LAVAGEM DE DINHEIRO: CONTORNOS E CONTRADIÇÕES J OÃO GUALBERTO GARCEZ R AMOS1 5 SUMÁRIO: Conceito. Denominação. Origens da lavagem de dinheiro. Origens da idéia de criminalizar a lavagem de dinheiro. Os números da lavagem de dinheiro. Crítica quanto ao método de combate à lavagem. Bem jurídico do crime de lavagem de dinheiro. A Constituição e aspectos da lavagem. A legislação brasileira sobre a lavagem de dinheiro. Um futuro sem garantias? 10 Conceito 15 A lavagem de dinheiro tem sido tradicionalmente conceituada como o conjunto de operações econômicas que procuram disfarçar a origem criminosa de ativos, através de sua incorporação à economia formal de um país. 20 Denominação Interessante tem sido a variedade de nomes que têm sido dados ao fenômeno da lavagem de dinheiro. 25 Entre os estadunidenses, usa-se o termo “money laundering”, que serve por duas razões. Em primeiro lugar, porque veicula a idéia de que o dinheiro sujo, ao ser reintroduzido na sociedade em atividades lícitas, volta limpo, como a roupa quando vem da lavanderia. 1 Professor Adjunto da UFPR, Professor Titular da UNIPAR, Procurador da República, Membro da AIDP, Membro do ICPC. 2 30 35 40 45 Serve também porque, na origem do fenômeno, estão as lavanderias de roupas que, nos EUA do período da “lei seca”, serviram para dar aparência de licitude aos ativos gerados pelas quadrilhas de mafiosos com a venda de bebida. A terminologia é seguida no Brasil e na Alemanha, através do substantivo “Geldwaschen”. Os italianos preferem a expressão “riciclagio del denaro sporco” (reciclagem do dinheiro sujo), que dá a idéia da operação física que se faz para preparar uma substância a fim de que seja reutilizada. Não deixa de estar presente a idéia de “limpar” o dinheiro sujo. Já muitos dos países de língua espanhola preferem a expressão “blanqueo de capitales”, que vincula a limpeza do dinheiro à sua cor. O mesmo se dá com a França, ao adotar a expressão “blanchiment des capitaux” ou “blanchiment d’argent”. Portugal, com a expressão “branqueamento de capitais”, segue a mesma linha. Segundo a analogia, dinheiro limpo é dinheiro branco. Impossível não vincular a escolha a idéias e concepções raciais. Com tudo, a expressão “money laundering”, ou “lavagem de dinheiro”, está a se expandir por sobre as demais. 50 Origens da lavagem de dinheiro 55 A origem mais próxima da lavagem de dinheiro, conforme é conhecida hoje, remonta à década de 20, nos Estados Unidos da América (do norte) e se deve à chamada “Lei Seca” (National Prohibition Act of 1919), editada para cumprir os ditames da 18ª Emenda e que durou até 1933, com a edição da 21ª Emenda 3 e a revogação definitiva da proibição. 60 65 70 75 Com essa lei, que proibiu a fabricação, transporte e comercialização de bebidas com mais de meio por cento de graduação alcoólica em todo o território dos EUA, um estranho e até então inédito fenômeno tomou conta do país. Muitos dos empresários que até então fabricavam, transportavam e comercializavam bebidas alcoólicas dentro da lei, com a lei se viram em uma enrascada. Teriam de simplesmente fechar a fábrica e, em muitos casos, o estabelecimento de venda, caso não pudessem mudar de ramo. Uma enorme quantidade deles optou por passar à mais absoluta informalidade e, em muitos casos, à condição de entidades secretas. De verdadeiras quadrilhas. O lucro aumentou enormemente, pois já não era necessário pagar tributos e nem dispender dinheiro pela divulgação, que se fazia de boca em boca, por quem tinha interesse na aquisição de bebida alcoólica. Com as sobras cada vez maiores o fabricante, o transportador e o comerciante pagavam subornos aos agentes policiais encarregados da fiscalização. E, para dar contornos de licitude à própria riqueza, cada vez maior, os dividendos da atividade passaram a ser transferidos para outros negócios, como floriculturas, restaurantes, pequenas lojas e, principalmente, lavanderias, a fim de ser legalizado. Essa a origem próxima. 