modalidades do OP.
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III Simpósio de Ciências Sociais: Cidade e Democracia
Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
Comunicação. Processo de informação está ligado à mensagem, enquanto o de
Comunicação a seu compartilhamento, o que implica o aspecto relacional. Informação e Comunicação são distintas, embora tenham interdependência, pois
uma depende da outra.
Maia e França (2003) afirmam que a Comunicação deve ser analisada
como “um processo de produção e compartilhamento de sentidos entre sujeitos
interlocutores, processo sempre marcado pela situação de interação e pelo contexto histórico”. (MAIA; FRANÇA, 2003, p. 188).
Com base nesses conceitos, é possível afirmar que a PBH adotou processos de informação e de comunicação no OPD 2011, cujas fases consistiram em
preparação (a partir de 2009), execução (ano de 2011) e votação (dezembro de
2011). A ASCOM centralizou o processo de criação e produção de cartazes, do
Jornal do OP, folders (com a lista de obras propostas à votação) e os distribuiu
amplamente nas nove Regionais. Contou, nesse caso, com o apoio dos gerentes
de OP e de lideranças para fazerem corpo-a-corpo com os moradores, incentivando-os à participação.
O setor de Comunicação também propiciou formas de interação entre a
Prefeitura e os moradores, através de espaços abertos às opiniões no site do OPD
e nas redes sociais. Durante o período de votação, dos dias 21 de novembro e 11
de dezembro, a ASCOM e o Planejamento realizaram cinco chats. Em cada um
deles, houve um representante da PBH dando esclarecimentos aos moradores
sobre obras em questão, tirando dúvidas quanto ao processo de votação. Outras
estratégias consistiram em enviar notícias para a imprensa local e utilizar o jornal DOM (Diário Oficial do Município) para divulgar informações sobre o OPD.
Houve um empenho em divulgar informações sobre o OPD e a Prefeitura
investiu recursos suficientes na produção das peças gráficas, de acordo com uma
representante do setor. No total, foram produzidos 200 mil folders, com o slogan
“Chegou a hora de você escolher o melhor para BH”. Uma liderança entrevistada
na Regional Noroeste avaliou que o Jornal do OP possuía uma linguagem acessível e objetiva. Quanto ao folder, disse que o slogan adotado é abstrato, pois o que
é “o melhor para BH”? Ressaltou que os próprios moradores estavam produzindo
faixas para ajudar a mobilizar os outros cidadãos.
No entanto, ao transferir para o mês de novembro a divulgação massiva na
cidade, a PBH correu o risco de que muitos moradores não ficassem sabendo do
OPD e não se preparassem para votar. É possível afirmar que a PBH não valorizou o caráter processual e pedagógico nessa fase de debates no OPD, antecendo à
votação. Como atesta o ex-Prefeito Patrus Ananias e o ex-Secretário de Governo,
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Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
Luiz Soares Dulci, instâncias como o OPD são importantes para o aprendizado e
a participação política qualificada. Deve-se valorizar e dinamizar o lado educativo
da experiência, procurando-se envolver os cidadãos com as questões da cidade.
Quanto à distribuição do material impresso nas Regionais, algumas lideranças disseram que estavam se esforçando para sensibilizar os moradores mas
sentiam a falta do apoio da PBH, que poderia organizar eventos, com a participação de atores, palhaços e brincadeiras para as crianças.
Na Regional Barreiro, um fator fundamental na mobilização foi a participação de lideranças religiosas, não apenas ligadas à Igreja Católica mas também
a outras religiões. Muitas delas se dispuseram a ir de casa em casa para convidar
os moradores a participarem do OPD. Ao final da votação na cidade, entre as
obras eleitas nas nove Regionais, a do Barreiro, a revitalização da rua Antônio
Eustáquio Piazza, foi a que apresentou o maior número de votos, 7.052, seguindo-se uma obra para tratamento de fundo de vale na av. Basílio da Gama, na
Regional Norte, com 5.086 votos.
Foi possível acompanhar o site do OPD durante 22 dias (uma vez por dia)
e a página da PBH no Facebook durante 33 dias, entre os dias 10 de novembro e
12 de dezembro, o que coincidiu em grande medida com o período de votação.
Nesses dois espaços virtuais, foram registradas muitas indagações, dúvidas e também comentários críticos em relação à não execução de obras já aprovadas no OP.
Críticas se destacaram em relação à não implementação da obra para a reforma da
Praça São Vicente, na Regional Noroeste, que fora a vencedora no OPD de 2008.
Alguns comentários colocavam em dúvida a construção de uma alça viária no bairro Belvedere, na Regional Centro-Sul, que havia sido derrotada no
OPD 2008. Tanto no site do OPD como na página no Facebook, moradores perguntavam se a PBH teria usado os recursos destinados à reforma na Praça São
Vicente para a obra no Belvedere, bairro de população de renda elevada.
Frente a isso, a Gerência do OP postou uma nota no site, informando que
a obra em realização no Belvedere era de responsabilidade da Empresa Leroy
Merlin, a título de contrapartida definida pelo licenciamento ambiental. Esclarecia, ainda, que a obra na Praça São Vicente tinha sido incorporada ao projeto
de revitalização do Anel Rodoviário, o que dependia do governo federal. Alguns
moradores fizeram fortes críticas à PBH, enquanto outros se diziam “decepcionados” e mostravam desânimo para votar de novo.
Uma representante da Gerência do OP admite que a Prefeitura foi tímida
em informar os cidadãos sobre estas questões. Poderia ter usado outros meios de
comunicação para esclarecer os moradores sobre os fatos.
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Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
Uma liderança da Regional Noroeste, entrevistada antes do período de
votação, havia previsto que a não execução da reforma na Praça São Vicente poderia influenciar negativamente a votação no OPD 2011. Ele perguntava: como
as lideranças vão convencer os moradores a votar, se a Prefeitura não cumpriu o
compromisso firmado após a decisão dos moradores no OPD 2008? Como vai ser
tratado nas seções seguintes, os resultados finais da votação foram influenciados
pela falta de uma adequada prestação de contas aos moradores pela Prefeitura.
O PROTAGONISMO DOS MORADORES
Uma experiência exitosa de comunicação ocorreu no Bairro Tupi B, Regional Norte. A iniciativa foi proposta por moradores que, através do OPD, conquistaram a realização de obra para tratamento de fundo de vale na Avenida
Basílio da Gama. A forma de mobilização mostrou como é possível que cidadãos
exerçam algum tipo de protagonismo.
Esses moradores foram de casa em casa para sensibilizar os vizinhos sobre a importância da aprovação da obra e criaram formas inovadoras de interação, através de um blog, o que suscitou interesse tanto por parte da Prefeitura,
como de alguns meios de comunicação de massa. A Rádio Itatiaia, por exemplo,
produziu reportagens no local e convidou lideranças para participarem de programas de entrevistas em seu estúdio. Posteriormente, a Rede Globo de Televisão
e o jornal Hoje em Dia deram destaque à mobilização.
Um morador do Bairro Tupi, que nunca participou de associações comunitárias, conta que, como já havia uma grande torcida em favor de duas
outras obras na Regional, era necessário criar uma estratégia em favor da obra
na Basílio da Gama, onde há esgoto a céu aberto e falta de atenção das autoridades. A partir de reuniões, decidiu-se cadastrar, junto à PBH, um local de
votação em uma residência. O grupo comprou papel, canetas e fitas adesivas
para fazer material de divulgação e elaborou um cronograma de visitas a casas
e locais de comércio. Paralelamente, o jornal comunitário Comunidade em
Ação - criado pelo jornalista Marcos Silva, morador do Bairro Tupi, e distribuído mensalmente de forma gratuita - publicava notícias sobre a mobilização.
A partir daí, Silva e sua equipe decidiram criar o blog SOS Basílio da Gama,
postando depoimentos dos moradores, fotos do local e pequenas mensagens
conclamando os cidadãos a irem votar. Percebendo o envolvimento da comunidade, a Prefeitura criou um link de acesso ao blog (http://sosbasiliodagama.
blogspot.com) no site do OP.
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De acordo com o morador entrevistado, o blog foi primordial para a vitória da obra na Basílio da Gama, pois ajudou a sensibilizar não só moradores da
região, como também de outras Regionais. Ele percebeu essa repercussão durante
as perguntas de alguns jornalistas que o entrevistaram. Um outro resultado dessa
mobilização foi que a Regional Norte tornou-se a segunda colocada no total de
votos dados às quatro obras, superando a Noroeste, que tem um importante histórico de participação e ficou em terceiro lugar neste OPD 2011.
Figura 1 - Imagem do Blog SOS Av. Basílio da Gama
Fonte: SOS AV. BASÍLIO DA GAMA
Analisando-se a experiência dos moradores, é possível registrá-la como
uma exitosa ação de comunicação pública. A comunicação pública está relacionada a processos que envolvem o poder público e a sociedade. Matos (2009) a
conceitua como “um processo de comunicação instaurado entre uma esfera pública que engloba Estado, governo e sociedade, um espaço de debate, negociação
e tomada de decisões relativas à vida pública do país”. (MATOS apud MATOS,
2009, p. 49). A comunicação pública vai além da comunicação governamental ao
centralizar o processo nos cidadãos.
