RELAÇÕES INTERNACIONAIS NO MUNDO ATUAL ENTIDADE MANTENEDORA ASSOCIAÇÃO DE ENSINO NOVO ATENEU FACULDADE DE CIÊNCIAS ADMINISTRATIVAS DE CURITIBA 1 EXPEDIENTE Publicação oficial da Faculdade de Ciências Administrativas de Curitiba Rua Chile, 1.678 – CEP 80220-181 Fone/fax: (041) 333-8778 www.faculdadescuritiba.br – [email protected] Curitiba – Paraná – Brasil Pede-se permuta. We ask for exchange. On démande I’échange. Austausch wird gebeten. Oni petas intersangam. Si richiede lo scambio. Pidese permuta. FACULDADES INTEGRADAS CURITIBA Diretor Institucional: Francisco Accioly Neto Diretor-Geral: Danilo Vianna Diretor Acadêmico: Nelson Hauck Coordenadora da Faculdade de Ciências Administrativas de Curitiba: Sheyla Luiz da Costa Subcoordenadora do Curso de Relações Internacionais: Elizabeth Accioly TIRAGEM: 1.000 exemplares Impresso no Brasil Printed in Brazil RELAÇÕES INTERNACIONAIS NO MUNDO ATUAL / Faculdades Integradas Curitiba Ano 1, n.1. 20001. Relações Internacionais-Periódico. I. Faculdade de Ciências Administrativas de Curitiba 2 SUMÁRIO • Apresentação .................................................................................................................. 5 • Nacionalidade de empresas transnacionais: paradoxo central no contexto de globalização Ana Lucia Guedes ........................................................................................................... 7 • Panorama da história das relações internacionais do Brasil, 1930-1995 Wilson Maske ................................................................................................................... 25 • Por que respeitar as instituições jurídicas? Carlos Luiz Strapazzon .................................................................................................... 35 • Questões do desemprego no Brasil e políticas recentes Sérgio Luiz Lacerda ......................................................................................................... 59 • Relações entre Brasil e Estados Unidos no século XIX Bianca Carvalho Pazinatto, Ella Souza Freitas, Jorge Luis Marques Ferreira .......... 75 • Relações diplomáticas entre Brasil e Áustria, no período de 1822 a 1889 Fabiana Brett Clemente, Michelle Karine Muliterno Carrion, Thiago Schenkel Dedecek ............................................................................................... 89 • Relações entre Brasil e França, no período de 1822 a 1889 Carolina Camargo de Lacerda, Ricardo Salini Abrahão, Thais Aranão Bastos ...................................................................................................... 109 3 4 APRESENTAÇÃO Resultante de um esforço conjunto de nossos professores e alunos, surge o primeiro número da revista Relações Internacionais no Mundo Atual, das Faculdades Integradas Curitiba, relevante contribuição à efetividade da comunidade acadêmica no que concerne às questões internacionais, em suas múltiplas clivagens. Trata-se de labor intelectual revelador de um perfil de curso que pretendemos desenvolver, conscientes das profundas transformações do mundo globalizado, que derruba muros, modifica dogmas e obriga à reflexão. Nossa revista, para além de um marco no cenário acadêmico brasileiro, busca refletir o nível de nossa produção cultural e, mesmo, a excelência criativa de uma geração massacrada pelas mentiras do bipolarismo ideológico. Em nosso número exordial, os trabalhos publicados nos proporcionam o registro de uma época de entusiasmo e de idealismo, de uma percepção de um mundo diferenciado pelo otimismo, mas sempre ciente de uma realidade política trágica para os países emergentes. Os trabalhos aqui publicados compreendem as grandes áreas das Relações Internacionais: “A nacionalidade de empresas transnacionais: paradoxo central no contexto da globalização”, da lavra da Professora Ana Lucia Guedes; o “Panorama da história das relações internacionais do Brasil, 1930-1995”, é abordado pelo Professor Wilson Maske; as “Questões do desemprego no Brasil e as políticas recentes” são analisadas pelo Professor Sérgio Luiz Lacerda; e, por fim, o Professor Carlos Strapazzon indaga “Por que respeitar as instituições jurídicas”? Seguem os trabalhos dos nossos alunos que abordam as relações internacionais entre o Brasil e os Estados Unidos, por Bianca Pazinatto e Jorge Ferreira; entre o Brasil e a Áustria, por Fabiana Clemente, Thiago Dedecek e Michelle Carrion; entre o Brasil e a França, por Carolina Lacerda, Thais Bastos e Ricardo Abrahão, todos no recorte histórico do século XIX. Nossos agradecimentos, portanto, são dirigidos a todos que colaboraram para a realização deste trabalho, que traz também o signo de tradição da Associação de Ensino Novo Ateneu e de seu exemplo de excelência na formação intelectual de sucessivas gerações. Elizabeth Accioly SUBCOORDENADORA DO CURSO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS 5 6 NACIONALIDADE DE EMPRESAS TRANSNACIONAIS: PARADOXO CENTRAL NO CONTEXTO DE GLOBALIZAÇÃO* Ana Lucia Guedes Ph. D. em Relações Internacionais, London School of Economics, Professora das Faculdades Integradas Curitiba SUMÁRIO: 1 Antecedentes. 2 Nacionalidade da empresa: implicações do contexto de origem. 3 Análise comparativa. 4 Conclusões. Bibliografia. 1 ANTECEDENTES Este artigo apresenta alguns resultados de uma pesquisa mais abrangente focada na implementação de políticas ambientais corporativas em subsidiárias brasileiras. A decisão de realizar uma investigação com múltiplos níveis de análise1 levou à necessidade de uma abordagem interdisciplinar, incluindo as áreas de relações internacionais, negócios internacionais e organizações. Pode-se afirmar que a adoção de vários paradigmas resultou da aliança de teoria, método e análise dos dados, o que constitui uma das contribuições do estudo. Em outras palavras, distintos paradigmas serão mencionados ao longo do artigo porque nenhuma abordagem isoladamente discutia de forma satisfatória a potencial influência da nacionalidade da empresa2 para questões ambientais. (*) Artigo apresentado no 24º Encontro da Associação Nacional dos Programas de PósGraduação em Administração (ENANPAD), Florianópolis, 10 a 13 de setembro de 2000. A autora agradece o apoio financeiro concedido pela CAPES para realização da pesquisa. 1 Os primeiros estudos focados em ETNs e questões ambientais assumiam múltiplos níveis de análise (GLADWIN, 1977, e PEARSON, 1987). 2 Na área de ciência política o conceito de “caráter nacional” é fundamentado em explicações culturais. Em relações internacionais esse conceito tem sido discutido em estudos que seguem a abordagem realista por seu foco nos Estados e em suas representações de poder. STOESSINGER (In: LITTLE e SMITH, 1991) enfatiza o paradoxo envolvendo o conceito de caráter nacional: “ao mesmo tempo que o caráter nacional parece ser um fator indiscutível não existe acordo na literatura sobre o que são padrões culturais”. CUCHE (1999) discute o mecanismo pelo qual o Estado reconhece apenas uma identidade cultural para definir a identidade nacional. 7 A necessidade de uma abordagem interdisciplinar para investigar empresas transnacionais (ETNs) é parte do debate em negócios internacionais. Pela complexidade dessas organizações é difícil manter as fronteiras da discussão dentro de poucas perspectivas (SUNDARAM e BLACK, 1992; GROSSE e BEHRAM, 1992). O foco do estudo em políticas e práticas ambientais de ETNs justificava também uma abordagem interdisciplinar. Por exemplo, no âmbito de relações internacionais, HURRELL e KINGSBURY (1992, p. 3) enfatizam que ecologia e economia política internacional não devem continuar sendo tratadas como esferas separadas. No âmbito de sociologia, REDCLIFT (1987, p. 3) argumenta que ambos, economia política e o ambientalismo, podem ganhar ao compartilhar uma perspectiva analítica. Isso decorre principalmente do fato de a crise ambiental ser o resultado da crise econômica. STRANGE (1994, p. 80) afirma que a perspectiva de economia política internacional3 (EPI) parece mais apropriada para investigar as práticas de empresas transnacionais, porque é impossível separar questões políticas das econômicas, ou considerar somente as relações interestatais. No entanto, existem lacunas nessa literatura com relação à potencialidade de questões sociais, culturais, ambientais e, também, da nacionalidade da empresa (como sugerido por STOPFORD e STRANGE, 1991, p. 232), explicarem o comportamento de Estados e ETNs em uma economia mundial. Mais especificamente, as raras referências no âmbito de EPI à temática ambiental motivaram críticas extremas. CHOUCRI (1993, p. 220), por exemplo, afirma que todas as teorias sobre ETNs ignoram os impactos das atividades corporativas no ambiente natural. O termo “ambiente natural” não é nem citado nos índices dos volumes sobre empresas multinacionais ou economia política internacional. O presente artigo argumenta que políticas e práticas de empresas transnacionais não são explicadas somente por aspectos políticos e econômicos. O artigo também assume que ETNs e suas subsidiárias, mesmo aquelas localizadas em países em desenvolvimento, possuem autonomia na definição e implementação de questões ambientais. Tal posição exige que a abordagem estrutural de EPI seja suplementada por tratar as corporações como “caixas pretas” (com exceção de STOPFORD e STRANGE, 1991, e SALLY, 1994, p. 164) excluindo da investigação variáveis relacionadas com o âmbito organizacional. Em outras palavras, investigações que objetivam explicar as relações entre os níveis internacional e nacional e o organizacional requerem, necessariamente, o uso de perspectivas adicionais. Nesse sentido, a literatura de negócios internacionais constituise em relevante referência para a investigação de ETNs apesar de sua origem recente (como descrito por PARKER, In: CLEGG et al., 1998). Primeiro, cabe ressaltar que o países industrializados têm sido predominantemente considerados como foco das investigações. Segundo, são raras as explicações do comportamento de ETNs exclusivamente com base em aspectos culturais, como, por exemplo, FAYERWEATHER (1969) e HOFSTEDE (1980). Dessa forma, torna-se evidente a contribuição do presente artigo por causa da ausência de: (a) investigações focadas em países em desenvolvimento e (b) explicações do comportamento ambiental de ETNs fundamentado em aspectos culturais. 3 Em termos conceituais, EPI envolve não somente os arranjos sociais, políticos e econômicos que afetam o sistema de produção, troca e distribuição, mas também a mistura de valores refletidos neles (STRANGE, 1994, p. 18). Pode-se afirmar que esse conceito tende a evoluir visto que autores como STUBBS e UNDERHILL (1994, p. 18-38) apresentam interessantes desenvolvimentos quanto a aspectos políticos, sociais e até ambientais na área de EPI, como uma das mais recentes abordagens em relações internacionais. 8 Nesse sentido, a abordagem de STOPFORD e STRANGE (1991) é rara e interessante porque combina as literaturas de EPI e negócios internacionais. O modelo teórico elaborado pelos autores, com base na “diplomacia triangular”, sustenta o argumento seguido neste artigo por enfatizar a interdependência entre Estados e firmas. Adicionalmente, os autores reconhecem a importância do papel desempenhado pelas ETNs em países anfitriões, mais especialmente em países em desenvolvimento. Cabe ressaltar que os autores fazem somente duas referências ao tema ambiental. A primeira refere-se aos impactos ambientais de novos projetos e a avaliação dos benefícios por parte de empresas e governos.4 Na opinião de STOPFORD e STRANGE (1991), as empresas fazem cálculos em termos de retorno global; os governos, por sua vez, olham somente para os efeitos locais. Dessa forma, as decisões ambientais das empresas não podem ser interpretadas como filantrópicas, mas seguindo “bom senso comercial”. As decisões governamentais, por sua vez, tendem a se basear em padrões inferiores aos melhores padrões ambientais internacionais em função das pressões pela industrialização (o caso de Cubatão é mencionado como exemplo desse tipo de decisão governamental ). Os autores concluem que os incentivos para que boas práticas sejam estabelecidas em parceria entre empresas e governos decorre de pressões dos consumidores e da opinião pública. Essas fontes de pressão estão tradicionalmente situadas em países desenvolvidos sendo questionável sua existência em países em desenvolvimento. Na verdade, existe vasta literatura indicando que empresas não incorporam preocupações ambientais voluntariamente (GLADWIN, 1977; NEDER, 1992; PEARSON, 1987; UNTCMD, 1993; MILLER, 1995). A segunda referência diz respeito ao fato de que governos perderam, coletivamente, o poder de barganha para ETNs como conseqüência da intensa competição por riqueza entre os Estados. As ETNs, como grupo, exercem considerável influência sobre as escolhas governamentais; a ação coletiva delas pode produzir ou influenciar os padrões internacionais em várias questões (tais como tratados bilaterais tributários e padrões ambientais). Nesse contexto, GLECKMAN (1995) enfatiza que governos são cruciais para controlar as atividade ambientais das ETNs. A legislação ambiental nos países de origem é o fator isolado mais importante, motivando o estabelecimento de políticas ambientais globais pelas ETNs. Ao contrário, na arena internacional, a batalha para a definição de um comportamento corporativo aceitável (incluindo a divulgação das avaliações ambientais) ainda não terminou, apesar das tentativas no estabelecimento de códigos de conduta para ETNs pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (The Economist, January 15th 2000) e Nações Unidas (UNCTC, 1985; 1990). A relevante questão sobre quem definirá o comportamento sustentável de ETNs permanece sem resposta (EDEN, 1994). 2 NACIONALIDADE DA EMPRESA: IMPLICAÇÕES DO CONTEXTO DE ORIGEM Com base na discussão precedente, seria apropriado enfatizar dois pontos: (a) a noção de que ETNs possuem capacidade política (BODDEWYN, 1988) que pode resultar 4 Segundo STOPFORD e STRANGE (1991) a Shell assumiu, em parceria com governo do Gabão, estudo de impacto ambiental para o desenvolvimento de um campo petrolífero; a subsidiária, no Kênia, da British American Tobacco apoia os fornecedores de fumo que usam madeira de reflorestamento para curar o produto. 9 em ações individuais e coletivas, e (b) a embeddedness das ETNs com relação aos demais atores em seus contextos de origem. Segundo SALLY (1995, p. 206), é precisamente essa área de interação entre empresas e outros atores, em que estão as variáveis de poder relativo e escolha política, que afeta a vantagem competitiva das empresas e a competitividade das economias nas quais elas fazem negócios. A influência dessa embeddedness sociológica foi confirmada pelos resultados de uma pesquisa sobre gerenciamento ambiental em ETNs realizada pela UNTCMD (1993). Os resultados indicam que a natureza do ambiente regulatório no país de origem da corporação explica as variações entre regiões quanto às práticas de gerenciamento ambiental, ocupacional e de segurança. Fica, também, evidente que a política regulamentária tem um esfera de influência nacional. Isso significa que não há expectativas de que as políticas regulamentárias ambientais dos países de origem tenham qualquer efeito coercitivo no contexto dos países anfitriões. GLADWIN (In: PEARSON, 1987) havia indicado que a probabilidade de qualquer tentativa dos países de origem em estender as regulamentações ambientais extraterritorialmente é pequena em razão dos problemas diplomáticos. Por outro lado, as ETNs tendem a adotar como princípio corporativo os padrões estabelecidos pela legislação do país de origem. A pesquisa da UNTCMD (1993, p. 93) relata que as práticas ambientais, ocupacional e de segurança de ETNs, em países em desenvolvimento, refletem a região de origem da corporação. BIRDSALL e WHEELER (1993, p. 137) confirmam a extraterritorialidade de padrões que prevalecem nos países de origem, apoiados no argumento de que essa seria a maneira mais barata de enfrentar a ameaça de futura regulamentação. STRANGE (In: STUBBS e UNDERHILL, 1994, p. 112) indica que a nacionalidade da empresa merece atenção especial nas relações Estado-empresa. No entanto, a autora sugere que evidências de etnocentrismo (PERLMUTTER, 1969), como o fato de empresas norte-americanas raramente recrutarem não norte-americanos para o alto escalão gerencial, não significam que o comportamento e interesses das empresas possam ser sempre previstos com base no país de origem. Segundo STOPFORD e STRANGE (1991, p. 233-234) é exatamente sobre a relação entre identidade nacional e identidade corporativa que os conflitos em relações internacionais emergem com relação ao gerenciamento de comércio e investimento internacional. No entanto, SALLY (1994, p. 170) indica que as ETNs são instituições embeddeded em um conjunto de ambientes institucionais diferentes. Essa perspectiva reconhece implicitamente que nações possuem “diferentes modelos de expressão institucional e operação capitalista” (como sugerido por HAMPDEN-TURNER e TROMPENAARS, 1995). No âmbito de negócios internacionais, BUCKLEY e CASSON (1991, p. 101) encontraram evidência suportando a hipótese de que “nacionalidade da empresa” exerce uma influência significativa no comportamento de ETNs. BARTLETT e GHOSHAL (1992) indicam os impactos da cultura nacional nas empresas dentre outros aspectos que influenciam o gerenciamento de ETNs. Em resumo, outros estudos apresentaram resultados confirmando a influência da nacionalidade de multinacionais nas preferências de propriedade das subsidiárias (ERRAMILLI, 1996), na performance financeira de unidades que possuem coerência entre práticas gerenciais e cultura nacional (NEWMAN e NOLLEN, 1996), na percepção de questões éticas (SCHLEGELMILCH e ROBERTSON, 1995), no conteúdo dos códigos de ética (LANGLOIS e SCHLEGELMILCH, 1990). Paralelamente, evidências de diferenças na cultura de políticas ambientais 10 governamentais estão disponíveis em alguns estudos. Por exemplo, VERNON (1993) afirma que o poder e a persistência de características nacionais poderão distinguir os respectivos papéis dos EUA, Japão e da Comunidade Européia em futuras negociações ambientais e no estabelecimento de acordos internacionais. Segundo O’RIORDAN (1981) existem diferenças em termos de cultura política entre os EUA e o Reino Unido, principalmente com relação à participação política, comportamento administrativo das autoridade, processos de tomada de decisão e o papel das leis ambientais. VOGEL (1986, p. 21) acrescenta que, apesar de possuírem raízes do sistema político e legal em comum, os EUA e o Reino Unido possuem abordagens diferentes para regulamentação ambiental. Um diferença crucial entre essas abordagens é o acesso do público às informações coletadas pelas autoridades ambientais. Não existe um “direito automático” de acesso no Reino Unido, pois a política regulamentária é executada por meio de consultas seletivas com as partes interessadas. Ao contrário, nos EUA, a informação tem estado disponível ao público desde 1966. Além disso as decisões envolvendo temas ambientais são resultados de barganhas e concessões negociadas por meio de lobby político (O’RIORDAN, 1991). Mais especificamente, uma pesquisa realizada pela entidade Friends of the Earth (1992) reconhece que o direito do público à informação não faz parte das políticas ambientais na Europa. Esse relatório afirma ainda que as empresas européias divulgam, nos EUA, as informações ambientais de suas subsidiárias por ser um requerimento legal sem que tal prática seja seguida na Europa (com a exceção da Noruega onde o Enterprise Act de 1989 estabeleceu tal prática). A UNEP (1994, p. 24-28) indica que a cobertura geográfica dos relatórios ambientais das ETNs tem-se limitado aos países de origem. Essa pesquisa encontrou dois tipos distintos de relatório corporativo ambiental, denominados Anglo-Saxão e Reno. O primeiro modelo, seguido pela maioria das empresas norte-americanas e britânicas, tem como base uma declaração de política ambiental, a descrição de práticas de gerenciamento e um inventário de emissões. Ao contrário, o modelo Reno, utilizado por empresas alemãs e escandinavas, é alicerçado em um “ecobalanço” que inclui o ciclo de vida dos insumos e produtos ao longo das operações da empresa. A possibilidade de convergência futura dessas abordagens é, no entanto, constrangida pelos estilos de gerenciamento que refletem aspectos sociopolíticos e culturais. O caso norte-americano é bem ilustrativo, porque a exigência de divulgação de dados, tais como os requerimentos do Toxic Release Inventory e da Securities and Exchange Commission, tem formado o contexto dentro do qual empresas desenvolveram os seus programas voluntários de relatórios ambientais. De forma similar, a União Européia adotou em 1993 uma regulamentação sobre gerenciamento ambiental e sistemas de auditoria para motivar as empresas a, voluntariamente, avaliarem suas operações e divulgarem relatório para o público. Em resumo, a discussão quanto à influência da nacionalidade da empresa na literatura sugere que o tema deva ser levado em consideração, quando políticas ambientais corporativas são investigadas. Dessa forma, existem expectativas de que aspectos da legislação do país de origem sejam incorporados aos princípios corporativos. A disseminação desses princípios para as subsidiárias resultaria da racionalidade econômica seguida pelas ETNs que se baseia na difusão de escolhas estratégicas e ativos, tais como tecnologia, para manter a competitividade. Finalmente, a revisão da literatura indica que a inclusão de explicações sociológicas e culturais para a análise da relação Estado-empresa é incomum dentro da perspectiva de EPI. No entanto, é impossível ignorar o fato de que gerentes crescem em uma sociedade particular em um período particular. Por essa razão, as idéias dos gerentes 11 não podem deixar de refletir os constrangimentos do ambiente que eles conhecem (HICKSON, 1997; HOFSTEDE, 1994). Alguns autores repudiam a retórica atual de um mundo “sem bordas” e corporações “sem origem” ao indicar o quanto até mesmo as maiores multinacionais retêm fortes raízes domésticas (WHITTINGTON, 1993, p. 29). 3 ANÁLISE COMPARATIVA A seguir, serão apresentados resultados da análise comparativa por nacionalidade de oito casos envolvendo subsidiárias de ETNs com origem nos EUA, Reino Unido e Alemanha. Os dados foram coletados nos países de origem e no Brasil durante o período de 1996-1998 como parte da pesquisa de doutorado da autora. Os dados primários foram obtidos por meio de entrevistas semi-estruturadas realizadas em empresas selecionadas. Seguindo a estratégia de triangulação de dados foram consultadas outras fontes, tais como associações empresariais, agências governamentais, acadêmicos e organizações não-governamentais. A tabela a seguir ilustra a amostra estratificada. Tabela 1 − Amostra estratificada SETOR INDUSTRIAL / PAÍS DE ORIGEM REINO UNIDO ESTADOS UNIDOS ALEMANHA fumo químico caso 1 caso 2 − − caso 5 caso 7 farmacêutico limpeza caso 3 caso 4 caso 6 − caso 8 − As explicações para distintas abordagens de gerenciamento ambiental parecem ser fundamentadas nas diferentes estruturas regulamentárias dos países de origem como sugerido pelos casos norte-americanos investigados. O contexto regulatório norteamericano é altamente legalista e contencioso, e a legislação ambiental tem restringido a autonomia administrativa pelo estabelecimento de padrões uniformes (UNTCMD, 1993). Esse contexto reflete na excessiva preocupação com processos legais, imagem e padronização de procedimentos. DOYLE et al. (1992) encontraram evidências similares do comportamento de empresas norte-americanas em outros países. Elas possuem uma orientação clássica para o país de origem, principalmente pela resistência em continuar utilizando gerentes norte-americanos e sistemas de controle centralizados. Paralelamente, as explicações para as distintas abordagens estão vinculadas ao estilo de gerenciamento estabelecido pelos contextos culturais dos países de origem, como sugerido pelos casos ingleses e alemães. A abordagem regulamentária seguida na Europa resultou em uma relação mais cooperativa e consensual entre reguladores e representantes da indústria. O grau de intervenção do Estado é um elemento diferenciando as diversas formas de capitalismo na Europa (HODGES e WOOLCOCK, 1993). Por exemplo, a Alemanha possui uma extensa estrutura regulamentária que permite as forças do mercado operarem somente 12 dentro das regras prescritas limitando a autonomia dos atores. A sociedade alemã mantém ligações estreitas entre empregados e indústria, o que fortalece a relativa influência do contexto de origem. Ao contrário, o Reino Unido tem tradicionalmente baseado suas políticas na interpretação discricionária sem as restrições de um estrutura regulamentária, e com definições do interesse público que variam de acordo com o partido no poder. Existem, então, diferenças entre a economia social de mercado na Alemanha e o livre mercado no Reino Unido. O último (denominado modelo anglo-americano ou capitalismo Atlântico) é caracterizado por seu foco nos resultados individuais e lucros de curto prazo. O modelo alemão (ou capitalismo do Reno) coloca ênfase em resultados coletivos e consenso público. O mais interessante é que existem evidências de preocupação excessiva com lucros no curto prazo, nos casos ingleses, e de resultados de longo prazo com participação das audiências interessadas, nos casos alemães. A tabela abaixo ilustra os distintos contextos em termos de controle corporativo nos países selecionados. 13 Os resultados dos casos enfatizam a importância do contexto e cultura no estabelecimento da abordagem para gerenciamento ambiental como será demonstrado a seguir. 3.1 Casos britânicos Dentre os casos ingleses foram encontradas similaridades entre os casos 2 e 3, bem como entre os casos 1 e 4. Casos 2 e 3 apresentaram relatos de impactos ambientais, não-cumprimento com requisitos legais, estrutura descentralizada e dependência na obtenção de lucros no mercado brasileiro para realizar novos investimentos. Casos 1 e 4 apresentaram preocupação em explorar o gerenciamento ambiental, produtos ecologicamente seguros e plantas menos intensivas em poluição nas suas abordagens de relações públicas. Caso 1 mostrou particular interesse em melhorar sua imagem perante a opinião pública, visto que o setor vem sendo bombardeado com campanhas antitabagismo, ações legais e denúncias de contaminação nas plantações de fumo. O fato de as autoridade ambientais britânicas evitarem confrontação por meio de negociações caso a caso (VOGEL, 1986) pode ser uma indicação de um contexto menos rígido (WINTLE, 1994). VAUGHAN e MICKLE (1993, p. 30) afirmam que as pressões ambientais são fortes da parte de organizações não-governamentais, público, mídia e competidores, porém, superficial da parte de associações empresariais no Reino Unido. Ao mesmo tempo, pode ser identificado um decréscimo nos investimentos britânicos na América Latina ao longo deste século (MILLER, 1993). Tal contexto pode ter sido indiretamente responsável pela responsabilidade legal por danos ambientais enfrentada no Brasil pelos casos 2 e 3. Ambas as corporações são altamente dependentes de vendas fora do mercado britânico, no qual América Latina representa um percentual abaixo de 5% das vendas mundiais. Esses fatos poderiam explicar parcialmente por que as empresas britânicas podem serem vistas como casos de “maquiagem verde” no Brasil. 3.2 Casos norte-americanos Empresas norte-americanas são reconhecidas por suas tentativas de reduzirem os padrões duplos ambientais existentes mundialmente entre subsidiárias. Há indicações (UNTCMD, 1993, p. 39) de que a visibilidade global dessas empresas, combinada com as pressões de ambientalistas no contexto de origem, são as principais explicações para tal comportamento. Em outras palavras, estas empresas apresentam grande preocupação com a imagem diante de uma mídia agressiva5 e a ameaça de ações legais, mesmo aquelas decorrentes de incidentes/acidentes em outros países, como Bhopal.6 5 Robert Repetto do renomado World Resources Institute afirmou durante uma vídeoconferência (co-patrocinada pela Secretária de Estado do Meio Ambiente e Ernst & Young, São Paulo, outubro de 1996) que um dos efeitos positivos da globalização era a possibilidade de organizações não-governamentais norte-americanas denunciarem os padrões duplos de ETNs norte-americanas no mundo para a mídia nos EUA. 6 Ver: SHRIVASTAVA (1992) para uma exaustiva análise do acidente na planta da Union Carbide em Bhopal, Índia. Esse acidente chocou a indústria química, particularmente nos EUA, não somente por questionar a segurança das operações mas também pelas ações legais nas Cortes norteamericanas para compensar as vítimas. 14 Dentre os resultados dos casos 5 e 6 se destaca a forte preocupação com penalidade legais decorrentes de impactos ambientais. Mais especificamente, isso traduz a grande preocupação com a manutenção da imagem corporativa. Ambos os casos seguem procedimentos semelhantes quanto a adoção, implementação e avaliação dos princípios ambientais corporativos. Novos procedimentos são sempre adotados de acordo com prazos preestabelecidos e simultaneamente disseminados para todas subsidiárias. Existem também evidências de que os princípios ambientais corporativos foram criados como resposta a demandas legais específicas nos EUA. É possível identificar o cumprimento de requerimentos legais7 dos EUA no relatório do caso 5 (como, por exemplo, no Progress Toward Goals de 1993, citado por UNEP, 1994, p. 73). Essa evidência confirma a influência do contexto de origem no gerenciamento ambiental. O caso 5 é um exemplo típico de importação de tecnologia e cultura gerencial, no qual foi necessário resgatar o histórico da empresa para o entendimento das suas atuais práticas ambientais. De forma semelhante, o caso 6 apresentou evidências de indicadores de performance utilizados mundialmente pela corporação que refletem a inclusão de padrões do contexto de origem. Por exemplo, o percentual de acidentes baseia-se nos padrões definidos pela Occupational Safety and Health Association, e a lista de substâncias proibidas foi definida pela Environmental Protection Agency. Esses exemplos são evidências da influência do contexto de origem, principalmente se combinados com as características etnocêntricas da corporação em face da sua recente estratégia de globalização. As respostas da comunidade empresarial norte-americana para questões ambientais foram, em princípio durante as décadas de 70 e 80, baseadas em mecanismos de comando e controle. No entanto, características do ambiente institucional, como, por exemplo, a comercialização de ações no mercado e a existência de inúmeros acionistas demandando uma melhor performance ambiental (FREDERICK et al., 1992), pressionaram para mudanças nos padrões ambientais das empresas. Durante a última década as empresas têm demonstrado a preocupação com eficiência no longo prazo e a revelação ao público de informações ambientais em virtude de interesses dos acionistas.8 Adicionalmente, a criação e o uso de instrumentos orientados para o mercado, como permissões de poluição e iniciativas voluntárias, resultaram em uma abordagem regulamentária mista para o controle de poluição industrial. A incorporação tecnológica (iniciada com equipamentos de fim de linha nos anos 70 e 80, FREDERICK et al., 1992; CHOUCRI, 1991; DIMENTO, 1986) é atualmente 7 Com base em padrões legais norte-americanos para emissões tóxicas e de carcinógenos, nas reduções de um grupo específico de produtos químicos de acordo com iniciativa voluntária da Environmental Protection Agency e resíduos perigosos estabelecidos pelo US Resource Conservation and Recovery Act (UNEP, 1994, p. 105). 8 Além das pressões relacionadas com a lucratividade de curto e longo prazos, a US Securities and Exchange Commission enfatizou que a política ambiental corporativa é uma questão importante com repercussão nas preocupações financeiras dos acionistas. Essa posição confirma posição anterior quando acionistas solicitaram ao Grupo DuPont para acelerar o processo de banimento do CFC (Business and the Environment, May 1994, p. 2). 15 muito avançada na “tecnologia limpa ou ambiental”. Entretanto, padrões duplos entre subsidiárias localizadas em países industrializados e aquelas localizadas em países em desenvolvimento permanecem como característica das operações de ETNs. A lacuna tecnológica parece atualmente ser menor do que nos anos 60 e 70 principalmente pelos imperativos da competição global. Em outras palavras, as corporações disseminam os desenvolvimentos técnicos e gerenciais para as subsidiárias como forma de manter sua competitividade mundial. A hipótese de pressão mundial é particularmente verdadeira para empresas norte-americanas, cujo alto percentual do faturamento vinha do mercado doméstico (como mercados sagrados, DOZ, 1986), e estão atualmente tentando aumentar a participação no mercado mundial (como, por exemplo, o caso 6) pelo aumento de vendas nos mercados emergentes (fora dos mercados preferenciais da Europa e Japão). Em resumo, as empresas norte-americanas não estão somente preocupadas com obrigações e penalidades legais. Existem outras forças pressionando, tais como acionistas, consumidores e oportunidades na venda de tecnologia e serviços. Assim, surpreendentemente para os ambientalistas, as ETNs têm sido proativas para questões ambientais até no contexto de países em desenvolvimento. Por exemplo, o caso 6 instalou incinerador para o descarte de resíduos no Brasil, como forma de antecipar uma legislação mais restritiva ao mesmo tempo em que explora comercialmente o gerenciamento de resíduos (cujos principais clientes são subsidiárias de ETNs). 3.3 Casos alemães Cabe notar que os casos 7 e 8 estão primariamente preocupados com os modos de produção, mais especificamente, uma preocupação com a segurança do processo foi encontrado em ambos os casos. Apesar da implementação de práticas ambientais representarem custos, ambos casos apresentaram mudanças substanciais nos processos. Investimentos foram feitos para modernização das operações, o que inclui a instalação de novas unidades e de incineradores para disposição final de resíduos (antecipando-se à legislação mais restritiva e explorando comercialmente o gerenciamento de resíduos). Existe também evidência de que as metas são mais realistas, e a busca das causas (e não dos efeitos) é o ponto focal do gerenciamento ambiental. A preocupação com a opinião pública e com imagem não foi considerada relevante pelos gerentes dos casos alemães. Ambos os casos apresentaram indicação de preocupação com a segurança dos empregados e dos consumidores. Existe uma ênfase nos riscos associados com a manipulação de substâncias químicas, apesar de serem setores industriais distintos. Finalmente, existem similaridades no estilo gerencial, considerando que não são sistemáticos e não possuem rígidos mecanismos de controle como nas empresas norte-americanas. As principais características do contexto legal (excessivamente regulamentado) na Alemanha são padrões rigorosos com ênfase em procedimentos tecnológicos. Segundo VAUGHAN e MICKLE (1993, p. 33), as empresas consideram os procedimentos alemães para aplicação da legislação complexos. Por exemplo, a obtenção de permissões para descarga de poluentes pode levar até treze meses; se houver um interesse público declaradamente nacional, o prazo poderá ser ainda maior. Além disso, as empresas indicam que o governo federal alemão interpreta as regulamentações européias mais rigidamente do que outros países membros. Finalmente, empresas alemãs indicam que 16 há excessiva ênfase em padrões ambientais aplicados nacionalmente e sugerem que acordos voluntários seriam melhores para a indústria. Como um todo, os padrões ambientais rígidos resultaram em problemas para a economia alemã, desde que o cumprimento desses rígidos padrões tornou atividades empresariais intensivas em custos. Existe a perspectiva de algum ajustamento no futuro porque as empresas não podem resistir a pressões tão intensas dos sindicatos e consumidores. Nesse sentido, a pressão exercida pelas uniões de trabalhadores constituise no fator-chave, explicando a preocupação ambiental das empresas alemãs. ROBERTS (1995, p. 40) indicou que os empregados são a principal fonte de pressão nas empresas por meio da solicitação de segurança e proteção ambiental nas indústrias. Adicionalmente, alguma pressão surge por intermédio da mídia e dos consumidores e em menor intensidade dos competidores. Tais aspectos confirmam a afirmação de HODGES e WOOLCOCK’S (1993, p. 332) de que na Alemanha “consenso entre gerentes, proprietários e trabalhadores de cada firma e com a sociedade em geral é considerado um pré-requisito para prosperidade sustentada”. O caso 7 proporcionou evidências de pressões oriundas da Alemanha na implementação da política ambiental corporativa no Brasil. Ambientalistas e sindicatos alemães são informados por seus respectivos pares no Brasil e, conseqüentemente, fizeram pressões na matriz que posteriormente cobrou posição da subsidiária sobre o tema. Por exemplo, a notícia de um acidente no transporte de matérias-primas chegou à matriz por meio de reclamações de representantes dos trabalhadores. Mais especificamente, o sindicato na região metropolitana de São Paulo mantém contato com colegas alemães e com agência governamental Gesellschaft für Technische Zusammenarbeit. Da mesma forma, informações sobre greves, acidentes etc., envolvendo a empresa na Alemanha chegam até a subsidiária brasileira. Após a reestruturação da subsidiária brasileira (caso 7) a área de segurança e meio ambiente ficou subordinada à divisão de engenharia. Tal decisão enfatiza ainda mais a incorporação desses temas, em termos tecnológicos, ao processo operacional. Existem indicações de que essa abordagem seja comum entre empresas alemãs. HAMPDEN-TURNER e TROMPENAARS (1995, p. 233) sugerem que o entusiasmo alemão pela engenharia, mais especificamente “fazer e gerenciar coisas” possui o mesmo status porque technik inclui tudo necessário para fazer técnicas funcionarem incluindo bom gerenciamento. 