Hérnia discal da coluna vertebral torácica em

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RELATO DE CASO/CASE REPORT
Hérnia discal da coluna vertebral torácica em paciente
portador de alcaptonúria. Relato de caso
Stenosis of the thoracic vertebral channel
in alcaptonuria. Case report
Eduardo Fairbanks von Uhlendorff1
Marcelo Poderoso de Araújo2
Almir Fernando Barbarini2
Roberto Basile Junior3
RESUMO
ABSTRACT
Os autores pretendem, com este relato de caso
clínico, chamar atenção para aspectos infreqüentes
associados a uma doença também incomum: a
alcaptonúria. Foi documentado o desenvolvimento de
estenose de canal vertebral torácico baixo (T11-T12)
numa paciente com diagnóstico de alcaptonúria. A
evolução sistêmica deste distúrbio metabó-lico foi bem
caracterizada, com o típico comprometimento
músculo-esquelético e cardíaco decorrente da
deposição de metabólitos do ácido homogentísico nos
seus componentes conjuntivos. O diagnóstico,
eventualmente realizado através de exames
laboratoriais, nesse caso foi firmado mediante
visualização
intra-operatória,
durante
a
descompressão do canal vertebral, da impregnação
dos tecidos por esses mesmos metabólitos, o que lhes
conferiu uma coloração enegrecida. O tratamento
seguiu critérios padronizados na literatura, com a
proposta cirúrgica indicada após falha do tratamento
não-cirúrgico. Com poucos relatos de estenose de
canal vertebral em pacientes com alcaptonúria
documentados na literatura, apresentamos um caso
ainda mais raro de estenose num nível torácico.
With this clinical case report the authors intend to call
attention to infrequent aspects associated with an
equally uncommon disease called alcaptonuria. The
development of stenosis of the low thoracic vertebral
channel (T11-T12) was documented in a female
patient diagnosed with alcaptonuria. The systemic
evolution of this metabolic disorder was well
characterized, with the typical musculoskeletal and
cardiac affection secondary to storage of homogentisic
acid metabolites on its conjunctive components. In this
case the diagnosis was eventually made using
laboratory tests and was confirmed by intraoperative
visualization,
during
the
vertebral
channel
decompression, of tissue impregnation by these same
metabolites, which gave them a blackish color. The
treatment followed standard criteria found in literature
and the surgical proposal was indicated after nonsurgical treatment had failed. Since only a few reports
of stenosis of the vertebral channel in patients with
alcaptonuria are documented in literature, we present
an even more rare case of stenosis at thoracic level.
DESCRITORES: Alcaptonúria; Erros inatos do
metabolismo dos aminoácidos; Deslocamento do
disco intervertebral; Coluna vertebral; Relatos de
casos [tipo de publicação]
KEYWORDS: Alkaptonuria; Amino acid metabolism,
inborn errors; Intervertebral disk displacement; Spine;
Case reports [publication type]
Trabalho Realizado pelo Grupo de Patologias da Coluna Vertebral do Instituto de Ortopedia e Traumatologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo – USP – São Paulo (SP), Brasil
1
Mestre em Medicina. Assistente do grupo de patologias da coluna vertebral do IOT-HCFMUSP - Universidade de São Paulo – USP – São Paulo (SP), Brasil
Residentes do grupo de patologias da coluna vertebral do IOT-HCFMUSP - Universidade de São Paulo – USP – São Paulo (SP), Brasil
Doutor em medicina. Chefe do grupo de patologias da coluna vertebral do IOT-HCFMUSP - Universidade de São Paulo – USP – São Paulo (SP), Brasil
2
3
Recebido: 20/04/2005 - Aprovado: 12/01/2006
COLUNA/COLUMNA. 2006;5(3):204-206
Hérnia discal da coluna vertebral torácica em paciente portador de alcaptonúria. Relato de caso
INTRODUÇÃO
Alcaptonúria é um raro distúrbio hereditário do
catabolismo dos aminoácidos tirosina e fenilalanina,
geralmente herdado por um traço autossômico
recessivo¹. A doença é caracterizada pela ausência do
ácido homogentísico oxidase, uma enzima na via
metabólica desses aminoácidos, tanto no fígado como
nos rins e, em conseqüência, ocorre um aumento da
2
excreção de ácido homogentísico na urina .
Um pigmento escuro produzido pela oxidação e
polimerização do ácido homogentísico deposita-se em
todo local que contenha tecido conectivo no corpo.