80 Remotamente, contudo, é lícito afirmar que a reintrodução na economia formal de ativos obtidos com a violação do ordenamento jurídico é a base de muitas fortunas e impérios atuais. 4 85 90 Tome-se o exemplo da Standard Oil, pertencente à família Rockefeller, o maior monopólio da história do capitalismo. Esse monopólio foi obtido às custas de abuso da posição dominante e de práticas comerciais irregulares. O dinheiro foi reinvestido na empresa e reintroduzido na economia formal. Origens da idéia de criminalizar a lavagem de dinheiro A verdadeira origem da idéia de criminalizar a lavagem de dinheiro está na Lei “RICO”, de 1970, editada como o Título IX do “Organized Crime Control Act of 1970”. 95 Essa lei utiliza-se de um substantivo suja abrangência semântica é notável: “racketeering”. 100 Segundo o “The American Heritage”, famoso dicionário de língua inglesa, “Racket” é “um negócio no qual se obtém dinheiro através da fraude ou da extorsão”.2 Já para o não menos famoso “Cambridge International Dictionary of English”, é qualquer “atividade desonesta ou ilegal que rende dinheiro”.3 “Racketeering” vem a ser a atividade ilícita continuada no tempo. 105 A partir dessas idéias mais do que amplas, o legislador estadunidense utilizou-se da noção de atividade ilícita ou desonesta – não necessariamente típica – para aperfeiçoar os instrumentos destinados ao controle social. Dentro do conceito de “racketeering”, conforme é intuitivo, cabem inúmeras 2 MORRIS, William (org.). The American Heritage. Dictionary of the English Language. Boston: Houghton Mifflin Co., 1982, p. 1075. 3 PROCTER, Paul (org.). Cambridge International Dictionary of English. Cambridge: Cambridge University Press, 1995, p. 1166. 5 condutas ilegais, do jogo à exploração à prostituição, mas também atividades imorais. 110 115 120 125 Tome-se o exemplo de Ferris Alexander, que durante trinta anos formou um verdadeiro império de pornografia. Processado pelos promotores federais no Estado-membro de Minnesota, foi condenado por um júri federal à pena de prisão de seis anos de prisão, à uma multa de cem mil dólares estadunidenses e ao confisco de nove milhões desses mesmos dólares e de todo o estoque de seus produtos pornográficos existentes no varejo. Quanto a essa última medida punitiva, “recorreu” à Suprema Corte. Em decisão apertada (5 a 4), redigida pelo Chief Justice REHNQUIST, a Suprema Corte, em Alexander v. United States, 509 U.S. 544 (1993), decidiu o confisco punitivo é medida adequada como resposta à atividade de “racketeering”. O primeiro encontro internacional em que, no concerto dos países, votou-se a necessidade de adotar providências contra a lavagem de dinheiro foi a “Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e de Substâncias Psicotrópicas”, de Viena, ocorrida em vinte de dezembro de 1988 e assinada, na ocasião, por 43 países.4 A Convenção de Viena, no seu art. 3º, dispõe que “cada uma das partes adotará as medidas necessárias para caracterizar como 130 crimes em seu direito interno, quando cometidos com dolo ”, as condutas relacionadas à “lavagem de dinheiro” que ela própria se encarrega de tipificar, nos seguintes termos: A conversão ou transferência de propriedade, sabendo-se 4 Essa conferência foi assinada pelo Brasil naquela ocasião e posteriormente ratificada pelo Brasil. A respeito foram editados o Decreto Legislativo n. 162, de quinze de junho de 1991 e o Decreto n. 154, de 26 de junho de 1991. 