Entre os jornais de grande circulação em Belo Horizonte, o Hoje em Dia
foi o que deu maior destaque à cobertura sobre o OPD, tanto em volume de
informações como em dias de abordagem sobre o tema. O jornalista Amílcar
Batista Brumano, do Caderno Minas, comentou que, após 10 de outubro, em que
o Diário Oficial do Município (DOM) anunciou o OPD, e também com o início
do processo de votação, o jornal publicou uma série de nove reportagens, referindo-se, cada vez, às quatro obras indicadas por Regional, com depoimentos de
lideranças e moradores. A série foi publicada entre os dias 27 de novembro e 5
de dezembro. Depois, houve reportagens na véspera do último dia de votação e
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III Simpósio de Ciências Sociais: Cidade e Democracia
Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
no dia 11 de dezembro, quando foram anunciadas as obras vencedoras. No total,
treze matérias foram editadas sobre o OPD.
Segundo Brumano, o jornal decidiu valorizar a cobertura deste fato, porque o tema atendia ao interesse dos cidadãos em geral, o que é um dos papéis e
compromissos do jornalismo comunitário. “O objetivo era detalhar para os cidadãos que iriam votar o que previa cada obra concorrente nas Regionais. Demos
voz a quem defendia cada obra, para que o leitor/eleitor tirasse sua conclusão”.
Ele acredita que essa cobertura causou impacto junto à população,
porque alguns moradores enviaram e-mails elogiando as reportagens. “Acreditamos que as reportagens provocaram positivamente muitos leitores/eleitores, até então com pouco interesse em participar da votação”. Outra repercussão foi que a Prefeitura, através da ASCOM, enviou mensagem de agradecimento ao jornal. Brumano considera que a PBH foi solícita em repassar
todas as informações requeridas pelos repórteres e enviou releases à imprensa
durante todo o processo.
OS RESULTADOS DA VOTAÇÃO
Em dezembro de 2011, os números da votação foram divulgados no portal da PBH, através do “Relatório do resultado da votação no OP Digital 2011”.
No documento, foram apresentadas as estatísticas sobre o total de votos e de
votantes, números por Regional, por faixa etária, por gênero e em cada um dos
21 dias de votação nas três semanas.
Na comparação entre as votações nos três OPDs já realizados, é importante se levar em consideração que a metodologia aplicada em 2011 é a mesma
de 2006, isto é, contempla a possibilidade de o cidadão votar em até nove obras,
sendo uma por Regional. Já em 2008, cada cidadão votava em apenas uma obra
de caráter estruturante na cidade. A Tabela 1, a seguir, traz os principais dados
comparativos dos três OPDs.
Os dados da Tabela são eloquentes. Observa-se, inicialmente, que houve
uma redução acentuada na participação dos moradores nos OPDs. Se, em 2006,
o total de votantes foi de 172.938 (equivalentes a expressivos 9,93% do eleitorado
de Belo Horizonte), já em 2008 verifica-se uma significativa redução deste número, para 124.320 votantes (7,02% do eleitorado da cidade, queda de 28%). Mas a
queda mais acentuada se verificou no OPD 2011, onde apenas 25.378 eleitores
participaram do processo (equivalentes a 1,39% do eleitorado), redução de 80%
em relação ao OPD 2008 e de 85% em relação ao OPD 2006.
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Tabela 1 – Comparativo dos resultados de votação no OPD - 2006, 2008 e 2011
ITENS
Votantes
Votantes/
eleitores
Total de Votos
Dias de Votação
OPD
2006
OPD
2008
OPD
2011
VARIAÇÃO
172.938
124.320*
25.378
2008 /
2006
- 28 %
2011 /
2008
- 80%
2011 /
2006
- 85%
9,93%
7,02%
1,39%
---
---
---
503.266
45
124.320*
25
92.724
21
**
- 44%
***
- 16%
- 82%
- 53%
(*) Pela metodologia de 2008, o total de votantes é igual ao total de votos.
(**)Total de 2008 não é compatível com o de 2006, dado que a metodologia é diferente.
(***)Total de 2011 não é compatível com o de 2008, dado que a metodologia é diferente.
Fonte: Elaborado pela autora a partir dos dados da Prefeitura de Belo Horizonte e TSE
Também em relação ao total de votos, há uma queda expressiva. A diferença de metodologia pode explicar, em parte, a forte redução no número de
votos em 2008 (124.320), quando se votava em apenas uma obra, em relação a
2006 (503.266), quando se votava em até nove obras. Mas a comparação entre
2006 e 2011, em que a metodologia era a mesma, revela uma redução superior a
80% no número de votos. É importante, por outro lado, se levar em consideração
que houve uma diminuição significativa do número de dias de votação, de 45
dias em 2006, para 25 dias em 2008 e 21 dias em 2011 (redução de 53%), com
provável impacto no número de votantes e de votos. De todo modo, o que o resultado de 2011 revela é uma participação muito inferior à verificada nos OPDs
de 2006 e 2008.
Alguns aspectos abordados até aqui já vinham apontando problemas ao
longo do processo de preparação e execução do OPD. Entre os fatores explicativos para o resultado da votação no OPD 2011, pode-se elencar os seguintes:
• a não execução da obra na Praça São Vicente, vencedora no OP 2008,
na Regional Noroeste, e a insuficiente resposta da PBH para justificar os
motivos, o que denota problemas de transparência e prestação de contas.
A obra na Praça São Vicente tinha sido escolhida, no OPD 2008, por
48.173 moradores, número quase o dobro do total de votantes no OPD
2011 (25.378) (BELO HORIZONTE, [2009]). Este fator pode ter sido um
dos mais influentes no resultado da votação;
• a exclusão das lideranças na seleção de obras a serem votadas – diferentemente do que acontecera em 2006 -, o que gerou questionamentos sobre
o nível de participação desses atores nas decisões adotadas. A Comissão
Municipal do OP poderia ter tido uma participação mais efetiva nesta fase;
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OLIVEIRA, A. M. R. • Participação dos moradores e desafios no processo de democratização...
III Simpósio de Ciências Sociais: Cidade e Democracia
Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
• a falta de informações regulares, ao longo do ano, sobre obras já aprovadas e ainda não executadas no OP;
• a decisão de se estabelecer um período muito próximo à votação para se
fazer uma ampla divulgação sobre o OPD;
• a exigência de maior número de informações do eleitor para habilitá-lo
à votação; a redução do número de dias de votação;
• a aposta excessiva nas redes sociais e a pequena utilização de meios de
comunicação de massa, como a televisão;
• possíveis dificuldades, por parte das lideranças, em mobilizar os cidadãos, por não terem contado com o apoio de equipes especializadas e
disposto de pouco tempo para o trabalho com os moradores;
fatores ligados à estrutura funcional da PBH: a equipe responsável por
atividades essenciais ao gerenciamento do OP é pequena e, apesar de
todo o esforço demonstrado por alguns servidores, não se conseguiram
aperfeiçoamentos institucionais no OPD 2011 em relação às edições passadas. Seria necessário um investimento maior em pessoal, em meios de
trabalho e o envolvimento de servidores de outros órgãos da PBH para
atuarem, de alguma maneira, como mobilizadores do OPD.
Mas, acima de tudo, os dados da Tabela 1 indicam que, malgrado os
esforços da Assessoria de Comunicação Social na busca por mecanismos inovadores de interação entre os moradores e a PBH e o empenho dos outros setores
responsáveis pelo OPD, houve uma inequívoca perda de prioridade política do
OPD na gestão Márcio Lacerda (2009-2012). O OPD pareceu significar, para a
gestão Márcio Lacerda, um programa a cumprir sob pena de ficar desacreditada,
muito mais do que uma aposta consistente num instrumento de democratização
do Governo Municipal.
DESAFIOS DA GOVERNANÇA ELETRÔNICA
É praticamente consensual que as novas tecnologias de informação
criaram possibilidades inovadoras para as experiências de governos e geraram
inúmeras oportunidades aos processos democráticos. Apesar dessa novidade,
elas não podem ser analisadas, em si mesmas, como um fator central desse tipo
de experiência. A utilização com fins democráticos e emancipatórios dessas
tecnologias não ocorre automaticamente mas depende, sobretudo, da vontade
política dos governos, para que potencializem o envolvimento e a participação
política cada vez maior dos cidadãos.
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OLIVEIRA, A. M. R. • Participação dos moradores e desafios no processo de democratização...
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Há também uma concordância geral de que as modernas tecnologias permitem colocar os cidadãos em contato, em ações recíprocas e vínculos virtuais
variados, criando-se um potencial de interação mais abrangente do que aquele
possibilitado pelos meios de comunicação tradicionais, como o rádio, a televisão,
o jornal. Por esse motivo, existe um entusiasmo em torno do uso da Internet
como meio que pode fortalecer o processo democrático.
Existem acentuadas diferenças entre os fóruns de discussão na Internet
e as práticas realizadas face a face. Quando os participantes se reúnem para o
debate em caráter presencial, podem avaliar as argumentações e responder a elas
dispondo de algum tempo para fazê-lo. É possível transpor esse ambiente para
a Internet? Segundo o autor, a web oferece a vantagem de adaptar a comunicação
entre pessoas que não podem envolver-se num debate nas condições de mesmo
tempo e lugar.
Outra indagação deve ser feita: um governo democrático teria meios para
envolver todos os cidadãos de uma localidade, incluindo os que não têm acesso
à Internet? Uma vantagem desse debate através da Internet, que poderia durar
vários dias, é que as pessoas podem participar em horários diferentes e de formas diversas. O resultado seria um grande painel, com a exposição dos vários
argumentos.