3.4 Comparações entre casos norte-americanos e europeus De forma simplificada, fontes empresariais e governamentais indicaram no início da pesquisa de campo no Brasil que a comparação das políticas ambientais corporativas de empresas de distintas nacionalidade iria somente revelar que elas possuem distintas culturas gerenciais. As evidências dos casos confirmaram tal indicação. Por exemplo, empresas norte-americanas implementam iniciativas ambientais com mais facilidade do que outras porque seguem as políticas, manuais e procedimentos das matrizes que lhes garantem acesso às tecnologias de gerenciamento ambiental. As comparações também indicam maior uniformidade entre empresas norteamericanas operando no mesmo setor industrial. Como decorrência disso, o caso 5 17 compara suas práticas ambientais com outras empresas norte-americanas para determinar o benchmark setorial porque elas possuem um desempenho ambiental semelhante. O gerente do caso 5 afirmou ser difícil fazer benchmarking com empresas européias por causa das diferenças culturais. O caso 6 também indicou que empresas norte-americanas e européias não possuem o mesmo nível de preocupação ambiental. Em termos práticos fica evidente que as norte-americanas seguem princípios mais rígidos, com menos flexibilidade para adaptação local. Mais adiante, o gerente do caso 2 enfatizou que a matriz nunca impôs mudanças, práticas e procedimentos, mas sim objetivos acordados o que seria um estilo mais flexível de gerenciamento, se comparado com o estilo das empresas norte-americanas. Quando foram comparadas as práticas de subsidiárias norte-americanas e européias, ficou evidente que as últimas se ressentem, em termos de gerenciamento ambiental, de maior orientação das matrizes. Apesar desse ressentimento havia evidências de acesso à tecnologia ambiental nos casos 1, 2, 4, 7 e 8. Na verdade, a grande dificuldade das empresas européias do setor químico refere-se à implementação do programa setorial, denominado Atuação Responsável. Nos casos alemães, isso é explicado pelo fato de que o programa foi implementado simultaneamente na Alemanha e no Brasil, constituindo-se em novidade tanto para a matriz quanto para a subsidiária. Existe também o reconhecimento, por parte de gerentes brasileiros em empresas européias, de que o estilo de gerenciamento ambiental adotado pelas empresas norteamericanas resulta em vantagem competitiva (PORTER, 1990). Isso decorre do fato de que os parâmetros internacionais de benchmarking nessa área são quase que exclusivamente baseados em linguagem gerencial, técnicas e procedimentos de domínio das empresa norte-americanas. Nesse sentido, USUNIER (1998, p. 39) indica que a ligação básica entre cultura e gerenciamento decorre do entrincheiramento dominante em um contexto nacional particular, o dos EUA. Conceitos e práticas gerenciais, embora parcialmente originários da Europa, foram desenvolvidos nos EUA e posteriormente emprestados e adotados por vários países porque pareciam poderosas ferramentas para desenvolver e controlar os negócios. Coincidentemente, isso tudo ocorre no período pós-guerra quando os EUA (incluindo o fenômeno de internacionalização de suas empresas) assumem papel hegemônico no contexto internacional (GILPIN, 1976). Em resumo, as práticas ambientais das empresas norte-americanas tornaram-se o benchmarking no setor químico brasileiro. A adoção de tal abordagem de gerenciamento ambiental ocorreu sem que fossem discutidas suas limitações (UNEP, 1994). Conforme depoimento do gerente ambiental do caso 7: o modelo norte-americano será mais avançado, se o parâmetro de avaliação for a implementação do Programa Atuação Responsável.9 Mas falta nesse modelo um entendimento mais abrangente dos impactos ambientais da indústria. Ao contrário, existem indicações (UNEP, 1994) de que o modelo de gerenciamento seguido pelas empresas alemãs possui uma perspectiva mais abrangente porque inclui como parâmetro o conceito de ciclo de vida do produto. 9 Responsible Care Status Report. International Council of Chemical Associations, 1996. 18 4 CONCLUSÕES A origem e evolução do fenômeno de internacionalização das empresas, atualmente denominadas de empresas transnacionais, fortalece o conceito de cultura global e torna paradoxal qualquer tentativa de explicar práticas ambientais (outro tema com repercussões globais) por meio da nacionalidade da empresa. No entanto, as evidências sugerem que independente do fenômeno contemporâneo de globalização vários aspectos do gerenciamento de ETNs continuam a ser influenciados, definidos e controlados pelos seus respectivos países de origem. Isso se deve inicialmente ao simples fato de que são esses os contextos nos quais as empresas surgiram, expandiram e consolidaram suas posições em setores específicos, bem como onde se encontram seus principais acionistas, pesquisadores e consumidores. Tal fato impede que interculturalidade se estabeleça como regra e, talvez mais relevante, que especificidades dos países de operação não estratégicos (como é o caso do Brasil para as empresas investigadas) sejam consideradas quando da definição, implementação e controle de políticas corporativas. Os resultados dos casos confirmam que a performance ambiental das subsidiárias combinam influências e pressões da legislação do país de origem e da política ambiental corporativa com a ausência de pressões ambientais no contexto brasileiro. Dessa forma, pode-se afirmar que a consolidação de políticas corporativas ambientais é um resultado do processo de tomada de decisão que ocorre no país de origem com a participação exclusiva das principais subsidiárias. Assim, fica estabelecido um padrão corporativo único ao mesmo tempo em que subsidiárias localizadas em contextos legais mais rígidos, tais como EUA, Alemanha e países nórdicos, devem cumprir os requerimentos dos países de operação. Nesse sentido a literatura indica que empresas européias cumprem normas ambientais específicas nos EUA mas não seguem os mesmos princípios nas subsidiárias européias. O presente artigo apresentou evidências de que a nacionalidade das empresas transnacionais é um fator relevante explicando as políticas ambientais corporativas. No entanto, é reconhecido que a questão da nacionalidade requer desenvolvimentos adicionais por englobar (a) as políticas regulamentárias ambientais, (b) a política ambiental corporativa, (c) o estilo gerenciamento, (d) desenvolvimento tecnológico, (e) divulgação da performance ambiental. Em face das evidências aqui discutidas não deve ser assumido que ETNs são redes dispersas de poder ou agentes sem poderes em um mundo globalizado. Em realidade, ETNs ainda possuem um centro de poder e influência, em que decisões estratégicas são tomadas, localizado nos países industrializados. Em outras palavras, as evidências de que nacionalidade é uma variável que explica implementação de políticas ambientais corporativas em países em desenvolvimento resultam em que pressões ambientais nacionais e internacionais devem ser feitas nos países de origem. Isso decorre principalmente do fato de que decisões de investimentos são feitas nas matrizes em que estão localizados seus principais acionistas, consumidores e audiências particulares que influenciam em nível local e global os significados de fatos, práticas e políticas. 19 Finalmente, é sugerido que investigações similares utilizem uma estrutura de análise interdisciplinar englobando distintos níveis, i.e., internacional, nacional e organizacional. Apesar da aparente complexidade e lacunas nas respectivas literaturas, o real entendimento do comportamento de ETNs exige uma abordagem mais crítica conforme sugerida no presente artigo. Tal abordagem crítica deverá ser principalmente seguida quando a investigação, tentando superar a predominância de estudos em países industrializados, estiver focada no comportamento de ETNs em países em desenvolvimento. BIBLIOGRAFIA BARTLETT, C.; S. GHOSHAL. Managing across borders. The transnational solution. London : Century Business, 1992. BIRDSALL, N.; D. WHEELER. Trade policy and industrial pollution in Latin America: where are the pollution havens? Journal of Environment & Development, 2, 1, 137-149, 1993. BUCKLEY, P.; CASSON. M. The future of the multinational enterprise. Basingtoke, London : MacMillan, 1991. BODDEWYN, J. Political aspects of MNE theory. Journal of International Business Studies, Fall, 341-363, 1988. CHOUCRI, N. O meio ambiente e as empresas multinacionais. Diálogo, 25, 2, 8-12, 1991. –––––. (ed.) Global accord. Environmental challenges and international responses. Cambridge, EUA; London : MIT Press, 1993. 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Seu lugar como economia periférica, fornecedora de matériasprimas, gravitando em torno de uma potência hegemônica, era conhecido. As políticas estabelecidas por esses governos levavam em conta tal situação, buscando resguardar os interesses de uma elite política, ora aceitando imposições do Reino Unido, ora utilizando de subterfúgios para escapar de suas imposições, ou ainda enfrentando essa potência, assim como vizinhos que ameaçavam os interesses brasileiros na Bacia Platina. Assim, o modo de produção utilizado no Brasil, a escravidão, o produto exportado, o café e outras matérias-primas eram determinados pelas contingências externas, às quais o País tentava se adaptar, liderado por uma elite em pleno acordo com o enquadramento brasileiro no sistema internacional do capitalismo industrial sob a condição dependente.1 Assim, desde a Independência, o Brasil, tal qual a América Latina, esteve sob influência inglesa. Essa situação só veio a conhecer um fim no início deste século, quando os Estados Unidos se tornaram a potência hegemônica hemisférica, em função de haver-se transformado no principal parceiro comercial do Brasil, pois era o maior 1 CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. São Paulo : Atica, 1992. p. 24. 25 comprador de café brasileiro. Os EUA já se haviam tornado um referencial em termos de política externa brasileira, por ocasião da adoção do regime republicano, fato esse possibilitado pelo exemplo de ser a primeira colônia européia a ficar independente no Continente Americano e ter inspirado as demais independências do Hemisfério Ocidental. A política externa brasileira no início do período republicano se caracterizou por um alinhamento automático às pretensões norte-americanas no continente. Ingenuamente o novo governo brasileiro considerava que bastaria a adoção do regime republicano para que as questões de fronteira fossem resolvidas com os vizinhos. A Argentina saudou festivamente o novo regime no Brasil, mas não deixou de reivindicar a anexação da região de Palmas ao seu território, o que quase logrou conseguir por causa do fraco, senão irresponsável, desempenho de Quintino Bocaiúva nas negociações arbitrais ocorridas em Montevidéu.2 Logo, no entanto, as elites dirigentes retornaram aos pontos essenciais da diplomacia imperial, o que não impediu a celebração do Acordo Comercial com os Estados Unidos, o primeiro com uma grande potência mundial, desde que os tratados de comércio com o Reino Unido e a França, extremamente prejudiciais à economia brasileira, caducaram em 1840. Durante o restante da República Velha, com exceção do trabalho de fixação das fronteiras feito pela equipe do Barão do Rio Branco, a política externa brasileira esteve a serviço da economia cafeeira. Após a Revolução de 1930 e ao longo de toda a era Vargas, a política externa passaria a repercutir fortemente uma aproximação maior com os Estados Unidos no plano dos interesses comerciais e financeiros. Inicialmente Vargas não demonstra essa vertente de sua política exterior. Sua condução refletiu as novas condições políticas do País, como o populismo, o nacionalismo e o autoritarismo. A própria recepção favorável do regime autoritário de Vargas pelos governos da Alemanha nazista e da Itália fascista demonstra a identificação inicial do Estado Novo com esses regimes3. Entre os norte-americanos houve de início uma série de inquietações, que foram negadas pelas atitudes do Brasil, as quais não indicavam uma futura adesão ao Eixo. As relações com os EUA não sofreram retraimento algum, enquanto o prestígio da diplomacia alemã jamais conseguiria superar o da norte-americana junto ao Itamaraty. A campanha de nacionalização instituída pelos governos estaduais e pelo governo federal foi um golpe profundo que forçou a integração das grandes colônias alemãs e italianas sediadas em São Paulo, Curitiba, Joinville, Blumenau e Porto Alegre. Com isso, as escolas de língua alemã e italiana foram definitivamente fechadas, e a utilização dessas línguas foi gradativamente diminuída no Sul do Brasil.4 Também a atividade das células do Partido Nazista entre os alemães e seus descendentes no 2 DANESE, Sérgio. Diplomacia presidencial: história e crítica. Rio de Janeiro : Topbooks, 1999. p. 251. 3 Cf. CERVO. Op. cit. p. 225. 4 Cf. MASKE, Wilson. Biblia e arado: a construção da identidade étnica dos alemães menonitas no sul do Brasil. Curitiba : UFPR. Dissertação de Mestrado, 1999. 26 Brasil foi severamente vigiada e coibida pelo governo brasileiro.5 Mas a Alemanha estava profundamente interessada em transformar o Brasil em um fornecedor neutro de matérias-primas e alimentos, o que fez com que os nazistas ignorassem a perseguição que os alemães sofriam no Brasil. Aproveitando a situação de momento, Vargas transformou o interesse alemão pelo Brasil em poder de barganha (eqüidistância pragmática), pelo qual pressionou os Estados Unidos a cooperarem com seus planos de industrialização brasileira, sob a ameaça de aceitar o apoio econômico, financeiro e tecnológico da Alemanha nazista, o que tinha apoio de amplos setores do governo.6 A Segunda Guerra Mundial liquidou a estratégia de Vargas. O Brasil colaborou estreitamente com os Estados Unidos com a cessão da base militar de Natal aos Aliados, em função de sua proximidade com o norte do Continente Africano, com o fornecimento de alimentos e matérias-primas, com a patrulha marítima do Atlântico sul e com o envio da Força Expedicionária Brasileira, composta de 23.000 soldados, à Itália. Essa aliança, denominada Alinhamento Automático, se manteve até o fim do governo Dutra, em 1951. A acanhada política externa de Dutra nada mais era do que um reflexo do imediato pós-guerra, quando o Brasil e a América Latina como um todo, ficaram sob a evidente hegemonia norte-americana, tanto sob o ponto de vista político, como o econômico e o cultural. Cabe destacar aqui a falta de visão de Dutra em não dar prosseguimento à política de Vargas, de aproveitar os momentos oportunos para determinar sua política externa e não estabelecê-la a priori, por causa de alianças que não mais eram de interesse de quem as propunha (EUA) nem de quem as aceitava. A influência norte-americana sobre o Brasil foi resultado de uma estratégia mais ampla formulada no início da Segunda Guerra Mundial, com o intuito de arregimentar a simpatia e a colaboração do Brasil e de outros países da América Latina, para fazer frente à concorrência dos países do Eixo, em especial à Alemanha. A estratégia norte-americana visava a objetivos mais amplos, que iam além da própria resolução da Segunda Guerra Mundial. Os norte-americanos tinham por objetivos a conquista de mercados e de esferas de influência econômica, consolidando seu próprio sistema de poder. O Brasil, por sua vez, em função de haver colaborado com os Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial e de haver logrado estabelecer um sistema democrático de governo, esperava ser recompensado pelos norte-americanos. Mas, para os Estados Unidos as áreas planetárias prioritárias eram aquelas que estavam diretamente ligadas ao conflito Leste-Oeste, na iminência de serem absorvidos pela URSS. E eram elas que deveriam obter recursos para o desenvolvimento para fazer frente ao comunismo. A América Latina só seria levada a sério pelos americanos quando a Revolução Cubana chamar-lhes a atenção para a situação do continente. Com o retorno de Getúlio Vargas ao poder em 1951, foi instituída uma política 5 Cf. SEITENFUS, Ricardo. O Brasil de Getúlio Vargas e a formação dos blocos (19301942). São Paulo : Nacional, 1985. 6 Cf. CERVO. Op. cit. p. 247. 27 externa nacionalista que agradava às massas e tinha o apoio de partidos populares, como o PTB e o PCB, e de setores burgueses e militares, mas desagradava profundamente aos liberais, entreguistas e conservadores em geral da burguesia, do Exército e dos partidos conservadores, como a UDN. Apesar das promessas, o segundo governo de Vargas contrasta profundamente com o primeiro por causa da conturbada política interna, que lhe deixou pouco espaço de manobra em política externa, em comparação com o período ditatorial. Isso se deve ao fato de que em seu segundo mandato Vargas não era mais um ditador todo poderoso, mas um presidente eleito controlado pelo Congresso Nacional. Além disso, a cena política interna e externa havia mudado substancialmente, eliminando o poder de barganha que as relações brasileiras com a Alemanha haviam representado no contexto hemisférico. A isso podemos acrescentar que as contradições da Guerra Fria já haviam sido internalizadas na sociedade brasileira, gerando sucessivas crises. Esse quadro foi gradativamente aprofundado, culminando no cenário do suicídio de Vargas. A transição do governo de Vargas para o de Juscelino Kubitschek foi tremendamente tumultuada, não deixando espaço para que Café Filho pudesse introduzir qualquer nova diretriz em termos de política externa. Somente com Kubitschek é que a política externa brasileira pode ser redirecionada para objetivos como a questão do combate ao subdesenvolvimento na América Latina e, a partir daí, propôs a reorientação das relações com os Estados Unidos, de onde surgiria a teoria do nacional-desenvolvimentismo e a Operação Pan-americana. Segundo as idéias correntes, tanto na direita como na esquerda, a política externa poderia servir como um instrumento que pudesse fomentar o desenvolvimento do País. Para que o Brasil pudesse ser resgatado do subdesenvolvimento, faziam-se necessárias não só reformas interna profundas, mas também alterações nas relações internacionais do Brasil. Segundo as propostas dos teóricos dessas estratégias, havia a necessidade de o País receber investimento de capital externo e repasse de tecnologia que permitisse o desenvolvimento industrial brasileiro. O País precisava urgentemente se industrializar, pois os tradicionais produtos exportados – matérias-primas e produtos agrícolas – estavam tendo seus preços rapidamente deteriorados em face do preço de produtos industrializados. Havia a necessidade de ampliar o mercado exterior para possibilitar a obtenção de capitais necessários à importação de bens e equipamentos que o desenvolvimento econômico demandava. Segundo BUENO (1992, p. 256), o nacional-desenvolvimentismo, perceptível a partir da gestão Kubitschek, “passou a chave para a compreensão das relações internacionais do Brasil. Com as ressalvas de detalhes e de ênfase, de avanços e recuos, assim tem sido a política exterior do Brasil desde a segunda metade da década de 50 até aos nossos dias.” Aproveitando a conjuntura externa favorável e colocando o Itamaraty em ação, Juscelino lançou a Operação Pan-Americana em 1958. Seu objetivo era colocar em funcionamento uma proposta de cooperação internacional para o desenvolvimento em nível hemisférico. Segundo JK, o desenvolvimento e o fim da miséria seriam as maneiras mais competentes de barrar o avanço das ideologias de esquerda e antidemocráticas que propunham a solução dos graves problemas sociais que assolavam o continente. 28 A proposta da OPA buscava uma tradução econômica para a solidariedade política. A cooperação econômica daria a verdadeira força ao pan-americanismo e, à medida que os povos latino-americanos saíssem da miséria, surgiria uma capa protetora perante a a difusão de ideologias alienígenas. JK via uma solução em conjunto para os problemas da América Latina. Ele tinha a percepção de que não haveria uma solução isolada para os problemas do Brasil. Deveria existir uma solução global para os problemas da América Latina. A OPA era um meio de consolidar o pan-americanismo e afastar a América Latina da influência soviética, entretanto não avançou por causa de sua falta de objetivos concretos e da pouca atenção que o governo americano dava para a América Latina. Somente após a Revolução Cubana é que os EUA passaram a dar maior importância para o sul do continente. Numa proposta feita pelo Presidente Kennedy, ideais originais da OPA foram incorporados na Aliança para o Progresso, visando contemplar de alguma forma as reivindicações da América Latina. A movimentada política externa de Juscelino Kubitschek daria origem a uma proposta de diretriz para a condução das relações internacionais do Brasil, a qual tomaria sua forma definitiva nos mandatos de Jânio Quadros e de João Goulart, a Política Externa Independente. A PEI buscou situar o Brasil no concerto internacional em uma posição eqüidistante do conflito Leste-Oeste (Guerra Fria) e ao mesmo tempo solidária com os povos subdesenvolvidos do mundo inteiro. Baseada no nacionalismo, a PEI ampliou a visão de JK, solidária com a América Latina, para uma solidariedade para com todo o mundo subdesenvolvido, simplesmente denominado Sul. Jânio Quadros aproveitou um momento oportuno para lançar sua política externa: a Revolução Cubana havia acontecido recentemente, e os EUA temiam que outros países latino-americanos escapassem de sua esfera de influência. Em termos globais outros fatores favoreciam a adoção de uma política externa arrojada por parte do Brasil. Na África e na Ásia o processo de descolonização estava em pleno andamento, e as relações entre russos e americanos passavam por uma de suas piores fases. Era o momento ideal de o Brasil estabelecer uma nova política externa, arrojada, bem ao gosto de Getúlio Vargas, sem compromissos, que procurava obter vantagens para o País em um mundo dividido em dois blocos. Alegando o direito de autodeterminação dos povos, procurava uma maior movimentação do Brasil no concerto internacional, visando aos interesses econômicos brasileiros. Assim podemos sintetizar as principais características da PEI7: a. mundialização das relações internacionais do Brasil, impedindo que elas se circunscrevam exclusivamente à América e à Europa Ocidental; b. atuação isenta de compromissos ideológicos, não obstante a afirmação de que o Brasil é ocidental; c. ênfase na bisegmentação do mundo entre Norte e Sul e não Leste-Oeste; d. busca da ampliação das relações internacionais do Brasil com objetivos 7 Cf. CERVO, Amado. Op. cit. p. 280. 29 comerciais, o que explica a procura da Europa Oriental e da Ásia; e. desejo de participação nas decisões internacionais; f. luta pelo desenvolvimento, pela paz e o desarmamento; g. adoção de posição claramente contrária à realização de experiências nucleares; h. adoção dos princípios da autodeterminação dos povos e da não-intervenção; i. aproximação com a Argentina. Cabe ainda citar que os resultados práticos efetivos em nível externo foram bastante reduzidos e que internamente o governo Jânio Quadros apresentou uma estratégia bem mais conservadora do que externamente, o que não deixou de ser observado pela imprensa e por outros setores. Aliás, essa política teve mais o mérito de despertar o temor das parcelas conservadoras da classe média e das Forças Armadas quanto à cubanização da situação política brasileira e teve alguma influência na deflagração do golpe de Estado que mergulhou o País na ditadura que se prolongou pelos vinte e um anos seguintes, com graves conseqüências políticas, econômicas e sociais para os brasileiros. Durante o regime militar, o Brasil oscilou entre a Política Externa Independente (nacionalista) e o Alinhamento Automático (aliança norte-americana), com surpreendente preponderância da primeira. Inicialmente os militares desejaram retornar ao padrão de alinhamento automático, segundo as concepções da nova ordem internacional organizada pelos Estados Unidos após 1945, nas quais devemos destacar a ênfase dada ao liberalismo econômico. Essa política passou ser conhecida como Correção de Rumos. Na verdade, era apenas uma tentativa de destruir a PEI e não uma contraproposta viável de política externa. Em termos de características da Correção de Rumos, que vigorou entre 1964 e 1967, podemos citar: a. o bipolarismo, no qual o Brasil se filiava oficialmente ao lado americano da Guerra Fria, ressaltando seu pertencimento ao Ocidente e seu alinhamento automático às decisões e opções americanas e de seus aliados, sem se importar com os interesses particulares do Brasil; b. a abertura ao capital estrangeiro, a qual se opunha ao nacionalismo e à estatização, propondo-se criar condições de liberdade nas quais o capital internacional fluiria espontaneamente para o Brasil. Isso teria a finalidade de induzir o desenvolvimento brasileiro pelo livre jogo do mercado, sem Estado e sem fronteiras, o que obviamente acabou por não ocorrer. Tal equívoco infelizmente não serviu de lição para governos posteriores ao regime militar, que não conhecedores da história, o repetiram e mais uma vez falharam.8 O projeto de política externa de Castello Branco, como não podia deixar de ser, teve vida curta, já que não trouxe resultados reais, pois não privilegiava os verdadeiros interesses do País, mas colocava o Brasil dentro do confronto bipolar ao lado de uma das potências hegemônicas e não o utilizava de forma neutra e pragmática para obtenção de vantagens que de fato convinham aos brasileiros. Além disso, o Brasil prestou um desserviço aos outros países subdesen8 Cf. CERVO. Op. cit. p. 333. 30 volvidos nos foros internacionais. Como um dos grandes países do Terceiro Mundo, o alinhamento brasileiro aos países imperialistas não ajudou a descolonização da África e da Ásia, em especial no caso das colônias portuguesas na África, nas quais o País poderia intervir para uma independência pacífica e consentida por Portugal e impedindo assim uma guerra de independência que se transformaria em uma guerra civil posteriormente. Entretanto, parcelas mais esclarecidas, mesmo entre os conservadores, viam claramente as contradições da política da chancelaria de Castello Branco e contribuíram para sua revisão e posterior abandono. Segundo CERVO, as críticas provinham de partes da imprensa “que avaliaram negativamente o ocidentalismo; das Forças Armadas, a cuja linha dura nacionalista repugnava a subserviência aos interesses norteamericanos; do empresariado e das classes médias, descontentes com a desnacionalização da economia e a recessão.” Uma política de relações exteriores um pouco mais independente correspondeu ao projeto geopolítico militar de fazer do Brasil uma potência emergente e nesse sentido adequou suas parcerias e alianças político-econômicas, objetivando esse fim. Essa política caracterizou sobretudo o governo Geisel, considerado um marco na história da política exterior brasileira, pois tentou buscar novos parceiros internacionais para o Brasil, os quais pudessem, além de representar novos mercados para os produtos brasileiros, se tornar fornecedores de tecnologias que o País ainda não dominava. Da mesma forma, a chanceler de Geisel, Saraiva Guerreiro, buscou uma aproximação com os países não-alinhados e com o Terceiro Mundo, livrando-se de camisas-de-força e de opções exclusivistas por ideologias que pouco significado tinham para o Brasil. Era o pragmatismo responsável, uma certa versão brasileira de Realpolitik, que considerava o mundo como de fato era, aos olhos brasileiros e não como uma superpotência o idealizaria. O Brasil buscou então uma maior participação nos foros multilaterais do período com o objetivo de obter informações e conhecimentos que permitissem a sustentação de suas posições diante de novos parceiros; influir na tomada de decisões; fazer da política exterior um instrumento auxiliar no desenvolvimento do País. Rapidamente ficou claro que os países em desenvolvimento não conseguiriam resolver seus problemas isoladamente. Havia a necessidade de se estabelecer uma estratégia grupal que beneficiasse todos os envolvidos. Apesar do ceticismo brasileiro perante a competência dos órgãos multilaterais para a solução dos problemas do Terceiro Mundo, o País sempre se mostrou solidário com os reclamos de outros países desenvolvidos nas organizações internacionais, que, ao final, eram advogadas dos interesses de seus membros do Primeiro Mundo. Assim, o fim do regime militar, em termos de política externa, se caracterizou por uma desilusão ante os aos resultados pouco animadores alcançados pelo País. Na transição democrática ocorreu um fortalecimento da identificação do Brasil com o Terceiro Mundo e o País chegou à conclusão de que os problemas dramáticos dos países pobres só seriam resolvidos, em conjunto, por eles mesmos. O Primeiro Mundo não teria interesse algum na resolução dos problemas dos países subdesenvolvidos. Afinal, o equilíbrio econômico mundial é bastante 31 pragmático e não é realmente de se esperar uma postura solidária com os interesses dos pobres. Desde 1985, o eixo da política externa brasileira foi fixado no apoio à plena democratização da América Latina e na sua real integração econômica, fator considerado essencial para a solução de seus problemas econômicos. Reflexo desse pensamento, podemos citar as iniciativas da gestão Sarney, que deu os primeiros passos, lado a lado com seus parceiros da Argentina, Paraguai e Uruguai, para dar vida ao Mercosul, uma entidade destinada a colocar em prática os ideais de integração latino-americana, acalentados desde os anos 50. Vimos também um retorno dos partidos políticos à política externa9 a partir de 1985. Durante o período militar foi estabelecido um sistema bipartidário artificial, em que os dois partidos políticos, MDB e ARENA, eram na verdade marionetes, cuja existência buscava dar um aspecto de legalidade à ditadura. Não lhes cabia, na ordem política estabelecida, uma participação da elaboração da política externa. Com a democratização, houve um restabelecimento do estilo de negociações entre partidos políticos pré-1964. A questão das relações internacionais do Brasil passou a figurar, ainda que timidamente, no programa político e ideológico da maioria dos partidos surgidos na década de 1980. Ainda sob o governo Sarney, a nova Constituição (1988) inovou em termos de história constitucional brasileira, pois codificou algumas orientações gerais em matéria de política internacional. Segundo ALMEIDA10, a inovação se dá “pela postulação inicial, dentre os princípios basilares do ordenamento jurídico e constitucional brasileiro, de algumas linhas de ação dedicadas especificamente a guiar os dirigentes eleitos e os agentes diplomáticos no que se refere à postura externa do país.” Com o aprofundamento contínuo da democratização do País, a questão da política externa passou a ser um elemento constante nos programas dos principais candidatos às eleições presidenciais. No caso da eleições de 1994, a análise dos programas permitiu detectar uma certa timidez em termos diplomáticos, assim como uma postura pouco inovativa e pragmática diante das questões internacionais, o que pode inclusive significar desinteresse e mesmo desinformação quanto aos efeitos dos eventos internacionais sobre o Brasil. Apenas o PT teve a coragem de colocar em pauta uma “Nova Política Externa”, diferente da adotada até então pelo Itamaraty. Desde então, há uma tendência, não só em nível político e partidário, mas também dentro da sociedade organizada, de um interesse maior pelas questões internacionais e pela inserção internacional do Brasil. Isso se deve ao fato de que se tem chegado à conclusão de que os problemas que afligem pesadamente a sociedade brasileira (distribuição desigual de renda, miséria, globalização, fragilidade ante capitais especulativos, investimentos externos para desenvolvimento, repasse de tecnologia, dívida externa, questão ambiental etc.) são também os problemas dos outros países 9 Cf. ALMEIDA, Paulo Roberto de. Relações internacionais e política externa do Brasil. Porto Alegre : UFRGS, 1998. p. 209. 10 Idem, p. 217. 32 em desenvolvimento e que somente poderão ser resolvidos em conjunto pelos próprios interessados. Daí que se dá um avanço, por meio de órgãos integracionistas multilaterais, como o Mercosul, buscando efetivamente passar das palavras e intenções para as atitudes que resultem numa real tentativa de começar a solucionar os problemas. BIBLIOGRAFIA ALMEIDA, Paulo Roberto de. Relações internacionais e política externa do Brasil. Porto Alegre : UFRGS, 1998. CARVALHO, Carlos Delgado de. 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Bibliografia. 1 INTRODUÇÃO Quando uma decisão política é tomada, o súdito, isto é, aquele que deve se submeter ao dito de outrem tem pelo menos duas maneiras diferentes para agir. Ele pode entender que é legítima a imposição da decisão e acatá-la sem resistência, ou então poderá, por alguma razão, não reconhecer nenhuma autoridade nela e rebelar-se. A moderna elaboração do discurso jurídico, especialmente do direito público, está profundamente ligada por esse problema de aceitação dos comandos políticos, e por conta disso se empenha, há mais de três séculos, em fazer com que os homens deixem de se ver como súditos para se reconhecerem como cidadãos, é dizer, como coautores das decisões políticas que devem observar. A partir de postulados que precisavam se opor aos do antigo regime é que o pensamento jurídico moderno tratou de desenvolver sua nova doutrina. Em verdade, o direito público teve de articular sua fala com os postulados da democracia representativa para que esse propósito fosse atingindo. Tornou-se senso comum, então, a partir do século XIX, dizer que a dominação legítima é apenas aquela que observa os procedimentos postulados pelo regime democrático, e que só o regime democrático pode legitimamante definir o que é um Estado de Direito. Todavia, parece que a realização da democracia representativa na experiência política contemporânea acena para uma espécie de descompasso entre o modo pelo qual o direito público tem fundamentado sua própria razão de ser, de um lado, e o modo (*) Este trabalho foi elaborado com o apoio da CAPES 35 pelo qual as decisões políticas se convertem em lei, de outro. É que o controle institucional da coisa pública não se exerce da mesma maneira desde que as relações entre Poder Executivo e Poder Legislativo deixaram de ser equilibradas. Além disso, o afastamento cada vez maior do cidadão comum das questões da política tem provocado uma espécie de privatizaçao do espaço público. O presente estudo tem o restrito propósito de recolocar na ordem do debate uma velha e conhecida questão da filosofia política: a do fundamento da legitimidade das instituições jurídicas. E nesse terreno a pergunta a ser respondida é: “por que respeitar as leis e o direito?” 2 POR QUE SUJEITA-SE À LEI E AO DIREITO? Não seria exagerado dizer que na história política da humanidade todos os povos organizados em sociedade, e que por isso mesmo estiveram submetidos ao império da vontade de alguns poucos como condição de sua sobrevivência organizada, procuraram dar respostas categóricas a essa pergunta. É que o exercício do poder precisa estar atento a ela, sem o que não há sentido na submissão a normas públicas. De fato, essa pergunta a respeito de por que eu devo me submeter às decisões tomadas por um outro homem constituiu-se na principal questão para a história moderna do Direito. Não só porque com apoio nela é possível compreender o próprio desenvolvimento das instituições jurídicas, mas também porque ela viabiliza uma aproximação das justificações doutrinárias elaboradas para legitimar o tipo específico de instituições jurídicas que nesse momento nos importa: as democráticas. É claro que não se pode fugir completamente ao risco de cometer abusos quando o objeto da pesquisa são fenômenos complexos, e a investigação pretende compreendêlos tomando como ponto de partida e de chegada uma única questão central, a saber, tentar identificar os elementos fundamentais da justificativa democrática para que as instituições jurídicas sejam observadas. Todavia, como há bons indícios para supor que as mais importantes transformações ocorridas na história das instituições jurídicas do Ocidente, pelo menos dos últimos três séculos, estão ligadas, de uma forma ou de outra, a uma preocupação prática e doutrinária de articular respostas democráticas à pergunta “por que se devem observar as leis?”, talvez a utilidade da reflexão encubra o caráter pretensioso da pesquisa. Sabe-se muito bem que o estado de sujeição ao comando de outros, cedo ou tarde, suscita a reflexão acerca do porquê esse poder se exerce como norma, ou então, por que alguns homens são investidos de poder para dar ordens com força de lei. Aliás, é justamente essa tomada de consciência da existência de normas impostas por outros homens que marca o aparecimento da política como atividade filosófica. O ponto, portanto, de onde parte a teoria política é a investigação das causas pelas quais alguns homens estão legitimados a estabelecer normas a outros com o poder de sancioná-los caso não sejam respeitadas. Mas isso é, no fundo, uma busca do fundamento da validade de uma ordem jurídica e da legitimidade de sua existência, 36 questão predileta da doutrina publicista moderna. Se, por um lado, é certo que a filosofia política e a doutrina jurídica sempre se preocuparam em apresentar os fundamentos que autorizam o exercício do poder, não será demasiado dizer que as respostas1 apresentadas têm sido muito diversificadas, variando conforme o tempo e o local em que foram produzidas. No direito primitivo, por exemplo, o que valida a submissão aos comandos normativos é a crença de que existe um “Deus natural”, suprema força controladora da natureza, que se comunica com “sacerdotes eleitos” pela divindade. Os sacerdotes, em vista da especial capacidade de compreender as intenções das forças obscuras que regem a natureza, poderiam antecipar aos seus pares os desígnios não só das atividades humanas, como as guerras, mas também do comportamento da própria natureza, como a fertilidade da terra. E se podem fazer isso, acredita-se então que reúnem as melhores condições para definir ou aconselhar os líderes sobre como os demais integrantes da comunidade devem ou não proceder. Nesse caso, o fundamento da submissão a regras jurídicas comuns está no fato de que as ordens são dadas por homens incomuns, os eleitos, que representam as forças da natureza. A obediência à lei, num contexto com tais características, é devida porque, em última análise, é a vontade da própria natureza que se impõe por intermédio dos videntes. As decisões tornadas públicas pelos governantes, por eles aconselhados, são apresentadas e interpretadas não como atos deliberados dos próprios governantes, mas como a realização de uma vontade inumana – a do “Deus natural” – esclarecida pelos sacerdotes, dos quais a comunidade não espera nem supõe a mentira ou a traição. Nas sociedades em que predominou ou ainda predominam práticas jurídicas primitivas2, as instituições políticas têm caráter sagrado. E são alguns poucos homens que monopolizam o poder de decidir, sendo investidos nessa autoridade por uma “eleição divina”. De uma forma esquemática, são esses os principais traços do direito natural primitivo3, e de algumas de suas variantes modernas, por exemplo a doutrina do direito divino dos reis. Além do modelo primitivo, há pelo menos dois outros grandes modelos doutrinários de justificação da submissão a uma ordem jurídica: de um lado, daquele que concebe as instituições jurídicas como tradicionais, para o qual o Direito é sobretudo histórico, e de outro, daquele para o qual o Direito não está sujeito a pré-definições, 1 KELSEN, H. “Por que a lei deve ser obedecida?” In: O que é justiça? p. 251-259. 