Esse pigmento tem alta afinidade por fibras colágenas,
depositando-se em tecidos como a cartilagem hialina
das grandes articulações periféricas do corpo e nos
discos intervertebrais. A deposição do pigmento no
tecido conectivo confere ao mesmo uma coloração
enegrecida, fenômeno conhecido como ocronose¹. Na
cartilagem hialina, o pigmento depositado pode causar
uma degeneração articular conhecida como artrite
3
ocronótica . Na coluna vertebral, a anquilose tardia é
regra sendo que alguns segmentos ainda móveis são
mais susceptíveis a herniação do disco intervertebral.
RELATO DE CASO
Paciente do sexo feminino, 70 anos de idade, branca,
apresentou-se com queixa de dor lombar irradiada
para ambos os membros inferiores, com um ano de
evolução. A dor apresentava caráter constante, com
melhora parcial após uso de analgésicos e piora
mediante esforços físicos leves. Referia perda
progressiva da força nos membros inferiores durante
205
os quinze dias que antecederam a avaliação. Ao
exame físico, não conseguia deambular (restrita à
cadeira de rodas). Força muscular grau III L2-S1.
Hipoestesia L4-L5-S1, bilateralmente. Reflexos patelar
e aquileano exaltados bilateral e simetricamente. Sinal
de Babinsky e clônus presentes bilateralmente. A
paciente tinha diagnóstico de diabetes melitus, história
prévia de infarto do miocárdio seguido de
revascularização com enxerto de veia safena magna e
troca de válvula aórtica há quatro anos.
Ao exame radiográfico da coluna tóracolombar
observava-se calcificação dos discos intervertebrais e
anquilose de todos os segmentos, exceto nos níveis
T11/T12 e L2/L3 onde era evidente o sinal do vácuo
(Figura 1). Na Ressonância Magnética (RNM)
observava-se volumosa hérnia discal T11/T12 com
grave compressão medular (Figuras 2 e 3). Devido ao
quadro clínico de mielopatia a paciente foi submetida
a uma cirurgia de descompressão vertebral através de
uma laminectomia ampla T11/T12. No intra-operatório
observou-se grave compressão do saco dural por um
tecido de consistência pétrea, quebradiço e
enegrecido (Figuras 4, 5 e 6). Após a descompressão,
o saco dural mostrava-se totalmente descomprimido e
pulsátil (Figura 7). Ao recuperar-se da anestesia a
paciente apresentava mobilidade e sensibilidade
satisfatória dos membros inferiores. Subitamente, seis
horas após a cirurgia, a paciente queixou-se de
precordialgia intensa. Diagnosticou-se infarto agudo
extenso do miocárdio seguido de choque cardiogênico
e óbito.
Figura 1
Figura 2
Figura 3
Figura 4
Radiografia perfil da coluna
lombo-sacral. Observar a
completa calcificação e
anquilose dos discos
intervertebrais exceto nos
segmentos T11/T12 e L2/L3
Corte sagital da RNM com
imagens pesadas em T2.
Observar a grave
compressão do saco dural e
da medula espinal no
segmento T11/T12
Corte axial da RNM no
segmento T11/T12 com
imagens pesadas em T2.
Observar a grave
compressão das estruturas
neurais por um tecido de
baixo sinal. Praticamente
não se observa o saco dural
Fotografia do intraoperatório
após a laminectomia de T11
e T12, porém antes da
descompressão. Observar o
clássico aspecto “em
ampulheta” do saco dural
envolvido por tecido
enegrecido
COLUNA/COLUMNA. 2006;5(3):204-206
206
Von Uhlendorff EF, Araújo MP, Barbarini AF, Basile Junior R
Figura 7
Aspecto final após a
descompressão do saco dural.
Observar o espessamento e o
afilamento residual da
duramáter
Figura 5 e 6
Fotografia do material de consistência pétrea, quebradiço
e enegrecido que comprimia o saco dural contra fundo
claro e escuro
DISCUSSÃO
A incidência de alcaptonúria na população é
4
aproximadamente 1:1 milhão . Em 1866, Virchow
descreveu o termo ocronose para caracterizar uma
pigmentação que ocorria na cartilagem, ligamentos,
tendões e na íntima de grandes vasos sangüíneos2.
Em 1902, Albrecht e Zdreeck descreveram uma
associação entre alcaptonúria e urina enegrecida num
paciente4. O gene da alcaptonúria que codifica a
enzima ácido homogentísico oxidase, foi mapeado no
cromossomo humano 3q21q23 e codifica uma
5
proteína de 445 aminoácidos .