Frey (2002) relaciona o uso da Internet à vontade política dos governantes. E faz alguns questionamentos sobre a disposição dos governantes em
compartilhar decisões. Segundo ele, a maioria dos governos tem limitado suas
iniciativas a uma “abordagem essencialmente conservadora que evita mudanças
mais profundas na maneira como o governo opera e funciona. O governo está
preocupado em não repassar seu poder e influência a outros atores sociais ou
políticos”. (FREY, 2002, p. 147).
No caso das experiências democráticas, para aproveitar todo o potencial
das novas tecnologias, os governos precisam efetivar algumas reformas administrativas a fim de preparar a estrutura governamental aos desafios de um ambiente cada vez mais complexo e mutante.
CONCLUSÃO
Passando-se às considerações finais, é possível concluir que os processos
de informação e de comunicação instaurados pela PBH, ao longo do OPD 2011,
foram importantes para a participação política. Se, por um lado, houve interações tipicamente comunicacionais, por outro, o processo se caracterizou como
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de informação, já que a PBH concentrou a produção, seleção e difusão de informações voltadas para os moradores.
Paralelamente a isso, foi registrada uma experiência exitosa de comunicação pública. Através da criação do blog SOS Basílio da Gama, cidadãos da Regional Norte conseguiram sensibilizar outros moradores da cidade e conquistar
a seleção da obra de saneamento na Avenida Basílio da Gama.
No entanto, a estratégia, definida pela PBH, de divulgar e mobilizar os
cidadãos a apenas um mês da votação não pareceu adequada. Dada a complexidade do OP Digital, seria oportuna uma revisão dessa estratégia, com a adoção
de espaços no portal da Prefeitura que incluam a participação dos cidadãos e
suas vocalizações ao longo de todo o ano.
Verificou-se que a PBH não investiu na prestação de contas sobre obras
aprovadas em edições anteriores do OPD e no OP Regional e até hoje não executadas, o que tem uma relação direta com o estabelecimento de maior confiança dos moradores para com a Prefeitura. No OPD 2011, essa relação pareceu
problemática em alguns momentos o que, em boa medida, pode ter influenciado
o decréscimo de participação dos moradores nesta edição.
Por outro lado, ao longo do OPD 2011, observou-se a relevância do
papel das lideranças comunitárias e membros da COMFORÇAS em aumentar
a participação, como ocorreu na Regional Barreiro. Também em outras Regionais, essa atuação foi determinante na mobilização de cidadãos e na criação de
um espaço político onde foram discutidas reivindicações à PBH para a inclusão
de outros atores na fase de decisões relativas ao OPD. Já no caso da Regional
Noroeste, é possível supor que a influência de algumas lideranças possa ter
desestimulado a participação, tema este que merece um aprofundamento em
pesquisas posteriores.
Quanto aos resultados finais da votação, houve um decréscimo significativo da participação dos cidadãos no OPD 2011, em comparação aos resultados
das votações em 2008 e 2006. Esse decréscimo levanta a possibilidade de que
ocorra um processo gradual de desmobilização dos moradores, a menos que o
OPD venha a ser aperfeiçoado nos próximos anos.
Sobre a importância dada pela gestão Márcio Lacerda ao OPD 2011,
constatou-se que a Administração executou-o para manter um programa que é
apoiado por segmentos da população, não investindo em seu aperfeiçoamento,
a exemplo do que ocorreu nas administrações anteriores. Pode-se supor que o
OP tenha deixado de ser prioridade na gestão, em virtude da afirmação de um
projeto político diferente pelo governo liderado pelo PSB.
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Para haver um aperfeiçoamento no OPD, serão necessários investimentos no aumento e incentivo à equipe de servidores e na adequação da máquina
administrativa aos desafios colocados. Como alguns autores mostraram, formas
de governança eletrônica são inovadoras, mas demandam inúmeros esforços e
iniciativas.
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Instituto de
Ciências Sociais
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VENDEDORES AMBULANTES DE BETIM:
A CIDADANIA CONSTRUÍDA PELA PRÁTICA
DEMOCRÁTICA DE ASSOCIAR-SE
Geisiane Andreia Fonseca1
Maria Carolina Tomás2
1. Advogada. Mestranda em Ciências Sociais pela PUC MINAS. Email: geise.fonseca@
hotmail.com
2. PhD em Sociologia e Demografia e Professora do Departamento de Ciências Sociais da
PUC MINAS. Email: [email protected]
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INTRODUÇÃO
Esse artigo tem por objetivo a análise do processo de associação em sua
interrelação com o sistema democrático e com a cidadania, para tanto tomase como objeto de observação o caso dos vendedores ambulantes, membros da
Associação dos Vendedores Ambulantes de Betim – ASSOVAMB, como atores
sociais e políticos, que na prática democrática de associar-se alteram o espaço
público da cidade, fortalecem o capital social e incrementam o processo de cidadania enquanto realidade.
Inicialmente narrar-se a trajetória associativa dos vendedores ambulantes
na esfera pública de Betim, cidade compreendida na área metropolitana de Belo
Horizonte. Posteriormente, discute-se a formação de identidade coletiva e o reconhecimento enquanto grupo com interesses comuns.
A mobilização da sociedade civil através da constituição de associação
civil formal, com o fim de pressionar a administração pública local a implementação de políticas públicas das quais são destinatários. E assim se passa a
observação de processo de associação que possibilitou o auto-reconhecimentos dos vendedores ambulantes de Betim enquanto sujeito de direitos, civis,
políticos e sociais, e portanto cidadãos, com possibilidades reais de participação democrática, o que contribui sobremaneira para o fortalecimento da
cidadania plena.
Para análise utilizou-se de material jornalístico local, especificamente o
Jornal O Tempo e o Jornal Tribuna, entre os anos de 2005 a 2014, retirando de
suas matérias a narrativa acerca da história dos vendedores ambulantes e seu
processo associativo na esfera pública de Betim.
A ATUAÇÃO DA ASSOCIAÇÃO DOS VENDEDORES
AMBULANTES DE BETIM NA ESFERA PÚBLICA MINICIPAL
Betim, município pertencente a região metropolitana de Belo Horizonte, é
cenário de conflitos, uma vez que é grande o número de vendedores ambulantes,
sendo que anteriormente ao ano de 2009, a ação prioritária dos vendedores ambulantes era de se fixarem nas calçadas e nas ruas da cidade, com suas bancas e
propagandas chamativas, tomavam “conta das calçadas das principais avenidas,
provocando inúmeros transtornos. A presença dos camelôs também incomoda
quem precisa trafegar pelas calçadas da cidade. Muitas vezes as pessoas são obrigadas a invadir as pistas de rolamento” (JORNAL O TEMPO, 13/02/2009).
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Para tanto, os diversos atores sociais, vendedores ambulantes, comerciantes, consumidores, gestores municipais, transformaram o município enquanto
espaço público para a discussão da problemática da informalidade. O espaço
público, conceito inicialmente trabalhado por Habermans para idealizar a Europa dos séculos XVI e XVII, foi “concebido para descrever a ascensão e o declínio de fóruns em que imparciais cidadãos burgueses da Europa do século XVII
podiam discutir seus pontos de vista e formar opinião pública”. O conceito de
esfera pública sofreu diversas transformações tanto pelo próprio autor, quanto
por teóricos da sociologia política, de modo a conciliar o tema a assuntos como
sociedade civil, “e o potencial democratizante das associações civis e suas redes
de comunicação” (OTTMANN, 2004, p. 62).
Sobre a informalidade sua atenção recai sobre a venda de produtos nas
vias públicas, a preços menores, e de forma desorganizada, o que foi debatido
sob vários pontos de vista. A atitude da prefeitura consiste na retirada de tais trabalhadores das ruas, tendo promovido em 2009 o programa “Betim é mais”, com
“o objetivo de promover a limpeza, recuperação e manutenção urbana” (JORNAL
TRIBUNA, 12/02/2009).
O plano diretor da cidade, Lei nº 4.574/2007, elaborado pela Câmara dos
Vereadores, aduz que para que a cidade possa cumprir sua função social disponibilizará espaços públicos e privados, equipamentos e serviços, o desempenho
de atividades econômicas, bem como para a circulação de pessoas e bens, sendo
que a utilização de espaços públicos depende de alvará de comercialização obtido através do procedimento licitatório, assegurando aos cidadãos o direito ao
trabalho o direito ao trabalho, à moradia salubre e segura, à educação, à saúde,
ao lazer, ao esporte, à cultura, ao abastecimento, à segurança e ao meio ambiente
não degradado.
Comerciantes que oferecem produtos similares aos oferecidos pelos ambulantes afirmam que a retiradas dos vendedores ambulantes é medida que impera, haja vista impedem a circulação de a segurança de pedestres, reduzem a
venda dos comerciantes da cidade, havendo uma concorrência desleal, na medida em que os preços dos comerciantes são maiores devido a impostos e encargos
tributários (JORNAL TRIBUNA, 12/02/2009).
Já os vendedores ambulantes explicitam que a atividade que exercem é
um problema a ser resolvido, mas que deve ser considerada enquanto propicia o
desenvolvimento da cidade, vez que não querem permanecer na informalidade,
e sua regularização pela prefeitura traria retornos variados para a municipalidade (JORNAL TRIBUNA, 12/02/2009).
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Razão pela qual pode-se afirmar que a esfera pública de Betim é local em
que podem os sujeitos se expressarem, difundir conteúdos simbólicos, de maneira a expor suas diferenças, contribuindo para a construção da identidade coletiva de grupos, externalizando processos de negociação, circulação de valores,
articulação de argumentos e opiniões, através de uma convivência democrática,
conciliando diferenças e conflitos.