2 Seria um erro supor que só se deve falar de direito primitivo voltando os olhos para o início da história das sociedades humanas. Práticas primitivas são comuns em todas as fases da história do direito e em todas as sociedades. Mesmo em sociedades capitalistas desenvolvidas há práticas e crenças jurídicas que se enquadrariam bem nesse tipo ideal. Veja-se, por exemplo, o dever que se impõe a testemunhas nos júris norte-americanos de dizer a verdade com a mão direita sobre a Bíblia. Está implícito aí a crença de que o jurado jamais poderá mentir aos olhos do “Deus Supremo”, que tudo vê e tudo sabe. Implicitamente é dado um aviso ao depoente: se ele mentir aos homens será punido pelas forças sobre-humanas. 3 Esse modelo, a propósito, foi descrito por Weber como o tipo ideal de dominação carismática. Ver WEBER, Max. (1982, p. 134 e ss.) 37 quer sobrenaturais, quer tradicionais, uma vez que o seu único conteúdo legítimo seria fornecido por decisões humanas racionais. Antes de prosseguir, porém, é bom que se diga que a classificação acima proposta não tem a pretensão de sugerir que a história do direito seja uma evolução ascendente para a racionalização, isto é, de que as práticas primitivas e mitológicas tenham sido substituídas por práticas modernas e racionalizadas. Ela simplesmente propõe uma via de acesso ao que interessa mais de perto a esse estudo e que será tratado mais adiante, isto é, compreender os grandes fundamentos da resposta democrática moderna à pergunta “por que devo me submeter à lei?” E isso significa pelo menos duas coisas: primeiro, que a presente classificação não pressupõe que atualmente estejamos vivendo a era mais racional do Direito; e a segunda, que ainda que se possam encontrar exemplos de sociedades que vivem experiências institucionais profundamente distintas daquelas vividas pelas sociedades primitivas, não se quer rotular estas últimas de as mais evoluídas e com isso defini-las como as melhores instituições. O que se busca, por hora, é apenas identificar as principais justificações formuladas para cada modelo de instituições jurídicas historicamente existentes. Dito isso, vale salientar que a tradição4 talvez seja o conceito que melhor ajude na descrição das bases em que estão assentadas as instituições jurídicas de uma sociedade pautada em normas do direito histórico. Esse modelo explicita a força que o culto aos antepassados exerce sobre as instituições jurídicas do presente. Em outras palavras, nesse modelo as instituições políticas e jurídicas são respeitadas porque, em larga medida, as práticas sociais estabelecidas pelos antepassados sempre asseguraram a ordem e a estabilidade social. Ora, desde logo se percebe que a sujeição e a obediência, também aqui, têm um caráter acentuadamente religioso, não obstante o sentido religioso do respeito às normas desse direito não seja, como no modelo anterior, metafísico ou vinculado à crença do que dizem supostos eleitos pelo “Deus natural” para interpretar a vontade Dele. Antes disso, o tom religioso desse tipo de submissão está relacionado com a tradição. Por isso, as normas vigentes devem ser acatadas porque gozam da autoridade que só a sabedoria dos fundadores da sociedade pode reivindicar. É um direito religioso no sentido romano antigo5 do termo, é dizer, de que a sujeição à lei é devida porque elas já foram aprovadas pelos antepassados. E o fato de terem sido adotadas no passado e assegurado a ordem bem como a preservação da comunidade presente é motivo de sobra para que a sabedoria dos antigos seja reconhecida como suprema autoridade. 4 Ver FRIEDRICH, C.J. (1974, p. 15-49.) e também, ARENDT, H. (1992, p. 43-69.) 5 No clássico estudo feito por Foustel de COULANGES sobre A cidade antiga, consta que: “A palavra religião não se tomava no significado que para nós tem; por esta palavra entendemos certo corpo de dogmas, uma doutrina sobre Deus, um símbolo de fé acerca dos mistérios que vivem em nós e em nossa volta; este mesmo termo entre os antigos significava ritos, cerimônias, e atos de culto exterior. [...] Todas essas fórmulas e práticas lhes tinham sido legadas pelos antepassados, que já haviam provado a sua eficácia. Nada havia a inovar. Deviam apoiar-se no que os antepassados praticaram e a suprema piedade estava em proceder como esses antigos. [...] No pensar destes povos, tudo o que era antigo se considerava respeitável e sagrado. Quando algum romano queria falar de 38 Desde logo, então, a herança política deixada por eles deve ser observada pelos novos já que – pressupõe-se – as instituições jurídicas herdadas do passado reúnem a experiência política mais remota e simbolizam a própria prudência. As práticas institucionais preservadas pelo tempo passado estão, por conseguinte, em melhor condição para sugerir o que é mais razoável adotar como direito para o presente e para o futuro. Nessas circunstâncias, como é de supor que todo o cidadão tem algum interesse em preservar a ordem e a segurança coletiva mantendo a coesão dos laços sociais, observar as instituições vigentes passa a ser uma obrigação moral. Essas poucas linhas, ainda que de modo ligeiro, caracterizam a maneira pela qual em sociedades tradicionais se articulam as justificativas para a observância das instituições jurídicas. O pensamento jurídico elaborado a partir dessas circunstâncias é também conhecido como conservador, já que para ele as instituições justas, ou então as melhores instituições jurídicas são sempre as herdadas do passado, e é só o natural desenvolvimento histórico da sociedade, que acumula a experiência política de muitas gerações, que está autorizado a impor como se devem constituir os poderes e o direito de dizer aos homens o que é certo ou errado. Por esse viés, o próprio povo não tem o direito de subverter a ordem jurídica instituída. É que fatos novos não justificam novas instituições. A sociedade, diz BURKE, o mais importante representante do moderno pensamento jurídico conservador6, “é certamente um contrato”, mas não um contrato cujas partes podem estipular o que bem entendem. O Estado, diz ele, [...] é uma associação que leva em conta toda ciência, toda arte, toda virtude e toda perfeição; e como os fins de tal associação não são obtidos em muitas gerações, o Estado torna-se uma associação não só entre os vivos mas também entre os que estão mortos e os que irão nascer. Os contratos que regem cada Estado em particular são cláusulas do grande contrato primitivo da sociedade eterna, que liga as naturezas mais baixas às mais elevadas, liga o mundo visível ao mundo invisível, conforme a inviolável lei que mantém todas as naturezas morais e físicas, cada uma em seu lugar determinado.7 E o mesmo Burke dirá, ainda em sua carta célebre a um jovem fidalgo de Paris, em resposta aos princípios de um tal Dr. Price, que qualquer coisa como de sua muita estimação logo dizia: isto é antigo para mim.” (1971, 205-8.) Vale registrar também o que diz H. ARENDT: “Em contraste com a Grécia, onde a piedade dependia da presença imediatamente revelada dos deuses, aqui [em Roma] a religião significava, literalmente, religare: ser ligado ao passado, obrigado para com o enorme, quase sobre-humano e por conseguinte sempre lendário esforço de lançar as fundações, de erigir a pedra angular, de fundar para a eternidade.” (1992, 163.) Assim também C. J. FRIEDRICH: “Maquiavel referiu-se a esse aspecto de uma forma bastante clara: ‘E, da mesma maneira como a observância das ordenações da religião é a causa da grandeza de um Estado, seu abandono também é a ocasião de seu declínio’. Este pensamento foi extraído de Políbio, que atribuíra à devoção dos romanos um papel importante ao explicar a grandeza da cidade. A religião proporciona o elo, isto é, a conservação da tradição dos antepassados, e o Senado era chamado a cuidar de sua observância, como sua autoridade (auctoritas) tinha de reforçar as decisões do povos.” (1974, 29.) 6 Ver a análise de Oakeshott (1995) sobre a tese de Burke acerca da função moderadora do governo. 7 BURKE, E. (1982, p. 116.) 39 O senhor poderá notar que da Carta Magna à Declaração de Direitos a política de nossa Constituição foi sempre a de reclamar e reivindicar nossas liberdades como uma herança, um legado que nós recebemos de nossos antepassados e que deveremos transmitir a nossa posteridade; como um bem que especificamente pertença ao povo deste reino, sem nenhuma espécie de menção a qualquer outro direito mais geral ou mais antigo. Desta forma, nossa Constituição conserva uma certa unidade na tão grande diversidade de suas partes. Nós temos uma coroa hereditária, um pariato hereditário, uma Câmara dos Comuns e um povo que detém, de uma longa linha de ancestrais, seus privilégios, suas franquias e suas liberdades.8 Em suma, a doutrina do Direito histórico tanto em sua versão medieval quanto moderna destaca que é preciso observar a tradição e a autoridade da experiência passada para que seja exigida legitimamente a sujeição a normas jurídicas e o respeito a autoridades constituídas. Normas jurídicas e autoridades políticas que observam a tradição moral do povo serão as mais prudentes e seguramente estarão agindo conforme o interesse público. Por isso, mas só nessas condições, devem ser respeitadas e acatadas. Em que pese o que já foi dito, é recomendável observar que não se deve confundir esse modelo de legitimação histórica da submissão às leis com a tradicional “Escola Histórica do Direito”. Não é incomum ver a idéia de “espírito do povo”, objeto de pesquisa política e jurídica na Europa do século passado e, portanto, também da Escola Histórica do Direito9, vinculada à imagem segundo a qual a Escola Histórica seria ela mesma um modo de legitimação da dominação jurídica. Diante disso, e ainda que sejam razoavelmente conhecidos os postulados fundamentais da importante Escola de Savigny, é bom que se diga que a Escola Histórica do Direito, obra do pensamento jurídico científico alemão do final do século XIX, não representa um modelo histórico de justificação da dominação pelo direito. A Escola Histórica é sobretudo o nome dado uma nova formulação de métodos de pesquisas sobre o Direito. Tendo partido dos pressupostos culturais de caráter geral, com os quais a investigação se terá porventura ocupado demasiadamente, chegamos assim ao cerne da natureza da Escola Histórica do Direito: a reconstituição de uma ciência jurídica consciente dos seus próprios métodos e sistemática. (...) O seu núcleo é (...) constituído por um processo de mutação interna da própria ciência jurídica ao mesmo tempo positiva – i. e., autônoma – e filosófica – i. e. – sistemático-metódica10 É, bem entendida, uma proposta de pesquisa do Direito a partir de sua evolução histórica, como oposição ao método jusnaturalista. Desse modo, a Escola Histórica tem 8 BURKE, E. (1982, p. 69.) 9 “O advento da consciência nacional na Europa central sugeria precisamente que os povos e as suas culturas nacionais fossem encarados como executores da missão da história universal. As camadas cultas em ascensão descobriram em si mesmas o povo como nação cultural e interpretaram as criações culturais como manifestações do espírito do povo. Também o direito já não podia ser agora entendido como produto racional do legislador estadual, [...] Antes aparecia como parte da cultura global, como um «tranqüilo» desabrochar a partir do inconsciente dos povos [...] Os fundadores da Escola Histórica do Direito tiveram as suas raízes, em todos os aspectos, nesta viragem da sensibilidade cultural.” WIEACKER, F. (1980 p. 408.) 10 WIEACKER, F. (1980, p. 419.) 40 uma preocupação, por assim dizer acadêmica, científica, com a história do Direito. Ainda que muitos de seus autores, e especialmente Savigny, estivessem preocupados em difundir que a fonte mais legítima do Direito seria o “espírito do povo”11, ou então os valores mais tradicionais da sociedade, essa pretensão acadêmica de definir novas bases para a hermenêutica jurídica não se confunde com a história das instituições e das práticas jurídicas vigentes na Alemanha do século passado, a qual está marcada pelo centralismo administrativo, pelo formalismo na aplicação da lei e pelo universalismo burocrático.12 Feito esse comentário, resta agora discutir os postulados do outro modelo de justificação que no início desse estudo foi indicada como baseada num Direito racional. Como ocorre com as outras formas de direito suscintamente já delineadas, também nesse caso estaremos diante de um conjunto de instituições jurídicas criadas em conformidade com certos e determinados postulados políticos que, à sua maneira, respondem à pergunta básica formulada de início. A diferença para os outros modelos repousa, então – como era de esperar – nos pressupostos do regime político que dão sentido ao direito que é criado por suas instituições. Se no modelo primitivo de justificação da submissão a uma ordem jurídica se admite que as regras sobre o certo e o errado provêm da vontade de um Deus natural, cujas intenções são interpretadas por instituições religiosas dirigidas por sacerdotes eleitos pelo tal Deus, é de se presumir que somente por motivos sagrados o conteúdo do direito pode ser alterado; por conseguinte, é rara a intervenção dos negócios humanos na constituição da ordem jurídica. E, se no modelo tradicionalista se doutrina que a fonte mais legítima do direito está na autoridade dos antepassados e nas tradições culturais deixadas por eles, então, nessas circunstâncias específicas já não é tão difícil que temas mundanos façam parte da ordem jurídica, e também já não é tão remota possibilidade de que a ordem jurídica possa ser alterada. O modelo racional de justificação de uma ordem jurídica, por sua vez, toma o Direito como algo suscetível de plena manipulação pelo intelecto humano. O direito não é objeto de culto sagrado e está inteiramente desvinculado de qualquer necessidade de ser coerente com o passado. O homem, nessa concepção, é o senhor absoluto do 11 Cf. LARENZ, K. (1989, p. 12.) Mas mesmo para Savigny, anota WIEACKER, uma coisa era a história do Direito, e outra a história do Estado: “A unidade do passado e do presente, o sentido da continuidade espiritual característicos do historicismo romântico, dominaram, é certo, a consciência histórico-científica de Savigny (do mesmo modo que a compreensão romântica de totalidade orgânica influiu na sua teoria da instituição); mas isso dificilmente terá acontecido relativamente às suas convicções gerais; uma análise mais próxima também o não comprova em relação aos seus equívocos textos programáticos. Para ele, a história do direito é essencialmente uma história («literária») de tipo científico, mas não uma história do povo ou do Estado.” 12 “Poder-se-ia dizer que a burocracia na Europa como um todo, e na Alemanha em particular, atravessou quatro estágios típicos e parcialmente simultâneos: uma fase durante a qual o administrador nada mais era que um servo particular do príncipe; um período em que concebeu a sua função como pública, distinta da casa real, mas durante o qual, não obstante, continuou a manipular abertamente o cargo como patrimônio privado; uma época em que o funcionário público repudiou qualquer uso direto do poder governamental; e finalmente, uma era em que a burocracia surgiu como guardiã de um interesse universal.” UNGER, R. M. (1979, p. 195-6.) Ver ainda WEBER, M. (1985, p. 3-83.) 41 conteúdo das normas jurídicas porque se vê como único responsável pelo seu próprio destino político. Não tem obrigações com entidades supra-humanas, nem com práticas sociais antigas. Se as observa, não é porque seja temeroso de que a natureza se voltará contra a sorte de sua comunidade ou porque seja mais virtuoso sujeitar-se a elas. Respeitam-se instituições tradicionais por que esse comportamento é, em alguma medida, conveniente e prudente. Porém se fatos novos reclamarem mudança de hábitos, e nessa medida, do conteúdo de direitos e obrigações já estabelecidos, isso não será motivo para qualquer convulsão social de natureza grave. Fatos novos, nesse modelo, desde que publicamente apresentados e razoavelmente fundamentados, podem justificar profundas alterações institucionais e transformações da ordem estabelecida. É importante salientar, todavia, que há pelo menos duas maneiras de conceber esse modelo de justificações “racionais” do direito. Uma delas foi descrita por Max Weber. Ele demonstrou a relação existente, mais ou menos a partir do século XVII, entre a formalização do raciocínio jurídico e o advento da burocracia na Europa. De acordo com Weber, o direito dos Estados europeus modernos e ocidentais passa a ser interpretado por critérios exclusivamente racionais. E com isso ele quer dizer que o raciocínio jurídico, a partir daí, estará com base em conceitos formais, que serão instrumentos de sistematização e ordenação de um discurso técnico. O direito positivo, por sua vez, foi unificado em grandes codificações, todas elas na língua oficial de cada Estado nacional. Ele aponta ainda que o Direito deixa de ter uma dimensão ética para o seu aprendiz pois o Estado providenciou os meios para que uma classe específica de profissionais fosse treinada em escolas especializadas, a fim de adquirir conhecimentos técnicos para manejar as regras jurídicas, compreender e lidar com um sistema unificado e argumentar com base em conceitos formais. Essa a maneira pela qual tanto o Direito positivo quanto o raciocínio jurídico se racionalizaram no mesmo ritmo e em colaboração com a racionalização da economia e da política.13 A outra maneira pela qual se apresenta a justificação racional de instituições jurídicas está associada ao modo pelo qual o Direito deve ser instituído ou institucionalizado, ou seja, tem que ver com o tema das condições para que alguém seja autorizado a criar regras jurídicas imperativas. Por esse viés, a resposta que prevaleceu no Ocidente democrático tem origem num princípio político freqüentemente repetido nos séculos XIII e XIV, remanescente da máxima jurídica latina quod omnes tangit, ab omnibus approbetur. 14 Essa máxima, derivada do direito processual romano antigo, especificamente do litisconsórcio, foi decisiva, em todo o período medieval e moderno, em especial nas lutas por sistemas políticos representativos e nas lutas por liberdade.15 13 “Esse preparo era necessário devido à crescente complexidade dos casos jurídicos práticos e da economia cada vez mais racionalizada que exigia um processo racional de provas, e não uma afirmação de fatos verdadeiros pela revelação concreta ou garantia sacerdotal...” WEBER, M. (1982, p. 253.) 14 Que de acordo com João Carlos Brum TORRES significa “o que interessa a todos deve ser aprovado por todos.” (1989, p. 248-249.) 15 “As palavras que se citam com tanta freqüência nos séculos XIII e XIV «quod omnes tangit, ab omnibus approbetur», podem ter sido pouco significativas no antigo império romano, mas 42 O que há de essencial naquele princípio da política medieval é o fato de ele ser o antecedente dessa exigência democrática para a qual o Direito, agora concebido como ato puramente humano, deve ser criado e aplicado por homens que devam e possam estabelecê-lo sem prejudicar nenhum interessado. E isso indica, em última análise, que onde se concretizou a justificação racionalizadora, presumiu-se que o governante, seja ele um monarca ou um colégio de representantes do povo, não é senhor absoluto do conteúdo das normas jurídicas. E, mais ainda, que a comunidade de governados tem direito de avaliar a razoabilidade e a conveniência do direito positivo instituído pela autoridade política, anulando-o até, se for o caso. Michel Villey sugere que as origens dessa concepção de Direito podem ser encontrada entre as idéias políticas contemporâneas à formação do Estado moderno, já por volta do século XVI.16 Ele também salienta que a lei válida, nesse novo contexto, é obra do príncipe ou de um colégio de representantes, mas é, sobretudo, ato deliberado de uma vontade plenamente humana. Já CARLYLE é mais reticente a esse respeito. Escreve que é arriscado afirmar com segurança o momento exato em que apareceu pela primeira vez a doutrina segundo a qual seria “permitido fazer ou modificar a lei por decisão deliberada e racional da vontade humana”. Lembra porém que no século IX já se pode encontrar evidências de que em algumas repúblicas prevalecia o princípio segundo o qual a lei requer o consenso do povo.17 na Idade Média traduziam a realidade, já que o direito da comunidade era feito pela própria comunidade e obrigava os governantes da mesma maneira que a todos os outros membros dela”. (Las palabras que se citan con tanta frecuencia em los siglos XIII y XIV «quod omnes tangit, ab omnibus approbetur», pueden haber tenido poca significación en el antiguo Imperio romano, pero en la Edad Media traducían la realidad, ya que el derecho de la comunidad lo hacía la comunidad y obligaba al gobernante en la misma medida que al resto de aquélla.) (CARLYLE, A. J., 1982, p. 273.) 16 “Passemos aos tempos de Hobbes: Occam e seus nominalistas não podem evidentemente compreender a lei como a ordem do todo. Para eles, ela não se abstraía completamente; ela emana do indivíduo, posto que não há nada além de indivíduos: é a essência do nominalismo. Ela é obra de uma vontade, a ordem arbitrária de uma autoridade investida de uma potestas absoluta: Deus primeiramente, em seguida os príncipes, seus mandatários temporais. Em seguida durante o século XVI, as influências nominalistas, estóicas, bíblicas se fundem, nós já descrevemos o triunfo dessa segunda concepção individualista de lei: comando do príncipe soberano, segundo a fórmula de Bodin – e para Grottius, que é sobretudo um estóico – dictamen rectae rationis (trata-se da lei natural...) [...] E já podemos adivinhar qual será a posição de Hobbes: influenciado pela Bíblia, nominalista, individualista, ele só poderia juntar-se aos adversários de Aristóteles. [...] Ele será o filósofo que reverterá a Política de Aristóteles”. (Et passons aux temps proches de Hobbes: Occam et ses nominalistes ne peuvent évidemment comprendre la loi comme l’ordre d’un tout. Pour eux, elle ne s’abstrait pas d’un tout, elle émane d’un individu, puisqu’il n’y a que des individus: c’est l’essence du nominalisme. Elle est l’ouvre d’une volonté, l’ordre arbitraire d’une autorité investie d’une «potestas absoluta»: Dieu premièrement, ensuite les princes se mandataires au temporel. Ensuite durant le XVIème siècle, les influence nominalistes, stoïciennes, biblique se mêlant, nous avons décrit le triomphe de cette seconde conception individualiste de la loi: commandemant du prince souverain, selon la formule de Bodin – et pour Grottius, qui est surtout nourri de stoïcisme – dictamen rectae rationis (il s’agit de la loi naturelle)... [...] Et déjà nous pouvons deviner quel sera le parti de Hobbes: nourri de la Bible, nominaliste, individualiste, il ne peut que rejoindre le camp des adversaires d’Aristote. [...] il sera le philosophe que renverse la Politique d’Aristote. VILLEY, M. (1968, p. 680-1.) 17 O Edictum Pistense, de 864, já descrevia as leis como obra do consensus populi et constitutione regis. (CARLYLE, A. J., 1982.) 43 Entre os séculos XVI, XVII e XVIII, em especial na França, e também em outros Estados nacionais, começa a se consolidar uma administração pública centralizada e racionalizada.18 É a era de esplendor do regime monárquico e das doutrinas absolutistas. É também, por outro lado, um período de grande resistência ideológica à legitimidade dos governos, que confundem a pessoa física do rei com o próprio reino, é dizer, que não separam os assuntos inerentes à vida pessoal do governante, sua vida privada, dos assuntos de interesse público. Apesar de a força política do monarca favorecer que a atividade legislativa se mantenha em suas mãos, e haver grandiosa literatura, tanto política quanto jurídica, em defesa de uma submissão absoluta do povo à vontade legisladora do príncipe19; em meio a tudo isso se difundia e se consolidava cada vez mais a idéia de que o conteúdo do Direito provém sim da razão humana, mas a fonte de onde ele nasce não seria a exclusiva razão do príncipe soberano. De acordo com o entendimento mais liberal, na verdade, só um sistema de princípios políticos seria aceitável por todos os homens e válido em todas as sociedades, e nessa medida digno de ser Direito – a saber, o sistema que respeitasse a dignidade da vida humana, da liberdade de crença, de pensamento e de manifestação do pensamento; do direito de ter a propriedade dos frutos do próprio trabalho; que reconhecesse a igualdade dos homens entre si e de todos perante a lei, e mais ainda, que assegurasse a todos os súditos a possibilidade de participarem da tomada de decisões que envolvessem assuntos de seus interesses. Segundo o discurso racionalista que se opunha ao direito absoluto dos reis, apenas a observância desses princípios poderiam fazer de uma ordem jurídica e de suas instituições políticas, algo merecedor de respeito e de obediência. Não bastasse isso, a resistência ao absolutismo exporá ainda que esses princípios fundamentais não estejam inscritos, necessariamente, num documento jurídico, nem 18 “No antigo regime [...] não havia nenhuma cidade, aldeia, vilarejo ou povoação da França, por menor que fosse, nem hospital, fábrica, convento ou colégio algum com o direito de administrar independentemente seus negócios particulares ou seus bens. Na época, como aliás hoje, a administração tutelava todos os franceses e, se a insolência da palavra ainda não se produzira, a coisa em si já existia. [...] Quem lê os decretos e declarações do rei publicados no decorrer do último século da monarquia, como também os decretos do Conselho promulgados na mesma época, não encontra muitas atas em que o governo, após ter tomado uma medida, não acrescenta [...] a fórmula habitual: ‘Sua Majestade manda, além do mais, que todas as contestações que poderão surgir quanto à execução do presente decreto, circunstâncias e dependências sejam apresentadas ao intendente para que as julgue, exceto quando houver recurso ao Conselho. Proibimos aos nossos tribunais e cortes de justiça que deles tomem conhecimento.” (TOCQUEVILLE, A., 1997, p. 88-9.) 19 Entre os principais autores, segundo Carlyle (1982), situam-se o francês Jean Bodin, Six livres de la république, de 1586; o escocês Willian Barclay, De regno et regali potestate, de 1600; o monarca inglês James I, The true laws of the free monarchies, de 1603; a dogmática obra de vários teólogos anglicanos e galicanos escrita em 1690 intitulada Bishop overall’s convocation book; o inglês Robert Filmer, Patriarcha, de 1680; os juristas franceses Le Bret, De la souveraineté du roy, de 1632, e Bussuet, Politique tirée des propres paroles de l’écriture sainte; Thomas Hobbes, “Leviathan”, de 1651. 44 são obra de um sábio, sacerdote ou monarca. Eles são – por assim dizer – algo inerente à própria condição de ser racional do homem, por conta do que, são imperativos da razão comum. Fica estabelecido a partir de então, que ainda que o príncipe — que se via como encarnação do próprio Estado – pretendesse ser a fonte primária do direito positivo, ele não o seria jamais, pois sua vontade individual não poderia estar acima da razão humana, que é universal. Cabe ao príncipe, então, como primeiro magistrado do Estado, observar esses princípios fundamentais exigidos por todos os homens esclarecidos, pois só nessa medida haverá condições para o prevalecimento de uma sociabilidade sem rebelião ao seu poder.20 Ao contrário, pois, das justificações tradicionalistas, para as quais o direito é sempre comunitário, quer dizer, é o direito de um lugar específico que comunga dos mesmos antepassados, essa visão racional do direito, prevalecente no século XVIII, mas que deixou raízes profundas para a posteridade, tem pretensões universalistas, ou seja, procura argumentar que, independentemente das decisões políticas adotadas pelas autoridades constituídas, há um conjunto de direitos, que são normas fundamentais de toda e qualquer ordem jurídica, cuja validade não depende da ratificação de nenhum príncipe. E essas normas-princípio seriam, a bem da verdade, direitos fundamentais do homem. Desse modo, nenhum governante pode violá-las sem estar ao mesmo tempo pisoteando a própria condição do homem enquanto ser racional, o que, desde esse ponto de vista, seria algo absolutamente inaceitável. Toda justiça e toda aceitabilidade de uma ordem jurídica e das instituições criadas e preservadas por ela serão, a partir daí, avaliadas por esses princípios fundamentais. O reconhecimento dos direitos fundamentais do homem colocam-se, então, como um marco divisório entre o que merece o respeito e a aceitação pública e o que deve ser desprezado e esquecido. De fato, a era moderna racionaliza não só a interpretação do direito positivo mas também a justificação da submissão. E isso até mesmo em sociedades, cujo direito sempre teve suas fontes ligadas à tradição, como é o caso da Inglaterra. É bem sabido que o direito, na matriz inglesa, sempre esteve associado, e por muitas vezes foi até mesmo confundido com a noção de “Direitos Naturais Fundamentais” ou Direitos 20 Quentin Skinner afirma que essas ideologias de resistência ao poder absolutista darão origem ao constitucionalismo moderno, e que, por paradoxal que possa parecer, elas têm origem no direito romano, apesar de a autoridade do Digesto ter sido freqüentemente invocada para legitimar governos absolutistas, em especial, com apoio na cláusula segundo a qual todo príncipe deve ser considerado legibus solutus, ou seja, livre da ação das leis. Mas prossegue dizendo que “uma das maneiras de se utilizar a autoridade do direito romano para fundamentar uma posição constitucionalista foi adaptando-se argumentos de direito privado que justificavam o emprego de violência. Embora os juristas normalmente interpretassem todos os atos de violência como injúrias, também admitiam que esse axioma fundamental do direito fosse posto de lado em alguns casos especiais. Naturalmente, é certo que nenhuma dessas exceções pretendia influir no direito público ou constitucional. Mas a autoridade dos livros jurídicos era tal que todas essas concessões foram lidas com avidez e adaptadas por todos aqueles que desejavam justificar atos de violência política.” E segue afirmando que um dos princípios de direito privado romano que mais influenciaram as teorias da resistência foi o da “legítima defesa”, que estava no Digesto assim estabelecida: vim vi repellere licet: é sempre justificável repelir com força a força injusta. (SKINNER, Q., 1996, p. 403-5.) 45 Constitucionais21 – (de certo modo estabelecidos na Magna Carta do século XIII22 – e na Petition of rights, do século XVII). Mas em que pese a semelhança terminológica, “direitos naturais” na Inglaterra moderna já não significam direitos de origem teológica, como fora compreendido ao longo do medievo. Na sua versão moderna, o direito fundamental do homem inglês é compreendido como o resultado de um suposto pacto de mútuo respeito celebrado entre governantes e governados23 e, desse modo, é encarado sobretudo como ato da razão humana. Na análise detalhada que faz do tema, J.W. Gough recorta muitas decisões judiciais e escritos jurídicos e políticos bastante elucidativos dessa condição racional mesmo no direito inglês. Revela nesse estudo que pelo menos a partir do século XVI, na tradição jurídica inglesa, a relação entre o Direito e a razão são muito mais próximas do que se presume comumente.24 E isso significa que no moderno e contemporâneo direito inglês, mesmo um costume deve passar por um juízo de razoabilidade feito pelos tribunais; só depois poderá ser admitido como direito vigente. Em última análise, para voltar ao ponto deste ensaio, o que ocorreu na Inglaterra, como de resto em todas as outras sociedades nas quais prevaleceu a doutrina dos Direitos Inalienáveis do Homem, foi a elaboração de um discurso – ou ideologia – segundo a qual toda ordem jurídica, para ser legitimamente imperativa, deveria estar conforme àqueles princípios fundamentais da razão humana, pois só assim pode uma sociedade política ser bem constituída. Interessa observar agora, para irmos além, os postulados basilares da doutrina democrática moderna, erigida em teoria para justificar a existência de novas instituições e de uma nova ordem jurídica. 21 Ver as famosas conferências de McIlwain (1991) sobre os históricos princípios políticos do constitucionalismo. 22 “A supremacia da lei, dogma fundamental da nossa lei comum, que, aliás, filiamos à Magna Carta, é simplesmente a supremacia do direito divorciada, por ocasião da Reforma, do elemento teológico. [...]. Sob certo aspecto a Magna Carta constitui reparação aos agravos dos grandes proprietários de terras impondo limites de ordem e razão às exações do rei como senhor feudal supremo. Mas põem-se em primeiro lugar os agravos da Igreja. É, portanto, igualmente satisfação aos agravos da Igreja, impondo respeito pela separação, então fundamental, dos poderes entre o espiritual e o temporal.” (POUND, R., 1976, p. 18-9.) 23 No pequeno ensaio sobre as leis canônicas e feudais escrito em 1765, John ADAMS, em defesa das liberdades norte-americanas, representa bem essa situação. Diz ele: “Que se faça saber que as liberdades britânicas não são concessões de príncipes ou parlamentos, mas direitos originais, condições de contratos originais, coiguais a prerrogativas e coevos ao governo; que muitos de nossos direitos são inerentes e essenciais, aceitos como máximas e estabelecidos como preliminares antes mesmo da existência de um parlamento. Que examinem os fundamentos das leis e do governo da GrãBretanha na constituição da natureza humana e do mundo intelectual e moral. Veremos que ali a verdade, a liberdade, a justiça e a benevolência são suas bases duradouras, e, fossem estas removidas, destruir-se-ia, naturalmente, a superestrutura.” (ADAMS, J., 1964, p. 17-8.) 24 Para ilustrar essa perspectiva, Gough salienta o que afirma, por exemplo, Christopher St. Germain, importante jurista inglês e autor dos Dialogues in english between a doctor of divinity and a student of the laws of England, publicados em 1523, que assim escreve: “... quando alguma situação estiver conforme à lei natural, diz-se que é a razão que assim deseja, e se a lei natural impede alguma situação, então se diz que a tal situação contraria a razão...” (quand quelque chose est fondé sur la loi naturelle, on dit que la raison veut que cela soit fait, et s’il est interdit par la loi naturelle, on dit qu’il est contraire à la raison...) GOUGH, J.W. (1992, 26.) 46 3 POR QUE SUJEITAR-SE À LEI E AO DIREITO NUM REGIME DEMOCRÁTICO? Dos muitos autores clássicos que dentro dessa linha racional de argumentação se destacaram pela defesa feita ao regime democrático e suas instituições, dois em especial costumam despertar a atenção; são eles: Thomas Paine e Alexis de Tocqueville. Esses homens, além de investigadores dos fundamentos do regime democrático (americano), podem ser lidos também como bons representantes da doutrina que faz a defesa desse regime político. Eles se tornaram clássicos, dentre outras razões, porque também – e isso nos interessa mais de perto – apresentaram ao público as principais razões para que numa ordem jurídica democrática a submissão à lei fosse aceitável. Nos passos de Gough pode-se sugerir ainda que é partir do século XVII que a noção de Lei Fundamental adquirirá no direito inglês um sentido puramente humano, é dizer, deixará de ser compreendido como um conjunto de antigos direitos inscritos na Magna Carta, para ser um conjunto de “princípios gerais do direito inglês”, noção essa que apesar de não abandonar os preceitos concebidos na Magna Carta ou na Petition of rights, estará muito mais próxima da idéia de “razoável” do que de direito natural, tal qual era compreendido no medievo. “Se a idéia de lei fundamental acabou (em grande parte em razão do uso americano moderno) por se identificar com a de controle judicial, elas não estão intrinsecamente ligadas, como se pode ver claramente pelo que essa noção de lei fundamental significou no seu momento mais importante, na Inglaterra do século XVII. Nessa época, ela era freqüentemente tomada, não como controle judicial mas como um princípio que subordinava a política à ética, por força do que, a rebelião ou a revolução poderiam, em último caso, ser moralmente defensáveis.” (Si l’idée de loi fondamentale a fini (en grande partie du fait de l’usage américain moderne) par s’indentifier à celle de controle judiciaire, elles ne sont pas intrisèquement liées, comme le montre clairement le rôle joué par la notion de loi fondamentale à son apogée, dans l’Angleterre du XVIIe. siècle. A l’époque, elle représentait, le plus souvent, non le contrôle judiciaire mais le principe que la politique est subordonnée à l’éthique et que, par suite, la rébellion ou la révolution peut être moralmement défendable, en dernier ressort). GOUGH, J.W. (1992, p. 221.) É por isso que ele afirma que com o naufrágio da antiga doutrina, fundada nos direitos naturais inscritos na Magna Carta, restou a necessidade de o direito inglês moderno procurar saber o que vem a ser o “razoável”, muito mais do que direitos naturais. “A idéia antiga de lei fundamental (à qual se associou a de lei natural) repousava sobre a «razão» que a commom law pretendeu encarnar, o que significa que na prática as cortes supunham sempre que as leis eram feitas para preservar e defender, e não para atacar ou violar a liberdade e a propriedade individuais. Essa tendência individualista da commom law subsiste, mas de uma forma atenuada. [...] Assim, não saberíamos imputar ao legislativo a intenção de privar um sujeito daquilo que lhe pertence sem lhe assegurar o direito de obter reparação pela perda, a menos que essa intenção esteja expressa de modo inequívoco.” (L’idée ancienne de loi fondamentale (à laquelle s’était ajoutée celle de loi naturelle) repousait sur la «raison» que la commom law était censée incarner, ce que voulait dire qu’en pratique les cours supposaient toujours que les lois étaient faite pour préserver et défendre, et non pour attaquer ou violer, la liberté et la proprieté individuelles. Cette tendance individualiste de la commom law subsiste, mais sous une forme atténuée. [...] Ainsi, «on ne saurait imputer ao législatif l’intention de priver un sujet de ce qui lui appartient sans lui laisser le droit d’obtenir réparation de cette perte, à moins que cette intention ne soit exprimée sans équivoque.) GOUGH, J. W. (1992, p. 224.) As cortes judiciais por conta disso, relata Gough, passaram a assumir o direito e o dever de declarar desarazoado, contrário ao direito e sem valor qualquer uso comercial ou costume que afrontasse um “princípio fundamental de justiça.” 