6 135 140 145 150 que derivou-se dita propriedade derivou-se de qualquer crime ou crimes estabelecidos de acordo com o subparágrafo (a) deste artigo, ou de um ato de participação nesse crime ou crimes, para o propósito de ocultar ou disfarçar a origem ilícita da propriedade ou de auxiliar a pessoa envolvida no cometimento desse crime ou crime a se subtrair às conseqüências legais de sua ação [art. 3º (b)(i)]. A ocultação ou disfarce da verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimento, direitos relativos, ou titularidade da propriedade, sabendo que essa propriedade derivou de crime ou crimes estabelecidos de acordo com o subparágrafo (a) deste artigo ou de um ato de participação nesse crime ou crimes [art. 3º, (b)(ii)]. Depois, inúmeros encontros discutiram essa realidade. O Conselho da Europa, em novembro de 1990, após discutir a questão, editou uma “Convenção sobre Lavagem de Dinheiro”, datada de oito de novembro de 1990. Em Buenos Aires, em dezembro de 1995, ocorreu a “Conferência Ministerial sobre a Lavagem de Dinheiro e Instrumentos do Crime”. 155 Em Moscou, em 1999, ocorreu a “Conferência do G-8 sobre o crime organizado transnacional”. O simpósio com o título “Government Intrusion into the Attorney-Client Relationship”, na Emory University, em 1987. Os números da lavagem de dinheiro 160 Os números da lavagem de dinheiro são tão díspares que é possível considerá-los um mero exercício de adivinhação. Assim, alguns afirmam que a lavagem de dinheiro seria 7 165 170 hoje a terceira maior “indústria” do mundo. 5 Outros, como registra PETER L ILLEY, que a lavagem de dinheiro movimenta, no mundo, 1,5 trilhão de dólares estadunidenses por ano. 6 Só o Bank of New York, segundo se suspeita, estaria envolvido em uma lavagem de mais de US$ 10 bilhões de dólares estadunidenses, dinheiro esse oriundo da Rússia, dos quais US$ 200 milhões seriam recursos do Fundo Monetário Internacional (FMI). 7 Outros escândalos, como o que envolveu o Banco de Crédito e Comércio Internacional (BCCI) e o Banco Barings, montariam a outros bilhões. No Brasil, a maior fraude conhecida é a do Banco Noroeste. 8 175 Crítica quanto ao método de combate à lavagem A invocação do tema dos números sobre a lavagem de 5 BAITY, William. “Banking on Secrecy. The Price for Unfettered Secrecy and Confidentiality in the Face of International Organised Crime and Economic Crime”, in Journal of Financial Crime, n. 8 (2000). 6 LILLEY, Peter. Lavagem de dinheiro: negócios ilícitos transformados em atividades ilegais. São Paulo: Futura, 2001, p. 37 ss. 7 “Crime Without Punishment”, in Economist, (26.ago.1999). 8 “Inquérito do Noroeste acaba em 60 dias”, in Folha de S.Paulo, (15.mai.2002), p. B-4: “A história da maior fraude do sistema financeiro nacional – o desfalque de US$ 242 milhões do banco Noroeste, comprado em 1997 pelo Santander – pode estar chegando ao fim. “Já se sabe o que aconteceu e quem são os envolvidos. Agora, é preciso que essas pessoas sejam denunciadas pelo Ministério Público para que o dinheiro possa ser recuperado”, diz o advogado Otto Steiner, ex-diretor do Noroeste que assessora os antigos controladores do banco. (…) O desfalque foi descoberto durante a venda do banco e os controladores tiveram que reduzir pela metade o valor do negócio. Nos últimos dois anos, escritórios internacionais de advocacia conseguiram rastrear US$ 190 milhões dos US$ 242 milhões desviados da agência do Noroeste em Cayman, um paraíso oficial do Caribe”. 8 180 dinheiro, que mais parecem um exercício de pura paranormalidade, conduz o intérprete a outro tema, não menos interessante: o do método de combate à lavagem de dinheiro. 185 Metodologicamente falando, não é um erro solucionar um problema através da criação artificial de outro problema. Ao menos em princípio. A medicina ocidental, devedora de HIPÓCRATES, (460 a.C.-377 a.C., circa) trabalha há séculos com essa metodologia. 