A prefeitura municipal realizou a retirada dos vendedores ambulantes das
ruas de Betim, paralelamente tais trabalhadores se organização enquanto grupo
de interesses comuns, de modo a empreender ações e fazer suas opiniões presentes nas discussões promovidas pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico,
que contava com a participação dos “comerciantes do CEABE, da feira de artesanato local, envolvendo também a Câmara de Dirigentes Lojistas de Betim (CDL)
e Associação Comercial, Industrial e Agropecuária de Betim (ACIABE)”, e tinha
como fim a organização urbana municipal.
Tais diálogos nas esferas públicas visam provocar mudanças sociais almejadas e consequentemente à devida adequação da norma à realidade a que se
deve amoldar ou, de outro modo, pode possibilitar discussões suficientemente
capazes de criar outra norma mais socialmente aceita. A esfera pública, neste
sentido, tem uma função essencial de ser núcleo comunicativo que filtra e condensa a opinião pública, “constituindo mais uma esfera de influência do que um
poder legislativo direto” (OTTMANN, 2004, p. 72).
Ressalta-se que foi na realização das suas atividades nas ruas de Betim
que os vendedores ambulantes se reconheceram enquanto sujeitos com interesses comuns o que possibilitou que se constituíssem enquanto grupo, pois que é
na esfera pública que grupos se formam é identidades sociais são constituídas,
o conceito de identidade tem correlação íntima com o aspecto relacional, assim
é que a produção de uma identidade coletiva ocorre através de um processo de
pertencimento a um grupo e tê-lo como referência de comportamento, o que
proporciona coesão e integração dos membros, que se reconhecem enquanto
sujeitos em busca dos mesmo interesses (VILAÇA, 2003, p. 55).
Sabe-se que, em 2009, cerca, de 80% dos vendedores ambulantes de Betim viam de outros municípios, contando á época com 75 barracas em que 150
pessoas trabalhavam, assim é que o grupo dos vendedores ambulantes contava
com uma grande diversidade de sujeitos, mas que tinham em comum a utilização do mesmo espaço e da mesma atividade laboral (JORNAL TRIBUNA,
12/02/2009). A questão da formação de identidades coletiva no meio urbano
está intimamente ligada a questão da “permanência e os enraizamentos espa-
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ciais poderão favorecer o desenvolvimento de solidariedades”, e colabora para a
constituição de sujeitos que almejam a melhoria do meio que utilizam, assim é
que a esfera pública é causa para a constituição de identidades e solidariedade,
bem como é o resultado dos diálogos constantes entre seus membros, produto e
produtor de práticas e representações simbólicas (VILAÇA, 2003, p. 70).
A heterogeneidade dos grupos de interesses, no caso em questão, os
comerciantes do CEABE, da feira de artesanato local, dos próprios vendedores
ambulantes, da CDL Betim e a população em geral no espaço público contribuem para a democratização destes espaços, transformando-os em lugar onde
os sujeitos sociais podem se manifestar, expondo suas opiniões, construindo
processos de argumentação e articulação de opiniões, negociação, fluxo de
valores, conciliadora de diferenças e conflitos. Desta forma, a esfera pública
consiste no locus, isto é, local disponível às pessoas privadas de se reunirem
e submeterem ao crivo da argumentação e do julgamento de toda a sociedade
as questões que inicialmente podiam ser consideradas particulares, mas, que
detém relevância pública (DAMASCENO, 1997).
A característica predominantes deste processo democrático no âmbito da
sociedade, denominada visibilidade, consiste na possibilidade de acesso e alcance de uma infinidade de pessoas, eis que publicizadas as necessidades locais,
estas se tornam tema de conhecimento geral, devido ao alcance da discussão e
tornadas visíveis aos sujeitos alheios ao acontecido, possibilitando à aderência
de novos sujeitos as causas defendidas e, deste modo, exercício de influência
ainda maior sobre as decisões políticas. “Pressupõe o acesso garantido a todos os
cidadãos. As questões aí discutidas tornam-se “gerais” não só no sentido de sua
relevância, mas também no de sua acessibilidade” (DAMASCENO, 1997).
Foi pela visibilidade constante que desde anos anteriores os vendedores
ambulantes conseguiram exercer influência e participar legitimamente das discussões sociais promovidas pela SEDEC e pela Câmara dos Vereadores. Em ação
coletiva conseguiram a aprovação de projeto legislativo que se transformou na
Lei Municipal nº 4.690 de 13 de agosto de 2008, na qual constou a autorização
do Município de Betim para que a Associação dos Vendedores Ambulantes de
Betim pudesse usar a área compreendida pelo antigo restaurante popular da
cidade, que mesmo não tendo sido disponibilizado de forma imediata, demonstrou o poder de negociação do grupo (JORNAL O TEMPO, 13/02/2009)
O que demonstra que as necessidades que antes estavam restritas ao conhecimento de um só grupo ganharam publicidade. Este debate democrático
sobre os assuntos de relevância coletiva faz com que a esfera pública assuma um
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caráter político, haja vista que o resultado das discussões em seu seio acabam
por exercer legitimamente uma crítica sobre as decisões do poder instituído. Isso
serve de indicador da gestão do governo, ora, a esfera pública está sendo usada
para criar “mecanismos administrativos que permitiriam uma ligação mais direta entre sociedade civil e o âmbito político formal, levando a uma partilha de
poder entre governo e população” (OTTMANN, 2004, p. 69).
Após a aprovação da lei, novo empreendimento do grupo nasce, promovendo uma maior consolidação enquanto associação, para que assim pudessem
exercer uma pressão ainda maior juntamente a prefeitura para disponibilizar o
espaço, que segundo representantes do grupo “movimentaria cerca de R$ 300
mil por mês e seria fonte geradora de emprego e de receita para a cidade” (JORNAL O TEMPO, 13/02/2009). Segundo Damasceno (1997), a principal função
da esfera pública consiste no exercício de um “controle permanente, através da
opinião pública e do exercício do poder político, submetendo os fatos tornados
públicos ao controle de um público crítico”.
A IMPORTÂNCIA DA ASSOCIAÇÃO DOS
VENDEDORES AMBULANTES DE BETIM E SUA
INTERFERÊNCIA NO CENÁRIO MUNICIPAL
Ainda nas ruas de Betim, os vendedores ambulantes, em processo de
cadastramento para posterior direcionamento ao espaço disponibilizado, o denominado camelódromo, sofriam diversas fiscalizações e apreensão de mercadorias, no entanto anunciavam resistência as ações da prefeitura, na medida em
que enxergavam na atividade o único meio de subsistência como se nota: “Se a
prefeitura não chamar a gente, vou trabalhar no peito e na raça”, afirma o ambulante Tadeu Moreira Café (JORNAL O TEMPO, 06/03/ 2009).
De acordo com Sérgio Costa (1997, p. 17) a sociedade civil é arena
privilegiada para a atuação dos atores políticos, movimentos sociais, ONGs, ou
seja, a diversidades de tipos associativos e formas organizativas, que se diferem
das esferas políticas e econômicas em quatro aspectos, quais sejam: no que se
refere à base de recursos, vez que sua capacidade de influência se baseia na canalização das opiniões públicas; base da constituição de grupos que ocorre na
formação de identidade coletiva por meio de ações ad hoc; natureza do recrutamento de seus membros, pois que a vinculação a tais associações se dá de forma
livre e voluntária, em regra; natureza dos interesses representados constituem
demandas originais do mundo da vida.
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Tais vendedores se entendem enquanto categoria, o que se depreende das
falas destes trabalhadores quando da realização de fiscalização da prefeitura,
em 2009. De acordo com Maria Aparecida Silva “Muitos colegas fecharam as
bancas”, e José Rosa afirma que se faz necessário a criação de “uma forma para
proteger nossa categoria (JORNAL O TEMPO, 17/07/2009). A constituição em
associações é uma meio disponível de afirmação de identidades e luta de grupos,
e assim, fortalecidos por seus laços de solidariedade empreendem juntos ações
coletivas visando dar voz às necessidades de seus membros. Acrescenta-se o fato
de que a associação compreende no meio urbano a uma alternativa às formas
associativas tradicionais como a família, a igreja e a comunidade, consubstanciando uma nova forma de sociabilidade que atenda a sujeitos que hoje passam
seus dias na realização de suas atividades laborais (DURKHEIM, 1984).
Anteriormente ao estabelecimento em associações civis formais, os vendedores ambulantes constituíam nas ruas de Betim movimento social, associação permanente de um grupo de interesses, não institucionalizados. De acordo
com Maria da Glória Gohn (1997, p. 251) se constituir em associações formais é
uma tendência dos movimentos sociais, que corresponde a ações sociais e políticas realizadas por atores sociais coletivos, de diferentes classes e cenários sociais,
políticos e econômicos, que constituem uma força social na sociedade civil em
que atuam.
Os movimentos sociais visam à organização da sociedade civil, tendo por
missão, uma vez que precisam articular a esfera pública, publicizar apropriadamente os anseios do grupo, obter visibilidade, formar opinião pública, bem
como estabelecer diálogos com a Administração Pública. A formação da opinião
pública tem especial relevância para que se possa angariar adeptos na esfera pública às suas causas e assim pressionar com força maior a administração pública
local e influir legitimamente no debate público.