47 Tomemo-los, portanto, como chaves para acessar o discurso democrático. O primeiro, Thomas Paine25, discorre sobre o regime democrático freqüentemente associando-o ao regime representativo e à forma de governo republicana. E procede assim justamente para tentar demonstrar que eles não devem ser entendidos como entes desvinculados entre si. É que – argumenta – o regime democrático há de ser representativo e republicano porque só a democracia representativa dá à ordem jurídica as leis mais sábias, já que só ela permite que os homens mais sábios sejam investidos de autoridade política. Não obstante, o regime democrático representativo é recomendável também porque incita e favorece o desenvolvimento intelectual da comunidade toda ao exigir a participação dela nos negócios públicos e a afirmação de seus interesses. Por causa disso, o republicanismo é absolutamente coerente com o sistema democrático representativo, pois republicanismo, diz Paine, não é uma forma particular de governo, mas representa o conjunto de valores que todo e qualquer sistema político bem constituído deve adotar, ou seja, preocupar-se com assuntos públicos de uma maneira pública.26 Não é por outra razão que, segundo ele, o governo da América merece ser reconhecido como o melhor governo. Esse governo está totalmente fundamentado no sistema de representação e não tem outro objetivo senão o interesse público e os negócios públicos. A democracia americana seria, nesses termos, um regime político moderno – num sentido preciso de estar preparada para os novos tempos – porque, à diferença da democracia ateniense – que segundo Paine fora a melhor forma de governo existente na Antigüidade – a América congrega toda a comunidade nos assuntos públicos pela forma representativa sem deixar de ser transparente e equilibrada no trato da coisa pública (res publica). Nesse modo de governar, todos os homens públicos são compelidos a trabalhar para o interesse público.27 “A «justiça natural», mesmo que seja encontrada na história de nosso direito, nem sempre teve o favor de nossas cortes, e a lei natural não tem, como lei, um lugar reconhecido em nosso sistema jurídico. Mas nenhum jurista inglês dirá que o direito está totalmente separado da moral; em face disso, toda a doutrina do direito natural serviu primeiramente para lembrar que em última análise, o direito significava uma obrigação superior. Se eles não estiveram sempre de acordo a respeito do que entendiam por isso, pelo menos quando, ao longo da história, os ingleses invocaram uma lei fundamental, era a mesma fé que proclamavam.”(Les références à la «justice naturelle», bien que l’on en rencontre parfois dans l’histoire de notre droit, n’ont pas toujours la faveurs des cours, et la loi naturelle n’a pas, comme loi, une place reconnue dans notre système juridique. Mais aucun juriste anglais ne considère que le droit est totalement distinct de la morale; après tout, toute la doctrine du droit naturel servait d’abord à rappeler qu’en dernière analyse, le droit reflétait une obligation supériore. S’ils n’étaient pas toujours d’accord sur ce qu’ils entendaient par là, quand, au cours de leur histoire, les Anglais invoquaient une loi fondamentale, c’était bien la même foi qu’ils proclamaient.) GOUGH, J.W. (1992, p. 228.) 25 PAINE, T. Os direitos do homem (1989); Senso comum (1973) 26 “Governo republicano não é outra coisa senão governo estabelecido e conduzido para o interesse público, tanto individual quanto coletivamente. Não está necessariamente ligado a alguma forma particular, mas muito naturalmente associado à forma representativa, que é considerada como a que melhor garante a finalidade para a qual existe uma nação às custas da qual ele é sustentado.” (PAINE, T., 1989, p. 154.) 27 “Aquilo que é chamado governo, ou que nós preferiríamos que o governo fosse, não é mais do que um centro comum onde todas as partes da sociedade se unem. Não pode ser realizado por nenhum método tão útil aos vários interesses da comunidade quanto pelo sistema representativo. Ele concentra o conhecimento necessário ao interesse das partes e do todo. Coloca o governo numa situação de maturidade 48 O governo representativo, assim constituído, não apenas favorece a difusão do conhecimento sobre assuntos de governo – o que por si só acaba com a ignorância e ao mesmo tempo com governantes impostores – mas também não dá lugar para mistérios, pois nesse sistema político os governados sabem tanto quanto os governantes o que se passa com os negócios públicos. Numa democracia representativa, diz PAINE, “a razão para cada coisa deve aparecer publicamente” e é só dessa maneira que se pode conciliar o governo com a tão almejada liberdade, pois a liberdade política “não está nas pessoas, mas nas leis” elaboradas pelos representantes do povo.28 Tem-se, então, que o direito constituído por instituições democráticas, representativas e republicanas deve ser respeitado porque é feito pelos melhores homens da comunidade sem a possibilidade de privilégio para nenhuma classe deles, haja vista que em democracias representativas republicanas todos são igualmente legisladores e perseguem interesses públicos.29 Nessa medida, os interesses de uns são sempre respeitados de modo compatível com os interesses iguais dos outros. É, em síntese, o único regime que concilia igualdade, liberdade e soberania popular. Tocqueville, por sua vez – mais analítico mas não menos doutrinador – na obra30, de 1835, e com aquele tom profético que caracterizou sua escrita, constata o seguinte: do século XVIII para o XIX estaria ocorrendo uma profunda alteração na forma de vida das sociedades ocidentais, cuja tendência seria um movimento irreversível a caminho da ampliação da igualdade entre os homens. Sendo assim, todo governo para ser estável e bem constituído deveria ter instituições adequadas às exigências dos novos tempos. Não é por outra razão que ele se dedica ao estudo das instituições americanas, uma vez que na América – diz – há muito tempo reina absoluto o princípio da igualdade; todos os princípios sobre os quais repousam as instituições americanas, como o respeito à soberania popular, à ordem, ao equilíbrio de poderes e ao direito, devem ser bem compreendidos, pois são princípios indispensáveis a qualquer república que pretende adotar a igualdade e a liberdade como linhas mestras de suas instituições políticas. A democracia, então – que na leitura de Tocqueville se vinha realizando por baixo –, na vida social, reclamava apenas uma revolução nas instituições políticas.31 Um Estado democrático é antes de mais nada uma exigência da história, e atender a ela constante. Como já observamos, nunca é jovem, nunca é velho. Não está sujeito à maturidade nem à segunda infância. Nunca está no berço nem sobre muletas. Não admite separação entre conhecimento e poder e é superior, como o governo sempre deveria ser, a todos os acidentes do homem individual e é, portanto, superior àquilo que se chama monarquia.” (PAINE, T., 1989, p. 156.) 28 “O direito de votar em representantes é o direito básico através do qual os outros direitos ficam protegidos. Tirar este direito significa reduzir um homem à escravidão, pois a escravidão consiste em ficar submetido à vontade de outrem.” (PAINE, T., citado e traduzido por Florenzano, 1998, p. 203.) Do texto Dissertation on first principles of governement, de 1795. 29 Que poderiam ser resumidos em três grandes princípios: “... liberdade, propriedade a todos os homens e livre exercício da religião, de acordo com os ditames da consciência...” (PAINE, T., 1973, p. 71.) 30 TOCQUEVILLE, A. A democracia na América, 1987. 31 “Imagino, então, uma sociedade na qual todos, considerando a lei como obra sua, ter-lheiam amor e a ela se submeteriam de bom grado; uma sociedade na qual, por ser a autoridade do governo respeitada como algo necessário e não de natureza divina, o amor que se demonstraria ao chefe de Estado não seria jamais uma paixão, mas um sentimento racional e tranqüilo. Como todos teriam 49 parece ser a mais racional das decisões humanas. Nesse caso, adotar a igualdade perante a lei se impõe como um dos mais importantes princípios da nova ordem. Essa decisão, aliás pioneiramente, já fora tomada pelos habitantes da Nova Inglaterra. Para o autor, por isso, é preciso conhecer bem os costumes e hábitos daqueles habitantes das colônias do norte para captar a substância de todo o edifício político da América, pois lá o respeito à liberdade e à igualdade, mais do que em qualquer outro lugar, predomina; e foi com base nesses valores que os americanos se constituíram em sociedade, nomearam seus magistrados, decidiram coletivamente sobre a paz e a guerra, definiram regulamentos de polícia e criaram leis para si mesmos “como se só devessem fidelidade a Deus”. Os princípios gerais sobre os quais repousam as constituições modernas, princípios que a maior parte dos europeus do século dezessete mal compreendia e que triunfavam ainda incompletamente na Grã-Bretanha, são todos reconhecidos e fixados nas leis da Nova Inglaterra: a intervenção do povo nos negócios públicos, a livre votação de impostos, a responsabilidade dos agentes do poder, a liberdade individual e o julgamento pelo júri acham-se neles estabelecidos positivamente e sem discussão.32 Esse apego do povo americano pela autoconstituição da sociedade só pode ser explicado pelo modo como eles conciliavam os ideais de igualdade e liberdade. Tocqueville aproveita essa idéia para dizer que só nas sociedades em que cada indivíduo é considerado uma porção igual do poder soberano, o povo pode participar do governo do Estado. É que nessas condições o indivíduo é considerado tão esclarecido ou virtuoso quanto qualquer outro de seus semelhantes, e assim, nenhum governante dá ordens ou toma decisões por ser moralmente superior aos governados, mas apenas por que foi autorizado pelos demais a tomar decisões em assuntos públicos. Nessa medida, ordenar e obedecer são eventos que se colocam como um pacto de mútuo respeito, algo premeditado e bem compreendido por todos. Só isso explicaria a submissão tranqüila às leis e ao governo na América, tanto que à pergunta “Por que então, o povo americano obedece à sociedade, e quais são os limites naturais dessa obediência?” Tocqueville responde “[...] Obedece à sociedade nunca porque seja inferior àqueles que a dirigem, ou menos capaz do que outro homem de se governar por si mesmo; obedece à sociedade porque a união com os seus semelhantes lhe parece útil e ele sabe que essa união não pode existir sem um poder regulador.”33 Numa organização política com tais características, apenas a concentração do governo é admitida, ao passo que a descentralização administrativa é uma exigência da razão. De fato, se sob o regime político democrático todos se sentem soberanos, não há direitos e lhes seria assegurada a conservação de seus direitos, estabelecer-se-ia entre todas as classes uma confiança viril e uma espécie de recíproca condescendência, tão distante do orgulho quanto da humildade servil. Conhecendo os seus reais interesses, o povo compreenderia que, para tirar proveito dos bens da sociedade, seria preciso submeter-se aos seus encargos. A livre associação dos cidadãos poderia substituir então o poder individual dos nobres e o Estado ficaria ao abrigo da tirania e da licenciosidade.” (TOCQUEVILLE, A. 1987, p. 16.) 32 TOCQUEVILLE, A. (1987, p. 39.) 33 TOCQUEVILLE, A. (1987, p. 57.) 50 fundamento para tolerar a concentração do poder político. Como o legislador americano desconfia sempre da honestidade humana, mas nunca de sua inteligência34, organiza o poder de um tal modo que o governante seja ao mesmo tempo forte sem ser autoritário: ele governa nos limites da lei e sob o controle de outras autoridades. O poder, assim, quer da União ou dos Estados, quer seja o de julgar, legislar ou administrar, não será nunca personalizado. “Nos Estados Unidos a pátria se faz sentir por toda parte”, e é isso o que o autor mais admira nos efeitos da descentralização administrativa. Na América, o povo designa aquele que faz a lei e aquele que a executa; constitui ele mesmo o júri que pune as infrações à lei. As instituições não são democráticas apenas no seu princípio, mas ainda em todos os seus desenvolvimentos; assim o povo indica diretamente os seus representantes e os escolhe em geral todos os anos, a fim de tê-los mais completamente na sua dependência. É pois, realmente o povo que dirige e, embora a forma do governo seja representativa, é evidente que as opiniões, os preconceitos, os interesses e mesmo as paixões do povo não podem encontrar obstáculos duráveis que lhes impeçam de se produzir na direção cotidiana da sociedade. Nos Estados Unidos, como em todo país onde o povo reina, é a maioria que governa em nome do povo. Essa maioria compõe-se principalmente de cidadãos pacíficos que, seja por gosto, seja por interesse, desejam sinceramente o bem do país.35 Em seu ver, essa participação efetiva do povo na gestão dos negócios públicos deve ser estimulada sempre mais. Não só porque é a única maneira de interessar os homens pela sorte de sua pátria mas também porque assim procedendo não se deixa morrer a idéia fundamental de soberania popular, que em último grau é o direito que o povo detém de autodefinir suas leis e, nessa medida, de ser livre. Todavia, ainda que não exista nada mais fecundo do que a arte de ser livre, “nada há de mais difícil do que o aprendizado da liberdade.”36 Porém, só quando um povo aprende a ser livre, isto é, quando aprende a dar leis a si mesmo, deixará de encontrar dificuldades para se submeter ao direito e às instituições democráticas.37 Tocqueville não faz conceituação acabada do regime democrático. Entretanto deixa entrever que o admira porque é o mais adequado a uma época em que a igualdade está por todas as partes e também porque é o regime que melhor garante o respeito à liberdade sem abdicar da ordem pública.38 A defesa da ordem jurídica está feita, ainda que indiretamente: 34 TOCQUEVILLE, A. (1987, p. 67.) 35 TOCQUEVILLE, A. (1987, p. 135.) 36 TOCQUEVILLE, A. (1987, p. 185.) 37 “... nos Estados Unidos, cada qual tem uma espécie de interesse pessoal em que todos obedeçam às leis, pois aquele que hoje não faz parte da maioria talvez esteja amanhã em suas fileiras; e esse respeito, que professa agora pelas vontades do legislador, em breve teria ocasião de exigi-lo para as suas. Ainda que a lei seja malsã, o habitante dos Estados Unidos submete-se a ela, por isso mesmo, sem dificuldade, não somente por ser obra da maioria, mas ainda por ser obra também sua; consideraa do ponto de vista de um contrato do qual é uma das partes. [...]. De resto, o povo, na América, não obedece à lei apenas porque ela é obra sua, mas ainda porque pode mudá-la, quando por acaso ela o fira; e submete-se a ela em primeiro lugar como um mal que se impôs a si mesmo, e depois como um mal passageiro.” (TOCQUEVILLE, A., 1987, p. 186-187.) 38 “... se nos parece útil encaminhar a atividade intelectual e moral do homem para as necessidades da vida material e empregá-la para produzir o bem-estar; se a razão nos parece mais 51 o regime democrático, ao assegurar liberdade e igualdade acolhe os postulados fundamentais constantes do sistema fundamental e universal de direitos do homem, e esse parece ser um motivo bastante razoável para que suas instituições sejam respeitadas. 4 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTADO ATUAL DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA. Parece claro que boa parte da discussão contemporânea sobre a legitimidade de uma ordem jurídica não vacila em sustentar que já não há mais ambiente político para o prevalecimento regimes não democráticos. Há até, para ir além, um relativo consenso dos organismos internacionais a esse respeito. Não obstante, paralelamente, a teoria política tem salientado que neste século vem se expandindo um processo corrosivo dos fundamentos do regime democrático representativo, o que, de certa forma, reabre a clássica discussão, que com as democracias representativas parecia ter sido esgotada, é dizer, reabre-se a discussão a respeito do por que a lei e as instituições que a criam devem ser respeitadas. Carl Schmitt, num célebre trabalho39, procura demonstrar que a democracia, a proveitosa aos homens que o gênio; se o nosso objetivo de modo nenhum é criar virtudes heróicas, mas hábitos pacíficos; se antes queremos ver vícios do que crimes, e se preferimos encontrar menor número de grandes ações com a condição de encontrar menos ofensas; se, em vez de agir no seio de uma sociedade brilhante, basta-nos viver no meio de uma sociedade próspera; se, afinal, o objetivo principal de um governo de modo nenhum, em nossa opinião, é dar a todo o corpo da nação a maior força ou a maior glória possível, mas fornecer a cada um dos indivíduos que a compõe a maior parcela de bem-estar e evitar-lhe maior miséria; então, igualemos as condições e constituamos o governo da democracia.” (TOCQUEVILLE, A., 1987, p. 190.) Essa citação rendeu o seguinte comentário de Raimond ARON a propósito do conceito de democracia na obra de Tocqueville: “Ao seu ver a democracia é a igualização de condições. É democrática a sociedade na qual não subsistem distinções de ordens ou classes, na qual todos os indivíduos que compõem a coletividade são socialmente iguais, o que não significa intelectualmente iguais, o que seria um absurdo, nem economicamente iguais, o que, segundo Tocqueville, seria impossível. A igualdade social significa que não há diferenças hereditárias de condições, e que todas as ocupações, todas as profissões, todas as dignidades, todas as honrarias são acessíveis a todos. São desse modo inerentes à idéia de democracia a uma só vez a igualdade social e a tendência à uniformidade dos modos e níveis de vida. [...] Mas o que ele entende por liberdade? O termo primeiro que constitui a noção de liberdade é a ausência de arbítrio. Quando o poder se exerce apenas com base em leis, os indivíduos estão em segurança” (À ses yeux, la démocratie est l’égalisation des conditions. Est démocratique la sociéte oú ne subsistent plus le distinctions des ordres et des classes, où tous les individus qui composent la collectivité sont socialement égaux, ce qui ne signifie d’ailleurs pas intellectuellement égaux, ce qui serait absurde, ni économiquement égaux, ce qui, d’aprés Tocqueville, serait impossible. L’égalité sociale signifie qu’il n’y a pas de différence héréditaire de conditions, et que toutes les occupations, toutes les professions, toutes les dignités, tous les honneurs sont accessibles à tous. Sont donc impliquées dans l’idée de démocratie à la fois l’égalité sociale et la tendance à l’uniformité des modes et niveaux de vie. [...] Mais qu’entendait-il par liberté? [...] Le terme premier qui constitue la notion de liberté, c’est l’absence d’arbitraire. Quand le pouvoir ne s’exerce que conformément aux lois, les individus sont en sécurité. (ARON, R., 1967, p. 225 e 227.) 39 SCHMITT, Carl. Situação intelectual do sistema parlamentar atual, 1996. 52 partir da queda dos regimes absolutistas, passou a estar associada a um sistema representativo parlamentar, cuja ratio ou princípio básico é ser um modelo institucional de formar as leis com base na discussão pública de argumentos e contra-argumentos, e na separação ou balanceamento de poderes. O propósito dessa idéia é fazer com que o equilíbrio das discussões públicas possa definir melhor o conteúdo das leis do que a mera ordem baseada na autoridade. Todavia, o mesmo autor diz também que o dilema dos regimes democráticos contemporâneos reside justamente na incapacidade de se “publicizar” o debate e a discussão. Basta ver, por exemplo, que em razão do volume das questões debatidas nos parlamentos, a formação de comissões técnicas e especializadas restringe drasticamente a publicidade dos debates, e com isso o sistema parlamentar perde sua base intelectual.40 Norberto Bobbio41, por exemplo, num trabalho relativamente recente, evidencia certas incompatibilidades de algumas realidades contemporâneas com a idéia de regime democrático formulado ao longo dos três últimos séculos. A primeira dessas incompatibilidades diz respeito ao agigantamento das organizações atuais. De um lado temos o fato de a democracia ter sido concebida para ser um regime político para pequenas comunidades; de outro o que se constata atualmente é o surgimento de grandes organizações sindicais, partidárias, empresariais e mesmo de Estados-nação com dimensões territoriais pouco imagináveis no século XVIII. Outra incompatibilidade se refere à necessidade que a democracia têm de realizar controle popular da coisa pública, de um lado, e de outro o que se vê é o exagerado crescimento da burocracia estatal, que a tornou demasiado complexa dificultando sobremaneira um controle desse gênero. Além disso, é cada vez menor a capacidade do cidadão comum para discernir os reais problemas sociopolíticos do cotidiano, e ao mesmo tempo os governos fomentam um modelo de gestão apoiado cada vez mais em especialistas com falas cada vez mais técnicas, o que compromete a transparência do discurso político e a avaliação popular das decisões oficiais. Outro paradoxo diz respeito à autonomia do indivíduo, fundamento dos regimes democráticos. Diz o autor que também este – se já não desapareceu – está por um fio. É que o advento das sociedades de consumo de massa está provocando uma espécie de padronização de gostos, costumes, emoções e valores, o que tende a deteriorar a própria idéia de individualidade, e com ela o sujeito com idéias próprias – conceito nuclear das doutrinas políticas modernas – sem o qual perde sentido o postulado da eleição individual de representantes. Bobbio salienta ainda que o modelo democrático também está ameaçado pela crise de governabilidade, que em síntese significa que se torna cada vez mais desproporcional a relação entre demandas da sociedade e a capacidade efetiva de as 40 “Se, na realidade efetiva do Parlamento, a publicidade e a discussão passaram a ser só uma formalidade vazia e inócua, então o Parlamento, do modo como se desenvolveu no século XIX, também perdeu, desde então, o seu fundamento e o seu sentido.” (SCHMITT, Carl., 1996, p. 48.) 41 BOBBIO, N. A crise da democracia e a lição dos clássicos, 1987. 53 instituições públicas satisfazê-las. Nesse caso, a multiplicação das demandas e o fracionamento dos interesses faz com que os governos sejam cada vez menos capazes de formar base de apoio parlamentar para realizar projetos, ou seja, é cada vez mais difícil formar coalizões e governos estáveis. O fato novo é, no que diz respeito à governabilidade, que está havendo uma crise não de abuso do poder – o grande problema da democracia moderna – mas falta ou ausência de poder para formar governos estáveis e capazes de responder às expectativas populares. Paul Hirst42, numa linha de análise semelhante à dos dois outros autores precedentes, está preocupado em demonstrar que a democracia representativa atual não dispõe de meios adequados para o povo supervisionar, limitar e controlar o que ele denomina “grande governo”, que é representado pelos Estados de bem-estar. Existem, em seu ver, algumas contradições entre a teoria e a prática democrática atual que complicam a legitimidade do regime. A primeira contradição desse modelo institucional está no fato de apesar de o eleitor escolher algumas das pessoas que poderão participar de uma decisão governamental, ele não pode escolher diretamente o conteúdo das decisões. É dizer, os eleitores não podem controlar as decisões de seus representantes depois do processo eleitoral, e isso significa que os eleitos podem decidir de modo incompatível com o discurso de campanha sem que daí decorram maiores responsabilizações políticas. Desse modo, a eleição se converte numa escolha entre um pequeno conjunto de organizações partidárias, e nunca numa expressão pura da vontade do povo. A segunda contradição que ele apresenta diz respeito ao pressuposto jurídico já consolidado de que as leis, por serem normas gerais, não ferem direitos individuais, quando na verdade a “maior parte da legislação consiste na delegação de poderes de decisão e ação a órgãos executivos, que têm o poder derivado de criar leis quando necessário e de administrar uma atividade” específica. O Poder Executivo não está mais submetido ao Legislativo como supõe a doutrina tradicional; ele tem, na realidade, a maior parte da iniciativa das leis, e os programas de governo são aprovados graças à disciplina partidária coordenada a partir do Executivo. O autor acrescenta, não obstante, que em face dessas contradições, as democracias têm de enfrentar quatro43 grandes problemas ou áreas de preocupação. A primeira se refere à tendência de o regime democrático se converter em “despotismo eletivo” do governo partidário. E isso porque os políticos (profissionais) têm explorado ao máximo a centralização administrativa para satisfazer interesses pessoais. A segunda diz respeito ao agigantamento da máquina burocrática e à descentralização decisória que passou dos cargos eletivos para os cargos técnicos: o poder se exerce atualmente com grande influência dos burocratas, que em boa medida não são fiscalizáveis. E é essa relação entre poder e burocracia que origina a terceira preocupação de Hirst, qual seja, a de que cresce a pressão pelo segredo e pelo controle da informação política por burocratas que exercem o poder por longos períodos. Não bastasse isso, a necessidade de formar governos de coalizão favorece composições ministeriais de matizes diversos, 42 HIRST, P. A democracia representativa e seus limites, 1992. 43 HIRST, P. (1992, p. 40.) 54 o que, não poucas vezes se torna um obstáculo à execução de um programa uniforme de governo, já que muitas visões ministeriais podem se apresentar como resistência administrativa ao avanço político de um programa. Outros autores sugerem44 que, apesar de a representação política não ser um conceito ainda descartável, o certo é que ele está profundamente modificado, se considerarmos o seu sentido doutrinário clássico. É que a crise de representação estaria mais associada a transformações estruturais da sociedade, como a “fragmentação da classe trabalhadora, a extrema instabilidade e fluidez das posições no mercado de trabalho e a complexa imbricação dos conflitos de interesse” do que propriamente com o burocratismo ou com o partidarismo. Desse ponto de vista, tais “transformações sociais de envergadura” eliminaram da sociedade a própria idéia de classes que pudessem ter interesses comuns para defendê-los por via dos partidos políticos. A sociedade, desse modo, não tem mais capacidade de criar uma imagem de si como uma unidade, nem de formar identidades coletivas em geral. Como conseqüência, desaparece o “cidadão”, os interesses de classes, e o próprio espaço público-político, já que a mídia fabrica uma opinião pública resultante da “espetacularização da vida política”. Há outros autores ainda, como Guillermo O’Donnel45, que analisam o caso específico latino-americano para dizer, em rápida síntese, que a experiência democrática por aqui não avançou para além do voto direto. A transição do autoritarismo para a democracia representou apenas a conquista de eleições universais, mas nenhum país latino-americano conseguiu criar um sistema integrado de instituições politicamente capazes de fiscalizar a gestão dos negócios públicos para impedir desvios de finalidade, nem foram capazes de coibir a ascendência do Poder Executivo sobre o Legislativo e o Judiciário. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Talvez seja o caso de apontar que não só a complexidade da estrutura do Estado, mas também a tremenda importância que temas econômicos complexos passaram a ter para a política, inibem não apenas a construção da cidadania participativa mas até a consolidação de instituições representativas que possam acompanhar de perto o processo decisório e influenciá-lo. São decorrências desses fenômenos o distanciamento do eleitor da vida pública e o definhamento do controle popular sobre as autoridades eleitas. O propósito deste ensaio era destacar, todavia, que as justificativas democráticas – das quais deriva o grosso dos argumentos jurídicos relativos à necessidade de obediência da lei e das instituições jurídicas – estão ligadas pela característica de que representação, controle popular e institucional da gestão dos negócios públicos e a legitimidade das instituições jurídicas demandam a existência de um espaço público do qual o povo participe efetivamente, pois só nessa medida o súdito se converte em 44 NOVARO, Marcos. O debate contemporâneo sobre a representação política, 1995. 45 O’DONNELL, G. “Democracia delegativa?” 1991. 55 cidadão. Entretanto, temos em vista um processo de significativa transformação do conteúdo da política em razão da deterioração do espaço público, que já não é mais um espaço que permite o debate aberto e o confronto de ideologias. É o pragmatismo e o poder de autoridades executivas, que não têm sequer vínculos de representação popular, fundado na autoridade da técnica que predominam. E se isso significar alguma coisa para o problema da legitimidade das autoridades, talvez se possa dizer que é cada vez menos adequado doutrinar que devemos respeitar as instituições jurídicas por causa da democracia, já que nas circunstâncias atuais os governantes têm muito mais possibilidade de mentir, sem serem percebidos, e de decidir sem serem contrariados pelos seus representados. BIBLIOGRAFIA ADAMS, John. Escritos políticos de John Adams. Trad. Leônidas G. Carvalho. São Paulo : Ibrasa, 1964. ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro W. B. de Almeida. 3. ed. São Paulo : Perspectiva, 1992 ARON, Raymond. Les étapes de la pensée sociologique. Montesquieu, Comte, Marx, Tocqueville, Durkheim, Pareto, Weber. Paris, France : Gallimard, 1967. BOBBIO, Norberto. A crise da democracia e a lição dos clássicos. 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Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 1980. 58 QUESTÕES DO DESEMPREGO NO BRASIL E POLÍTICAS RECENTES* Sérgio Luiz Lacerda Professor de Economia das Faculdades Integradas Curitiba, mestrando em Integração LatinoAmericana, na UFSM A Convenção sobre a Política de Emprego nº 122, de 9 de julho de 1964, que corrobora a Declaração Universal dos Direitos do Homem, defende o direito ao trabalho, a livre escolha de emprego, condições justas e favoráveis de trabalho e a proteção contra o desemprego. O conteúdo desse documento deveria conduzir a sociedade brasileira a uma profunda reflexão sobre a política de rendas do atual governo. Embora não sendo objeto de estudo deste artigo, caberia, nesse aspecto, resgatar uma análise sobre os desafios da competitividade e da geração de empregos neste final de século, para que se entenda o caso brasileiro. Indiscutivelmente os países, em geral, como é o caso do Brasil, vêm enfrentando importantes transformações econômicas como conseqüência da sua inserção no mundo globalizado. A busca de conciliação entre as exigências da melhoria na competitividade das empresas e a expansão das oportunidades de emprego tornou-se um grande desafio. É uma tese que deve ser discutida em sua sistemática e, necessariamente, em seus resultados práticos, fundamentados pela teoria econômica e interpelados pelos fundamentos ideológicos e elitistas das classes dominantes. O capitalismo tecnoburocrático, componente básico do comando político e econômico das três últimas décadas do Brasil, é superado com a reintegração ao capitalismo monopolista.1 O financiamento da economia brasileira passa a ser realizado pelo ingresso de significativa massa de capital externo e especulativo, mantendo elevados níveis de concentração e centralização de capital aos interesses das empresas transnacionais. Por isso, ao se buscar um modelo brasileiro de competição, não é possível desvincularem-se da marca histórica da dependência externa as características intrínsecas do capitalismo tardio.2 (*) Versão inicial apresentada em palestra na PUC/PR, em outubro de 1999, sobre O fenômeno do desemprego no Brasil: perspectivas e diagnósticos – Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras. Agradeço os comentários dos professores e colegas Carlos Luiz Strapazzon, Sandro Aparecido Gonçalves e Wilson Maske. 1 PEREIRA, Luiz Bresser. Economia brasileira – uma introdução crítica. 9. ed. São Paulo : Brasiliense, 1986. p. 58. 2 Conforme E. Mandel, capitalismo tardio não se trata de uma nova dimensão do capitalismo, 59 Sob esse aspecto vinculam-se as questões da educação, seu direcionamento ainda maior aos interesses dessa mesma classe na formação dos gerentes do sistema, que no momento atual, com a voracidade dos mercados cada vez mais competitivos, aprofunda com mais intensidade a lacuna entre as possibilidades de uma ampla homogeneização de direitos e a geração de empregos. Ao se observar o despreparo da classe trabalhadora brasileira, quanto às “novas sistemáticas” sobre o trabalho 3, não se excluem as questões paternalistas e populistas do velho modelo de governo que acaba engendrando os mecanismos contraditórios para dentro dos novos rumos da educação (término do ensino profissionalizante de nível médio; crescimento desordenado e indisciplinado do número de faculdades, que, segundo os preceitos neoliberais e sob os auspícios da “concorrência”, permanecerão em “pé” as eficientes; controle de qualidade do ensino de terceiro grau pela realização do Exame Nacional de Cursos, o “Provão”), afetando inclusive as elites que também se conflitam ao se defrontarem com o novo modelo econômico neoliberal e concentrador de renda, sendo adotado pelos governos do Brasil da década de 90 (a “garantia” de emprego estará na razão direta do coeficiente obtido pela escola e pelo aluno). Como o sistema de ensino brasileiro da década de 70 para cá produziu a queda generalizada da qualidade do aprendizado, com efeito a sociedade deve atentar-se, com significativo senso crítico, para o crescimento recente das indústrias de MBA (Menagement Business Administration). A reprodução da divisão do trabalho não se dá mais pela subdivisão de tarefas respaldadas, unicamente, por meio da força de trabalho humano, como já se verifica na maioria dos centros consideradas chamados de ponta. De fato, em certos segmentos de mercado, que sistemas de marketing, por exemplo, não estejam ainda totalmente artificializados, é mera questão de tempo. O consumidor artificial-virtual-final não está muito longe de ser alcançado pelas pesadas estruturas econômicas oligopolizadas mundiais. Havendo fortes razões para cada uma das duas exigências, o que se tem claramente definido é o aprofundamento da crise histórica entre capital e trabalho, com tendência de supremacia final do primeiro, observando-se a primazia tecnológica como sendo a única relação verdadeira entre o desejo humano e a fantasia da demanda. 1 EXPANSÃO DA CONCORRÊNCIA: MECANISMOS BÁSICOS A expansão da competitividade neste final de século, ocorrida de modo acelerado em comparação com épocas anteriores, é resultante da ampliação da concorrência entre apenas que pela amplitude advinda da revolução tecnológica (fundamentalmente em 1940/45, quando se dá sua fase atual) a produtividade do trabalho passa a ser afetada pela repartição da renda que se concentra entre o capitalista fruto da incorporação das revoluções técnicas, da expansão do comércio mundial e do aprofundamento da dependência, capazes de proporcionar às economias industrializadas matérias-primas baratas e abundantes. MANDEL, Ernest. Capitalismo tardio. p. 370. 3 A nova ordem sobre o trabalho no mundo como no Brasil é fruto do novo padrão econômico mundial, em que a eficiência, o baixo custo de produção e alta competitividade movimentam os fluxos produtivos intra e enter nações, fazendo com que o trabalho absorva impactos de todos os lados, com as indústrias enfrentado e gerando o desaparecimento das fronteiras nacionais. (Veja, 1533, 11/12/1998) 60 empresas, que na maioria dos países acontece em uma escala muito acentuada. Analisando-se a expansão da concorrência, surgem alguns tópicos a serem analisados a seguir. ! Aumento da competitividade entre as empresas, resultante do deslocamento da concorrência para grandes centros internacionais, conseqüência do aumento da dependência da internacionalização do capital, fruto da aceleração tecnológica do modo faciendi de produção, aliada à apropriação de novas técnicas de gerenciamento e logística industrial. Resultado disso é a a grande desigualdade econômica imposta na maioria das atividades econômicas, afetando de maneira importante a remuneração do trabalho. ! Esse mesmo procedimento conduz países à concentração econômica, por meio da busca do mesmo referencial competitivo, integrando produção, capital, tecnologia e trabalho amplamente qualificado. Em relação à propalada sustentação do crescimento não é demais situá-lo entre os neoliberais como resultante da ampliação das áreas de livre comércio. A discussão surge a partir do novo modelo de concorrência, em que seu alcance se dará pela remoção de barreiras tarifárias para a livre circulação de mercadorias. Segundo Rossetti [...] na Europa, durante o processo de integração, tarifas aduaneiras e restrições quantitativas ao comércio intracomunitário foram abolidas: os postos de fronteira continuaram a existir como pontos de controle para levantamento de dados estatísticos e adoção de medidas de segurança. No Brasil, em resposta às pressões mundiais de liberalização e em decorrência da integração regional, as tarifas de proteção aduaneira caíram, entre 1990 e 1994, de 32,2 para 14,2%.4 Mais recentemente, na conferência da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Seattle, (EUA), o neoprotecionismo assume nova roupagem por meio de organizações “sindicais” e “ecológicas”, dissimulando os interesses neoliberais dos países ricos, que propalam explicitamente que, se permitirem uma abertura maior de suas economias, estariam aprofundando os níveis internos de desemprego.5 É bom que se afirme, diante desse contexto, que o Brasil, ao cumprir com suas obrigações neoliberais globalizantes, coloca-se mais uma vez à mercê das grandes economias industrializadas, na prática histórica da desnacionalização econômica, que têm no cosmopolitismo um pseudo-instrumental de financiamento de longo prazo de sua economia. Os países pobres, não sendo mais considerados de Terceiro Mundo, porém na condição de emergentes, devem continuar a “exportar alimentos brutos a granel ou matérias-primas com impostos baixos ou simplesmente isentos. Mas, se quiserem exportar manufaturas, passarão a incorporar abusivas alíquotas, como é o caso do café solúvel, com taxa de 18% na Alemanha, onde não se planta café”.6 ! Formação dos mercados regionais, conseqüência da migração das grandes 4 ROSSETTI, J. P. Introdução à economia. 17. ed. 1997. p. 376. 5 Veja, 1627, n. 49, de 8 de dezembro de 1999. 6 Veja, 186. 