190 195 Tome-se o exemplo dos tratamentos cirúrgicos, por exemplo. O paciente está com um osso quebrado ou com um órgão interno rompido. Para solucionar o problema, o cirurgião corta todas as camadas de tecido que estiverem entre ele, cirurgião, e o osso quebrado ou o órgão rompido e o restaura, ou extrai, ou dá a solução técnica apropriada. Termina a cirurgia com a recomposição dos tecidos cortados. Nesse exemplo – e haveria outros – o cirurgião criou um problema para solucionar outros. É certa ou errada essa metodologia? Parece claro que, no caso apontado, ela pode ser apropriada. Seria o caso de observar a metodologia. 200 Primeiramente, o paciente foi submetido a uma análise clínica, sumária ou detalhada, que concluiu que a cirurgia era, no caso, a única solução; que eventual tratamento clínico seria perigoso, inútil ou, de qualquer maneira, inapropriado. Depois, o caso foi entregue a um cirurgião, que sabia onde e o que cortar, qual a medida dos cortes e o que fazer diante do corpo aberto de seu paciente. 205 Então, essa cirurgia foi realizada dentro do tempo possível, 9 atendido um conceito de celeridade. Não teria sentido manter-se o paciente com os tecidos expostos ao ambiente por muito tempo, sob pena de incrementar riscos de infecção, por exemplo. 210 Quanto à metodologia, constata-se que ela foi desenvolvida com base em experiência pretérita, alimentada por observação cuidadosa da anatomia humana. Alie-se a isso o fato de que foi executada por alguém com experiência nesse tipo de procedimento. 215 Assim, vê-se que a metodologia de solucionar problemas a partir da criação artificial de outros problemas obedece a requisitos. 220 225 230 O primeiro é que é baseada na experiência; no caso, essa experiência diz que o novo problema será menor que o primeiro, que será controlável e controlado; e, principalmente, que o novo problema solucionará o primeiro e também acabará solucionado. O segundo é de que tanto a criação do problema quanto seu desembaraço são entregues a alguém experiente, que procurará controlar o novo problema, mantê-lo sempre menor e mais controlado que o anterior. É o caso de confrontar essa metodologia com alguns dos temas mais candentes da sociedade contemporânea. Tome-se o problema das drogas estupefacientes. A certa altura do Século XX, concluiu-se que ele era um problema. A fim de solucioná-lo e a partir, principalmente, do Congresso de líderes que deu origem ao “Pacto da Liga das Nações” ou “Tratado de Versalhes” (art. 23). Para solucioná-lo, optou-se pela incriminação da posse lato sensu e do consumo. 10 235 240 245 250 255 260 Não é o caso de, agora, inaugurar uma discussão a respeito dos méritos dessa medida, ou desse conjunto de medidas, que deram na incriminação. O fato é que, na década de 1980, os países pareceram concluir que o trato penal da questão não havia dado os resultados esperados. Afinal, o tráfico de substâncias entorpecentes havia aumentado exponencialmente. Era preciso fazer algo. A metodologia mais conectada à experiência e ao bomsenso indicaria a conveniência de uma reflexão a respeito do que fora feito até então e a definição de novos caminhos. Mas não. Os países, através de seus representantes, resolveram pela criação de um segundo problema para solucionar os anteriores. Um novo problema. Uma nova cadeia causal totalmente inusitada e inesperada: a incriminação dos pos facta, até então impuníveis, praticados pelos criminosos da droga. O novo problema é ainda maior que o anterior, pois o montante de dinheiro oriundo do crime e lavado, como diriam os norte-americanos, all over the World, é acachapante. Quanto às leis editadas a respeito, já se as enumeram em gerações. Fala-se que as últimas gerações de leis farão abstração completa a respeito dos crimes anteriores. Espécies de clones legislativos. Sem pai, mãe, passado ou futuro. A verdade é que, goste-se ou não, o segredo que eventualmente envolva uma operação financeira será, cada vez mais, definido e tratado como um valor. Como no caso das atividades relacionadas com o tráfico de entorpecentes, o primeiro efeito