Hoje a Associação dos Vendedores Ambulantes de Betim (ASSOVAMB), é
pessoa jurídica regularmente inscrita no Registro Civil das Pessoas Jurídicas de
Betim, que mesmo tendo sido constituída em 07 de julho de 2007, apenas recentemente conseguiu se apresentar como legítima representante de grupo, e mesmo assim na medida em que articulou a esfera pública e se consolidou enquanto
ator social na sociedade civil. O resultado da organização desses trabalhadores
é que no interior do chamado camelódromo grande parte dos serviços prestados
estão em consonância com a legislação fiscal. Ademais, registra-se que foram
empreendidos alguns projetos no sentido de revitalização do local (JORNAL O
TEMPO, 14/09/2012).
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Salienta-se que, após a autorização do espaço público supranarrado, o
Município não implementou políticas direcionadas diretamente aos vendedores
ambulantes. Ante a falta de ações das autoridades municipais, os vendedores
ambulantes de Betim notaram a importância de se organizarem, assim é que a
Associação dos Vendedores Ambulantes de Betim (ASSOVAMB) realizou reformas no camelódromo em que foram alocados. “Cansados de esperar do governo
municipal as promessas de revitalização do espaço, eles se uniram e colocaram
em prática as reformas no local, que receberá, no total, um investimento de mais
de R$ 240 mil” (JORNAL O TEMPO, 14/09/2012).
Sobre associações Alexis de Tocqueville (1998, p. 147) observou que o direito de associação ilimitado é considerado um pressuposto para a independência e
assim para a liberdade democrática. Vai afirmar ainda que a associação consta “na
adesão pública que certo número de indivíduos dá a tais ou quais doutrinas e no
compromisso que contrai de concorrer de certa maneira para fazê-los prevalecer”,
é um meio de enfrentar obstáculos enfrentados no dia a dia, em que diante destes
os vizinhos estão prontos a se associarem para a resolução do problema, e instrumento capaz de impedir o “despotismo dos partidos e o arbítrio dos príncipes”,
sendo mesmo meio assecuratório contra a “tirania da maioria”.
Assim é que a iniciativa da associação dos vendedores ambulantes de Betim, de construção com recursos próprios, de galpões para a proteção das intempéries do clima, fortalecimento das estruturas existentes, execução do projeto
de prevenção e combate a incêndios, projetos elétricos, instalação de para raios,
e investimento na iluminação do camelódromo visa garantir aos trabalhadores
a dignidade no exercício da atividade, e aos clientes o conforto e a segurança
necessária (JORNAL O TEMPO, 14/09/2012).
O dito se aproxima do observado por na América (1998, p. 393), vindo a
dizer que em sociedades democráticas os cidadãos são em geral independentes,
no entanto são frágeis, não podendo realizar coisas grandes isoladamente, e assim necessitam ajudar-se mutuamente, por meio de associações numerosas. Deste modo associam-se não só para o exercício político, mas para todo o necessário, seja associações comerciais, religiosas, morais, fúteis, ou gerais, a associação
constitui meio de materializar apoio mútuo na sociedade, fortalecer vínculos.
A associação, bem como as ações realizadas conjuntamente por seus integrantes atingiu os efeitos esperados, conforme se infere pela fala do vendedor
ambulante Paulo César da Silva:
Desde o início das obras, o fluxo de pessoas no camelódromo cresceu 60%.
Nas vendas, tivemos um aumento de, em média, 50%. As intervenções
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trouxeram mais segurança para a população e melhoraram a circulação
nos corredores do camelódromo. Essas melhorias atraem o consumidor.
Além disso, estamos nos regulamentando. Hoje, a maioria dos vendedores
fornece nota fiscal dos produtos. Agregamos também mais marcas famosas (JORNAL O TEMPO, 14/09/2012)
Os resultados obtidos demonstram que a associação teve efeitos benéficos
para seus membros, o que conduz ao fortalecimento da ação conjunta para outras demandas, em especial de participação nas políticas das quais são destinatários, tornam visíveis a organização grupo e consequentemente cria espaço para
a formação do capital social, ou seja, a rede de reciprocidade e de solidariedade
cívica é estabelecida na ação conjunta, especialmente em formas associativas, na
medida em que se fortalecem as normas de relacionamento e confiança social,
facilita a coordenação e cooperação do grupo na busca de benefícios mútuos
(PUTMAN, 1995, p. 2).
Assim é que hoje exigem participação dos fóruns de discussão políticas,
em especial nas discussões acerca do processo licitatório para revitalização do
espaço que utilizam, o que está sendo realizado por meio dos representantes
da associação. Conforme previsto no art. 5º XXI da CR de 1988 “as entidades
associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente”. Sobre isto Tocqueville (1998,
p. 147) vai dizer que os mandatários da associação irão representá-los investido
de toda a força coletiva cedida pelos integrantes do grupo, e mesmo não tendo
o poder de legislar, tem em si o poder de atacar as leis ou formular aquelas que
lhes atendam em suas necessidades.
Como é possível depreender, a ASSOVAMB é a instituição representativa
exercendo legitimamente a função interlocutora desses trabalhadores junto aos
órgãos públicos municipais, notadamente no sentido de apresentar as pretensões
normativas e de lutar nos espaços públicos pela formulação de direitos que sejam
do interesse da categoria, e conseqüentemente fortalecem seus vínculos de cooperação e integração, ou seja, o capital social.local.
Atualmente a revitalização de todo o espaço é objeto de procedimento
licitatório, para tanto audiência pública com os atores políticos envolvidos foi
realizada, inclusive com a presença dos representantes da ASSOVAMB. De acordo com o secretário municipal de Desenvolvimento Econômico, Fabrício Freire,
“após esse primeiro encontro, vamos formar uma comissão com representantes do CEABE, da feira livre, do camelódromo, dos ambulantes do entorno, da
Câmara e do Ministério Público”, para que possam assim estabelecer decisões
legitimadas pela participação democrática (JORNAL O TEMPO, 30/05/2014).
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CIDADANIA CONSTRUIDA PELA PRÁTICA
DEMOCRÁTICA DE ASSOCIAR-SE
Os vendedores ambulantes de Betim, anteriormente espalhados pelas
calçadas do município, influindo diretamente na caracterização do local onde
empreendiam suas atividades, que o jornal local considerou como “Uma terra de
ninguém, sem o menor controle por parte das autoridades” (JORNAL O TEMPO, 13/02/2009).
O comércio ambulante era considerado “a única alternativa que essas pessoas têm frente ao desemprego e desqualificação profissional” conforme o vendedor Cosmerino Alves Araújo (JORNAL O TEMPO, 13/02/2009), e hoje estes trabalhadores têm espaço próprio para o exercício do seu comércio, empreenderam
juntos a reforma do espaço, e participação das discussões acerca do processo de
licitação para revitalização de todo o ambiente ao redor, sendo destinatários de
política pública para construção de um shopping popular, o que os integra no
processo de inserção no processo de construção da cidadania a qual tem direito.
A cidadania foi trabalhada por T.H. Marshall (1967, p. 62), que afirmava
a necessidade dos membros de uma comunidade participarem de um padrão
comum de vida civilizada, que consiste na integração na “herança social”, isto é,
exigência dos indivíduos de serem inseridos como participantes da sociedade da
qual fazem parte, o que é o mesmo de admiti-los como cidadãos.
Marshall (1967, p. 63) vai afirmar que há na condição de cidadão uma
igualdade básica entre estes, na medida em que cidadania corresponderia à participação de forma plena na comunidade, o que se diferencia da igualdade econômica, aceitável em parâmetros de razoabilidade. Tal padrão compartilhado de
cidadania foi sendo substancialmente incrementado e ampliado com direitos,
assim é que a cidadania será dividida em três elementos, civil, político e social.
A cidadania, entendida aqui como real e ampla participação na vida da
comunidade, encontra na sociedade civil espaço para florescer, tendo em vista
se realizar em um processo constante de inclusão dos sujeitos de direitos para
o diálogo social, de modo a influir na implementação de ações estatais voltadas
a realização dos direitos conquistas ao longo da história e hoje assegurados em
diplomas formais.
Cidadão é mais do que o indivíduo eleitor, na atualidade consiste no
sujeito de direitos que ao se reconhecer agente responsável pela realização do
bem comum, se torna participante da vida política, aquele sujeito participante
da criação das regras sociais, produtor e destinatário do código de regramentos
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criados pelo Estado, a percepção desta realidade o torna sujeito consciente de seu
papel social e, assim, responsável pela realidade da qual faz parte.
A abertura de processo licitatório para revitalização do espaço foi exigência do Ministério Público para regularização do espaço, e consiste em ação
de gestão do atual governo do município, o que configura política pública para
organização do centro do município, que prevê a construção de um complexo de
dois pavimentos, com 10 lojas e 600 stands, estacionamento, praça de alimentação e local para eventos, bem como a mudança do trafego com a construção de
novas vias de acesso ao local (JORNAL O TEMPO, 10/05/2013).
Políticas públicas é mecanismo de ação estatal com vistas à realização
dos direitos civis, políticos e sociais. É fundamental para o êxito de uma política
pública a participação da sociedade civil, ou seja, a integração dos cidadãos para
que possam atuar efetivamente na construção da ação que lhes beneficiarão.
Desta forma elas gozarão de real legitimidade e eficácia, mesmo porque em sua
grande maioria são as políticas públicas resultado de pressão da própria mobilização social, visando ampliação e efetivação de direitos (BREUS, 2007).