Alterações degenerativas podem ser vistas ao
longo de toda a coluna vertebral na alcaptonúria;
entretanto o envolvimento é mais acentuado no
6
segmento lombar . O sintoma articular mais precoce
7
costuma ser dor lombar . Acometimento torácico, tal
qual o presenciado no caso relatado é incomum. A
degeneração do disco intervertebral ocorre após
deposição dos polímeros oxidados do ácido
homogentísico no colágeno.
O mecanismo exato das alterações degenerativas
na cartilagem é incerto: irritação química?, alteração
nas ligações do colágeno?, alteração no metabolismo
dos condrócitos articulares? ¹. A doença degenerativa
articular começa a apresentar sintomas por volta da
quinta década, envolvendo além da coluna vertebral,
grandes articulações periféricas (quadris, joelhos,
ombros). Pequenas articulações costumam ser
poupadas¹.
A alcaptonúria e ocronose envolve múltiplos
sistemas, com a deposição de polímeros oxidados do
ácido homogentísico em locais como esclera, orelhas
e leito ungueal a partir da terceira década de vida,
conferindo uma coloração cinza-acastanhada¹.
REFERÊNCIAS
1. “La Du BN”. Alkaptonuria. In: Scriver CR, editor.
The metabolic and molecular bases of inherited
disease. 7th ed. New York: McGraw-Hill, Health
Professions Division; c1995.
2. Field JR, Higley GB Sr, DeSaussure RL Jr.
Ochronosis with ruptured lumbar disc: case report. J
Neurosurg. 1963; 20:348-51.
3. Scriver CR. Alkaptonuria: such a long journey.
Nat Genet. 1996; 14(1):5-6.
4. Reddy DR, Prasad VS. Alkaptonuria presenting as
lumbar disc prolapse: case report and review of
literature. Spinal Cord. 1998; 36(7):523-4.
5. Scriver CR. The hyperphenylalaninemias and
alkaptonurias. In: Goldman L, Bennett JC, editors.
Cecil textbook of medicine. 21 st ed. Philadelphia;
London: W.B. Saunders; 2000. pp 1108-10.
O acúmulo desses metabólitos nas válvulas
cardíacas pode ocasionar estenose aórtica e mitral,
resultando em predisposição a doença valvar¹, e a
deposição nas artérias coronárias predispõe a doença
coronariana. Ambas foram observadas nesta paciente.
O diagnóstico da alcaptonúria costuma ser feito
considerando-se a tríade clínica: artrite degenerativa,
pigmentação ocronótica e urina escura após
alcalinização. A dosagem de ácido homogentísico na
urina.
Apesar do aspecto radiográfico da coluna vertebral
assemelhar-se à espondilite anquilosante, não há
acometimento
das
articulações
sacro-ilíacas,
ossificação anular ou sinal da “coluna em bambu” na
8
alcaptonúria .
Nem todos os sinais clínicos clássicos são
observados nos pacientes com alcaptonúria . Nesta
paciente a artrite ocronótica do joelho direito, o
acometimento das válvulas cardíacas e da coluna
vertebral foram observados, porém não havia qualquer
evidência de pigmentação na pele, esclera, leito
ungueal ou outros sítios usuais.
Nosso objetivo ao relatar este caso foi mostrar um
raro caso de mielopatia secundária à hérnia de disco
torácica em um paciente portador de ocronose. Os
poucos relatos de caso da literatura associando a
hérnia discal a ocronose referem-se somente à coluna
2,4,6,8
lombo-sacra
.
Deve-se ter em mente também que o paciente
portador de ocronose secundário a alcaptonuria pode
apresentar graves acometimentos de outros órgãos e
sistemas, principalmente o cardiovascular e que
complicações pós-operatórias fatais podem ocorrer.
6. Farzannia A, Shokouhi G, Hadidchi S.
Alkaptonuria and lumbar disc herniation. Report of
three cases. J Neurosurg. 2003; 98(1 Suppl):87-9.
7. Sakkas L, Thouas B, Smyrnis P, Vlahos E. Low
back pain and ochronosis. Int Orthop. 1987;
11(1):19-21.
8. Emel E, Karagöz F, Aydín IH, Hacísalihoglu S,
Seyithanoglu MH. Alkaptonuria with lumbar disc
herniation: a report of two cases. Spine. 2000;
25(16):2141-4.
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COLUNA/COLUMNA. 2006;5(3):204-206
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