da radicalização das atividades de repressão da 11 265 270 275 lavagem de dinheiro, seja no âmbito nacional, seja no âmbito internacional, será o incremento no custo e na lucratividade das operações financeiras secretas.9 Em outro ensaio provocativo, discuti se o combate à lavagem de dinheiro, nos termos em que tem sido proposto, deve ser uma prioridade.10 Ultrapassada essa fase, com ou sem resposta, é possível afirmar que esse combate é, de fato, muito difícil. Prova disso são notícias de jornal que dão conta da participação de bancos oficiais em esquemas vultosos de lavagem de ativos ilícitos.11 Se assim é, com os bancos oficiais, que se poderá dizer dos bancos privados, historicamente muito mais ávidos pelos interesses. Notícias de esquemas de lavagem de dinheiro que utilizam loterias não são incomuns.12 Contudo, a ênfase das boas notícias ainda reside nas 9 ALLDRIDGE, Peter. “The Moral Limits of the Crime of Money Laundering”, in Buffalo Criminal Law Review, n. 5 (2001), p. 279. 10 RAMOS, João Gualberto Garcez. “Algumas observações críticas e outras provocativas sobre a lavagem de dinheiro”, in prelo. 11 FREITAS, Silvana de e MICHAEL, Andréa. “BC acusa Banco do Brasil de ocultar lavagem de dinheiro”, in Folha de S.Paulo, (6.mai.2003), p. A-8: “Um relatório detalhado do Banco Central do chamado esquema dos precatórios, de 1996, acusa a agência central do Banco do Brasil em Foz do Iguaçu de ajudar a ocultar os beneficiários finais da verba pública desviada”. 12 MICHAEL, Andréa e FREITAS, Silvana de. “30 são suspeitos de usar loteria em lavagem”, in Folha de S.Paulo, (7.mai.2003), p. A-5: “A malha fina do Coaf (Conselho de Controle das Atividades Financeiras) capturou, em quatro relatórios concluídos em abril, 30 campeões em prêmios nas loterias federais, que receberam R$ 13,89 milhões e serão agora investigados pelo Ministério Público Federal por suspeita de lavar dinheiro. Dos 30 casos, 29 são de São Paulo e 1, de Minas Gerais. Os casos vão de 1998 a 2002”. 12 280 285 290 investigações;13 não há muitas notícias de pronunciamentos judiciais – absolutórios ou condenatórios – relacionados à lavagem de dinheiro. Na verdade, há mesmo pouquíssimos pronunciamentos administrativos a respeito. 14-15 Durante vários anos, esse também foi o panorama em países mais desenvolvidos, como o Reino Unido.16 Dois penalistas australianos, BRENT FISSE e DAVID FRASER, ambos da Universidade de Sidney, em ensaio cujo título é muito revelador de seu conteúdo – em português, chamar-se-ia “Alguns ceticismos antípodas sobre perda e confisco dos produtos e proveitos do crime, e crimes de lavagem de dinheiro” – escrevem que “a experiência australiana com legislação para estabelecer o caminho percorrido pelo dinheiro indica que leis penais feitas às pressas nas sociedades modernas podem trazer 13 FÉLIX, Rosana. “Força-tarefa desmonta esquema de lavagem de dinheiro em Curitiba: Quatro pessoas foram presas em flagrante. Polícia apurou que foram movimentados cerca de US$ 320 milhões em 3 anos”, in Folha de Londrina, (11.out.2002), p. 1; 14 SIMÃO, Edna. “Lavagem: nem BC pune. Em 3 anos, só 3 processos sobre o crime foram abertos e julgados pela autoridade monetária”, in Jornal do Brasil, (29.nov.2002): “Apesar das suspeitas de uma grande movimentação de lavagem de dinheiro no Brasil, que pode chegar a US$ 10 bilhões ao ano – e que não se restringe ao Sistema Financeiro –, o número de punições ainda é irrisório. De março de 1999 a outubro de 2000, apenas três processos administrativos envolvendo o crime foram abertos e julgados pelo Banco Central. A principal explicação para tão poucas punições é que, dentre os crimes financeiros, o que se propõe a dar uma fachada legal ao dinheiro de origem criminosa é um dos mais difíceis de se provar”. 15 Cf., a respeito, CASTILHO, Ella Wiecko V. de. O controle penal nos crimes contra o sistema financeiro nacional: Lei n. 7.492, de 16.6.1986. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 285-290. 16 STRAFER, G. Richard. “Money Laundering: The Crime of the ‘90’s”, in American Criminal Law Review, n. 27 (1989), p. 149. 13 mais perguntas do que respostas”.17 295 Peter Alldrige concorda e afirma que a demonização do lavador de dinheiro e o combate à sua atividade tem sido realizado sem a menor consideração de outros instrumentos válidos à disposição do Estado.18 Bem jurídico do crime de lavagem de dinheiro 300 305 Uma demonstração da estranheza causada na doutrina pelo crime de lavagem de dinheiro é a cizânia, entre os especialistas, a respeito do bem jurídico protegido pela tipificação. Para W ILLIAM TERRA DE OLIVEIRA19 e ANTÔNIO SÉRGIO A. DE MORAES PITOMBO,20 o bem jurídico protegido é a ordem sócioeconômica. Para ROBERTO PODVAL21 e RODOLFO TIGRE MAIA, o bem 17 FISSE, Brent e FRASER, David. “Some Antipodean Skepticisms About Forfeiture, Confiscation of Proceeds of Crime, and Money Laundering Offenses”, in Alabama Law Review, n. 44 (1992-1993), p. 737-762, 762. Trecho original, para conferência: “The Australian experience with money trail legislation indicates that quick fixes for crime in modern society may raise more questions than they answer”. 18 ALLDRIDGE, Peter. “The Moral Limits of the Crime of Money Laundering”, in Buffalo Criminal Law Review, n. 5 (2001), p. 281. Trecho original, para conferência: “The process of demonization of the money launderer has directed attention away from any close consideration of the arguments for powers of confiscation and forfeiture of the proceeds of crime and for the criminalization of laundering”. 19 OLIVEIRA, William Terra de. Lei de lavagem de capitais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, p. 323. 20 PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Moraes. Lavagem de dinheiro: a tipicidade do crime antecedente. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 77. 21 PODVAL, Roberto. “O bem jurídico do delito de lavagem de dinheiro”, in Revista Brasileira de Ciências Criminais, n. 24 (2001), p. 221. 14 jurídico protegido é a administração da justiça.22 310 A Constituição e aspectos da lavagem Ao tratar da lavagem de dinheiro, não se pode esquecer do ordenamento constitucional brasileiro, que garante a inviolabilidade das pessoas, no aspecto de sua vida pessoal,23 como de certas formas de comunicação.24 315 A legislação brasileira sobre a lavagem de dinheiro A Lei n. 9.613 tipifica o crime de lavagem de dinheiro. O Decreto n. 2.799 regulamenta a Lei n. 9.613. O BCB editou as seguintes regras a respeito: 320 a) Resolução n. 1.946/92, que trata da identificação de responsáveis por operações em espécie; b) Resolução n. 2.025/93, que estabelece mecanismos de controle para abertura e manutenção de contas; 325 c) Circular n. 2.852/98, que arrola obrigações das instituições financeiras; 22 MAIA, Rodolfo Tigre. Lavagem de dinheiro (Lavagem de ativos provenientes de crime): anotações às disposições criminais da Lei n. 9.613/98. São Paulo: Malheiros, 1999, . 23 Constituição da República, art. 5º, inciso X: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. 24 Constituição da República, art. 5º, inciso XII: “é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”. 