Para tanto, o secretário municipal de Desenvolvimento Econômico aduz
para a necessidade de se “formar uma comissão com representantes do CEABE,
da feira livre, do camelódromo, dos ambulantes do entorno, da Câmara e do
Ministério Público”, visando com tal ato a democratização da decisão (JORNAL
O TEMPO, 30/05/2014). Quando as políticas públicas são estabelecidas em situações de participação e diálogo com a sociedade civil, propiciando que os cidadãos participem da construção da ação a qual serão beneficiados, fazem com que
a ação estatal se torne legítima e eficaz, pois que em sua maioria são as políticas
públicas resultado de pressão da própria mobilização social, visando ampliação
e efetivação de direitos.
As políticas públicas é um dos meios pelo qual pode o Estado possibilitar
aos cidadãos acesso um mínimo de bens e serviços essenciais ao exigido por
um padrão de vida civilizada. Há assim “um enriquecimento geral da substância concreta da vida civilizada, uma redução geral do risco e insegurança, uma
igualação entre os mais e menos favorecidos”, contribuindo para uma igualdade
de status (MARSHALL, 1967, p. 109).
Audiência pública foi realizada na Câmara municipal de Betim para que se
debatesse a respeito da concessão do espaço a uma empresa para que se realizasse
a revitalização do espaço, momento em que puderam os vendedores ambulantes,
através do representante a Associação, Cláudio Macário, expor dúvidas e receios
dos integrantes da associação, em especial no que diz respeito ao aluguel do local
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e a concorrência com grandes empresas como as lojas Americanas e a Subway,
tendo se posicionado favorável ao progresso do município, mas temeroso quando
a sobrevivência da categoria na nova situação (JORNAL O TEMPO, 30/05/2014).
A realização de consultas públicas, formação de comissões para dialogo
continuo, constituem canais democráticos de participação popular. A democracia tem seu conceito definido pela história, eis que pode ser entendida enquanto
governo, regime, forma de vida de um povo, e o povo não é o mesmo no decorrer
da história. Por outro lado, pode-se afirmar que a democracia tem por premissa,
como essência, seja em qualquer época ou lugar, “a participação do povo na tomada das decisões políticas” (MARMELSTEIN, 2011, p. 124).
Sobre a democracia Robert Dahl (1997, p.26/31) considera as existentes inconsistentes frente ao ideal democrático proposto, o que levo-o a propor
que fossem chamadas poliarquias, definindo-a como o processo progressivo de
ampliação da competição e da participação pública, assim regimes fortemente
inclusivos e amplamente abertos à contestação pública. Assim é que a democracia deve ser considerada um modelo ideal, e poliarquia considerada como uma
espécie de aproximação imperfeita deste ideal.
O interesse dos órgãos de governo em compreender a opinião dos destinatários das ações que realiza, consiste no que Dahl (1997, p.26,) considerou como uma das características básicas das democracias, que é a permanente
responsividade do governo às preferências de seus cidadãos, vez que devem ser
considerados politicamente iguais, deve ter oportunidades plenas de formular,
expressar e ter reconhecidas suas preferências pelos demais concidadãos e pelo
governo, bem como ter consideradas nas ações do governo seus anseios e demandas, podendo serem expressadas por ações individuas ou coletivas.
O Estado Democrático de Direito, ou seja, organização política sujeita as
normas estabelecidas mediante participação popular, tem sua expressão mais
firme na constituição de 1998, em seu artigo 14, onde se prevê os meios pelos
quais a soberania popular será expressada, constando do sufrágio universal pelo
voto direto e secreto, com valor igual para todos e ainda mediante a realização
de plebiscito, referendo e iniciativa popular. Sendo mecanismos considerados garantias fundamentais, uma vez assegurado o direito de participação e possibilita
a expressão permanente das preferências dos cidadãos brasileiros, que podem
torná-las claras para os demais concidadãos e pelo governo, bem como ter consideradas nas ações do governo (BRANCO; MENDES, 2012).
A nível municipal se tem como instrumentos de participação e contestação popular sendo exercidos através de consultas populares, comissões, ouvido-
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rias e conselhos municipais, orçamentos participativo, audiências públicas, que
favorecem o diálogo entre os sujeitos sociais e principalmente controle das decisões governamentais. A participação popular e a possibilidade de contestação
no Estado Democrático de Direito consubstancia mesmo um canal de vivência
democrática, haja vista que associações de pessoas atuam na vida política diretamente, de modo a expressar suas necessidades e buscar espaços de diálogo e
negociação com o Estado, resultando na edificação de uma cidadania de baixo
para cima.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os vendedores ambulantes de Betim, constituíram-se em grupos de interesses comuns, visando com isto influir nas decisões da administração pública
local, bem como organizar e promover melhorias nos espaço urbano em que
trabalhavam, assim é que inicialmente um conglomerado de pessoas, adquirem
maior organização do movimento promovido, vindo a se estruturar com o decorrer do tempo em associação civil formal.
Os vendedores ambulantes promoveram uma série de inovações nas esferas públicas em que atua, seja estatal, não estatal ou privada, sendo que ao
participar das lutas políticas dão sua contribuição para o desenvolvimento da sociedade civil, democratizando espaços e sendo canal de diálogo com a administração pública na medida em que pressiona à concretização de demandas sociais.
Assim é que os vendedores ambulantes de Betim, ao se sentirem integrantes da herança social da comunidade da qual fazem parte, se sentem responsáveis pelos bens que integram o patrimônio local, bem como sujeitos de direitos
de um padrão comum de vida civilizada, sejam civis, políticos ou sociais.
A atuação destes sujeitos, através do diálogo nos espaços públicos, tem
função fundamental de direcionar os atos da administração, de modo a adequá
-los às necessidades locais e torná-los efetivos, por meio da colaboração de todos
os seus destinatários.
A redemocratização do Brasil e a promulgação de uma constituição democrática e cidadã abriu canais de diálogo entre o governo e a sociedade civil, o
que permitiu maior participação popular. Desta forma, as associações passaram a
adotar como prática a formalização de suas pretensões normativas, bem como de
sua própria organização, aumentando os espaços de manifestação de modo formal.
A liberdade de associação prevista na constituição de 1988 é fundamento básico para a existência de um Estado Democrático de Direito, tendo
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em vista que a associação dos sujeitos de direito possibilitam que os bens da
vida que não sejam conquistados individualmente e sim através da somatória
dos esforços dos sujeitos
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Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
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Instituto de
Ciências Sociais
Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
Desigualdade, exclusão e segregação
espacial em Belo Horizonte: antigos
personagens e novas distinções no bairro
de Lourdes
Alexandra Nascimento Passos1
Wânia Maria de Araújo2
Resumo: O objetivo deste artigo é refletir sobre dois acontecimentos no
Bairro de Lourdes em Belo Horizonte nos anos de 1994 e 2013 relativos
a população de rua. A partir desses casos pretende-se discutir como o
processo de produção do espaço da cidade de Belo Horizonte, reiteradas
vezes, reforçou a ideia da higienização como imagem da ordem e para tanto
tornou-se necessário, de diferentes maneiras, expulsar determinados grupos
sociais de áreas consideradas “civilizadas”, “urbanizadas” e dessa forma,
destinadas a quem tem como pagar por tais benefícios. Ou seja, a história
da cidade reflete um conjunto de ações implementadas ao longo do tempo
tanto por seus cidadãos quanto pelo poder público que reiteram a ideia de
que a cidade é segregada, não é para todos, mas para quem tem o “poder” de
ter acesso a ela.
Palavras-Chave: Gentrificação. População de Rua. Exclusão Social.
Segregação. Espaço Público.
1. Professora do Programa de Pós-Graduação Mestrado Profissional em Gestão Social,
Educação e Desenvolvimento Local do Centro Universitário UNA e dos cursos de Arquitetura
e urbanismo e Produção multimídia do Centro Universitário UNIBH
2. Professora do Programa de Pós-Graduação Mestrado Profissional em Gestão Social, Educação
e Desenvolvimento Local do Centro Universitário UNA e da UEMG/Escola de Design.
III Simpósio de Ciências Sociais: Cidade e Democracia
Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
Introdução
A reflexão aqui proposta tem início com uma discussão referente às
transformações nos espaços públicos das cidades contemporâneas a partir
das considerações em torno do urbanismo modernista, da arquitetura pósmoderna como formas possíveis de refletir sobre o cenário contemporâneo
das cidades. Em seguida serão feitas considerações em torno do conceito de
segregação e gentrificação.
A cidade de Belo Horizonte é então apresentada como o cenário dos
acontecimentos aqui elucidados apontando como sua história comporta
ações tanto por parte do poder público quanto de grupos sociais que contribuíram para a existência da desigualdade social, da exclusão e segregação
espacial. Para elucidar dois desses momentos é que o bairro de Lourdes será
contemplado como cenário de acontecimentos que ali tiveram lugar e que
explicitaram uma das consequências do processo de segregação e gentrificação ocorridos na cidade. Para a construção dessa reflexão final em torno dos
casos ocorridos no bairro de Lourdes serão utilizadas as matérias publicadas
em veículos de jornalismo impresso e digital sobre as ações ocorridas no
bairro de Lourdes em 2013. Para retratar e comparar com os acontecimentos
de 1994, será utilizada como referência de análise a dissertação de uma das
autoras deste artigo.
A cidade contemporânea e as
transformações nos espaços públicos
As transformações ocorridas nas cidades contemporâneas têm suscitado
debates em diversas áreas de conhecimento. Se o urbanismo moderno buscou
responder às necessidades da sociedade industrial, o fato é que os princípios
que sustentavam a era da indústria foram transformados, devido às alterações na
estrutura do processo produtivo. Do mesmo modo, os princípios do urbanismo
moderno já não correspondiam ao novo momento. A homogeneidade e a padronização, indispensáveis para o mundo industrial, chegaram ao fim, cedendo
lugar a uma sociedade em rápida transformação.