61 empresas, agravando-se os oligopólios na forma de megamercados. Se, de um lado, a expansão da competitividade caminha a passos largos; de outro, buscam-se meios para que as oportunidades de emprego cresçam. Isso porque alguns problemas se encontram instalados e outros, em função do crescimento natural da população, direcionam esse contingente para o mercado de trabalho, necessitando, por conseguinte, de medidas concretas de parte dos países no encontro de soluções. ! Aumento de ingressos de mão-de-obra no mercado de trabalho formal, a partir da presença da mulher na força de trabalho, a qual se consolida de forma rápida e eficiente no mundo. Para isso, faz-se necessária a criação de mecanismos de expansão de oportunidades desse gênero de emprego, nas diversas áreas da economia. ! Crescimento significativo do contingente migratório da população economicamente ativa – indicador de que a competição se elevará já a partir da crescente mobilização que se impõe, além da mão-de-obra jovem que se incorpora no mercado de trabalho. Isso significa, conforme ROSSETTI “que apenas entre 1992-2000, 483,9 milhões de pessoas a mais estarão aptas a procurar por oportunidades de trabalho. Desses, 18 milhões nos países de alta renda; os restantes 465,9 milhões nos de média e baixa renda.”7 2 ASPECTOS DA COMPETITIVIDADE NO BRASIL A década de 90, para o Brasil, transformou-se em uma corrida contra o tempo, na inclusão no processo de competitividade mundial, daí porque toda a base teórica está calcada em modelos neoliberais, daí porque todo “modelo de financiamento da economia” recente é norteado exclusivamente por ingressos de capitais estrangeiros e privatizações. O Estado mínimo inerente às leis de mercado preconiza no automatismo e na sensação de liberdade criada pela ideologia neoliberal (autoregulação do mercado) a ampliação nos lucros do setor privado e, por meio deles, a geração de renda que conduza à expectativa do pleno emprego. Inegavelmente, aí está franqueada a escolha feita, pelos economistas do governo, pela escola neoliberal e monetarista, o que caracteriza nada mais, senão, o regresso à mão invisível de Adam Smith e à de David Ricardo, este hoje tendo sua teoria de alguma forma remodelada e reconduzida pela Vantagem competitiva das nações, de Michael Porter.8 7 ROSSETTI, J. P. Op. cit. p. 378. 8 A Teoria das vantagens comparativas, de David Ricardo, acaba sendo redesenhada por Michael Porter. Ao alinhar metodologicamente as estruturas de mercado, a partir de um conteúdo essencialmente teórico são detectadas, por meio de relações interindústrias, vantagens das cadeias de valor, em que a reordenação do comércio mundial acaba não se verificando unicamente pelo modelo de concorrência clássica, porém centrando as regras de mercado aos complexos de produção, distribuição e consumo para dentro dos países altamente industrializados em razão do enorme fluxo de identidades e semelhanças intra nações gerados irrompido pela globalização. PORTER, Michael. Vantagem competitiva das nações. São Paulo : Campus, 1993. 62 Seria preciso, então, que a conquista da estabilidade pela economia brasileira fosse deflagrada e que, necessariamente, se instalassem na vida do mais simples cidadão as modificações pretendidas à incorporação da globalização competitiva. São os meios justificando os fins: abertura econômica indiscriminada e privilégios ao capital externo especulativo ajustado sobre os critérios históricos e tradicionais do cosmopolitismo ideológico das elites brasileiras. Seria necessário que a legitimidade do novo sistema se desse, por um lado, por uma alteração profunda nos hábitos de consumo, e de outro, por uma corrida das empresas em busca de competitividade e qualidade, conduzindo-as a um profundo processo de reorganização. É importante salientar, por conseguinte, que a reengenharia se deu por intermédio de uma adequação contínua sobre um enorme avanço tecnológico, gerencial e organizacional, que amplia de forma estratégica a dependência econômica pelos países avançados, revelando aí a importante fragilidade do setor privado brasileiro, pois a concentração econômica e a competitividade dão-se em cima de um processo de extrema desigualdade no que tange à geração de produto e renda.9 Na verdade, conforme afirmam João Sayad e Simão Davi Silber em cima da tese do economista sueco B. Linder, as teorias clássicas do comércio internacional sofreram significativas modificações, quando o comércio passa a ter importância para dentro dos países ricos, conseqüência dos mesmos padrões de renda per capita, de demanda semelhante, de estruturas de produção também parecidas, refutando as teses ricardianas, ao afirmar que as diferenças de fases de desenvolvimento entre nações ricas e pobres intensificariam o comércio e homogeneizariam o desenvolvimento. O avanço das novas teorias do comércio internacional aprofunda ainda mais a estratégia comercial entre as nações a partir da elevação do grau tecnológico, que passa a se incorporar, cada vez com mais velocidade e precisão, à aceleração do ciclo de vida do produto e do próprio potencial da demanda. Cabe salientar que esses novos modelos de comércio ocorrem, ou pela concorrência monopolística, e aí, por meio de economias de escala e diferenciação de produtos, com um intenso comércio intra-industrial, ou por meio de oligopólios (duopólios)10 adotados pelos países industrializados, possibilitando que suas empresas saiam à frente, com custos diferenciados, associados a uma intensa política de learning by doing e de P & D (Planejamento e Desenvolvimento).11 O equacionamento, portanto, da inserção no mercado de trabalho do grande contingente populacional brasileiro passa pelo desafio de compatibilizar eficiência econômica com geração de oportunidade de empregos. 9 BAUMANN, R. et al. O Brasil e a economia global. São Paulo : Campus, 1996. p. 232-234 10 Duopólio enseja um modelo simplificado que revela os princípios essenciais da teoria do oligopólio, que se caracteriza por uma situação de mercado na qual há somente dois vendedores. É uma situação intermediária entre o monopólio e a concorrência perfeita. Contudo as conclusões extraídas da análise do problema de dois vendedores podem ser ampliadas para cobrir situações em que há três ou mais vendedores. Na condição de que há somente dois vendedores produzindo uma mercadoria, uma mudança no preço ou na quantidade produzida de uma delas afetará o outro, e as reações deste por sua vez afetarão aquele. Assim, cada vendedor percebe que uma alteração no seu preço ou na quantidade da sua produção gerará uma seqüência de reações. Dentre as inúmeras suposições que um fará em relação ao outro, os ganhos de ambos serão independentes. (SELDON, A.; PENNANCE F. G. Dicionário de economia. Rio de Janeiro : Bloch, 1969. p. 202.) 11 PINHO, D. B; VASCONCELLOS, M. A. S. et al. Manual de economia. 3. ed. São Paulo : Saraiva, 1998. p. 477. 63 A reorientação do modelo econômico brasileiro de desenvolvimento a partir de 1990, buscou a reordenação do sistema produtivo essencialmente protegido para uma economia aberta e competitiva, aliada à estabilização da moeda. A conseqüência disso tem sido a intensificação dos impactos sobre os fluxos de comércio e de capitais internos, modificando e ampliando o conflito nas relações de trabalho (baixo custo de produção e alta competitividade somente é possível a partir de novas regras de emprego e trabalho, isso porque no capitalismo monopolista e, agora, global, trabalho agoniza em comparação ao elevado grau de tecnologia incorporada). Esses impactos seriam, talvez, menos danosos, se o atual governo e o Congresso gerassem concretamente uma nova ordem fiscal no País, a qual viesse reduzir o custo Brasil no interior das empresas. Contudo em uma economia globalizada e competitiva, a questão central para o mercado de trabalho recai sobre os aumentos de produtividade, o que acaba por elevar a eficiência do sistema econômico e, portanto, as chances de sucesso de uma economia integrada internacionalmente reduzem o choque do crescimento da produção sobre a geração de empregos. Todavia, segundo os neoliberais, o desafio reside em promover o desenvolvimento econômico sustentável de forma a dinamizar o mercado de trabalho. Dessa maneira, o discurso que reflete o objetivo das políticas públicas tem sido o de aliviar os custos sociais e econômicos da transição, especificamente no curto prazo, em que as soluções acabam por ser sempre emergenciais e tangentes ao problema. O cinismo liberal do capitalismo globalizado brasileiro afiança que a solução gravita pela necessidade de se alcançar uma elevada trajetória de crescimento de emprego, assegurando que os trabalhadores tenham acesso aos ganhos de produtividade gerados no âmago desse processo sem, contudo, afetar negativamente a competitividade da economia. Ora, a tentativa de se entender tal afirmação é funesta, haja vista que, para se chegar a um ritmo internacional de competitividade, as empresas devem se obrigar a um determinado grau de tecnologia, substitutiva de trabalho. 3 GOVERNO E QUESTÕES DO EMPREGO: CRÍTICA O governo de Fernando Henrique Cardoso acredita que os requisitos para enfrentar a questão do emprego em uma economia aberta e competitiva residem nas ações a seguir. ! Assegurar a estabilidade pelo equacionamento definitivo do déficit público. ! Dar continuidade às mudanças institucionais necessárias para construir um ambiente propício ao crescimento econômico duradouro. Essas mudanças deverão gerar poupança e atrair novos investimentos, nacionais e estrangeiros, ao criarem um ambiente e expectativas favoráveis a um ciclo sustentado de crescimento. ! Investir em capital humano, especialmente na educação básica e secundária das crianças e dos jovens, e na formação profissional da força de trabalho. ! Reformar as instituições que regulam o funcionamento do mercado de trabalho e os conflitos de natureza econômica entre empregadores e trabalhadores. Indiscutivelmente o gasto do setor público pressiona a formação dos custos das empresas brasileiras. Entretanto a inexistência de uma política de emprego e renda no Brasil, que garanta níveis de demanda sustentáveis, distanciará ainda mais tal realidade de uma política de renda que venha a ser criada. Em outras palavras, é inverdade a afirmação apregoada pelos neoliberais de que 64 o nível de emprego depende do crescimento da economia e das forças livres de mercado. Se assim fosse, a Suécia, que não adota a política econômica neoliberal e cuja economia cresceu menos que a da Espanha em 1998, deveria ter um índice de desemprego maior que o espanhol, o que não se verificou. É um contra-senso acreditar-se que apenas por mudanças institucionais, seguidas de amplas privatizações, seja possível gerar poupança interna suficientemente capaz de reverter o quadro recessivo e desempregador brasileiro. O governo brasileiro não explica como gerar uma política consistente de retomada do crescimento, por meio de ações que não privilegiem as empresas nacionais com protecionismo audaz, mas que as equalize às internacionais. O Brasil navega em um mar de ingenuidade transportando-se para uma cruel realidade. O paternalismo governamental transferido aos setores empresariais com que se fabricou, ao longo dos últimos 40 anos, o modelo de crescimento econômico acelerado, que fundamentou o capitalismo industrial, desobrigou maiores ações sobre o processo educacional brasileiro, principalmente no que tange aos ingressos da qualificação de terceiro grau. Educar significa libertar; libertar a consciência, o que significa perderem-se as rédeas do poder constituído para novos mecanismos de comando e decisão. Como a educação no País é mão de uma única via, considerandose os interesses das grandes elites, pergunta-se: de que tipo de educação o brasileiro necessita, se a despersonalização da produção indica não mais tecnologia de produção e sim, tecnologia de processo de produção? Como afirma Jeremy RIFKINS Para que retreinar, em a Mágica da tecnologia e realidades de mercado, é ingenuidade acreditar que grandes números de trabalhadores sem qualificação e semiqualificados, administrativos e operários possam ser treinados para tornarem-se técnicos de alto nível, profissionais de diversas origens. A lacuna nos níveis educacionais entre aquelas que precisam de emprego e tipo de cargos de alta tecnologia disponíveis é tão grande que nenhum programa de treinamento poderia vir a atualiar de forma adequada o desempenho profissional de trabalhadores, para que estivessem à altura do número limitado de oportunidades de cargos especializados que existem.12 O avanço da tecnologia apontado como o principal motivo da eliminação de postos de trabalho na indústria, tem agora na tecnologia da informática e da comunicação a responsabilidade pelo desaparecimento de várias categorias de ocupação. O setor de serviço, que absorvia a mão-de-obra liberada na indústria, também está sendo invadido por novas tecnologias e, por isso, não consegue gerar postos de trabalho em quantidades suficientes para impedir o crescimento do desemprego. Portanto, alguma reforma nos instrumentos que restaram e que ainda resguardam os direitos dos trabalhadores, inquestionavelmente, eliminará por definitivo a segurança do trabalhador em manter-se empregado. Dessa forma, acentuam-se debates reformistas equivocados, transferindo-se as soluções dos problemas para o empreendedorismo; ataca-se na maioria dos discursos como sendo a criação do próprio negócio a redenção do desemprego. Modismos da irresponsável administração da realidade, que se reduz à lei do mínimo esforço, comprometida pela ignorância imposta à maioria da população, em que a comunicação espúria utilizada pela maioria dos veículos comprometidos da nação 12 RIFKINS, Jeremy. O fim dos empregos. São Paulo : Makron Books, 1996. p. 38 65 aniquila qualquer mudança que venha favorecer a manutenção do emprego no Brasil. O desemprego transformou-se no maior dilema para os trabalhadores. A maioria das pesquisas tem demonstrado essa dura realidade, porque o emprego, ainda, não é entendido como um direito (o trabalhador desconhece os mecanismos para a sustentação de seu direito ao trabalho). Com as atuais políticas desenvolvidas pelo governo, o problema tenderá a aumentar. 3.1 Oferta da força de trabalho segundo diagnóstico governamental Segundo dados oficiais, a população brasileira vem crescendo ao ritmo de 1,5% ao ano, com desaceleração no crescimento populacional, da qual a grande responsável é a queda na taxa de fecundidade. Entretanto o governo reconhece que a população economicamente ativa vem apresentando crescimentos anuais a taxas estimadas de 2,7%, superior não apenas ao da população como um todo, mas também ao da população em idade ativa (10 anos ou mais), que se vem expandindo à taxa média de 2,0% ao ano. Isso significa que, para os anos iniciais do novo século, a taxa de participação na força de trabalho, ou seja, a percentagem da população em idade ativa que está ocupada ou procurando trabalho, manterá, segundo as projeções, tendência de crescimento. Em seis áreas metropolitanas (Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre), a força de trabalho cresceu 2,2% entre janeiro de 1997 e janeiro de 1998, puxada pelo acréscimo de pessoas desocupadas ou procurando trabalho. Esses dados revelam, segundo análises do próprio governo13, que a busca por trabalho, particularmente nas principais áreas metropolitanas, continua intensa em decorrência da dinâmica demográfica que conduziu, no País como um todo, a um crescimento da população em idade ativa a uma taxa anual média de 2,1% de 1992 em diante. Convém ressaltar a existência de controvérsias levantadas pelo DIEESE sobre as taxas de desemprego no Brasil, resultando em diferenciações nas taxas determinadas pela Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED), da Fundação Seade/DIEESE e a Pesquisa Mensal de Emprego (PME), do IBGE, que expressam diferentes conceitos metodológicos, quanto à forma de organização e funcionamento do mercado de trabalho urbano brasileiro.14 Para o DIEESE, o método estatístico deve ser adequado às características do País em que se desenvolve a pesquisa. Os levantamentos e informações devem contemplar a própria realidade do País, diferindo dos referenciais adotados em outros países. A diferenciação recai não apenas sobre o desemprego aberto (procura ativa de trabalho nos últimos 30 dias, conceito utilizado na maioria das pesquisas realizadas em diversos países), porém no reconhecimento do desemprego oculto pelo trabalho precário (entendido como o tipo de desemprego em que a pessoa desempregada a um determinado tempo – seis meses, por exemplo – já tendo o seguro-desemprego encerrado, em troca de uma remuneração, sujeita-se a trabalhos fora de sua habilidade ou mesmo especialidades) e do desemprego oculto pelo motivo do desalento (entendido como o tipo de desemprego em que a pessoa desempregada a um determinado tempo – oito meses por exemplo – não encontrando trabalho na cidade em que mora, desistiu de procurar no mês passado, embora ainda precise trabalhar).15 13 www.mtb.gov.br: Emprego no Brasil – diagnóstico e políticas, 22/10/1999. 14 www.dieese.org.br: Controvérsia sobre taxas de desemprego no Brasil, 22/10/1999. 15 www.dieese.org.br. Op. cit., 20/10/1999. 66 Na região metropolitana de São Paulo, onde se obtém importante sinalização sobre o ritmo de emprego e desemprego no Brasil e utilizando-se a metodologia proposta pelo DIEESE e Fundação Seade, por intermédio da Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED), o que possibilita extrair maior confiabilidade nas informações, a taxa de desemprego total para o ano de 1999 (estimativa para 19,4%) deverá ficar acima à do ano de 1988 (18,2%). A taxa de desemprego aberto deverá registrar também um aumento (12,2%, em 1999), ainda que pequeno em relação ao ano de 1988 (11,6%). A taxa de desemprego oculto pelo trabalho precário em 1999 estimase em torno de 5,1% superior a 1988, que ficou em 4,6%. A taxa de desemprego oculto pelo motivo do desalento também deverá apresentar um índice superior em 1999 (2,1%) em relação a 1988 (1,9%). Com base no último informativo do DIEESE, o de novembro de 1999, a taxa de desemprego total para as principais regiões metropolitanas, no período outubro-98/outurbro99 registrou um resumo de dados preocupante, conforme se pode constatar na tabela 1. Ainda que alguns números não estejam disponíveis, em outubro de 1999 a taxa média de desemprego total para as seis principais regiões metropolitanas objeto de estudo pelo DIEESE se repetiu, caracterizando a rigidez com que se depara a economia brasileira, após sua inserção no neoliberalismo. A qualidade da força de trabalho é também baixa, levando-se em conta os padrões internacionais. As estimativas da média de escolaridade da PEA (10 anos ou mais) indicam que ela se elevou de menos de 4 para 6,4 anos desta década (segundo PNAD de 1996, 6 anos para homens e 7 anos para mulheres). Argentina e Chile, em 1992, já detinham uma média de escolaridade acima de 8 anos. Os níveis de escolaridade muito 67 baixa da força de trabalho brasileira constituem uma séria desvantagem em uma economia aberta e competitiva, uma vez que os novos paradigmas tecnológicos e organizacionais são intensivos em conhecimento. Jamais se deve perder de vista o comportamento histórico do Estado brasileiro no que concerne ao aprimoramento da educação. Durante a década de 70, por exemplo, a transnacionalização do capital, de origem norte-americana, na busca de sócios para fazer frente à Guerra Fria, combatendo o crescimento do socialismo no mundo, abre uma ampla frente de financiamento das economias subdesenvolvidas, em que se insere o Brasil. É nesse contexto que todas as regras do ensino brasileiro passam a enfrentar transformação, gerando de maneira rápida e eficaz um contingente de mão-de-obra qualificado capaz de fazer frente à demanda das multinacionais da época. De forma indiscriminada e irreal projetou-se o ensino no Brasil, e isso se mantém até os dias atuais. Já obsoleto e inadequado, não mais se amolda às novas necessidades do País, tendo em vista que o modelo de financiamento da economia brasileira não mais corresponde à realidade. Contudo os modelos se repetem e, como o Brasil politicamente sempre assumiu posicionamento cosmopolita em seu contexto econômico, privilegiando o capital externo como fonte primária de financiamento da produção e dos gastos públicos, novamente vai à busca da mão-de-obra, que se encontra despreparada a exemplo do passado, e deverá produzir os mesmos efeitos, apenas com a diferença de que nos dias atuais as economias se encontram globalizadas (aí se explica por que cresce recentemente no Brasil o “negócio lucrativo” denominado MBA). Afinal a grande diferença, tendo em vista os significativos avanços da tecnologia, é a busca de um profissional generalista, “que entenda de tudo”, fale dois ou mais idiomas e que ao final seja “espiritualizado” na empresa. 3.2 Demanda da força de trabalho Dentro desse contexto inquietante e desanimador, o que ficam são reações e contra-reações. Todos os anos, uma quantidade enorme de jovens ingressam no mercado de trabalho. A economia do País deveria criar, pelo menos, um número de novas vagas equivalentes. No entanto, o que tem ocorrido é uma diminuição dos postos de trabalhos. Somente nas seis principais regiões metropolitanas do País, o DIEESE identificou, em outubro de 1988, antes do efeito Hong Kong, a existência de 2 milhões, 313 mil e 600 desempregados, um número equivalente a 16,34% da população economicamente ativa nas regiões pesquisadas, levando-se em conta que a taxa de desemprego total atingiu índice superior, para o mesmo período. No final do mês de outubro de 1999, só na região metropolitana de São Paulo, o contingente de desempregados chegou a 1,5 milhão, segundo pesquisa Seade/DIEESE. Se a taxa registrada em outubro for estendida para o País, em uma população economicamente ativa de 70 milhões de pessoas, o Brasil atingiria 11 milhões 438 mil desempregados. Para relembrar, isso aconteceria em um país em que os cidadãos se encontram desprotegidos. Sob esse aspecto, o gasto social previsto por habitante no Brasil é US$ 130,00 ao ano. Países como Argentina e Uruguai destinam US$ 457,00 e US$ 488,50, respectivamente. Mantidas as atuais políticas, o destino do Brasil é a construção de um país 68 cada vez mais violento, selvagem e desigual. Dessarte, a sobrevivência material da maioria dos brasileiros encontra-se em franca crise. Por isso o combate ao desemprego deve se transformar em uma luta contínua e crescente em defesa da sobrevivência de valores como solidariedade, justiça e democracia. 3.3 Políticas recentes – reformas que o governo busca Segundo o governo brasileiro a melhor política de emprego é o crescimento econômico sustentado. Na continuidade, é preciso chegar-se à conquista definitiva da estabilidade. Assim, com inflação, o crescimento não consegue atingir índices satisfatórios. Desse modo, segundo ele, é premente que reformas administrativa, previdenciária e tributária venham de encontro com a erradicação definitiva das causas primárias da inflação, que estão condicionadas ao término do déficit público. Dessa forma, a sustentação da atual política macroeconômica constitui a base sobre o qual se assentam as possibilidades de um crescimento sustentável. O direcionamento do governo brasileiro sobre a economia é, inegavelmente, o impedimento à retomada da inflação. Com efeito depreende-se da argumentação e da práxis a tese empírica de Phillips no que diz respeito à taxa de inflação e de desemprego. Logo o desempenho da economia do Brasil será maior ou menor, conforme o interesse pelo desenvolvimento de políticas públicas geradoras de emprego, desde que não gere inflação. Segundo a teoria econômica16 a diferença entre a taxa de desemprego efetiva (defini-se como a diferença entre o total de trabalhadores dispostos e capazes de trabalhar) e a taxa de desemprego natural (é a taxa de desemprego que existe em uma situação de equilíbrio de longo prazo) evidencia a existência da relação inversa entre inflação e desemprego. Ao se pretender diminuir o desemprego, o que resultará é o aumento da inflação e vice-versa. O combate à inflação exige ampliação do desemprego ou, como afirmam os economistas do governo, é preciso que a sociedade se imponha um certo grau de sacrifício, para que seja possível uma clara visualização dos níveis de oferta agregada e demanda agregada e a busca do equilíbrio. Ora a economia brasileira desconhece o pleno emprego. Fazer suposição de que aumentos na demanda agregada (dispêndio total por bens e serviços) não venham exercer algum efeito sobre o nível geral de preços, enquanto a economia não alcança o nível de produção de pleno emprego, é fantasiar sobre a realidade considerando a complexidade da economia brasileira. Suponha-se uma economia em que as curvas de demanda e oferta agregradas sejam dadas como D1 e O1. Se por alguma razão os produtores de suprimentos (matériasprimas, embalagens etc.) elevarem os preços dos bens essenciais, a curva da oferta agregada se elevará para O2. Acontecerá um novo equilíbrio no nível de renda menor Y1 a um preço médio mais elevado de P1. Logo, em um nível constante de demanda agregada, qualquer elevação sobre o preço de oferta de bens e serviços resultará em aumento de preço médio da produção seguido de diminuição de seu nível.17 O gráfico a seguir representa o entendimento proposto, quando se compara o desequilíbrio da economia à tese empírica de Phillips, o que resulta em quebra dos salários reais e do desempenho dela. 16 VASCONCELLOS, M. A. S.; LOPES L. M. Manual de macroecnomia. São Paulo : Atlas, 1998. 17 SALVATORE, D.; DIULIU E.; CAMPIRO A.; COMUNE, A. Introdução à economia. São Paulo : MacGraw Hill, 1981. 69 preços médios O2 P1 W1 O1 P0 % variação anual de salários W0 D1 0 Y1 Y0 produção real Fica patente o redirecionamento do governo de Fernando Henrique Cardoso para as benesses da escola monetarista, em que a solução, segundo seus correligionários, passa unicamente pela regulação do mercado, que, entre a oferta e a demanda monetária, possa estabelecer mecanismos que conduzam, da mão invisível de Adam Smith, a princípios e valores, ao crescimento econômico, à melhoria da qualidade de vida e à geração indistinta de trabalho. Nesse contexto, a adoção de ações visando às reformas está citada a seguir. a. Organização sindical e negociação coletiva: nesse caso, o governo visa promover o fortalecimento dos sindicatos como entidades que representam os trabalhadores. Por outro lado, ao enxergar que as negociações coletivas exigem um sindicalismo forte e audaz, contraditoriamente induz a mudanças profundas no tocante à sua organização e à sua forma de financiamento. Ao mesmo tempo em que reconhece nos sindicatos o órgão máximo de representação dos trabalhadores, impõe novas regras, que acabem com a contribuição compulsória que, segundo ele, é um monopólio que estabelece a principal dependência dos sindicatos ao Estado. Isso significa levar à perda da autenticidade e conseqüentemente à destruição da sua legitimidade. b. Contrato por prazo determinado: segundo o governo, constitui-se uma forma de estimular o emprego, porque se amplia o leque de possibilidades quanto a contratos de trabalho que reduzem os custos de admissão e de demissão. Acredita o governo que aí está uma forma moderna de assegurar direitos adequados às características de uma economia aberta e competitiva. É a tentativa espúria de se diminuir o valor real dos salários, uma vez que não há nenhuma garantia por parte do trabalhador de angariar a remuneração necessária à sua sobrevivência e, em linhas gerais, tampouco de obter emprego. Outro aspecto de grande relevância é o fato de que uma medida dessa natureza, vindo em momento de excesso de oferta de mão-de-obra, ampliará ainda mais os níveis de desvantagem do trabalho em relação ao capital. Acaba sendo uma exigência em que os trabalhadores, para terem carteira assinada e se beneficiarem de algum direito, se obrigam a essa realidade cruel e selvagem. c. Redução e flexibilização da jornada de trabalho: conforme crê o governo, tais mecanismos buscam reduzir os impactos das flutuações de demanda e das crises conjunturais das empresas sobre o nível de emprego. É sintomático das crises do capitalismo. O que não se pode, nem se deve aceitar, é considerar o desemprego um problema individual e que sua solução passe somente pelo âmbito do mercado de trabalho. Em uma análise muito desinteressada do 70 problema, mesmo considerando que o desemprego atinge amplos setores da classe trabalhadora no mundo inteiro, os responsáveis pelo problema continuarão sendo sempre os governos federal e estadual e o segmento de alianças que os sustenta. d. Redução do custo não salarial do trabalho: aqui talvez se salve alguma coisa no que tange à política macroeconômica de correção. Os encargos sociais, sem sombra de dúvidas, afetam em muito o custo do trabalho, cujo nível e variação, em função da taxa de câmbio e do crescimento da produtividade, podem ser decisivos para a elevação do grau de competitividade da economia no seu todo. Ele entende que é preciso reduzir o peso fiscal sobre a folha de pagamentos, o que contribuirá para reduzir o custo Brasil. É bem verdade que recentemente o governo vem desenvolvendo mecanismos fiscais próprios para as pequenas empresas, e estas já obtiveram uma certa folga tributária. e. Contrato temporário: o que o governo pretende é regulamentar a instituição do trabalho tipicamente terceirizado (ampliar a prestação de serviços a terceiros). Sem dúvida alguma, essa, então, será a forma mais perversa de eliminação de emprego, uma vez que possibilitará às empresas, sob a proteção da concorrência e do aumento da produtividade, o descarte de trabalho sem critério algum ou simplesmente determinado por interesse que na maioria das vezes será unilateral. Se algo dessa natureza prevalecer em definitivo, a malfadada supremacia do capital sobre o trabalho será uma realidade insofismável. f. Cooperativas de trabalho: a busca de regulamentação por parte do governo sobre essa modalidade de trabalho, vem de encontro ao aparecimento de falsas cooperativas que acabam por penalizar o trabalhador, ao invés de auxiliá-lo na consecução do trabalho. O que acaba por ocorrer é uma forma de exploração, em que a organização se prevalece dos benefícios, acabando por não repassálos ao trabalhador. g. Lei do serviço voluntário: institui-se o trabalho voluntário sobre o qual não incidem encargos sociais e trabalhistas. Essa é uma modalidade de trabalho que acontece na grande maioria dos países. Contudo, a exemplo do “estágio” remunerado, que no Brasil se transformou em uma modalidade de emprego (disfarce encontrado para se reduzir direitos trabalhistas) e largamente utilizada pela maioria das empresas. O cuidado que se deve ter com o serviço voluntário é procurar eliminar a mínima possibilidade de que venha se transformar em uma forma de emprego, porque seguramente não o é. Em suma, diante a tudo o que ficou exposto, a realidade quanto ao desemprego no Brasil é resultante do encontro de dois processos. Em primeiro lugar, do aumento da produtividade do trabalho, sem que seja distribuído eqüitativamente, por meio de melhores salários e/ou redução de jornada, provocando um aumento na taxa de lucro e uma diminuição na oferta de emprego. Em segundo lugar, da política de integração subordinada da economia brasileira às economias centrais somadas aos efeitos da sobrevalorização do real, implicando uma redução por meio de juros altos e de importações predatórias. Assim, além de perderem o emprego, os trabalhadores vêm perdendo em qualidade na sua relação de trabalho. Entre 1989 e 1997, a taxa de desemprego total em São Paulo medida pela Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED), desenvolvida pelo DIEESE, saltou de 7% para 16,6%. No mesmo período, emprego em carteira assinada no setor privado 71 diminuiu 18,9%, enquanto o dos assalariados sem carteira assinada cresceu em 65,6%. As principais vítimas da política governamental, os trabalhadores, ainda não conseguiram desenvolver mecanismos que possibilitem a reversão. O mais grave é que, quanto mais o desemprego aumenta, piores são as possibilidades de luta e conquistas. O desemprego desorganiza a classe, a individualiza e deixa à mercê do setor patronal. Nesse quadro, o emprego, apesar de inscrito na Constituição como um direito social, assim como a saúde e a educação, não é visto como tal pelos trabalhadores. Ainda se sustenta que o desempregado é um incompetente, um “desocupado”. Lamentavelmente aí está a cultura de que o desemprego é um problema único e exclusivo do desempregado. Por essas e outras as razões, considerar-se o desemprego no Brasil como um problema irreal é muito antigo e cultural. Para os refrões e discursos que provêm das diferentes organizações, sejam governamentais ou empresarias, os únicos culpados da importante diminuição de postos de trabalho seriam os próprios trabalhadores e as novas tecnologias. Os trabalhadores, porque não acompanham a evolução tecnológica, conseqüentemente, não se reciclam, logo estariam ganhando muito e, com isso, levando os empresários e governo a demiti-los, substituindo-os por máquinas, os computadores e as novas técnicas, porque estes seriam os verdadeiros responsáveis pelo desemprego, mas contra os quais nada pode ser feito. Ao final, ao desempregado restaria apenas o preço a pagar pela modernidade e pela “boa vida” que estaria tendo. Concordando com Aloízio MERCADANTE, a realidade que fica é uma só: [...] os desempregados vão cortando todos os gastos com os filhos; muitas vezes os próprios laços familiares vão se desfazendo na sensação permanente de impotência que os acompanha. Os novos e modernos economistas escrevem artigos, dão entrevistas e fazem um imenso esforço teórico para romper uma tradição que tinha em J. M. Keynes e tantos outros economistas do passado uma verdadeira obsessão com o pleno emprego. A economia teve um dia no emprego um grande objetivo; hoje é um subproduto. A economia do trabalho tem pouco espaço acadêmico neste mundo neoliberal, semelhante ao espaço que o mundo do trabalho tem tido neste governo.”18 Afinal o que vem a ser o trabalho no capitalismo global senão o sentido de velha mercadoria comum e reciclável aos interesses hoje da tecnologia amplamente internaciolizada e concentrada? Onde esta rão as reais e verdadeiras políticas de empregos do atual governo para fazer frente a essa realidade? Em concordância com Ofelia Stahringer de CARAMUTI 19, em seu texto “El nuevo ordem mundial y La Integracion del Cono Sur Americano em Los `90”, quando na análise do contexto internacional e regional confirma a regra básica e imprescindível regulação das estruturas de mercado, onde, pero la imensa tarea que impone la redefinición del modelo de crescimiento e inserción no puede dejarse librada al exclusivo juego de las fuerzas del mercado; resulta imprescindible que los lineamientos estratégicos de un nuevo patrón de crescimiento sean acompañados desde el Estado para orientar el esfuerzo productivo y de inversión. 18 www.alternet.com.br: MERCADANTE, Aloízio. Carta aos inimpregáveis, 22/10/1999. 19 CARAMUTI, Ofelia Stahringer. “El nuevo ordem mundial Y La integración del Cono Sur Americano em Los ‘90”, palestra realizada no Iº Curso de Pós-Graduação em Direito Internacional – Mercosul. Curitiba, ago./set. 1995. 72 BIBLIOGRAFIA ROSSETTI, J. P. Introdução à economia. 17. ed. São Paulo : Atlas, 1996. RIFKINS, Jeremy. O fim dos empregos. São Paulo : Makron Books, 1996. PINHO, Diva B.; VASCONCELLOS, M. A. S. de (org.) Manual de economia, 3. ed. São Paulo : Saraiva, 1998. BAUMANN, Renato (org.) O Brasil e a economia global. São Paulo : Campus, 1996. BRUM, Argemiro J. O desenvolvimento econômico brasileiro. 11. ed. Petrópolis : Vozes, 1991. PEREIRA, Luiz Bresser. Economia brasileira – uma introdução crítica. 9. ed. São Paulo : Brasiliense, 1991. VEJA, ed. 1438, n. 14, 3 de abril. São Paulo : Abril, 1996. VEJA, ed. 1533, n. 6, 11 de fevereiro. São Paulo : Abril, 1998. VEJA, ed. 1628, n. 50, 15 de dezembro. São Paulo : Abril, 1999. VEJA, ed. 1627, n. 49, 8 de dezembro.São Paulo : Abril, 1999. MANDEL, Ernest. O capitalismo tardio. São Paulo : Victor Civita, 1982. SELDON, Arthur; PENNANCE, F. G. Dicionário de economia. Rio de Janeiro : Bloch, 1968. PORTER, Michael. Vantagem comparativa das nações. São Paulo : Campus, 1993. VASCONCELLOS, Marco A. S.; LOPES, Luiz M. Manual de macroeconomia. São Paulo : Atlas, 1998. SALVATORE, Dominick; DIULIO, Eugenio; CAMPINO, Antonio; COMUNE, Antonio. Introdução à economia. São Paulo : McGraw-Hill do Brasil, 1981. www.direitohumano.usp.br/documentos/oit/convenção sobre política de emprego.html Convenção sobre a política de emprego n. 122 de 09 de julho de 1964 www.bancnet.com.br/prosa5/conjunt4.html. Conj. 4. Horror no fim do século www.alternex.com.br/users/miltermer/tribuna debates/33.html Cartas aos inimpregáveis, Aloízio Mercadante. www.dn.senai.br/sb22/doc2.html. Desemprego: questão para um amplo debate. Fernando Bezerra 73 www.mtb.gov.br/public/mercado/merc 02 4.html. Mercado de trabalho brasileiro – tendências (desemprego e informalidade). www.fortalnet.com.br/arturbruno/pesquisa/brasil/pesqbr08.html. Como está a situação do emprego no Brasil? www.arturbruno.com.br/pesquisa/brasil/pesqbr11.html. Pesquisa do IBGE confirma agravamento das desigualdades sociais no Brasil www.mtb.gov.br/public/emprego/emp idx.html. Emprego no Brasil: diagnósticos e políticas. www.dieese.org.br/ped. Pesquisa de emprego e desemprego na região metropolitana de São Paulo. 74 RELAÇÕES ENTRE BRASIL E ESTADOS UNIDOS NO SÉCULO XIX Bianca Carvalho Pazinatto Ella Souza Freitas Jorge Luis Marques Ferreira Acadêmicos do 3º período do curso de Relações Internacionais das Faculdades Integradas Curitiba SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Relações entre Brasil e Estados Unidos: 1800-1822. 3 Relações entre Brasil e Estados Unidos no Primeiro Reinado e Período Regencial. 4 Relações entre Brasil e Estados Unidos no Segundo Reinado. 5 Questão Amazônica. 6 Papel das missões protestantes nas relações entre Brasil e Estados Unidos no século XIX. 7 Conclusão. Bibliografia. 