15 d) Carta Circular n. 2.826/98, que arrola situações e operações bancárias suspeitas; e) Circular n. 3.030/2001, que estabelece mecanismos de controle para operações com cheques; 330 f) Comunicado n. 9.068/2001, que faz recomendações quanto a doações vindas do exterior. O COAF editou os seguintes atos normativos: i) Resolução n. 1, de 13.abr.99, que trata das atividades imobiliárias; 335 ii) Resolução n. 2, de 13.abr.99, que trata da atividade de factoring; iii) Resolução n. 3, de 2.jun.99, que trata da distribuição de bens e ou recursos por sorteio; 340 iv) Resolução n. 4, de 2.jun.99, que trata das atividades dos comerciantes de jóias e metais preciosos; v) Resolução n. 5, de 2.jun.99, que trata dos bingos; vi) Resolução n. 6, de 2.jul.99, administradoras de cartão de crédito; 345 que trata das vii) Resolução n. 7, de 15.set.99, que trata das bolsas de mercadorias; viii) Resolução n. 8, de 15.set.99, que trata comerciantes de obras de arte e de antigüidades; dos ix) Resolução n. 9, de 5.dez.00, que altera algumas das resoluções anteriores; 350 x) Resolução n. 10, de 19.nov.01, que trata de pessoas jurídicas não definidas como instituições financeiras que 16 operam com transferência de dinheiro; Um futuro sem garantias? 355 360 A lógica do combate – figura militarista muito invocada nesses momentos – é que ele só termina com a morte ou com a rendição incondicional do inimigo. Enquanto isso não ocorre, quem se engajou no combate continua a empregar instrumentos para derrotar o adversário. Instrumentos físicos, que tendem à sua destruição, e instrumentos que pretendem desmoralizá-lo.25 É assim que ocorre a escalada da virulência dos protagonistas de um combate. E seu forte, com essa escalada, não é exatamente o respeito aos direitos do oponente. 365 370 Assim, os Estados Unidos da América (do norte) – que são os que mais perdem com a lavagem de dinheiro, na medida em que lá se encontram os centros financeiros do mundo, como Nova Iorque e Chicago – têm pressionado os países periféricos a adotarem normas que eles próprios renegariam, por inconstitucionais. 26 25 Cf. ALLDRIDGE, Peter. “The Moral Limits of the Crime of Money Laundering”, in Buffalo Criminal Law Review, n. 5 (2001), p. 281, que fala em “demonização do lavador de dinheiro”. 26 “U.S. Urging Shift in Caribbean Drug Laws”, in Boston Globe, (19.dez.2000): “O governo estadunidense, em seu afã de combater a lavagem de dinheiro realizada por traficantes de drogas, pressionou países caribenhos a editarem leis que seriam inconstitucionais nos EUA, afirmaram autoridades estadunidenses e estrangeiras”. Trecho original, para conferência: “The U.S. government, in its zeal to fight moneylaundering by drug traffickers, has been pressuring Caribbean countries to enact laws that would be unconstitutional in the United States, U.S. and foreign officials said”. 17 375 380 385 390 Em 1998, o Departamento de Justiça estadunidense apresentou um projeto de lei ao Congresso com a finalidade de incluir no ordenamento jurídico normas destinadas a permitir a inversão do ônus da prova em processos criminais relacionados à lavagem de dinheiro com repercussão transnacional. O mecanismo proposto foi o seguinte: a lei estabeleceria quatro fatos possivelmente comprováveis pela acusação em processo penal condenatório. Se ela, acusação, conseguisse desonerar-se de seu ônus em relação a pelo menos três desses fatos, estaria estabelecida uma presunção relativa de que certa quantia de dinheiro de propriedade do acusado houvera sido obtido mediante conduta criminosa. Os quatro fatos seriam os seguintes: a) essa quantia de dinheiro passou por um país considerado produtor de substâncias entorpecentes; b) o negócio ocorreu em pelo menos um país cujas leis sobre o sigilo bancário impeçam a persecução penal de crime de lavagem de dinheiro por parte de autoridades estadunidenses; c) uma das pessoas que hajam entabulado o negócio tenha sido condenada por lavagem de dinheiro ou por tráfico de drogas ou esteja foragida durante processo penal condenatório por uma dessas condutas; e d) o negócio tenha sido conduzido por uma corporação não engajada em alguma atividade negocial legítima nos EUA.27 Esse projeto de lei, entretanto, não foi ainda aprovado. 395 27 Cf. BELL, R. E. “Prosecuting the Money Launderers Who Act for Organised Crime”, in www.iap.nl.com, endereço consultado em 22abr2003.