Nas últimas décadas, diante da falência do modelo modernista, muito se
questionou acerca das aceleradas transformações ocorridas nas cidades. Essas
discussões muitas vezes se limitaram a criticar ou complementar o urbanismo
moderno. Algumas propostas foram implantadas, mas não alcançaram o efeito
383
PASSOS, A. N. e ARAÚJO, W. M. • Desigualdade, exclusão e segregação espacial em Belo Horizonte...
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Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
esperado3. O modelo “novo urbanista” se mostrou ineficaz para solucionar os
problemas dos locais para os quais foi idealizado. A intenção inicial de se criar
uma comunidade heterogênea desvirtuou-se ainda nos primeiros momentos de
ocupação, pois, o aumento expressivo no preço das habitações tornou proibitiva a aquisição dos imóveis por distintas classes. A diversidade cedeu lugar a
ambientes segregados em termos socioeconômicos e étnicos contrariando a proposta inicial. Na inversão da proposta modernista, decretada com a adoção de
preceitos do Novo Urbanismo, ocorre a primazia não do público, mas a sua
destruição para dar lugar a espaços privados que desempenhem funções públicas dirigidas a uma determinada classe. São áreas de poder, lazer, residenciais,
comerciais destinadas a determinados grupos.
A partir da década de 1960 muitas questões têm suscitado debates nas ciências sociais a partir de distintos pontos de vista: característica do momento, imprecisamente denominado pós-moderno, e a inexistência de um pensamento dominante.
Nesse sentido, as tendências, muitas vezes contraditórias, coexistentes no período
podem ser interpretadas como tentativas de romper os limites da teoria modernista:
o formalismo, o funcionalismo, a “ruptura” com a história e a “verdade dos materiais”. Na esteira das novas formas de se pensar a cidade, o pós-modernismo propõe,
no lugar da arquitetura modernista, um reencontro com formas arquitetônicas presentes na memória dos moradores das cidades extraídas das linguagens históricas
da arquitetura que não devem ser idênticas, mas releituras, reinterpretações: o pósmoderno recorre a estilos do passado, mas adota linguagens e materiais distintos ao
combinar esses signos: transforma a expressão e o significado.
No lugar da “máquina de morar” corbusiana elaborada em pleno encantamento com o progresso preconizado pelo modernismo industrial, ressurge a
noção de arquitetura como monumento à vida, ao espaço, à diversidade, à história4. No lugar do estilo internacional retilíneo e funcional, que produziu cidades
3. O movimento intitulado Novo Urbanismo, gestado nos anos 1970 nos Estados Unidos, tinha
como intuito estabelecer novas maneiras de intervenção no espaço urbano. Tendo como alvo
inicial de suas propostas os subúrbios que crescem incessante e desordenadamente, os projetistas
do Novo Urbanismo propuseram a criação de comunidades menores e mais densamente habitadas
que os tradicionais subúrbios. Segundo os princípios do Novo Urbanismo, os limites dessas
novas comunidades deveriam ser previamente definidos e seu planejamento prever uma mistura
de funções que agregue espaços de lazer, serviços, comerciais e institucionais, entremeados por
residências de vários tipos. Essas habitações seriam comercializadas a preços diversos, permitindo
assim sua aquisição por diversas classes sociais. A intenção inicial seria, portanto, a criação de
uma comunidade mais heterogênea (PASSOS, 2002).
4. O livro de Robert Venturi “Complexidade e contradição em arquitetura” publicado em 1966
marca o início dessas discussões. Segundo Phillip Johnson, “tudo começou com o livro de Bob
Venturi. Nós – Venturi, Stern, Graves e eu – percebemos que devíamos nos ligar mais à cidade e
às pessoas. E que devíamos prestar mais atenção nos velhos edifícios” (NESBITT, 2013).
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PASSOS, A. N. e ARAÚJO, W. M. • Desigualdade, exclusão e segregação espacial em Belo Horizonte...
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Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
tão iguais em lugares tão distintos, nasceu a busca de soluções locais, capazes de
traduzir a especificidade e a diversidade. O pós-modernismo na arquitetura se
exprime em dois preceitos: a renúncia do funcional, herdeiro dos ideais científicos preconizados pela modernidade e a valorização da história, em oposição à
obsessão pelo novo.
A redescoberta do vernacular como uma das formas de resistência à
homogeneidade e a padronização propostas pelos modernos – que envolveriam
a produção de espaços e formas arquitetônicas que considerassem as particularidades locais, os modos de vida e identidades nas distintas cidades – entre
todas as possibilidades alternativas às cidades modernas, encontrou maior ressonância nas práticas urbanas e se disseminou pelo mundo. Assim, a preservação do patrimônio assume grande importância no pensamento e na prática
urbanos no século XX.
Segregação urbana e Gentrificação
O conceito de segregação é um dos mais discutidos nas ciências sociais.
Sua utilização na academia teve início nos primeiros textos dos sociólogos da
escola de Chicago, sendo, posteriormente adotado em outras realidades, associado a outros termos como no caso da “segregação socioespacial”, utilizado para
analisar as desigualdades nas cidades europeias e latino-americanas.
A aproximação e distanciamento de grupos sociais no espaço urbano suscita discussões: algumas leituras consideram o processo como “natural”, uma vez
que pessoas que partilham gostos e estilos de vida semelhantes tendem a permanecer próximas. Nesse sentido, essa proximidade promove a coesão social e por
isso reforça a identidade de determinados grupos, notadamente os minoritários.
Parte dos estudiosos5 do tema observa nessa ordem espacial a manifestação das relações de classes, processo denominado segregação espacial. Castells (1983) define
tais processos como uma tendência à organização dos espaços em zonas de forte
homogeneidade social interna e com intensa desigualdade social entre elas, sendo
essa distinção compreendida não só em termos de diferença, como também em
hierarquia. Segundo Villaça (1998, p. 142), segregação é “um processo segundo o
qual diferentes classes ou camadas sociais tendem a se concentrar cada vez mais
em diferentes regiões gerais ou conjuntos de bairros das metrópoles”.
A segregação espacial se constitui objeto de interesse de vários campos
das ciências sociais já que pode ser entendida como um dos mais importantes
5. Sobre segregação espacial ver: HARVEY (1975); VILLAÇA (1988); SOUZA (2013)
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PASSOS, A. N. e ARAÚJO, W. M. • Desigualdade, exclusão e segregação espacial em Belo Horizonte...
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Belo Horizonte, 8 a 10 de setembro de 2014
processos do espaço urbano: produto social, constitui-se meio no qual a existência dos distintos grupos sociais se efetiva. Produto e meio, a segregação é parte
integrante dos processos e formas de reprodução social, pois a relativa homogeneidade interna de cada área social cria condições de reprodução da existência
social que ali se observa. Desse modo, segregação e classes sociais se conectam,
assim como fragmentação social e fragmentação espacial são correlatas (CORRÊA, 2013). Os processos de segregação são responsáveis pela fragmentação das
cidades, que contrariam os princípios das relações sociais que nela se processam: o convívio entre diferentes é o que torna o espaço dinâmico. A segregação
reforça o sentimento de pertencer; não um pertencer à cidade como um todo, e
sim a uma determinada classe, em oposição à outra. A segregação é produto e
produtora do conflito social: aparta-se porque a mistura é conflituosa e quanto
mais apartada é a cidade, mais visível é a diferença e mais acirrado poderá ser o
confronto (ROLNIK, 1988).
O espaço urbano é onde se processa de modo visível diferenças entre
as classes e, dessa forma, privilegiará aquelas que possuírem maior poder de
barganha: a classe dominante pode assim apropriar-se das melhores porções
desse espaço, controlando a sua produção, uma vez que detém o controle de
seus meios. O processo de urbanização transforma as cidades produzindo o fenômeno da centralização de poder em determinadas áreas: o espaço, diante das
transformações no processo produtivo é cada vez mais dominado pelo valor de
troca. Desse modo, os lugares são submetidos a um sistema de rentabilidade, se
tornando então locais idealizados, criados por determinadas regras de mercado.
Surgem assim áreas distintas no espaço urbano que irão se caracterizar pela forma de apropriação.
No Brasil a segregação espacial tem suas origens e desenvolvimento na
expansão do processo de urbanização ocorrido no século XX na esteira da crescente industrialização. Ainda no processo de formação das cidades brasileiras
constitui-se um poderoso circuito de acumulação urbana cujo fundamento é a apropriação de diversos tipos de renda urbana proporcionada pelas desigualdades das condições de vida entre as áreas apropriadas pelos
quem têm o poder de segregação e o conjunto da cidade formado pelas
periferias, favelas, mocambos, enfim, por um habitat precário em termos
de condições construtivas, localização e acessibilidade aos serviços urbanos essenciais à reprodução social na cidade (RIBEIRO, 2004, p. 2).
No final do século XX as mudanças provocadas pela globalização afetam
a produção do espaço urbano, atingindo diretamente a formulação das políticas
urbanas. Dentre seus muitos efeitos, o marketing urbano surge como parte do
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receituário do chamado planejamento urbano estratégico, promovendo cidades
cada vez mais semelhantes. As políticas urbanas dominantes assumem explicitamente um caráter gerencial, legitimadas pelo discurso da competitividade da
cidade tornada empresa, apresentada como condição para encontrar um lugar ao
sol na economia globalizada (TEOBALDO, 2010).