1 INTRODUÇÃO As relações entre Brasil e Estados Unidos no século XIX é o tema tratado nesta pesquisa. Desde os primeiros anos desse século até a queda do Império em 1889, levantamos dados referentes aos acontecimentos envolvendo o Brasil e os Estados Unidos. O início das relações diplomáticas, os primeiros acordos, os incidentes, enfim, no período de 1800 a 1889, estudaremos os acontecimentos que envolveram esses dois países. Primeiramente faremos uma análise das relações entre Brasil e Estados Unidos nos primeiros vinte e dois anos do século XIX. Destacaremos os primeiros relatos comerciais e o início do interesse americano no Brasil, ainda colônia, e sob forte influência britânica. No capítulo referente ao Primeiro Reinado e Período Regencial, observaremos os primeiros anos do Brasil independente e sua política externa que mesmo sob influência inglesa já começava a se aproximar dos Estados Unidos. Nas relações entre Brasil e a potência do Norte no Segundo Reinado, discutiremos os principais incidentes e poderemos notar a independência da política externa do Império, que gradativamente se afastou da órbita britânica e se aproximou da norteamericana. Destacamos nesse período a Questão Amazônica como um dos principais acontecimentos envolvendo o Brasil e os Estados Unidos no século XIX e o papel das missões protestantes americanas no território brasileiro, com ênfase no projeto de alguns missionários em “protestantizar” o Brasil. Entendendo um pouco mais as relações diplomáticas poderemos compreender o porquê da aproximação aos Estados Unidos, a conjuntura econômica do Brasil Império e as mudanças ocorridas no fim do século XIX. 75 2 RELAÇÕES ENTRE BRASIL E ESTADOS UNIDOS: 1800-1822 Após a Guerra de Independência, os Estados Unidos passam a figurar definitivamente no cenário internacional. Os ideais republicanos começam a se espalhar pelo restante da América, inaugurando uma fase histórica fundamental para se entender a atual conjuntura americana. Para que possamos entender a ascensão norte-americana, recorremos aos estudos de Celso Furtado. Em sua análise a respeito do desenvolvimento econômico dos Estados Unidos podemos perceber claramente a importância do processo industrial, colocado em prática já antes da independência pela Grã-Bretanha, que diante do fracasso da tentativa de introdução de um sistema agroexportador, acaba instalando na colônia indústrias que não competissem com as existentes na Europa. O desenvolvimento da colônia, auxiliado pela necessidade interna de fomentar a produção, surpreende. Um dos fatores que mais contribuiu para impulsionar o crescimento econômico norteamericano foi o avanço da indústria naval, pois era por meio dos navios que escoava o excedente da produção industrial, criado pelo forte estímulo à produção interna provocado pela independência. Emergia na América uma nova potência que voltava seus interesses principalmente para as nações latino-americanas da época. Os anseios republicanos já eram notados no Brasil desde a Inconfidência Mineira. A partir daí, a influência norte-americana cresce gradativamente, de início tímida diante dos interesses britânicos e depois marcada pelo forte interesse imperialista. Segundo Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno, os primeiros relatos americanos de comércio entre Brasil e Estados Unidos datam de 1802. Até por volta de 1808, as relações comerciais revelaram-se tímidas, principalmente por causa da dominação portuguesa, que mantinha o Brasil subjugado ao regime colonial. A vinda da família real e a abertura dos portos brasileiros despertam ainda mais o interesse norte-americano. Em 1809 foram enviados Henri Hill e Thomas Sunter Jr. com o objetivo de dar boas-vindas à Corte. Mas a tentativa de aproximação dos Estados Unidos ao Brasil esbarrava sempre na hegemonia britânica. Segundo Demétrio Magnoli, o Brasil, ainda sob domínio português, era obrigado a obedecer às regras estabelecidas em tratados firmados com a Grã-Bretanha. Exemplo disso foram os Tratados de Methuem1 e o de Utrecht2. Os interesses norte-americanos enfrentavam barreiras fortíssimas, principalmente após os Tratados de 1810 3, quando a Grã-Bretanha obteve vantagens alfandegárias. Para Cervo e Bueno, os entraves impostos nas relações comerciais com os 1 Acordo comercial firmado, em 1703, entre Portugal e Inglaterra, em que os lusitanos ficariam livres da ameaça de dominação franco-espanhola, mas que estabeleceu a dependência econômica com relação à Inglaterra. 2 Foi responsável pela hegemonia marítima e comercial da Inglaterra no século XVIII. 3 Foram dois acordos firmados entre Portugal e Inglaterra. O primeiro de Amizade e Aliança e o segundo de Comércio e Navegação. 76 Estados Unidos fazem com que os norte-americanos voltem seus interesses ao apoio nas revoltas contra o Império, como, por exemplo, na resistência de Artigas4 no Uruguai, em 1817, e na Revolução Pernambucana no mesmo ano. Nesta última, os Estados Unidos serviam como um modelo republicano que deveria ser seguido pelas futuras nações que desejassem um regime democrático de governo. Segundo Kahler, a revolução estava diretamente voltada aos interesses republicanos e fez os norte-americanos reviverem o seu próprio passado. Pernambuco foi um dos primeiros centros brasileiros de riqueza e prosperidade, onde se notava claramente um forte sentimento nacionalista. Kahler ainda ressalta a importância estratégica da região por sua proximidade com os Estados Unidos. A influência americana na Revolução de Pernambuco, mesmo obviamente notada, não fora oficialmente reconhecida, porque não havia certeza da durabilidade do governo provisório de Pernambuco e porque os Estados Unidos mantinham cordiais relações diplomáticas com Portugal que até aquela data exercia a dominação sobre o Brasil. No início da década de 20, o Brasil caminhava para a independência. Moniz Bandeira destaca três importantes fatos que deixavam cada vez mais em evidência a necessidade de autonomia em relação a Portugal: as revoltas regionais, a expansão da Revolução Liberal e a crescente insatisfação da opinião pública. Os Estados Unidos apoiavam a independência, e o Brasil deixava transparecer o interesse na aproximação com os norte-americanos. D. Pedro procurava a simpatia dos Estados Unidos sempre contornando os incidentes provocados por representantes americanos. 3 RELAÇÕES ENTRE BRASIL E ESTADOS UNIDOS NO PRIMEIRO REINADO E PERÍODO REGENCIAL Em 1822, o Brasil torna-se independente. D. Pedro é coroado imperador, estabelecendo na América a única monarquia da época. Para Magnoli, os Estados Unidos viam com bons olhos a independência, porém a instalação do regime monárquico não era considerada a mais apropriada, sendo criticada pelos norteamericanos. O regime era considerado “anômalo” que se diferenciava totalmente dos modelos republicanos das nações hispano-americanas da época. A Monarquia era vista como uma extensão dos reinos europeus e ameaçava o bem-estar do Novo Mundo.5 Por isso, o Brasil passa por um período de grande isolacionismo em relação aos vizinhos sul-americanos, enfrentando revoltas internas pela instauração da República e também pela emancipação política. Os dois primeiros anos após a Independência foram marcados pela instabilidade política do País. Bandeira destaca nesse momento a guerra civil do Nordeste brasileiro como a principal revolta. Essa guerra culminou com a proclamação da Confederação do Equador em 1824, por Manuel de Carvalho. 4 Militar e político uruguaio que dirigiu operações de guerrilhas durante a guerra de independência uruguaia. 5 O conjunto das Américas, em oposição ao Velho Mundo. 77 Mesmo diante de um quadro político interno de instabilidade, os Estados Unidos são o primeiro país a reconhecer o Brasil independente, em maio de 1824. Delgado de Carvalho destaca a Missão Silvestre Rebelo como responsável pelo sucesso quanto ao reconhecimento. Seu objetivo principal era o de “promover o ‘reconhecimento solene e formal da independência, integridade e dinastia do Império do Brasil.” (CARVALHO, 1959, p. 37.) Kahler ressalta as instruções dadas a Rebelo de tentar conseguir dos Estados Unidos a “solidariedade continental” para conter o avanço dos poderes europeus. Além disso, Rebelo deveria desfazer qualquer falsa impressão que o governo dos Estados Unidos tivesse formado por meio dos relatórios exagerados feitos pelo cônsul americano, Raguet. As relações diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos, marcadas quase sempre pela priorização dos interesses comerciais, podem ser consideradas como oficiais a partir do ano de 1822, quando chegam ao Brasil o Ministro John Graham, o Cônsul Henri Hill, além de Condy Raguet, responsável pela Repartição de Negócios Estrangeiros e pelos principais incidentes diplomáticos do período. A partir de então, os interesses norte-americanos no Brasil foram dia após dia ganhando terreno, mas esbarrando sempre na hegemonia britânica. A ameaça da reaproximação com a Europa, por intermédio dos interesses da Santa Aliança6 faz com que, em 2 de dezembro de 1823, o presidente dos Estados Unidos, James Monroe, declare a Doutrina Monroe, numa tentativa de afastar as pretensões européias. Apoiado por Quincy Adams, Henry Clay e pelos antigos presidentes Jefferson e Madison, pretendia uma declaração conjunta entre os Estados Unidos e Grã-Bretanha. Segundo Delgado de Carvalho, na Doutrina Monroe destacaramse dois princípios: o da não-intervenção em questões européias e o do não-restabelecimento de colônias européias na América. Moniz Bandeira destaca ainda que no Brasil, nessa época, os norte-americanos tentavam convencer o imperador a usar a Doutrina Monroe como meio de evitar que França e Inglaterra obtivessem vantagens, como as obtidas por Portugal. Para Delgado de Carvalho, outra aplicação da doutrina em questões envolvendo o Brasil aparece em 1827, quando as Províncias Unidas do Prata7 consultam os Estados Unidos no apoio contra o Brasil e “a ameaça européia”. A Doutrina Monroe foi alvo de diferentes interpretações, que eram responsáveis pelos ideais de cooperação e proteção continental surgidos nessa época. Uma dessas interpretações, feitas pelas principais lideranças do Império, fora responsável por outro aspecto da incumbência de Silvestre Rebelo, de 1824. Além do reconhecimento da Independência, Rebelo deveria sondar uma possível aliança defensiva e ofensiva com os Estados Unidos, para garantir a soberania dos povos americanos, assegurando a paz no continente e afastando de vez a ameaça do projeto de reconquista da América pela Santa Aliança. Em 1824 os Estados Unidos reconhecem a Independência do Brasil que, segundo Kahler, apresentava um alto grau de unidade e estabilidade superior à apresentada na América Espanhola. Essas considerações seriam suficientes para superar os preconceitos antimonárquicos e para induzir os Estados Unidos a receber o Brasil com status de uma nova nação americana. No Rio de Janeiro, Condy Raguet estremecia as relações diplomáticas entre 6 Pacto de fraternidade e assistência mútua firmado em Paris, em 1815, entre Alexandre I (Rússia), Francisco I (Áustria) e Frederico Guilherme III (Prússia). 7 Nome dado às províncias que constituíram pela Assembléia de Tucumán (1816) a República Argentina, proclamando sua independência da Espanha. 78 Brasil e Estados Unidos. Suas declarações, nas quais utilizava uma linguagem ofensiva, provocaram uma série de incidentes. Em 1826, Raguet declara em despacho ao Secretário de Estado Norte-americano, Henry Clay: “Now is the moment to make this government (brasileiro) feel the influence which we are destined to maintain in this Hemisphere of Liberty and if it is desirable to negociate a treaty of commerce, perhaps now is the moment when the footing of the most favored nation might be obtained as the price of reconciliation.” (RODRIGUES, 1995, p. 139.)8 Para Moniz Bandeira, o cume dos incidentes diplomáticos acontece com o apresamento do navio Spark, acusado de servir de corsário a Buenos Aires. Por trás desse acontecimento estava a questão do bloqueio do Prata. “Raguet, como tantos outros americanos, que serviram no Brasil, confundiam, porém, firmeza e energia com ameaça, provocação, insulto e prepotência. Como empresários eram diplomatas. Como diplomatas, empresários.” (BANDEIRA, 1978, p. 62-63.) Os norte-americanos tentaram por toda lei romper o bloqueio do Prata, que prejudicava as firmas americanas estabelecidas no Brasil. Com isso, aproximaram-se da Argentina, pois viam no Império os interesses da Grã-Bretanha. Acreditavam ser a única forma de conter a hegemonia da potência européia. Desse ato vem a suspeita do envolvimento norte-americano na resistência de Artigas, no Uruguai. O incidente do apresamento do Spark foi o responsável pelo rompimento das relações diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos. Raguet utilizava uma política de intimidação com o Império, chegando inclusive a ameaçar o Brasil de guerra após a captura do navio Ruth por navios brasileiros. Em 1828, William Tudor é nomeado Encarregado de Negócios Estrangeiros, sucedendo a Raguet. As relações são reatadas e é assinado o Tratado de Amizade, Navegação e Comércio. Com esse tratado, os Estados Unidos passam a ter condições de competir com os ingleses pelo mercado brasileiro. Bandeira destaca o crescimento do comércio com os Estados Unidos entre 1820 e 1830, evidenciado pelo aumento do número de navios americanos nos portos brasileiros. Houve certo equilíbrio na balança comercial dos dois países, mas o tratado de 1828 trazia a expectativa do crescimento das relações comerciais. Em 1835, William Hunter assume o lugar de Tudor. A década de 30 foi marcada pelo crescimento do comércio bilateral, mas com aumento das exportações brasileiras para os Estados Unidos. O saldo portanto era favorável ao Brasil. A Grã-Bretanha começa a perder terreno para outros países, principalmente para a potência do Norte. A política externa do Império começa a mostrar sua força exercendo a soberania e endurecendo nas negociações externas. Segundo Demétrio Magnoli, é somente a partir da década de 40 que o Império começa o afastamento da órbita britânica, assinalando para uma futura política externa significativamente autônoma. 8 Tradução do autor: “Agora é a hora de fazer o Governo Brasileiro sentir a influência que nós pretendemos manter neste Hemisfério de Liberdade e se faz de desejo negociar um tratado de comércio, talvez o momento seja este onde a condição da nação mais favorecida pode ser obtida com o preço da reconciliação.” 79 4 RELAÇÕES ENTRE BRASIL E ESTADOS UNIDOS NO SEGUNDO REINADO O governo de D. Pedro II (1840-1889) foi marcado pela firmeza nas relações internacionais. O período é marcado por uma política externa que se reservava o direito de autonomia na resolução de seus conflitos e evitava assumir compromissos externos. Essa política é evidenciada, segundo Moniz Bandeira, quando o governo imperial opta pela não renovação dos tratados com a Inglaterra e com os Estados Unidos. Isso possibilitou ao Brasil decidir os rumos de sua política externa, caracterizada pelo afastamento da influência britânica e aproximação com os Estados Unidos. Vale ressaltar que, mesmo optando pelo alinhamento com os norte-americanos, as relações entre o Império e a América do Norte sempre estiveram cercadas por cautela e avaliação das atitudes tomadas em relação ao Império. O Segundo Reinado foi um período importante para as relações exteriores. No que diz respeito às relações entre Brasil e Estados Unidos, foi um período povoado por questões diplomáticas que oscilavam entre incidentes, solução de conflitos e estreitamento dos laços econômicos, políticos e culturais. Os Estados Unidos, numa tentativa de forçar o Brasil a renovar o Tratado de Comércio, ameaçava trazer à tona o problema ocorrido com as presas do bloqueio do Rio da Prata. Em 1842, o encarregado de Negócios Estrangeiros é elevado ao cargo de enviado extraordinário e ministro plenipotenciário. O primeiro a ocupar o posto foi William Hunter. Dois anos mais tarde, assume Henry Wise. Durante sua gestão acontece um dos mais importantes incidentes diplomáticos da história das relações internacionais entre Brasil e Estados Unidos, o caso Wise. Para que possamos entender melhor o caso Wise, recorremos aos estudos de Moniz Bandeira e de Delgado de Carvalho. Em outubro de 1846, três marinheiros americanos da corveta Saratoga foram presos, na zona portuária do Rio de Janeiro, quando lutavam, armados com facas. O Tenente Davis resolve reclamar a soltura dos marinheiros e acaba preso, após enfrentar a guarda armado. Dois dias depois é solto, mas os três marinheiros permaneceram presos. Foi o pretexto para o Ministro Wise emitir declarações, acusando as autoridades brasileiras de insultarem o pavilhão americano. Divulgou notas, cujo conteúdo levou a uma reação por parte do governo imperial. O Ministro Wise solicitou uma audiência com o imperador, alegando possuir uma carta do presidente dos Estados Unidos. Essa audiência, a pedido do Barão de Cairu, foi recusada e o governo imperial tomou medidas enérgicas. Exigia reparação da atitude de Wise e sua retirada do País, sob ameaça de expulsão. Wise passou a ser considerado persona non grata. O governo brasileiro ainda retaliou a atitude do ministro brasileiro em Washington, José Maria Lisboa, que havia apresentado um pedido de desculpas ao governo americano. Lisboa foi retirado do posto e, em seu lugar, assumiu Teixeira de Macedo. O secretário de Estado, James Buchanan, considerou a retirada de Lisboa como desatenção e criouse um clima nada amigável. O desentendimento só foi resolvido em 1849, quando Clayton sucedeu a Buchanan. No Brasil, o ministro também mudara. No lugar de Wise 80 estava David Todd. As relações diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos são reatadas, resolvendo-se a questão das presas do Rio da Prata e Pernambuco. O Brasil concorda em pagar as indenizações ao governo americano, que reconhece o direito do governo brasileiro em punir os cidadãos americanos que infringissem as leis do Império, colocando um fim definitivo à Questão Wise. Em 1853, vem para o Rio de Janeiro o Ministro William Trousdale. Nessa missão começam as negociações sobre a Questão Amazônica, que veremos à parte. Quatro anos mais tarde, assume o posto de ministro o General Watson Webb. Nesse período, as relações diplomáticas mantiveram-se cordiais, mas com pequenos pesares. Desenvolvia-se nos Estados Unidos a Guerra da Secessão.9 Os incidentes aconteceram por causa da presença de navios americanos na costa brasileira, os quais se envolveram em conflitos, caso do Flórida que, ao parar na Bahia para abastecer, foi atacado pelo Wachusetts; do navio Alabama que capturou baleeiras na Região Norte do Brasil; e do brigue Carolina, sob o qual Webb conseguiu indenizações remetidas parcialmente ao governo americano. A Guerra da Secessão, que se desenvolveu durante o governo Lincoln, provocara a abolição da escravatura nos Estados Unidos, fato temido pelos brasileiros, porque se poderia criar uma onda abolicionista que se alastraria pelo restante da América. A pressão sobre o governo imperial é notada quando é estabelecida a Lei do Ventre Livre10, assinalando à abolição. A política brasileira em relação à Guerra da Secessão é marcada pela neutralidade. O Império reconhecera, fundamentado no Direito Internacional, a beligerância dos Estados Confederados, atitude duramente criticada por Webb, que via na intransigência brasileira a influência dos ingleses, de quem dependia o Brasil para concluir seus empreendimentos. Após a Guerra da Secessão, os Estados Unidos passaram por um surto de progresso. Segundo Delgado de Carvalho, esse fato poderia ser notado com a presença norte-americana cada vez maior, fortalecida pela onda migratória que se desenvolvia após a abertura do Amazonas e do fim da Guerra Civil americana. Para Cervo e Bueno, essa onda progressista estava evidenciada no crescimento do comércio bilateral. Por volta de 1870, os Estados Unidos já absorviam cerca de 75% das exportações do café brasileiro. Essas condições externas favoráveis criam grandes excedentes que são responsáveis, dentre outros motivos, pela redução de empréstimos brasileiros e pela manutenção de uma economia primária, baseada no modelo agroexportador. Como a atividade econômica primária rendia frutos excelentes, o projeto de desenvolvimento industrial brasileiro foi colocado em segundo plano. Em 1876, D. Pedro II visita os Estados Unidos. Desembarca em New York aos 15 de abril e começa uma jornada que duraria quase três meses. Segundo Lídia Besouchet, a justificativa de viagem do imperador “foi a inauguração, junto com o presidente dos 9 Guerra Civil ocorrida nos Estados Unidos de 1861 a 1865, entre os Estados do Sul e os do Norte, motivada pela abolição da escravatura. 10 Também demoninada Lei Rio Branco, declarava livre os filhos de mulheres escravas nascidos a partir de 1871. Instituía o fundo de emancipação e o pecúlio destinado aos libertos, e libertava os escravos pertencentes à Coroa. 81 Estados Unidos, General Grant, da Exposição Mundial de Filadélfia.” (BESOUCHET, 1993, p. 275.) Mas, além dos compromissos oficiais, D. Pedro II aproveitou a viagem para visitar museus, exposições, teatros e manter contatos com cientistas, artistas e escritores. Sua simplicidade e descompromisso com o protocolo fazem com que o imperador conquistasse “popularidade; a imprensa também se mostrou muito sensível a essa atitude. Com humor, o New York Herald sugeriu uma chapa para as eleições seguintes: ‘para presidente, Dom Pedro II; vice-presidente, Charles Francis Adams’, pois estamos cansados de gente comum e dispostos a mudar de estilo ...” (BESOUCHET, 1993, p. 292.) O entusiasmo econômico da década de 70 foi assinalado pela tentativa, principalmente por parte do governo dos Estados Unidos, de aumentar ainda mais o intercâmbio comercial. Em 1870, a Legação dos Estados Unidos oferecia ao governo imperial várias propostas para um melhor desenvolvimento das relações comerciais com o Brasil, baseando-se no fato de os Estados Unidos serem o maior importador do café brasileiro e superar as importações de toda a Europa. Defendiam a redução da tarifa alfandegária, para que os produtos americanos também tivessem um maior espaço no mercado brasileiro. A proximidade cada vez maior com os Estados Unidos trazia para o Brasil os ideais americanistas.11 As instituições do Império batiam de frente com a crescente influência e absorção do capitalismo industrial. O Brasil mantinha um certo isolamento em relação ao resto do continente, pois cultivava um regime monárquico e uma economia baseada no trabalho escravo. A Monarquia, desde a primeira metade do século XIX, era criticada pelas principais correntes ideológicas pan-americanas. Dentre elas, Demétrio Magnoli e Delgado de Carvalho destacam o bolivarianismo que via no regime monárquico a proximidade com a Europa, o que, sob seu ângulo de pensamento, representaria uma ameaça à autonomia e preservação da paz nas Américas. A opção pela aproximação à órbita norte-americana pelo Brasil pode ser considerada como um dos mais importantes fatores que contribuíram para a hegemonia dos Estados Unidos no Continente Americano, destaca Demétrio Magnoli. Essa mesma aproximação criaria no Brasil um embrião republicano que amadureceria em 1889, com a Proclamação da República. 5 QUESTÃO AMAZÔNICA Desde a década de 20 aconteciam investidas norte-americanas sobre o território amazônico. Moniz Bandeira destaca que é somente a partir de 1840 que o interesse dos Estados Unidos pela região aparece com força. O desenvolvimento industrial da potência americana exigia o expansionismo territorial. Um dos destinos dessa política expansionista era o vale amazônico. A questão consistia na tentativa da abertura do Rio Amazonas à navegação estrangeira. As primeiras missões americanas na região baseavam-se em interesses 11 Ideais abolicionistas e republicanos. 82 puramente científicos. Segundo Bandeira, podem ser considerados marcos do início das discussões em relação à Amazônia as declarações do Tenente Matthew Fontaine Maury, em que se podia verificar claramente o projeto americano de ocupação da Amazônia. Essas declarações pintavam a Região Amazônica como local de riquezas inesgotáveis, com um gigantesco potencial econômico que deveria ser aberto a todos. O governo americano jamais admitiu oficialmente a idéia da conquista do Amazonas, mas os interesses e ações na região revelavam a presença norte-americana. Inúmeras tentativas de instalação de norte-americanos foram feitas ao longo da década de 40. Formaram-se nos Estados Unidos companhias de comércio, navegação e colonização, voltadas para a Amazônia. A pressão americana foi forte. Tentavam conseguir a abertura da região por meio de estabelecimento de tratados com os países amazônicos e pela pressão diplomática feita principalmente pelo Ministro William Trousdale, presente no Rio de Janeiro desde 1853. Teixeira Soares destaca o tratado entre Estados Unidos e Peru, de 1851, que garantiu a abertura dos portos peruanos aos navios americanos. O discurso americano de abertura do Amazonas enfatizava as relações comerciais com as nações hispano-americanas da cabeceira do rio, que desejavam a intensificação do comércio por meio das vias fluviais. A vinda do Ministro Trousdale para o Rio de Janeiro faz com que o centro das negociações fosse transferido para o Brasil. A essa altura os Estados Unidos passaram a invocar o direito natural como justificativa da defesa da livre navegação do Amazonas. No discurso, o direito natural estaria colocado acima dos tratados firmados. A reação da Coroa manifestou-se numa das mais importantes manobras de política externa em que se demonstrou claramente o exercício da soberania nacional. O Império adotou uma estratégia defensiva mantendo fechado o Amazonas enquanto se articulava uma política que assegurasse o domínio sobre a região. Segundo Teixeira Soares e Moniz Bandeira, receio maior do Império era o da presença de elementos norte-americanos na Região Amazônica antes da abertura à navegação estrangeira. A presença desses elementos poderia estimular tendências separatistas e revoltas regionais, como a que aconteceu no Pará. O território vasto dificultava a ação do governo imperial. Dever-se-ia, então, desenvolver um projeto de colonização para a região. A solução encontrada foi a concessão ao Barão de Mauá do direito de exploração da região, feita por meio da Companhia de Navegação e Comércio, que põe em prática uma política de colonização e fortificação. Havia, na época, receio de que houvesse presença de companhias norte-americanas na região, o que leva o Brasil a declarar que a Amazônia estava fortemente vigiada. Era uma tentativa de inibir a entrada de estrangeiros. O governo brasileiro enviou três missões diplomáticas estratégicas, cujo objetivo para Amado Luiz Cervo e Bueno seria o de tentar conter o avanço norte-americano pelos países amazônicos. Junto à Venezuela, Nova Granada 12 e Equador fora enviado Miguel Maria Lisboa. Seu objetivo principal era o de convencer os governos e a opinião pública desses países do perigo da penetração imperialista. Nos Estados Unidos, rebatendo os argumentos defendidos pelo Tenente Matthew Maury de abertura do Amazonas e exigindo do governo americano a prova do não-envolvimento em atentados à soberania brasileira, estava Francisco Inácio de Carvalho Moreira; e, finalmente, para 12 Antigo nome da Colômbia e, no século XVIII, vice-reino espanhol, criado em 1739, que compreendia a Colômbia, o Equador, o Panamá e a Venezuela atuais. 83 as repúblicas do Pacífico, Duarte da Ponte Ribeiro. O Brasil preparava-se nos campos diplomático e jurídico. Em 1851, o Brasil assina com o Peru um tratado que regulamentou os limites entre esses países e concedeu a navegação do Amazonas, baseando-se, segundo Cervo e Bueno, no princípio do direito imperfeito dos ribeirinhos superiores. A concessão da navegação foi uma medida de extrema importância, pois foi fundamentada no direito internacional, o que garantiu uma base jurídica. Teixeira Soares destaca a vinda do Ministro Trousdale, em 1853, como a responsável pela intensificação das negociações. A pressão norte-americana estava próxima ao imperador. Trousdale, em seus despachos ao Secretário de Estado norteamericano, enviava informações a respeito da evolução da negociações. Fazia propostas de vantagens comerciais para o Império em troca da livre navegação. O crescimento do comércio bilateral acaba por definir os rumos da solução da questão. Não era interessante, nem para o Brasil, nem para os Estados Unidos, um conflito que viesse a prejudicar as relações econômicas entre eles. A política externa defendida pelo Império resistiu enquanto houve risco para a região. Foi intensamente criticada, principalmente pelos liberais que há tempos defendiam “a abertura do Amazonas em nome da ciência, do progresso e da civilização.” (CERVO, 1992, p. 95.) A Questão Amazônica chega ao fim em 7 de dezembro de 1866, quando o governo brasileiro decreta a abertura incondicional da região a todas as nações, proibindo o trânsito de navios de guerra. Isso aconteceu após anos de preparação de uma política regional para a Região Amazônica, garantindo a livre navegação. Para Teixeira Soares, pela liquidação das questões de limites, pelo controle da instabilidade das províncias Amazônicas, da colocação em prática da intenção de colonização do vale, pela garantia da prioridade norte-americana no estabelecimento de futuros tratados internacionais e pela militarização da região, o Brasil conseguiu assegurar a soberania, por meio de uma política externa eficaz e ousada que revelava o pulso firme do governo imperial. 6 PAPEL DAS MISSÕES PROTESTANTES NAS RELAÇÕES ENTRE BRASIL E ESTADOS UNIDOS NO SÉCULO XIX Para que possamos entender o papel das missões protestantes nas relações entre Brasil e Estados Unidos, devemos entender a situação religiosa brasileira no período imperial. Segundo a Constituição de 1823, o catolicismo foi instituído como “religião do Estado”, estabelecendo, assim, um vínculo entre Poder Imperial e a Igreja. Essa ligação Estado-Igreja no decorrer do século vai se enfraquecendo, em razão do avanço do liberalismo e das religiões “acatólicas”. Entre elas figura o protestantismo. A introdução do movimento protestante no Brasil inicia-se com a vinda de imigrantes alemães, ingleses e norte-americanos. Podemos nos remeter à década de 30 como o período em que o protestantismo começa a surgir no Brasil. Segundo David Gueiros Vieira, até então, o protestantismo apresentava-se como um “enigma para o público brasileiro”. (VIEIRA, 1980, p. 49.) 84 Com relação ao movimento protestante americano, Vieira destaca o início das atividades por volta de 1832, quando é nomeado um capelão protestante para a Sociedade Americana de Amigos dos Marítimos, criada em função do aumento do fluxo de americanos nos portos cariocas rumo à Califórnia, via Estreito de Magalhães. Sucederam-se nos postos Obadiah M. Johnson, o Reverendo Justin Spaulding, Daniel P. Kidder, J. Moris Pease, o Reverendo Corwin e, já em 1850, James Cooley Fletcher, que para Vieira foi o pioneiro na luta pela liberdade religiosa e pelo movimento protestante no Brasil. Seria impossível falar do protestantismo no Brasil sem mencionar o nome de Fletcher. O seu plano de ação consistia em “converter o Brasil ao protestantismo e ao ‘progresso”. Para ele, o protestantismo equalizava-se ao desenvolvimento econômico, científico e tecnológico”. (VIEIRA, 1980, p. 63.) Segundo Vieira, Fletcher foi o principal responsável pela propaganda do Brasil no exterior. Pintava os Estados Unidos como o “supra-sumo” que deveria servir de modelo a outras nações – entenda-se o Brasil. Entre o grande número de pessoas com quem se envolveu estava Aureliano Cândido Tavares Bastos, liberal que aliou às “causas do progresso”, lutando no Parlamento pela liberdade religiosa, pela imigração protestante, pela liberalização das leis do Império e pela separação entre Igreja e Estado. Em seus primeiros anos no Brasil, Fletcher recebeu auxílio da legação americana que o incorporou ao corpo diplomático, garantindo assim sua proteção. É nesse momento que conquista um círculo de amizades que o coloca em uma posição privilegiada em relação aos outros ministros americanos. Consegue chegar ao imperador, e o elo Vieira atribui ao poeta Longfellow. Fletcher percebia a carência tecnológica e mão-de-obra especializada, problemas que poderiam ser solucionados com a imigração protestante. A atuação de Fletcher fazia-se na Corte e posteriormente no governo americano. Mas é importante destacar outros ministros protestantes, como, por exemplo, Richard Holden, cuja atuação foi feita em áreas de grande interesse americano, como era o Pará, porta do vale amazônico. Vieira destaca o Pará como região marcada pela tensão política, criada pela corrupção, esquecimento pela Corte e pelas críticas ao projeto de colonização do vale, desenvolvida pela Companhia de Comércio e Navegação, do Barão de Mauá. Para Holden, a agitação política e a decepção popular com o governo imperial revelava o caráter republicano das províncias do Norte do Brasil. O trabalho desenvolvido pelos missionários protestantes baseava-se na distribuição da Bíblia que não continha a interpretação católica. Holden via no vale amazônico um grande potencial que deveria ser imediatamente explorado. Mas, os planos do ministro chocaram-se de frente com a Igreja Católica local, representada por D. Antônio Macedo da Costa, bispo de Belém. Vieira revela que por trás do embate católico-protestante estava o movimento maçônico. Em 1862, Holden muda-se para Salvador, Bahia. Lá mesmo com o apoio de Fletcher, bate de frente com D. Manuel Joaquim da Silveira que pregava o avanço protestante como forma de “dividir e enfraquecer a sociedade brasileira” e também alertava para uma “conspiração para separar do Império a região Amazônica e entregá-la aos Estados Unidos”. (VIEIRA, 1980, p. 191.) Essa grande preocupação da Igreja Católica com o avanço protestante revela, segundo Vieira, a crise por que passava o poder eclesiástico nacional. 85 Na década de 60 é criada a Sociedade Internacional de Imigração, com intuito de cuidar da imigração protestante. Vieira revela duas facções internas nessa sociedade: uma que apoiava exclusivamente a imigração de confederados americanos; outra que, além dos confederados, desejava iniciar a imigração protestante européia. Entre outras propostas, defendia a liberalização das leis e a luta pelo casamento civil. Se, por um lado, a imigração confederada poderia trazer o avanço tecnológico e o tão defendido “progresso” protestante; por outro, poderia significar séria ameaça ao poder das elites regionais. Isso faz com que a reação ao avanço protestante se manifeste na não-liberalização das leis e em outros diversos obstáculos impostos à imigração. Mas, mesmo assim, foram estabelecidas “colônias confederadas” no Pará e principalmente no interior de São Paulo. Nestas, houve inclusive focos de tensão entre católicos e protestantes, apaziguados pela intervenção até mesmo do imperador. Segundo Vieira, a imigração protestante poderia trazer consigo as idéias republicanas, sendo esse fato diversas vezes observados em discursos e sermões dos bispos brasileiros, apresentada como uma “ameaça à Monarquia”. Apesar de todos os empecilhos, Fletcher prosseguiu em seus esforços, apoiando uma linha de vapores New York–Rio e promovendo o intercâmbio cultural por meio de exposições, como a organizada em 1855 no Museu Nacional, e da promoção de expedições científicas, como a Expedição Thayer, liderada pelo cientista Agassiz, admirado pelo imperador. As missões protestantes tiveram um papel fundamental no processo de separação entre Igreja e Estado, na liberalização futura das leis e até certo ponto no “desenvolvimento” tecnológico, pois foi pela pequena imigração de norte-americanos que o Brasil pode experimentar as “inovações” que auxiliariam na lavoura e até mesmo na vida cotidiana. O avanço protestante evidenciava a fragmentação do poder católico e o interesse e influência americanos no País que faziam-se sentir por investidas, mesmo que não oficiais, sobre o vale amazônico e sobre o interior brasileiro. Mais uma vez nos remetemos a um dos personagens principais da questão protestante, James Cooley Fletcher, que melhor que qualquer diplomata americano da época soube conduzir seus interesses por meio de uma estratégia digna de qualquer agente diplomático. 7 CONCLUSÃO Pela análise das relações entre Brasil e Estados Unidos no século XIX podemos entender muito das transformações ocorridas, tanto no contexto interno como no internacional. O afastamento da órbita britânica e a aproximação à norte-americana seria fundamental para explicar as transformações ocorridas no âmbito político, social e econômico no Brasil Colônia, Império e República. O desenvolvimento comercial, com base nas exportações do café ocasionava a manutenção de um modelo agroexportador e do trabalho escravo. Seria também responsável pelo crescimento do intercâmbio cultural, fazendo com que os ideais 86 americanistas chegassem com força ao Brasil, favorecendo o aparecimento do movimento republicano, que obteria sucesso em 1889. As relações entre Brasil e Estados Unidos durante o Império foram sempre rodeadas de desconfiança e pragmatismo, resolvendo com sucesso os incidentes ocorridos entre os agentes diplomáticos desde Condy Raguet até o General Webb. Na Questão Amazônica, mesmo sob críticas ferrenhas de alguns diplomatas, o governo brasileiro optou por uma estratégia defensiva, mantendo as negociações o tempo suficiente para implementar um projeto de colonização e policiamento da Amazônia, garantindo assim a soberania nacional na região. Consolidou-se, assim, uma escola diplomática importantíssima, responsável pelos rumos da política externa brasileira. É importante também destacar o papel das missões protestantes que procuravam se estabelecer no Brasil com intuitos que variavam do interesse regional até os de promover o “progresso” que somente seria possível com a vinda de imigrantes protestantes. A opção brasileira da aproximação aos Estados Unidos foi, sem dúvida alguma, a grande responsável pela consolidação da hegemonia norte-americana no continente. A potência do Norte caminhava impulsionada pelo imperialismo, estendendo sua influência sobre o restante da América, impulsionada por políticas intervencionistas. O Império foi substituído pela República e seu rumo definiu-se, em vários momentos, pelas inclinações das relações com os Estados Unidos. BIBLIOGRAFIA BANDEIRA, Moniz. Brasil-Estados Unidos. Presença dos Estados Unidos no Brasil: dois séculos de história. 2. ed. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1978. BESOUCHET, Lídia. Pedro II e o século XIX. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1993. CARVALHO, Delgado de. História diplomática do Brasil. São Paulo : Nacional, 1959. CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. São Paulo : Ática, 1992. CERVO, Amado Luiz. O parlamento brasileiro e as relações exteriores: 1826 -1889. Brasília : UnB, 1981. FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. Rio de Janeiro : Fundo de Cultura, 1961. KAHLER, Mary Ellis. Relations between Brazil and United States, 1815-1825. Washington : The American University, 1968. MAGNOLI, Demétrio. O corpo da pátria: imaginação geográfica e política externa no Brasil (1808-1912). São Paulo: Unesp, 1997. 87 MOURA, Gerson. Repensando a história – Estados Unidos e América Latina. 2. ed. São Paulo : Contexto, 1991. RODRIGUES, José Honório; SEITENFUS, Ricardo A. S. Uma história diplomática do Brasil. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1995. SOARES, Teixeira. Um grande desafio diplomático no século passado. Conselho Federal de Cultura, 1971. VIANNA, Helio. História diplomática do Brasil. 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Uma relação entre Estados que, mesmo tão distantes fisicamente, são hoje de grande interesse histórico para se compreender as complexas relações internacionais, cujos progressos técnicos eliminaram as distâncias entre os Estados e as relações dinásticas, que não possuem mais validade para manter a amizade entre as nações. Alguns autores, que se interessaram pelas relações entre Brasil e Áustria, procuraram fazer estudos mais detalhados sobre os fatos históricos que descreveram as situações vividas na época, mas encontraram dificuldades para relatar a historiografia, pois não encontraram fontes suficientes no Brasil, as quais dariam veracidade as suas obras. Por isso tiveram que recorrer a documentos encontrados somente na Áustria. A Áustria foi durante o século XIX a encarnação do Velho Mundo, o coração da Europa, o centro da tradição ocidental. Nela confluíram as várias correntes culturais dos séculos passados. O Brasil era novo, imenso, recém-nascido e pouco conhecido fora de suas fronteiras. Tinha fracas raízes na cultura européia e estava exposto a todas influências e impulsos. O Império Austríaco, poder central da Santa Aliança, via no Brasil o veículo para uma política continental, parte essencial para sua política internacional, uma vez que era tanto de interesse desse país, como da Inglaterra, manter a única monarquia ainda 89 existente na América, visando preservar o princípio monárquico europeu, que era considerado a melhor forma de poder organizado. O princípio das relações entre Áustria e o desconhecido Brasil foi o casamento da Princesa Leopoldina com o príncipe herdeiro do trono português, D. Pedro. As relações não se limitaram apenas às questões políticas, mas também às culturais e familiares (forte ligação entre a Casa de Bragança e a Casa de Habsburgo). A princesa austríaca ganhou a confiança do povo e principalmente dos políticos brasileiros. No entanto, deve-se levar em conta que, naquela época, os interesses das dinastias eram considerados paralelos aos interesses do Estado. Com a morte de Dona Leopoldina e D. Pedro, D. Pedro II sobe ao poder, mas não consegue manter os laços fortes que ligavam os dois países, e assim começa o formalismo oficial nos papéis diplomáticos, tornando as relações mais reais e duráveis. Sintetizando, o período estudado vai desde o Congresso de Viena à queda do Império Brasileiro, abrangendo as relações diplomáticas e políticas, completadas pelas relações culturais, eclesiásticas e comerciais. Destacamos que, até o momento, poucos autores se dedicaram a estudar especificamente as relações entre Áustria e Brasil. Entre eles ressaltamos a obra de Ezekiel Ramirez, “As relações históricas entre Áustria e Brasil”, editada já em 1968. Esse trabalho, em que autor utiliza fontes inéditas do Arquivo Histórico-Diplomático de Viena, é a obra mais extensa até hoje escrita sobre as relações entre os dois países. Outros autores indiretamente contemplaram a questão das relações entre Áustria e Brasil. Podemos destacar o livro de Glória Kaiser, “D. Leopoldina: uma Habsburg no trono brasileiro, e o livro de Jean Roche, “A colonização alemã e o Rio Grande do Sul”. 2 BREVE HISTÓRICO DAS RELAÇÕES ENTRE BRASIL E ÁUSTRIA QUE ANTECEDERAM A INDEPENDÊNCIA As relações entre Brasil e Áustria se iniciam pela vontade de a Áustria, poder central da Santa Aliança, estabelecer relações no Novo Mundo e do interesse de reforçar o princípio monárquico. “O Pacto da Santa Aliança (1815) foi uma proposta russa a todas as Cortes européias, no sentido de regularem as relações internacionais pelos princípios do sistema arcaico: o legitimismo monárquico, o intervencionismo, a mística do cristianismo, o governo supranacional dos povos”.1 Essa relação foi favorecida pela vinda do príncipe regente de Portugal, D. João, para o Brasil, pois Portugal, nesse momento, sofria as conseqüências das guerras napoleônicas. Com o estabelecimento da Corte portuguesa no Novo Mundo, havia um interesse da Casa de Habsburgo, família real austríaca, em estabelecer laços com a família real portuguesa, família de Bragança, pois àquela interessava manter uma monarquia na América, e a esta interessava manter relações com outro país europeu, além de Portugal, pois ambos visavam incentivar uma cooperação política, comercial e cultural. 1 CERVO, 1992, p. 17. 90 Assim, para satisfazer o desejo das duas dinastias, foi realizado o casamento da Princesa Leopoldina da Áustria2 com o príncipe português, D. Pedro de Alcântara. A Inglaterra exige que D. João VI volte para Lisboa, e ele deixa o príncipe real como regente, pois este tinha salvado a Monarquia, com seu nascimento. Com a partida de D. João VI, os problemas do Brasil não desaparecem. As províncias do Sul pretendiam se tornar uma nação independente, enquanto as províncias do Norte pretendiam a independência regional, já que apoiavam as Cortes de Lisboa. As Cortes portuguesas ordenavam a volta de D. Pedro para Lisboa, o que acaba provocando uma contra-revolução brasileira diante do governo das Cortes, objetivando que o príncipe real ficasse no Brasil. Então em 9 de janeiro, D. Pedro declara que ficaria no Brasil. Essa data ficou conhecida como Dia do Fico. D. Pedro organizou um novo ministério sob o comando de José Bonifácio, considerado o Patriarca da independência do Brasil. Também conseguiu que as tropas portuguesas deixassem o Brasil, desfazendo, dessa forma, os laços entre colônia e Metrópole, e conquistou a confiança do povo brasileiro, que tinha à sua vista o exemplo da independência dos Estados Unidos e a influência da Revolução Francesa.3 Portugal não gostou da notícia e estava pronto para enviar tropas ao Brasil, mas a conselho de José Bonifácio, o príncipe real vai a São Paulo, e como ação decisiva, a 7 de setembro de 1822, declara a Independência do Brasil. Esse ato é descrito ao imperador austríaco por sua filha, Dona Leopoldina, que o relata na seguinte carta Querido Papai A oportunidade permite-me, Deus seja louvado, escrever-vos sem rodeios (com o fígado desembaraçado) como dizem os meus compatriotas; é o meu único consolo e o momento mais agradável, por ter eu a certeza do vosso amor paterno e bondade que se preocupa e sente comigo. Aqui tudo é confusão, por toda parte dominam os princípios novos, da afamada Liberdade e Independência. Estão trabalhando para formar uma Confederação de Povos, no sistema democrático como nos Estados livres da América do Norte. O meu marido que, infelizmente, ama tudo que é novidade, está entusiasmado, como me parece, e terá no fim que espiar tudo; de mim desconfiam, o que no fundo me regozija porque assim, mercê de Deus, não tenho que dar minha opinião e ao mesmo tempo fico fora das lutas. Podeis estar descansado, caro Papai, que não esquecerei, aconteça o que acontecer, o que devo à religião e aos princípios de Austríaca; e que não vos inquieteis por mim porque confio no Onipotente que nunca abandona aqueles que nEle se apóiam. Quando tudo andar mal e tomar a feição de revolução francesa, irei com meus filhos para minha Pátria, pois quanto ao meu marido, estou convencida, a meu grande pesar, que a venda da cegueira não lhe sairá dos olhos. Espero então que me dareis a colocação de Diretor de Mineralogia que 2 “Tinha vinte anos quando, em 1817, se casou com D. Pedro, Leopoldina de Habsburgo, filha do Imperador Francisco I da Áustria e irmã da esposa de Napoleão, Maria Luísa. Havia muito que D. João Regente procurava casar D. Pedro; chegou mesmo a pensar em uni-lo a uma filha de Murat; a invasão de Portugal pelos franceses o dissuadiu. A embaixada do Marquês de Marialva obteve do Imperador e de Metternich a mão da princesa austríaca. Em 1818, nascia-lhe Dona Maria da Glória, futura rainha de Portugal.” (CASTRO, Therezinha de. História documental do Brasil, p. 134.) 3 COSTA, Emília Viotti, p. 84. 91 uma vez me prometesse por pilhéria ao jantar. É lá então, sossegada e contente, no meio de meus queridos, viverei pois na Pátria, junto dos parentes, onde se pode falar à vontade. Permiti recomendar-vos não dar ouvidos a Shäffer, ele é um bom homem mas foi obrigado a encarregar-se desta missão e considero o meu dever dizer-vos a minha opinião que não tomeis parte, para vosso sossego, nestas questões. Por mim, repito-vos, caro Papai, não tenhais cuidado, porque, graças a Deus, tenho coragem e força d’alma para suster-me e a meus princípios serei fiel, aconteça o que acontecer. Estamos todos passando bem, Deus seja louvado, e eu de esperança como me parece, o que é aborrecido nestes tempos inconstantes. Beijo-vos e à querida Mamãe as mãos muitas vezes e sou com o mais profundo respeito e amor filial, querido Papai, vossa filha obediente. Leopoldina São Cristóvão, 23 de junho de 1822. P.S. Lembranças de coração a todos os meus Irmãos, não escrevo a ninguém porque esquecem de mim e há seis meses não me dão notícias.”4 Assim, no Hemisfério Ocidental, nasceu um reino de origens coloniais e revolucionárias, monárquico, porém independente. 3 RELAÇÕES APÓS A INDEPENDÊNCIA: GOVERNO DE D. PEDRO I Após a declaração de independência, D. Pedro, que foi coroado imperador do Estado do Brasil, encontrava-se numa situação muito delicada, pois, além dos problemas existentes antes desse ato, novos problemas começaram a surgir: entre os quais estava a falta de alterações na ordem social e econômica, isso porque a elite política que promoveu a independência “não tinha interesse em favorecer rupturas que pudessem pôr em risco a estabilidade do novo governo”.5 D. Pedro que não possuía instrução necessária para estabelecer uma situação política eficiente, agora precisava de ajuda. A ajuda veio, principalmente, das relações diplomáticas mantidas com a Áustria, que idealizava um governo monárquico para o Brasil, tal como concebiam os estadistas austríacos, Francisco I e Metternich, representados na Corte do Rio, pelo Barão de Mareschall, que ocupava uma posição de confiança na Corte. O objetivo de Mareschall era garantir os interesses da Áustria no Brasil, por intermédio das influências políticas. A primeira grande tarefa a ser realizada por D. Pedro foi a proteção de seus direitos como imperador, a elaboração de uma Constituição que garantisse os princípios monárquicos e a total liberdade para o governante, que não deveria ser um instrumento da Assembléia Constituinte. Assim, D. Pedro e José Bonifácio, chefe dos ministérios, atendem aos ideais da Santa Aliança, isto é, da Áustria, pois esse país era o poder central dessa organização. 4 CASTRO, Therezinha de. História documental do Brasil. p. 134-135. 5 FAUSTO, 1995, p. 146. 92 Segundo Metternich, um grande monarquista, apelidado Cocheiro da Europa6, pois era quem comandava quase todos os assuntos referentes às relações políticas entre os países europeus e o resto do mundo, o Brasil teria que manter a forma monárquica de governo, porque só dessa maneira conseguiria obter o apoio da Áustria. Metternich queria que o Brasil servisse de exemplo para as repúblicas que estavam se formando no Novo Mundo, então para influenciar o jovem imperador com ideais monárquicos, ele enviou o encarregado dos Negócios da Áustria, Daiser7, para dar conselhos a D. Pedro. Pedro I aborreceu-se com Metternich, por este querer sempre ditar como deveria ser o governo. Já, dentro das fronteiras brasileiras, a Assembléia Constituinte desejava diminuir os poderes do imperador, atacando, principalmente, José Bonifácio, que agia de acordo com a Santa Aliança e era adepto dos princípios monárquicos. Para se defender, alegava que o rei não possuía nenhum plano de governo e, como conseqüência, se uniu à oposição. Em setembro de 1823, o projeto de Constituição fica pronto e é colocado em discussão. Por conseqüência desse projeto, houve várias revoltas, e por causa delas D. Pedro dá um golpe decisivo: dissolve a Assembléia Constituinte e outorga a Constituição de 1824, dando plenos poderes ao imperador. Essa Constituição estabelecia um regime centralizado, a monarquia constitucional como forma de governo, distinguia os quatro Poderes: Legislativo, Executivo, Judiciário e Moderador, que era um poder do imperador para exercer a função de mediador, e era ele, também, o chefe do Poder Executivo. O grande objetivo dessa Constituição era obter o reconhecimento da independência do Brasil pelas potências européias. Porém dentro desse contexto, havia uma condição essencial para o reconhecimento: era um acordo entre Brasil e Portugal, no qual este reconheceria legalmente a independência daquele, e só depois os outros países poderiam fazê-lo. A princípio, a Áustria manteve-se neutra no que diz respeito ao reconhecimento. Já a Inglaterra prontificou-se a fazer o reconhecimento da independência do Brasil, mas em troca estabeleceu as velhas exigências de abolição do tráfico de escravos e de ampliação das relações comerciais. Apesar de a Áustria não simpatizar com os ideais ingleses, ela concordava com a Inglaterra na reconciliação do Brasil com Portugal, por isso, logo após a ratificação do Tratado de Paz e Aliança entre Brasil e Portugal, em que o rei português reconhecia a independência do Brasil, a 15 de novembro de 1825, a Áustria reconhece a independência do Brasil, no dia 13 de dezembro de 1825. O reconhecimento feito pela Áustria levou os outros países a fazê-lo também. Desse modo ficou estabelecida a “personalidade internacional” 8 do Brasil, que proporcionou a abertura de muitos países para negociações, visando estabelecer relações comerciais e diplomáticas. A Áustria assinou um Tratado de comércio e Navegação com o Brasil, em 30 de junho de 1826.9 6 RAMIREZ, 1968, p. 2. 7 Leopold, Barão de Daiser zu Sylbach, representante austríaco no Brasil, 1830-1841. 8 RAMIREZ, 1968, p. 41. 9 RAMIREZ, 1968, p. 41. 93 Logo depois do processo de Independência, D. João VI, rei de Portugal e pai de D. Pedro I, morreu em 10 de março de 1826, deixando um dilema para ser resolvido por D. Pedro: ele deveria romper com Portugal e abdicar da herança do trono em favor de seu irmão, ou deveria atender aos interesses de Portugal de unir as duas Coroas, o que colocaria em risco sua posição perante o Brasil. D. Pedro I resolve aceitar a Coroa de Portugal, em 26 de abril de 1826, com a justificativa de que existiam monarquias duais como as já estabelecidas: Áustria-Hungria, Suécia e Noruega, Rússia e Polônia. Porém isso não foi aceito por nenhum dos países e principalmente pela Áustria, já que os interesses austríacos foram contra D. Pedro, pois não era desejável uma monarquia dual, governada pela casa de Bragança. O Partido Brasileiro também não possuía afinidades com essa forma de governo e acabou provocando a renúncia condicional de D. Pedro I ao trono português. Com a renúncia, ele esperava evitar um futuro desentendimento entre D. Miguel, seu irmão e possível herdeiro do trono, e sua filha Dona Maria da Glória (D. Maria II), que herdaria o trono em lugar de seu pai, como pretendia anular a revolta dos radicais e revolucionários para garantir uma Constituição liberal ao povo brasileiro. As Cortes de Viena e Londres ficaram insatisfeitas com a atitude de D. Pedro, exigindo que ele abdicasse incondicionalmente em favor de sua filha.10 A Corte de Viena aprovou o casamento entre D. Miguel e D. Maria, pois segundo a política de Metternich as Coroas do Brasil e de Portugal não poderiam ser unidas, porque a Áustria, que nessa época, possuía a custódia de D. Miguel, via nele a continuação da Monarquia em Portugal, e a definitiva separação dos reinos, Brasil e Portugal. Já, D. Pedro possuía outras intenções, pois chegou a pensar em fazer uma troca com D. Miguel, na qual assumiria o trono português, enquanto D. Miguel assumiria o trono brasileiro. No entanto, se isso acontecesse haveria uma revolução liberal em Portugal que seria refletida no Brasil. A Áustria temia pela revolução liberal e pela influência inglesa em território brasileiro, por isso decidiu, juntamente com a Inglaterra, induzir, definitivamente, D. Pedro a uma renúncia incondicional à Corte de Portugal em favor de sua filha. Então, em 20 de março de 1828, como era desejado pela Áustria, D. Pedro I abdica do trono português. Mas quando o imperador fica sabendo que D. Miguel foi infiel às condições impostas ele intervém nos negócios portugueses e, em 23 de maio de 182911, revoga sua abdicação incondicional e impede que sua filha se case com D. Miguel. Entre tantos problemas, negociações e busca por poderes, no ano de 1825, nasceu D. Pedro II. Em fim chegava ao mundo um herdeiro para o trono brasileiro. Nessa época, D. Pedro I tinha um caso com Domitila de Castro, que se tornaria Marquesa de Santos, um título conferido pelo próprio imperador e amante, fato que entristecia a Imperatriz Leopoldina, sua esposa. D. Pedro, com essa história de amor, acaba perdendo a confiança que a Corte de Viena havia depositado em sua pessoa, e também a simpatia do povo brasileiro, que tinha um enorme carinho pela carismática Imperatriz D. Leopoldina e, como conseqüência, conseguiu aborrecer a Áustria, visto que a imperatriz era austríaca. 10 RAMIREZ, 1968, p. 48. 11 Op. cit. p. 63. 94 D. Leopoldina morre, em 11 de dezembro de 182612 e tem sua morte atribuída ao tratamento que recebia de D. Pedro I, seu marido. Com o enterro da imperatriz, os laços familiares que uniam a Áustria e o Brasil estavam para sempre quebrados. Paralelamente aos problemas pessoais e políticos de D. Pedro, não se pode esquecer que havia estourado uma guerra entre Buenos Aires e os rebeldes do Uruguai, a Guerra Cisplatina. O imperador, que estava com a reputação prejudicada não só perante a Áustria mas também perante o povo brasileiro, tentou requerer o seu prestígio por meio do bom desempenho do Exército, que obteve êxito nas províncias do Sul e seria reforçado por tropas alemãs. O Brasil pede à Áustria que envie oficiais para treinar soldados brasileiros, mas essa atitude falhou, pois o Brasil estava com dificuldades financeiras e não possuía recursos para pagar aos oficiais. É assim que D. Pedro interrompe a guerra, e a Inglaterra, em agosto de 1828, intervém e faz um acordo, no qual Brasil e Argentina abdicaram o território em questão, a Província Cisplatina, que se tornou um república independente e recebeu o nome de Uruguai. D. Pedro, futuramente caindo na solidão, tenta um novo casamento com a Áustria, não só objetivando sua felicidade, mas ainda uma reconciliação com esse país. Seus planos não dão certo, apesar de ter tentado provar de todas as formas que suas intenções eram verdadeiras e que a amante pertencia ao passado. Com o fracasso do projeto de casamento, a posição de Mareschall, enviado austríaco, em relação a D. Pedro ficou comprometida, pois pareceu ao imperador que o casamento não era de interesse da Áustria. O relacionamento entre Brasil e Áustria é definitivamente rompido quando o imperador brasileiro fica sabendo do casamento da princesa austríaca com Napoleão. D. Pedro I, que vinha perdendo popularidade já há algum tempo, fica em situação ainda mais complicada, quando estoura a Revolução Francesa de 1830, que acaba despertando as forças democráticas. O imperador estava perdendo seu poder, pois, durante sua ausência da capital, o povo falava de sua abdicação em favor de seu filho ao trono.13 Como última chance de restabelecer o controle do governo, D. Pedro demitiu o gabinete e formou um novo, porém este, também era composto por aristocratas pertencentes à oposição. Por fim, acaba perdendo o apoio da Igreja e do Exército, e na noite de 6 de abril de 1831 D. Pedro decidiu, ou quase foi obrigado, a abdicar em favor de seu filho. 4 REGÊNCIAS, GOVERNO DE D. PEDRO II E QUEDA DA MONARQUIA Com a queda de D. Pedro I, o trono do Brasil não foi preenchido, pois seu sucessor, D. Pedro II, que na época ainda era uma criança, teria que atingir a maioridade para poder assumi-lo. Com o impedimento da posse do príncipe real, de acordo com a lei brasileira, deveria ser estabelecida uma regência, até que ele atingisse a idade legal, 18 anos. D. Pedro II começou a ser preparado desde cedo para suas futuras funções. O 12 RAMIREZ, 1968, p. 43. 13 Op. cit. p. 64. 95 interesse da Áustria na educação do príncipe era grande, afinal tratava-se do neto do imperador da Áustria, Francisco I. O Barão de Daiser, o encarregado de Negócios da Áustria, acompanhou de perto os estudos de D. Pedro II e suas irmãs. Durante o período regencial a situação política do Brasil tinha permanecido estável, com exceção dos conflitos travados com a Igreja e contra pequenas revoluções nas províncias. O regente, Araújo Lima, se deparou com o problema da proposta dos revolucionários, na qual a Princesa D. Januária, com 17 anos, passaria à regência do príncipe real, até que ele atingisse a idade legal. Daiser via nessa proposta, a intenção dos republicanos de derrubarem a Monarquia no Brasil, por intermédio de um governo de “uma jovem e inexperiente princesa”.14 Mas os republicanos ainda prepararam outro plano, no qual D. Pedro II seria declarado maior aos 16 anos. Os planos dos republicanos chamaram a atenção de Metternich, que considerava os meios usados por eles para chegar ao poder. Sabia também da existência de uma sociedade republicana secreta, a Cruzada da Liberdade15, cujo objetivo era derrubar as dinastias, pelas idéias revolucionárias. Esse grande estadista, primeiramente, aconselhou o regente para que não deixasse ser aprovada a ascensão prematura de D. Pedro II. Mas como os planos dos comandantes brasileiros eram tirar o regente, Araújo Lima, do poder e nomear D. Januária como imperatriz, ele entendeu que seria perigoso não antecipar a maioridade do príncipe real. Agora, todos buscavam a maioridade de D. Pedro II. Dentro da Corte brasileira, liberais e conservadores consentiam na maioridade antecipada de D. Pedro, mas não concordavam em quando essa declaração deveria produzir efeito. Consideravam que a ascensão do príncipe ao trono seria de grande vantagem para o Brasil, pois D. Pedro era considerado a pessoa capaz de resolver as dificuldades do Brasil e de produzir a paz interna no País, a qual a regência não tinha conseguido. Para Daiser, representante direto da Áustria no Brasil, eles deveriam escolher um tempo médio, procurando solucionar o problema, já que não era sua vontade concordar com a declaração antecipada da maioridade e considerava tal prática uma violação da Constituição. De nada adiantaram tantas divergências, porque a maioridade do jovem imperador foi proclamada em 22 de julho de 1840, e no dia 23 D. Pedro II compareceu ao Senado, jurou a Constituição e foi investido de poder supremo. A Áustria via o ato de 22 de julho como um ato de revolução, embora, em parte, concordasse com isso, pois já tinha suposto que o regente na sua insustentável posição deveria deixar o poder. Além disso, a Áustria possuía grande influência sobre D. Pedro, pois segundo Daiser, o imperador podia passar-se por um príncipe austríaco, já que conservava muito das características dos Habsburgos, que o tinham influenciado por meio dos seus costumes imperiais e dos métodos de ensino, que futuramente foram aplicados em seu governo.16 D. Pedro II possuía a confiança e o amor do povo, uma vez que recebeu seu cargo do povo (soberania popular) e não “pela graça de Deus”. Além de ser adorado, o 14 Op. cit. p. 67. 15 Op. cit. p. 67. 16 Op. cit. p. 75. 96 jovem imperador era protegido pela Áustria, que tinha esse dever, pois as relações familiares deviam ser preservadas, isto é, na medida do interesse. E o único interesse político e econômico era manter a Monarquia como forma de governo. Como prova dessa relação familiar temos a escolha do Imperador Ferdinando II, sucessor de Francisco I, como imperador da Áustria, para ser o padrinho de crisma de D. Pedro II.17 Restabelecidas as relações de família, a Áustria prometia o seguinte auxílio ao Brasil:18 1. orientação quanto aos melhores meios de manter a Monarquia forte no Brasil; 2. um segundo casamento com o Brasil, dando influência natural e indireta para a Áustria, até mesmo nos negócios do Estado; 3. direito de exílio ao soberano e sua família em caso de revoluções no Brasil. Começaram a procurar por jovens austríacos ou alemães para se casarem com as princesas brasileiras, pois sem esses casamentos a Áustria perderia sua influência na Corte do Rio de Janeiro. As Cortes de Viena e do Rio estavam, principalmente, preocupadas com o casamento de D. Januária, pois tanto a Áustria como o Regente Araújo Lima eram contrários a uma aliança da França com o Brasil. Mas como os pretendentes austríacos não se interessaram por D. Januária, as portas para as influências francesas foram abertas. Com o fracasso casamenteiro da Corte de Viena, iniciaram-se as relações entre Brasil e França, pois esta se adiantou e a 1º de maio de 1843, D. Francisca, irmã mais nova de D. Pedro II, casa com o Príncipe de Joinville, da França, e logo em seguida, D. Pedro casa com D. Teresa Cristina Maria, de Nápoles, em 4 de setembro de 1843. Essas uniões enfraqueceram as relações familiares entre Brasil e Áustria, que são definitivamente terminadas quando D. Januária casa com o cunhado de D. Pedro II. As relações entre Brasil e Áustria se tornaram frias e rotineiras, e até os negócios diplomáticos ficaram retraídos.19 O governo do Brasil exigia de D. Pedro II sua grande capacidade intelectual e uma total devoção aos negócios do Estado. O imperador era confiante, acreditava mais em si próprio do que nos seus conselheiros. Procurou conhecer a enorme área geográfica do Brasil por meio de viagens, a fim de facilitar a comunicação entre as províncias e conhecê-las melhor. Seu maior interesse era ter boas relações com os Estados vizinhos20, que haviam sido colônias espanholas e agora contaminavam o Brasil com tendências republicanas. O republicanismo era causado pela divisão administrativa do País em que a fraqueza do poder central e a presença de fortes elementos republicanos tornavam-no possível. Daiser pretendia a sobrevivência da Monarquia, mas o conflito entre o povo e o governo perturbava esse sistema. A participação do Brasil nos negócios internacionais estava limitada em conseqüência das revoltas contra a Monarquia brasileira. Apesar disso, as relações 17 Op. cit. p. 76. 18 RAMIREZ, p. 77. 19 RAMIREZ, p. 92. 20 RAMIREZ, p. 93. 97 com os Estados vizinhos, na década de 40, eram boas. Metternich esperava que Daiser melhorasse as relações do Brasil com a Áustria por informações confidenciais, mas a principal ligação entre as duas Coroas, Daiser, adoeceu gravemente, assumindo seu lugar o Conde Bernhard von Rechberg.21 Metternich forneceu ao novo enviado instruções adequadas de como deveria configurar a política diplomática da Áustria em relação ao Brasil e também o instruiu para tentar consolidar as relações comerciais já existentes com o Brasil, o que serviria como base para outros tratados com as repúblicas latino-americanas. A popularidade de D. Pedro II estava em baixa, em razão de sua frieza e conduta reservada. Discórdias internas causavam muito mal à família imperial e prejudicavam a Monarquia em face do poder dos partidos republicanos. Todos admitiam, inclusive Rechberg, que D. Januária seria capaz de remover a barreira entre o imperador e o povo, melhorando a situação do Brasil, porém quando ela aceitou viajar para a Europa em navio francês, o povo se revoltou, porque se encontrava largado nas mãos dos franceses. Por trás dessa partida havia três pretensões: o Partido Francês pretendia o trono do Brasil com a coroação do Príncipe de Joinville; o Partido Republicano pretendia o estabelecimento de uma República Federal; o Partido Conservador esperava pelo futuro herdeiro da Coroa para estabelecer uma regência, que seria feita por eles.22 Nos anos de 1846 e 1847 as relações entre Brasil e Áustria não foram muito amigáveis, pois estavam com problemas em tratados que não eram assinados com rapidez, problemas com os maus tratos aos estrangeiros austríacos, entre outros, que contribuíram para que as relações comerciais e culturais entre os dois países não fossem definitivamente firmadas. O Brasil nessa época não tinha decidido se manteria relações com países estrangeiros, mas logo depois denuncia todos os tratados de comércio que havia assinado com as nações estrangeiras, menos com a Inglaterra, mantendo uma política isolacionista e retirando-se da Comunidade das Nações. Em 1847, Rechberg volta à Áustria, depois de permanecer quatro anos no Brasil, sem alcançar o objetivo comercial para o progresso das relações entre os dois países. Então, Hippolyt von Sonnleithner veio substituir Rechberg no Brasil.23 A Revolução de 1848 ocorrida na Europa faz com que haja novamente uma aproximação dos reinos da Áustria e do Brasil, pois D. Pedro II, junto com Sonnleithner, demonstrava um claro interesse pela situação austríaca. O imperador austríaco, Ferdinando, abdicou do poder, antes do fim de 1848, em favor de seu sobrinho Francisco José.24 Em 1851, o interesse da Áustria estava concentrado quase exclusivamente no conflito do Prata entre Brasil e Argentina. O sucesso do Brasil na guerra fez com que Sonnleithner elogiasse a capacidade diplomática do imperador do Brasil e de seu ministro dos Estrangeiros. Em 27 de janeiro de 1860, o Arquiduque Ferdinando Maximiliano da Áustria chega ao Brasil. No momento de sua visita, o País estava com terríveis dificuldades 21 RAMIREZ, p. 95. 22 RAMIREZ, p. 101. 23 Op. cit. 1968, p. 105. 24 Op. cit. 1968, p. 106. 98 sociais e econômicas, mas o Partido Conservador, há 7 anos no poder, havia conseguido manter a calma. As relações com as potências estrangeiras haviam melhorado, e o País tinha acabado de ser salvo de uma revolução. No fim da década de 60, o Brasil estava com sérios problemas, tanto financeiros como militares, pois o Exército não possuía mais gente para lutar, por causa da guerra com o Paraguai, e o dinheiro era pouco para suprir as necessidades. O fim da Guerra do Paraguai deu a chance para D. Pedro levar adiante seus planos de reconstrução do País, com a construção de estradas e diques e o embelezamento e reconstrução da capital e outras cidades. O imperador do Brasil honrou Sonnleithner pelos grandes esforços em prol das relações austro-brasileiras25, embora o enviado austríaco tenha constatado que não houve influência nos negócios internos e externos do Brasil. Sonnleithner é sucedido pelo Barão Schreiner, que foi recebido amigavelmente por D. Pedro. Quando iniciou sua carreira, viu como eram mal geridos os negócios públicos do Brasil e procurou fazer relatórios à Corte de Viena. O imperador e a imperatriz do Brasil vão novamente à Europa, viagem que causa danos à Monarquia no Brasil, pois as reformas legislativas e financeiras de 1884 não atingiram seus fins, e a questão da liberação dos escravos também a prejudicava. Em março de 1888, o governo liberal foi demitido e em 13 de maio do mesmo ano a princesa regente, Isabel, declara abolida, para sempre, a escravidão no Brasil, porque isso era contrário aos princípios da Igreja Cristã e às instituições liberais. Assim o Brasil não pode ser mais considerado um Estado escravocrata. A liberdade dos escravos produziu sérias conseqüências políticas e econômicas que provocaram o declínio da autoridade do monarca. Iniciou-se uma agitação por parte dos republicanos, irrompeu a revolução em novembro de 1889. No mesmo ano a família de Bragança é deposta e é efetivada a transformação do Império Brasileiro em Estados Unidos do Brasil, com Marechal Deodoro da Fonseca como novo presidente. A Monarquia austro-húngara tinha sido incapaz de fazer qualquer esforço para impedir a queda da Monarquia no Brasil. O reconhecimento do Brasil deveria ser feito pela Áustria, determinação do Imperador Francisco José. Dessa maneira se encerraram as relações entre os impérios Austríaco e Brasileiro, que não possuíram relações que permaneceram, mas que proporcionaram relações entre o Velho e o Novo Mundo e que são importantes até hoje para o entendimento das relações internacionais.26 5 DESENVOLVIMENTO DAS RELAÇÕES CIENTÍFICAS E CULTURAIS As relações contratuais entre duas nações podem ser feitas a partir de uma série de acordos políticos, econômicos e comerciais, mas somente após um intercâmbio cultural é que pode ser vista a realidade de um povo; mesmo com a perda de validade de 25 Op. cit. 1968, p. 116. 26 RAMIREZ, 1968, p. 122. 99 tratados, ainda continuará havendo ligação entre os povos. É por uma ligação cultural que a Áustria e o Brasil tentam fazer sua parceria internacional no século XIX, com o casamento de uma arquiduquesa austríaca, D. Leopoldina, com D. Pedro I. O casamento propiciou não somente as relações comerciais mas também o intercâmbio social e cultural por laços matrimoniais. Seria pela primeira vez a imagem vaga e imprecisa substituída por informações das expedições científicas propostas pela Áustria. As expedições foram financiadas pelo governo austríaco e pelo Museu Brasileiro em Viena, com a intenção de enriquecer as importantes coleções do Museu Imperial de História Natural. As descobertas deveriam ser reportadas ao governo brasileiro. Os exploradores deveriam: coletar material científico, descrever a fauna e a flora, a fim de embelezar os jardins imperiais austríacos, trazer ao Jardim Zoológico animais desconhecidos e exóticos. Com esse intuito o imperador austríaco incumbiu a um grupo de naturalistas essa missão. Natterer27 tinha somente 33 anos, era o mais sábio participante da equipe, tendo, na juventude, tornado-se perito em trabalho e método científico. No começo de 1817, a equipe fazia os preparativos finais da viagem ao Brasil, ao mesmo tempo que eram preparadas as festas do casamento brasileiro na Áustria. Fazendo uma pequena excursão nas redondezas do Rio de Janeiro, os naturalistas mandaram para Viena a primeira remessa que consistia em 36 caixotes de material com uma extensa coleção de animais empalhados, plantas secas e vivas, sementes e minerais. Após a morte de muitos animais, na segunda remessa, seu transporte foi cancelado. Os constantes relatórios mandados por Natterer, fascinavam o imperador austríaco extremamente interessado no assunto. Com uma remessa de plantas e animais raros, foi mandado à Áustria um casal de índios, que provocaram grande sensação em Viena por se tratarem de espécies genuinamente americanas e pelas suas características físicas. Natterer torna-se o chefe da expedição, quando o antigo voltou para Áustria. Programou uma viagem, na qual partiriam de São Paulo, seguindo para Cuiabá. (Mato Grosso) pelos rios Tietê, Paraná, Prado, Camapuã, Coxim, Taquari, Paraguai e Barrados. A expedição ainda deveria passar por Vila Bela e pelos rios Guaporé, Mamoré, Madeira, Amazonas e chegar a Belém do Pará. Natterer calculou uma viagem de dois anos, em vez disso, por causa de uma série de dificuldades, a expedição gastou quatorze anos. A descrição da viagem é a de uma odisséia que terminou com um efeito dramático. Após ter sobrevivido a inúmeras doenças adquiridas na selva, no Pará, enquanto esperava o transporte para a coleta de material, estourou uma revolução que queria expulsar todos os estrangeiros. Natterer conseguiu salvar somente a vida. Uma multidão roubou-lhe todos os 22 caixotes que estavam esperando para ser embarcados. Algum tempo depois, Natterer conseguiu chegar à Inglaterra, após ter sua vida salva por ingleses. Em Viena, a expedição que tinha sido preparada com tanto entusiasmo e com apoio financeiro generoso, deu resultado. O Museu Brasileiro em Viena tornou-se um centro de todas as matérias referentes ao Brasil. O público podia visitar o museu em horários restritos, mas cientistas e pesquisadores tinham a entrada livre. Para o ingresso no museu era necessário um rompimento por escrito restringindo a entrada somente da camada superior. Na metade do século XIX, o Brasil era um dos países mais explorados fora da 27 Johann Natterer era o mais notável participante da equipe, foi escolhido como diretor da expedição, pois tinha todas as qualificações exigidas para a posição. 100 Europa em virtude dos êxitos das expedições científicas austríacas e suas publicações. Isso estimulou outro centro de ciência austríaco, a Biblioteca Imperial, que começava a fazer coleções e assinaturas de jornais brasileiros. Mas pelos pareceres negativos do Brasil, a Biblioteca Nacional da Corte foi forçada a cancelar planos de coleção. Numerosos grupos de artistas austríacos foram cordialmente recebidos no Brasil, fazendo com que vários momentos da família real fossem registrados, propiciando trocas culturais e de experiência, influenciando inúmeros artistas brasileiros. A arte e a ciência eram o elo entre Brasil e Áustria. Tal como o Museu Brasileiro em Viena, o Instituto Histórico e Geográfico tornou-se para o Brasil o centro de aspirações científicas na América Latina. D. Pedro estava, também, interessado em todas as escolas militares na Áustria, por esse motivo mandava jovens oficiais brasileiros para fazer cursos no Corpo de Pioneiros da Áustria. O Brasil, também, coletava informações sobre a organização militar, uniformes e armamentos. Foi procurado saber sobre o ingresso de estrangeiros nas academias técnicas. D. Pedro foi aceito como membro honorário em Viena, o que significou o reconhecimento de seus ideais científicos para o mundo. Havia então vários laços entre os dois impérios. A Áustria que não possuía nenhum tipo de relação com o Brasil no início do século XIX, fez de tudo para estabelecer contatos políticos, transformando-os em um intercâmbio cultural e estabelecendo um vínculo transoceânico a fim de servir de entendimento e ao processo cultural. Mas com as mortes de D. Leopoldina e do Imperador Francisco I enfraqueceramse as relações que haviam sido estabelecidas. Isso ficou mais visível a partir do momento em que a Áustria partiu para tarefas de política interna com lutas constitucionais e com a questão nacionalista que tomou suprema importância, deteriorando as relações entre a Áustria e o Brasil. 6 INFLUÊNCIA AUSTRÍACA NA IGREJA A Monarquia brasileira, no século XIX, estava moldada nas antigas concepções das monarquias européias, como a austro-húngara, ou seja, poder nas mãos do imperador e do papa (Estado e Igreja). A religião mais cultuada no Brasil era a católica romana, que foi introduzida pelos missionários portugueses. Apesar dessa forte ligação com a cultura européia e de o Estado proteger a Igreja, o governo brasileiro por muitas vezes violou os direitos eclesiásticos, isso porque o Estado tratava a Igreja como um adversário político e administrativo. Para Daiser, representante austríaco no Brasil, “Os brasileiros reagem em religião como em política. A Igreja Católica Romana é a igreja oficial da terra. Mas os brasileiros procuram negar a autoridade do Papa. Ele considerava que no Brasil tudo estava imaturo, inclusive o cristianismo. Este assunto era mais ligado a formalidade, a cerimônias do que a um poder recriador e remodelador da vida humana.”28 Logo após a saída de D. Pedro I, surgiram vários conflitos entre o Brasil e Roma. O primeiro e um dos principais, foi durante o governo do Regente Padre Diogo Feijó, que era tido, em Viena, como um dos mais fortes partidários da Monarquia austríaca e 28 RAMIREZ, 1968, p.167. 