Na esteira da ampliação da noção de patrimônio e nas transformações
ocasionadas pela globalização, assiste-se nas últimas décadas do século XX, a
proliferação de intervenções urbanas que têm como eixo a preservação do patrimônio e sua (re) significação para os tempos atuais. As intervenções em locais de
interesse histórico se tornaram objetos de discussões acerca de seus resultados,
sendo o mais visível o que se convencionou chamar de gentrification6, cuja alteração da paisagem urbana e sua transformação em espaços de entretenimento
urbano e consumo cultural, converte espaços antes frequentados por diferentes
grupos sociais em locais de uso das classes mais abastadas. Nesse sentido, os
aspectos excludentes de tais projetos são alvos de constantes críticas: ainda que
tenham criado espaços geradores de trocas socioculturais, esses se revelaram
muitas vezes áreas de elevada segregação sócio espacial.
O termo “gentrification”7 foi utilizado pela primeira vez ainda na década
de 1960 por Ruth Glass para se referir ao processo então em curso nos bairros
centrais de Londres, no qual as famílias de classe média deixaram os subúrbios
e passaram a habitar os bairros centrais antigos e desvalorizados, o que desencadeou a transformação da composição social do lugar com a substituição das camadas menos abastadas. Nesse sentido, de início, o conceito se aplicava a um fenômeno observado nas cidades inglesas e dizia respeito ao abandono progressivo
dos subúrbios pela classe média e seu retorno ao centro. De acordo com Glass,
Um após o outro, numerosos bairros operários londrinos foram invadidos pelas classes médias alta e baixa. Locais com casinhas modestas,
com dois aposentos no térreo e dois em cima, foram retomadas quando
os contratos de aluguel expiraram, e se tornaram elegantes residências
de alto preço. Residências vitorianas maiores que tinham mudado de
função – ou seja, haviam passado a ser utilizadas como pensões familiares ou sublocadas – recuperaram um bom nível de status. Esse processo
de gentrificação, uma vez começado em um bairro, se estendeu rapidamente até que quase todas as camadas populares que aí moravam origi6. O termo gentrification (ou gentrificação) será empregado aqui com o mesmo sentido utilizado
por Harvey (1992), Featherstone (1995), Smith (1996), Zukin (1995) e Leite (2007) para
designar formas de empreendimentos econômicos que escolhem certas áreas da cidade como
centralidades e os convertem em áreas de investimentos públicos e privados cujas mudanças nos
significados de uma localidade histórica faz do patrimônio um segmento de mercado.
7. A noção de gentrificação não tem significado na língua portuguesa, pois a palavra vem do
inglês gentry, ou seja, pequena nobreza.
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nalmente tivessem deixado o lugar e que todas as características sociais
tivessem mudado (GLASS apud SMITH, 2006, p. 60).
A disseminação do conceito, antes restrito às cidades inglesas, ficou a cargo do geógrafo Neil Smith, que ampliou seu uso tomando-o como uma referência
para pensar os fenômenos em curso em diversas cidades, transformando-se em uma
“estratégia urbana global” (SMITH, 2006, p. 73). Autores como Harvey (2002), Featherstone (1995), Zukin (1995), atentam para o fato de que as práticas de gentrificação exacerbam a (re)produção de uma cidade desigual, seja quando expulsam a
população de baixa renda de bairros e trechos urbanos revitalizados em prol de interesses econômicos das elites, seja quando tomam as culturas apenas como elementos
de captação de investimentos, mercadorias sobre as quais se constrói um consenso
sobre os rumos da cidade, financiado pelo capital privado e internacional.
Os processos de gentrification, de acordo com Zukin (2000), não devem ser
pensados apenas como empreendimentos que buscam novos investimentos em áreas
centrais, mas ainda como afirmação simbólica do poder das classes abastadas que
buscam, por meio da arquitetura e do consumo afirmar sua visão de mundo perante
os “sem poder”. Nesse sentido, o que seria um programa urbanístico com vistas a
recuperar áreas degradadas criou segundo Zukin (2000) uma “paisagem de poder”:
A paisagem dá forma material a uma assimetria entre o poder econômico e o
cultural. Essa assimetria de poder modela o sentido dual da paisagem (...) o
termo paisagem diz respeito à chancela especial de instituições dominantes
na topografia natural e no terreno social, bom como a todo o conjunto do ambiente construído, gerenciado ou reformulado de algum modo. No primeiro
sentido, a paisagem dos poderosos se opõe claramente à chancela dos sem
poder – ou seja, à construção social que escolhemos chamar de vernacular
–, ao passo que a segunda acepção de “paisagem” combina esses impulsos
antitéticos em uma visão única e coerente no conjunto (ZUKIN, 2000, p. 84).
Segundo Zukin (2000), o processo de construção da paisagem pós-moderna
resulta da fragmentação econômica das antigas solidariedades urbanas e de uma
reintegração que é fortemente matizada pelas novas formas de apropriação cultural.
De acordo com a autora, o consumo visual do espaço e do tempo, que está simultaneamente acelerado e abstraído da lógica da produção industrial, obriga à dissolução
das identidades espaciais tradicionais e à sua reconstrução sobre novas bases.
Belo Horizonte: resultado do exercício
da ordem no espaço público
Belo Horizonte é uma cidade jovem que tem pouco mais de 100 anos 8.
Seu cenário na última década do século XX e os primeiros anos do século
8. Belo Horizonte foi inaugurada como capital de Minas Gerais em dezembro de 1897.
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XXI exibe as marcas de um processo de ocupação que teve como resultado da
implantação da ordem no espaço urbano a segregação espacial. Desta forma,
a cidade encontra-se dividida, configurando-se como um espaço urbano que
tem grande extensão física, mas contém barreiras “invisíveis” que impedem
o acesso e a fruição igualitária de seus espaços por sua população. Suas ruas,
praças e monumentos são a expressão de uma memória, guardam marcas de
eventos políticos, sociais e culturais e do cotidiano experimentado pela população da cidade, e por isso comportam uma grande variedade de identidades,
evidenciando a existência dos vários segmentos sociais que usam, percebem e
se relacionam com seus espaços de formas diferenciadas. Essas formas distintas de apropriação, uso e percepção dos espaços estão relacionadas à maneira
como esses vários segmentos sociais os vivem cotidianamente. Como assinala
Arantes (1994, p. 192), “mais do que territórios bem delimitados, esses ‘contextos’ ou ‘ambientes’ podem ser entendidos como zonas de contato, onde se
entrecruzam moralidades contraditórias [...] aproximam-se mundos que são
parte de um mesmo modo mas que, assim mesmo, encontram-se irremediavelmente apartados.”
Uma análise diacrônica do mapa de Belo Horizonte revela as diferentes
maneiras, simbólicas ou não, que garantiram, nas diversas épocas, uma “certa
ordem”, o que pode ser também compreendido como um “controle da desordem”. Foram estabelecidas desde a concepção da nova capital barreiras invisíveis
de acesso à área central da cidade para os segmentos mais pobres da população e
a sociedade contemporânea estabeleceu barreiras simbolicamente invisíveis. Assim, as praças e ruas da cidade passaram a ser concebidas como locais próprios
de práticas sociais e de visões de mundo antagônicas9.
Belo Horizonte é, na atualidade, fruto das várias ações do poder público,
ao longo do tempo, nos vários espaços da cidade, como também da sua interação com a população que a ele recorre para as solicitações mais diversas. É uma
cidade que comporta vários espaços que podem ser descritos pela presença de
9. A Praça da Liberdade, bem próxima ao bairro de Lourdes, pode ser considerada exemplar
nessa questão. A Praça, emoldurada pelo Palácio do Governo e suas Secretarias que hoje se
transformaram em museus e centros culturais, além do público habitual praticante do cooper,
dos namorados e das crianças com suas bicicletas e patins, atrai também um público que aprecia
seus jardins e considera agradável o passeio entre seus canteiros se preocupando, inclusive,
em não degradá-lo. É inconcebível para a Praça da Liberdade abrigar algum morador de rua.
Naturalmente, não existem placas permissivas ou proibitivas para tal tipo de apropriação de um
espaço público, mas as fronteiras simbolicamente invisíveis têm esse poder de estabelecer o
permitido e o proibido a partir da ordem que vigora em cada espaço da cidade. Hoje essa cena
das fronteiras simbólicas na Praça Marília de Dirceu localizada no bairro de Lourdes foi, de certa
forma, rompida com a apropriação e uso de seus espaços pelos moradores de rua vem realizando.
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visões de mundo e práticas sociais diferentes, caracterizando-se, então, como
uma paisagem urbana contemporânea10.
O desenho e a configuração atual da cidade, sua fragmentação e saturação de trânsito e fluxos, podem ser considerados como o resultado das atuações
tanto do poder público quanto da população local nas áreas social, econômica,
política e cultural. Isso porque todo tipo de intervenção no espaço de uma cidade por meio da remodelação de seus usos, da construção de novas edificações
ou ainda da conservação e recuperação de algumas áreas produz resultados na
sua conformação espacial. Assim, além das ações do poder público sobre os espaços da cidade, sua população também interage com esse meio e vai deixando
suas marcas nele inscritas por meio de manifestações artísticas, da interferência
direta no espaço urbano pela forma como o usufrui e também pela participação
em organizações que atuam na cidade, objetivando modificações específicas em
algumas de suas áreas.
O espaço urbano está em constante transformação quanto ao uso e a forma. Essas mudanças são produzidas pela própria concepção de “lugar de viver”,
produzida culturalmente pelos ag
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