101 era contra a aplicação da regra católica do celibato. Afirmou ser essa regra uma imposição medieval, que não poderia ser considerada um mandamento divino, uma vez que era utilizada para manter a disciplina dentro da Igreja e que qualquer bispo dentro de sua paróquia poderia, ou não, aceitar a regra do celibato. Está aí o porquê do conflito com Roma. A Áustria via uma possibilidade da criação de uma futura Igreja Brasileira separada da Católica Romana. Assim, estava interessada em servir de intermediária nos conflitos entre Brasil e Roma, que eram basicamente a respeito das nomeações de representantes papais no País. Além da afirmação de Feijó, a Áustria via a garantia de manter o poder monárquico conservador brasileiro separado da obrigatoriedade de seguir os dogmas impostos pela Igreja, isso porque a própria Áustria que era um exemplo de poder conservador não aceitava a interferência direta da Igreja nos negócios de Estado e só mantinha relações de interesse conservador com o clero, uma vez que o Papa era visto como o símbolo maior das forças conservadoras. No princípio de 1836, Daiser comunicou que a Igreja no Brasil estava perdendo sua tradicional força dominadora. Mesmo assim, o enviado austríaco em Roma informou a Viena que o representante papal tinha admitido estar “grato à Corte austríaca pelos bons ofícios com que Viena havia auxiliado Roma em suas dificuldades com o Brasil”.29 Mas, em 11 de agosto de 1836, Feijó diz que não havia uma maneira de solucionar o conflito com Roma de forma pacífica. Revelou também que o número de padres que estavam pedindo dispensa da regra do celibato vinha crescendo a cada dia. Outra diferença entre Brasil e Roma é que no Brasil a nomeação do bispo era de acordo com o direito consuetudinário, ou seja, quem nomeava era o imperador. Só que, segundo o direito de Roma, a nomeação seguia o direito canônico. Em 1837, cai o governo de Feijó e assume Araújo Lima, que volta a manter relações amigáveis com Roma. Araújo Lima queria a Igreja ao lado do Estado, não como parceira política e administrativa, e sim com uma força de ordem dentro do Brasil. Apesar dos esforços do regente, as relações diplomáticas com Roma ainda estavam em conflito. Essa tensão só foi relaxada com a coroação de D. Pedro II. Os representantes da Áustria no Brasil visualizaram e concluíram que havia muita falta de cultura religiosa e indiferença na população e uma imensa falta de moralidade entre os padres. Sonnleithner30, outro representante da Áustria, comunicou “que só um grande influxo de imigrantes europeus poderia melhorar a situação”.31 Era evidente que nem com os conservadores no poder, em 1858, a Igreja deixaria de ser uma entidade abaixo do Estado, subordinada as decisões deste. Durante a década de 60, a Áustria, tendo de resolver seus próprios problemas internos, interrompeu seu auxílio à política brasileira. Isso mostra que a relação entre os dois países não seguia mais o sistema proposto por Metternich. “A Áustria estava muito ocupada com seus próprios problemas. A luta da Áustria pela ordem dentro da União dos Estados Dinásticos e a posição dessa União dentro da Europa tornou impossível aos secretários de Negócios Estrangeiros dedicarem-se aos problemas transatlânticos, exceto no que se referia ao comércio e à emigração.”32 29 Op. cit., 1968, p. 171. 30 Sonnleiyhner, Hippolyt von, representante austríaco no Brasil, 1847-1873. 31 RAMIREZ, 1968, p. 180. 32 RAMIRES, 1968, p. 181. 102 7 IMIGRANTES AUSTRÍACOS NO BRASIL Em conseqüência do avanço da medicina, das boas condições de higiene, a Europa conseguiu combater as pestes e acabar com as inúmeras mortes. Porém, outro problema surgiu: o aumento exagerado da população que causou o aumento da miséria, da fome. Assim, muitos países resolveram seus problemas de super povoamento financiando a imigração para os países americanos. Já a economia brasileira, a partir do século XIX, foi marcada por importantes mudanças: a abolição do tráfico de escravos, a criação de um novo regime de terras, o apoio à vinda de imigrantes, a introdução do trabalho assalariado e a expansão do comércio exterior que permite uma nova dinâmica do comércio interno.33 A substituição paulatina do escravo pelo trabalhador livre se dá paralelamente a uma nova visão do labor, até então visto como ato repulsivo, implicando castigos e disciplina. A persistência do regime escravista criava barreiras para a valorização do trabalhador livre. Portanto, os impulsos dado a desagregação da sociedade escravista, também eram investidas na representatividade do trabalhador livre que representava o novo tempo, o 35 progresso e a civilização.34 Ao longo do Congresso Agrícola de 1878, voltado exclusivamente para os problemas da grande lavoura, foram discutidas questões como: a introdução do trabalhador imigrante, a carência de capital, os meios para a obtenção do crédito agrícola e os destinos da escravidão.36 e 37 Ao Brasil, chegaram principalmente emigrantes vindos da Itália, Alemanha e Portugal. Os colonos germânicos foram encaminhados para São Leopoldo (Rio Grande do Sul), em 1824 para Santo Amaro (São Paulo), em 1827 para Rio Negro (Paraná), em 1829 para o Vale do Itajaí (Santa Catarina), em 1835-38 e a partir de meados do século para constituir as colônias de parceria no oeste paulista – juntamente com imigrantes suíços.38 A Áustria não via a emigração como uma solução para o problema de excesso de pessoas, isso porque, seu ideal era: “de uma exploração econômica intensa de suas próprias terras. O ideal era fazer as próprias terras ricas em povo e em recursos. Os economistas exprimiam isso com ênfase no desenvolvimento do comércio, indústria e agricultura. Os Habsburgos da Áustria estavam convencidos de que a população era a verdadeira riqueza de uma nação.”39 Com base nesse ideal, o Imperador José II expediu um edito que proibia a emigração: “A ninguém é permitido emigrar nem enviar a países estrangeiros seus filhos ou pessoas sob a sua proteção e cuidado.”40 Esse edito foi 33 SANTOS, 1995, p. 48. 34 Op. cit., 1995, p. 63. SALLES, Iraci G. Trabalho, progresso e sociedade civilizadora. São Paulo : HUCITEC, 1986. p. 118. 35 Congresso Agrícola. Rio de Janeiro : Fundação Casa Rui Barbosa, 1988, tomo VIII. 36 Op. cit. 1995, p. 64. 37 Os fazendeiros exigiam uma imigração que fosse mais dirigida e que assegurasse a remoção dos problemas que impediam a vinda dos trabalhadores. 38 BRUNO, 1968, p. 119. 39 LOUISE, Sommer, Viena, 1920. 40 RAMIEZ, 1968, p. 183. 103 seguido pelo Imperador Francisco I, só com uma ressalva. Francisco I permitia a emigração legal, com o aval das autoridades locais que concediam uma dispensa da cidadania austríaca. Por conseqüência pouco austríacos vieram para o Brasil. Após as guerras napoleônicas, um grande número de veteranos de guerra, de descendência germânica41, recebeu asilo político do Brasil, e outros vieram trabalhar nas fazendas como mão-de-obra assalariada. Assim, um grande número de imigrantes germânicos chegou ao Brasil. Mas os relatórios do representante austríaco sobre as condições dos emigrantes era desanimador. Mostravam que os militares austríacos, que chegaram no Brasil, eram levados para o campo de batalha como linha de frente, ou seja, serviam de escudo para as tropas brasileiras e conseqüentemente eram os primeiros a morrer. Aqueles que foram para as fazendas trabalhavam no sistema de parceria, ou seja, Os imigrantes tinham suas passagens pagas e recebiam um adiantamento do proprietário da terra em cujas fazendas eles deviam trabalhar na colheita. Aos que chegaram à nova pátria, eram dadas: terra para limpar, sementes para plantar e o direito a metade da colheita. Deviam permanecer até indenizarem o proprietário de todas as despesas feitas com eles. Poderiam então permanecer como assalariados ou se estabelecer por conta própria.42 Contudo os imigrantes acabavam servindo como “escravos livres”, porque ganhavam pouco, e do pouco ainda lhes tiravam a metade, e a indenização ao proprietário da fazenda se tornava cada vez mais difícil. Tinham que combater a mentalidade escravocrata dos fazendeiros que se viam no direito de tratar os imigrantes da mesma forma que tratavam os escravos, ou seja, de forma subumana. Assim, “aqueles se viram forçados a pressionar os fazendeiros, sobretudo quando ainda existia o regime servil, para conseguirem melhores condições que os escravos”.43 Os representantes austríacos exigiram do Brasil o igual tratamento que os imigrantes franceses e ingleses recebiam. As primeiras províncias que proporcionaram boa condição de vida para os austríacos foram as do Sul, porque eram as mais desenvolvidas economicamente, possuíam o clima parecido com o europeu e, principalmente, necessitavam de trabalho livre, já que a Inglaterra estava pressionando as províncias brasileiras a abolirem a mãode-obra escrava. Só que o Sul era uma exceção. O representante austríaco Sonnleithner dizia: “ O Brasil está somente tentando obter os trabalhadores que precisava, sem pretender darlhes garantias. E ainda, que o tipo de imigrante que o Brasil queria era aquele sem nenhuma 41 Apresentam-se confusões de nacionalidades como as que fizeram, em que jamais se distinguiram os austríacos e suíços dos alemães. Tem razão, portanto, Romário Martins ao assinalar que “notas esparsas, referências incompletas, relatos oficiais pouco informativos e sem seguimento, conjecturas, cálculos sem base em números afirmativos, é o que tem sido a fragmentária bibliografia de tão importante assunto.” MARTINS, 1989, p. 68-69. 42 RAMIREZ, 1968, p. 185. 43 FAUSTO, 1995, p. 205. 104 capacidade de independência, chegando ao Brasil submissos aos proprietários, a quem ficavam devendo as passagens e obediência, de acordo com o sistema de parceria.”44 O governo brasileiro decidiu dar o assunto referente à imigração para companhias particulares, cujos recursos vinham do Estado, o que desgostou os representantes austríacos que temiam uma forte atuação desses agentes na República do Tirol.45 Essa medida acabou se tornando matéria de especulação financeira.46 “Não se prometia proteção para o imigrante, o qual, desde que tivesse assinado seu contrato, tornava-se devedor vitalício do agente de emigração.”47 Assim, eles queriam fazer uma campanha de extrema proibição à imigração para o Brasil, pois entendiam que com a falta de mão-de-obra o governo brasileiro ia oferecer condições aceitáveis de sobrevivência. “Apesar das dívidas e dos salários baixos, os imigrantes livres no Brasil, gozaram, sem dúvida, de um padrão de vida mais alto que o da maioria dos súditos brasileiros”.48 8 COMÉRCIO ENTRE ÁUSTRIA E BRASIL As amigáveis relações diplomáticas e culturais entre Áustria e Brasil, durante o século XIX, poderiam levar a crer que esses países também desenvolveram extensas relações comerciais. Entretanto, tal relação não se deu. Ambos os países esforçaram-se em ampliar o comércio, mas grandes obstáculos surgidos desde os primeiros entendimentos mercantes com o Brasil permaneceram como entrave aos futuros desenvolvimentos. O período mais significativo da política comercial externa brasileira compreende de 1822 a 1828. “Confrontam-se então os objetivos estabelecidos pelos governos estrangeiros em suas relações com o Brasil e os que este país pretende alcançar no exterior.”49 O principal objetivo comercial da Áustria era manter fortes laços comerciais com o Rio de Janeiro, para que se abrissem as portas para futuras relações comerciais com a América Espanhola, visto que a maior parte desta era rica em recursos naturais (matériaprima necessária aos produtos austríacos) e principalmente serviam de mercado consumidor. O Imperial Conselho de Comércio e o Ministério das Finanças planejaram cuidadosamente, em 1816, a primeira exportação de produtos para o Brasil. Mas as viagens não saíram como planejadas. A carga foi danificada por causa das más condições marítimas enfrentadas pelos navios austríacos, e ao chegarem ao Brasil a decepção foi grande. Os austríacos debateram-se com uma taxa de importação de 24% sobre o produto 44 Op. cit., 1968, p. 194. 45 Província mais pobre e com mais problemas da Áustria. 46 FAUSTO, 1995, p. 206. Em 1884 foi aprovada uma lei que indica bem o sentido da política de mão-de-obra imigrante para o governo provincial. 47 RAMIREZ, 1968, p. 195. 48 Op. cit., 1968, p. 211. 49 CERVO, cap. l, p. 20. 105 e, principalmente, constataram que o mercado brasileiro estava repleto de mercadorias similares vindas da Inglaterra e França. Houve, também, decepção por partes dos brasileiros, uma vez que as mercadorias chegadas não correspondiam às necessidades do mercado brasileiro, e os preços eram muito altos. Para uma melhor negociação, o Conde Stahl, presidente do Imperial Conselho de Comércio, ordenou ao embaixador austríaco no Rio de Janeiro, que procurasse fazer um acordo com o Brasil para obter as mesmas vantagens comerciais concedidas aos ingleses. Outro obstáculo a ser enfrentado pela Áustria era a difícil competição com a Inglaterra, “visto que ambas as nações procuravam vender aproximadamente o mesmo produto ao mesmo mercado.”50 O enviado austríaco escreveu: “Creio que a idéia de um tratado comercial entre a Áustria e o Brasil deve ser completamente abandonada. A Inglaterra jamais consentirá que um governo, em que ela influencia tão profundamente, possa proceder de maneira tão contrária a seus interesses comerciais” (10 de abril de 1820).51 A Grã-Bretanha via na independência da América Latina “uma válvula de escape ao bloqueio continental que lhe foi imposto por Napoleão”52, e por sua vez o Brasil não restringiu o comércio com a Inglaterra, estabelecendo relações de dependência financeira britânica.53 Em primeiro lugar, para a Áustria conseguir boas relações comerciais com o Brasil teria que propor e firmar um tratado comercial. Esse tratado só vai acontecer após a independência do Brasil, uma vez que todos os tratados assinados antes do fato não iriam ser renovados até o país reconhecer a independência brasileira. Assim, a Áustria só reconheceu após 4 anos, em 1826. O primeiro ato oficial internacional entre Brasil e Áustria foi o Tratado de Comércio e Navegação entre Francisco I e D. Pedro I, de junho de 1827, que deveria vigorar durante seis anos após a ratificação. Como primeiro passo, foram propostas facilidades para o funcionamento dos consulados. O tratado resultou numa notável animação do comércio com o Brasil. Quando em 1834 o tratado de 1827 estava para expirar, Viena mandou a Daiser uma nova proposta, para renovar o antigo acordo. Porém, a situação política na qual o Brasil se encontrava não era favorável a novos acordos, porque o Brasil se julgava prejudicado com os tratados travados com outras nações, uma vez que lhes concediam muitos privilégios comerciais prejudicando o próprio Brasil em relação a sua indústria, seus produtos, suas finanças. Era o contrário do proposto inicialmente por D. João, quando em 1810 abriu os portos às nações amigas. Seu verdadeiro ideal era que “a emulação e a concorrência resultantes da abertura dos portos despertariam as indústrias do país do letargo em que jaziam”.54 50 RAMIREZ, 1968, p. 214. 51 Op. cit., 1968, p. 215. Staatskanzlei. Brasil: despacho para o Rio de Janeiro, de 10 de abril de 1820. 52 CERVO, cap. I, p. 22. 53 FAUSTO, 1995, p. 147. 54 VIOTTI da Costa, p. 80. 106 O comércio austro-brasileiro poderia ter sido facilitado, caso uma pesquisa sobre os produtos mais usados no Brasil tivesse sido enviada à Áustria, para que pudessem adaptar os produtos austríacos ao mercado de necessidades brasileiras. “Em 1857 o Conselho Imperial de Comércio enviou uma coleção de artigos de exportação. Esta expedição confirmou que não se haviam escolhido modelos para corresponder às necessidades do comprador brasileiro.”55 As roupas enviadas não eram próprias para o clima tropical brasileiro, e grande número de outros fatores de que dependia o sucesso do comércio não tinha sido levado em conta. Os comerciantes austríacos não possuíam um estudo sério sobre as condições e necessidades do mercado brasileiro. Segundo os representantes austríacos: O ano de 1877 é talvez o ano decisivo nas relações comerciais entre os dois países uma vez que conseguiram proporcionar alguma relação, não muito significativas, mas faz parte da histórias das relações entre os dois países; depois desse ano, os esforços da Áustria concentravam-se crescentemente em outros estados da América do Sul, enquanto decresciam no Brasil. Não ocorreu nenhum renascimento. As missões futuras, ainda que ressaltassem as antigas dificuldades e sugerissem modificações, aceitaram a ruptura entre a Áustria e o Brasil como fato consumado. Os relatórios comerciais observaram que o único produto austríaco ainda encontrado no mercado da Bahia era o trigo de Trieste .56 As relações entre as duas nações não deram certo na maior parte, porque o mercado da Áustria, por natureza fechado, não conseguia realizar bons negócios em outros continentes, principalmente com um oceano separando as duas nações. As mercadorias austríacas nunca foram capazes de competir com as inglesas e francesas no Brasil. 9 CONCLUSÃO Embora a Áustria e o Brasil tenham tentado estabelecer firmes laços políticos, o que restou foram somente heranças culturais e fracos laços familiares. Talvez as relações não tenham se intensificado não somente pela distância geográfica existente entre os dois países, mas também pelas divergências entre os representantes austríacos, fortemente preparados para influenciar pertinentemente o Brasil e o governo brasileiro, que não possuía uma tradição diplomática tão hábil como a austríaca, a ponto de influenciar a Áustria com idéias brasileiras. A base mais significativa da aliança austro-brasileira foi, sem dúvida, a solidariedade dinástica resultante do casamento da Imperatriz D. Leopoldina com o Príncipe D. Pedro I. No que trata das relações culturais fica claro, até hoje, que ambos se influenciaram. A presença de D. Leopoldina apresentou ao povo brasileiro um pouco de uma das culturas mais refinadas da Europa, a austríaca. A apresentação da cultura brasileira na Áustria ficou por conta dos exploradores austríacos que levaram não somente um 55 RAMIREZ, 1968, p. 233. 56 RAMIREZ, 1968, p. 236 107 pouco da fauna e da flora brasileira, como também suas lendas e tradições. A respeito da imigração austríaca para o Brasil, pode-se dizer que, praticamente, ela quase inexiste, em razão das dificuldades proporcionadas pelas leis austríacas e pela má condição de vida que o Brasil proporcionava aos imigrantes. Já as relações comerciais entre os dois países não foram bem-sucedidas, porque o comércio com o Brasil estava sob completa e total submissão à Inglaterra. Podemos concluir, por meio do estudo feito para realização deste trabalho que a relação Brasil e Áustria não foi o que de melhor se esperava no que diz respeito a política e comércio, mas obteve completo sucesso nas relações diplomáticas e culturais, que permanecem até hoje. BIBLIOGRAFIA CALDEIRA, Jorge. História do Brasil. São Paulo : Companhia das Letras, 1997. CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. São Paulo : Ática. COSTA, Emília Viotti da. In: MOTTA, Carlos Guilherme (org.). Brasil em perspectiva. FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo : EDUSP, 1995. KAISER, Glória. Dona Leopoldina: uma Habsburg no trono brasileiro. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1997. MARTINS, Wilson. Um Brasil diferente. São Paulo : Anhembi, 1955. RAMIREZ, Ezekiel Stanley. As relações entre a Áustria e o Brasil: 1815-1889. São Paulo : Nacional, 1968. ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre : Globo, 1969. RODRIGUES, José Honório. Uma história diplomática do Brasil, 1531-1945. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1995. SANTOS, Carlos Roberto A. dos. História da alimentação no Paraná. Curitiba : Fundação Cultural de Curitiba, 1995. VIANA, Hélio. História diplomática do Brasil. São Paulo : Melhoramentos, 1969. 108 RELAÇÕES ENTRE BRASIL E FRANÇA, NO PERÍODO DE 1822 A 1889 Carolina Camargo de Lacerda Ricardo Salini Abrahão Thais Aranão Bastos Acadêmicos de Relações Internacionais, Faculdades Integradas Curitiba SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Visão inicial. 3 Primeiro Reinado. 4 Período Regencial. 5 Segundo Reinado. 6 História das relações comerciais entre Brasil e França. 7 Personalidades francesas. 8 Conflitos territoriais. 9 Entrelaçamento das culturas. 10 Conclusão. Bibliografia. 1 INTRODUÇÃO As idéias da Revolução Francesa causaram impactos profundos no sistema até então vigente. A burguesia foi elevada ao poder e o absolutismo foi abolido assim como o que restava das instituições medievais. Neste trabalho será mostrado um pouco da extensão das relações entre Brasil e França e da presença francesa na política, nas instituições culturais e até mesmo na história brasileira. É de vital importância estudarmos o início dessas relações diplomáticas e culturais para entendermos a intensidade da influência francesa no Brasil, sendo a história o principal instrumento utilizado para este estudo. Apesar de ser um assunto de grande relevância, constata-se significativa escassez de livros que tratem do assunto. Como fonte principal para a elaboração deste trabalho, foi ultilizado o livro Brasil-França ao longo de 5 séculos, de Tavares. Em seu livro, o autor nos mostra a história comum desses dois países durante um longo período de tempo, salientando a clara influência da França nos assuntos nacionais brasileiros. Trataremos do período que vai da Independência do Brasil até a Proclamação da República. 2 VISÃO INICIAL 2.1 Vínculos que ligam a história da França e do Brasil desde o período colonial O Brasil acabara de ser descoberto, e a França vivia numa época brilhante de renovação literária, artística e científica. Era o Renascimento. 109 Os portugueses colonizaram o Brasil, e com eles vieram os primeiros franceses.1 Os primeiros contatos entre franceses e indígenas ocorreram em função do mútuo interesse pelo comércio do tão cobiçado pau-brasil.2 Esse comércio aconteceu de maneira informal, e o porto de Honfleur3, na França, foi o responsável pelas primeiras entradas de pau-brasil em território francês. Os franceses se voltaram para o Brasil logo após a descoberta da nova terra. As relações entre os dois povos teve início a partir desse momento e perdura até a atualidade. 2.2 Exploração do pau-brasil O pau-brasil foi a riqueza brasileira que mais trouxe rivalidade e atração entre os povos conquistadores. Era um produto que pintava as vestes da pompa eclesiástica, dava qualidade a móveis de alta categoria, sustentava orçamentos públicos e dava o seu próprio nome à terra, além de, em pleno período de expansão da navegação, construir navios que se tornavam mais duros e resistentes quando colocados na água. Os pausde-tinta, como eram denominados, custavam caro na França. O rei de Portugal não admitia a navegação de outras bandeiras em mares que lhe pertenciam e da mesma forma não permitia a exploração de riquezas de um país que estava sob seu domínio. No entanto, isso jamais se tornou um empecilho para a entrada dos franceses no Brasil, pois eles não respeitavam o monopólio português sobre as colônias. Os franceses estavam preocupados em comercializar o pau-brasil e, ao contrário dos portugueses que utilizavam os índios como mão de obra na exploração do território, eles preferiam utilizá-los como aliados, procurando estabelecer outro tipo de relação, principalmente comercial feita por troca de interesses. A primeira grande expedição ao Brasil com o objetivo de explorar o pau-brasil foi a de Binot Paulmier de Gonneville, quando os franceses tentaram fundar aqui uma colônia.4 3 PRIMEIRO REINADO 3.1 Um Brasil independente Desde o descobrimento do Brasil até a conquista de tornar-se uma nação independente, os franceses é que estavam voltados para o Brasil. Eles exportavam sua cultura, seus artistas, cientistas, homens de imprensa, seus modelos de vida social, enfim muitas informações que tiveram uma grande influência sobre a cultura brasileira. ¹ Denunciações de Pernambuco, 1929, p. 315. ² Gilberto Freyre fala a respeito deste contrabando em seu livro Um engenheiro francês no Brasil (p. 21). Lyra A de Tavares comenta sobre esta terra sem dono, em seu livro Brasil-França ao longo de 5 séculos. ³ TAVARES, 1979, p. 28. 4 Conforme relata A. de Lyra Tavares em seu livro Brasil-França ao longo de 5 séculos, por meio de Binot Paulmier de Gonneville, ocorreu a primeira grande expedição francesa no Brasil, com o objetivo de fundar aqui uma colônia que se manteve por dez anos, de 1555 até 1565, quando foi abatida pelos portugueses. 110 Podemos tomar como exemplo dessa influência, o conjunto de idéias de liberdade, igualdade e fraternidade que corriam pela França e iriam mais tarde ajudar no processo de Independência do Brasil que se deu no intervalo entre a Revolução Francesa e a era napoleônica. As idéias liberais, que levaram o povo francês à Revolução de 1789, repercutiram enormemente no Brasil, como, por exemplo, na Revolução Praieira de Pernambuco e, antes disso, na frustrada Inconfidência Mineira e em outros movimentos de intensidade menor. A Independência viria com o Império e foi resultado da transferência da Corte portuguesa para o Brasil, por causa da invasão napoleônica em Portugal e da crise da sucessão portuguesa, que colocou a autoridade real de D. João VI em perigo. O território de Portugal sofreria a invasão de três tropas francesas, a de Junot, que entrou em Lisboa sem deparar-se com resistência, uma vez que o governo português já havia embarcado para o Rio de Janeiro; a de Soult, que penetraria pelo norte no território lusitano; a de Massena, na qual a marcha, composta de oitenta mil homens, foi detida pelas fortificações de Torres Vedra. Depois da Independência, o Brasil se voltou para a França. Enquanto os ingleses dominavam o comércio de produtos, como sapatos, tecidos e ferramentas, os franceses nos vendiam artigos requintados, como chapéus, jóias, leques, perfumes, livros da moda... As relações que se identificaram durante séculos de história comum, a partir desse momento tomam um novo rumo, e passam para o plano de relações entre Estados soberanos. 3.2 D. Pedro I D. Pedro I reinava no Brasil na época em que explodiu na França a Revolução de Julho de 1830, fazendo com que Luís Filipe fosse coroado rei da França com o nome de Luís Felipe I. Este escreveu ao monarca brasileiro quase imediatamente após a sua coroação com o intuito de estabelecer relações diplomáticas amigáveis entre os dois países. Conforme relata TAVARES5, o Rei Luís Filipe, depois de ascender ao trono da França não tardou em manifestar, em carta dirigida a D. Pedro I, a sua amizade e seu interesse de estreitar as relações do governo da França com o governo do Brasil. Meu irmão e primo (era o tratamento da época): Certos acontecimentos, como sabeis, tinham perturbado a paz interna da França e pareciam ameaçá-la de maiores calamidades. Convocado pelo voto das duas Câmaras, com o assentimento geral da Nação, eu aceitei o trono, com o título de rei dos franceses. Meus sentimentos pessoais são bem conhecidos de Vossa Majestade para que me seja necessário recapitular todas as minhas provações nessa conjuntura. Sofri com as desgraças dos meus antecessores de família: minha única ambição teria sido a de enviá-las e ficar onde a Providência me havia colocado. Mas as circunstâncias eram imperativas. Tive que enfrentá-las: a menor hesitação da minha parte poderia mergulhar o reino em desordens de termo imprevisível, capazes de comprometer essa paz indispensável à felicidade de todos os Estados. Em circunstâncias tão graves, minha primeira necessidade é assegurar a Vossa Majestade a firme resolução em que me encontro de nada omitir para fortalecer e estreitar os laços de amizade e de boa harmonia que existem entre os dois países. 5 Op. cit., p.190. 111 Tenho razões para esperar que Vossa Majestade comungará com minhas disposições e me ajudará a atingir esse fim, tão importante para a tranqüilidade do mundo. Aproveito com solitude esta oportunidade para exprimir a Vossa Majestade a segurança da alta estima e inalterável amizade com que sou, o bom irmão e primo, Luís Filipe Paris, 22 de agosto de 1830 Menos de um ano depois, no dia 7 de abril de 1831, D. Pedro I abdicou6, tornandose, então, duque de Bragança. D. Pedro I, mesmo depois de abdicar, era uma figura importante no cenário internacional, e não convinha à França que ele fosse à Inglaterra. Assim, Sebastiani, ministro francês dos Negócios Exteriores, solicitou a Talleyrand todo o seu empenho para que D. Pedro I fosse a Paris. No mesmo mês de abril, ele embarcou na fragata Volage para Cherburgo, aonde chegou, em 12 de junho de 1831, seguindo logo após para Paris com o intuito de encontrar-se com a filha bastarda que teve com a famosa Marquesa de Santos, legitimada sob o nome de Isabel Maria de Alcântara Brasileira, a duquesa de Goiás, e preparar a luta contra D. Miguel, em Portugal. Já em Paris, em setembro de 1831, Luís Filipe, para receber D. Pedro I como hóspede especial, mandou preparar o Castelo de Meudon. Nessa época, um dos assuntos mais em foco na França era o problema da sucessão portuguesa, o que justificava a atenção provocada pela presença do ex-imperador do Brasil, filho de D. João VI e herdeiro direto da Coroa de Portugal. Além de estar interessado na sua ação em Portugal, Luís Filipe era o sogro da filha do então duque de Bragança, Francisca, agora princesa de Joinville. D. Pedro organizava em Paris a intervenção militar em Portugal e tentava reunir forças para enfrentar a luta contra seu irmão D. Miguel. Aproveitou sua estada em Meudon para receber visitas importantes, passear em Paris e freqüentar teatros sempre na presença de Dona Amélia e de sua filha bastarda, a duquesa de Goiás, o que despertava grande curiosidade por parte dos franceses. Enfim as forças de D. Miguel foram sitiadas na região do Porto e os esforços de D. Pedro foram coroados com sucesso, pois sua filha ascendeu ao trono português, como D. Maria II. 3.3 Brasil e França, países de exílio um para o outro Segundo Tavares, os cinco séculos das relações históricas entre Brasil e França nos mostram que se tornou um costume o Brasil servir de refúgio ou de exílio para a França e vice-versa. Tais situações facultaram um maior entrelaçamento socio-cultural entre esses dois povos. Como prova desse tipo de relação, temos a expedição de Villegaignon, patrocinada por Coligny, cujo objetivo era instalar no Novo Mundo um refúgio para os adeptos da Reforma Religiosa de Calvino7. Com esse episódio o Brasil se tornou terra de exílio, que além de acolhedora, era favorável à divulgação dos credos e das idéias defendidas. No período em que Napoleão foi derrotado na Batalha de Waterloo, pelos ingleses, e que foi exilado em Santa Helena, o Brasil acolheu em grande número, tanto franceses 6 Abdicação de D. Pedro I se deu após a revolta no Rio de Janeiro, provocada pela nomeação do Ministério dos Marqueses, impopular e acusado de tendências absolutistas e favorável a Portugal. 7 A partir de 1555 a presença dos franceses tornou-se efetiva e marcante, uma mostra disso foi a expedição colonizadora em Guanabara, comandada pelo vice-almirante, da Bretanha, Nicolas 112 adversários como amigos de Napoleão. Estes organizaram um plano para libertá-lo, cuja expedição tinha bases nos Estados Unidos e no Nordeste brasileiro. Outro caso foi o exílio de Dirk van Hogendorp, que nasceu na Holanda e havia sido o mais notável e direto servidor de Napoleão, assim como outros franceses que vieram para o Brasil a fim de viver na quietude modesta e nobre da chácara do sopé do Corcovado, no Rio de Janeiro. Como a França servindo de exílio para o Brasil, temos que citar o exemplo dos irmãos Andradas na cidade de Bordeaux.8 3.4 José Bonifácio O desejo pela liberdade fez com que o Brasil fosse conduzido à realização de sua independência. Esse desejo veio de 3 pólos: o primeiro foi Paris, que era o centro difusor de idéias liberais e ponto de negociação com os poderes monárquicos da Santa Aliança, além de ser o centro de cultura, de manifestações artísticas, de costumes e da moda; o segundo era Lisboa, a capital da Metrópole portuguesa; o terceiro ficava no Rio de Janeiro que, além de ser a capital do País, tinha grandes influências francesas desde que a corte de D. João VI se instalou ali em 1808. Por essa razão, era principalmente nessa cidade que se encontrava o povo brasileiro desejoso por liberdade. O processo de independência do Brasil teve como bases os valores da cultura francesa, trazidas por D. João VI em 1808. O paulista José Bonifácio de Andrada e Silva, o Patriarca da Independência brasileira, foi politicamente influenciado pelos franceses. José Bonifácio embora não tivesse nenhum compromisso com a Revolução Francesa, teve contato direto com ela, podendo até acompanhar as manifestações do povo, o que foi de grande importância na sua formação de estadista. Em 1790, ele foi aluno e admirador de dois cientistas franceses amigos de Robespierre: Fourcroy e Chaptal. José Bonifácio era um cientista brilhante, diplomado em Direito pela Universidade de Coimbra e voltado para os estudos das ciências exatas. Sua atuação foi decisiva na formação do Império do Brasil, pois nas lutas pela preparação da Independência assegurou a unidade de espírito e do território brasileiro. Por ser uma obra difícil e Durand de Villegaignon. Queriam estabelecer uma França Antártica para servir de centro e de refúgio aos reformadores de Calvino, vítimas de perseguições e da intolerância dos católicos. 8 O Brasil ainda era governado pelo príncipe regente, D. Pedro I, em 3 de junho de 1822, quando foi convocada uma assembléia que tinha a finalidade de elaborar a primeira Constituição do Brasil. Mas em razão da dificuldade de comunicação, o trabalho do projeto constitucional foi iniciado somente em 3 de maio de 1823 pelos representantes do Partido Brasileiro, que era formado por ricos proprietários de terra, cujo principal líder era Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, irmão de José Bonifácio de Andrada e Silva e Martim Afonso Andrada. D. Pedro I resistiu em aceitar o conteúdo do projeto constitucional, uma vez que seus poderes seriam diminuídos. Então, D. Pedro simpatizou com o Partido Português que tinha, assim como ele, ideais absolutistas. Diante dessa resistência por parte do príncipe, o Partido Brasileiro começou a fazer oposição pública por meio de jornais, como, por exemplo, A Sentinela da Liberdade, em que os irmãos Andrada controlavam uma campanha de críticas a D. Pedro. Este, com a ajuda das tropas imperiais, dissolveu a Assembléia Constituinte, no dia 12 de novembro de 1823. Inúmeros representantes do Partido Brasileiro ficaram descontentes e reagiram ao decreto de D. Pedro, mas foram presos. Dentre eles, encontravam-se os irmãos Andrada, que foram expulsos do Brasil e se exilaram na França. 113 notável, ele achava que a Independência deveria vir com a formação de um Império e não com uma República. José Bonifácio foi um homem de grande feitos, pois além de combater os franceses de Napoleão, no Batalhão Acadêmico de Coimbra, foi assessor e braço direito do Príncipe D. Pedro . Mais tarde, ele voltaria à França, onde residiria em uma casa localizada na esquina das ruas Palais e Galien. 3.5 Louis Alexis Boulanger O francês Louis Alexis Boulanger, nascido em La Fire, no Aisne, no dia 2 de abril de 1798, foi responsável pela escrita dos brasões do Império Brasileiro e pelo desenho de armas, criando dessa maneira uma espécie de nobreza no Brasil que tinha como distintivo insígnias heráldicas. Boulanger morava no Rio de Janeiro, desde sua vinda de Paris no dia 30 de outubro de 1826, no Hotel de France, na Rua do Ouvidor, que mais tarde se tornaria uma rua praticamente francesa. Apesar de ter um grande espírito francês, o que podemos notar pela sua biblioteca, onde se encontram livros de Voltaire, Diderot, D’Alembert, Montaigne, La Bruiyère, ele se dedicou ao estudo do Brasil por considerá-lo como segunda pátria, chegando até mesmo a naturalizar-se como cidadão brasileiro Mais tarde, vai tornar-se tutor de D. Pedro II, dada a sua profissão de litógrafo, retratista e por ser extremamente dedicado aos assuntos artísticos. O desenhista francês morreu no Brasil aos 73 anos. 3.6 Saída de brasileiros para a França A cultura francesa estava muito presente no Brasil, e um reflexo disso foi o interesse espontâneo e até exagerado dos brasileiros em estudar na França. Com a liberdade política do Brasil ocorreu um certo desenvolvimento nacional. Portanto, era necessária a formação de elites que preparassem as grandes tarefas reclamadas por esse desenvolvimento. A França foi a fonte principal que proporcionou instrução para professores, selecionou brasileiros para cumprir atividades de que a nação necessitava e deparou-se com o movimento espontâneo dos estudantes brasileiros que procuravam freqüentar as suas escolas. Porém o movimento de estudantes em direção à França foi excessivo e descontrolado, uma vez que sem capacidade financeira os mesmos iam para a França e encontravam-se sem recursos. Isso motivou o ofício de 12 de novembro de 1824 enviado pelo representante do Brasil na França, Borges de Barros, ao ministro do Exterior do Brasil. A afluência de brasileiros para este país aumenta, dia a dia, e esse fato, que alguns julgam do seu dever aplaudir já se transforma numa espécie de mania que exige atenção dos poderes públicos. Sem planos para o futuro nem outra ambição que a de cair no ridículo e no vício, muitos viajam para a França e aqui cedo se encontram sem recursos. A miséria constrange ao vício e mesmo ao crime o que não tem nobreza de alma – e essa nobreza é pouco difundida. Muitos me têm pedido ajuda. Eu não faço mais do que me é 114 possível e eles continuam a dilapidar os meus bens. É indispensável, contudo, socorrê-los para que eles não cubram de vergonha o nome de brasileiros. Torna-se por isso importante não permitir a vinda para a França senão às pessoas que disponham de meios para viver aqui. Rogo, pois, a Vossa Excelência propor, com urgência, providências a respeito, como eu já tenho solicitado e volto a reeiterar, porque o mal aumenta. A formação dos quadros dos serviços públicos era feita, em sua maioria, nas escolas francesas, incluindo os que iriam servir à Marinha e ao Exército brasileiro. Quanto à Marinha o ofício de 11 de maio de 1824 foi muito importante na história das relações franco-brasileiras, pois, uma vez que o governo brasileiro sentia falta de brasileiros capacitados para equipar sua frota de guerra, foi obrigado a apoiar a vinda de marinheiros franceses para cá .9 Vossa Excelência tem todos os poderes para dirigir-se ao ministro Chateaubriand e alistar tantos marinheiros quanto possível, como trata-se de artistas, agricultores..., escolhendo de preferência, os habitantes dos portos e costas marítimas. Esses homens serão mais dados à navegação e se adaptarão melhor ao nosso país cujas costas são mais povoadas. Os contratos serão nominais e o transporte ficará a cargo do Governo brasileiro. Luiz José de Carvalho e Mello, ministro dos negócios exteriores do Brasil 4 PERÍODO REGENCIAL A notícia da Revolução de 1830 na França e a queda de Carlos X, marcando o fim das monarquias absolutistas francesas, se espalhou rapidamente no Rio de Janeiro e por todas as províncias, causando grande repercussão no espírito nacional. Rocha Pombo afirma em seu livro História do Brasil, que não faltou quem fizesse logo uma curiosa analogia entre o que se passava na França e as ocorrências que se davam no Brasil desde 1822.10 Em São Paulo, estudantes de Direito saíram às ruas para comemorar o fato e foram presos. Líbero Badaró, redator do periódico Observador Constitucional, defendeu os moços e foi assassinado. A morte de Badaró, considerado um mártir da liberdade, causou uma onda de agitações políticas e movimentos liberais que atingiram enormemente a autoridade do Imperador D. Pedro I. No dia sete de abril de 1831, D. Pedro I, tendo perdido o apoio popular e com seus olhos voltados para o problema da sucessão portuguesa, abdicou em favor de seu filho D. Pedro II, que nessa época ainda não havia completado seis anos. O espaço de tempo que vai da abdicação de D. Pedro I ao golpe da maioridade e conseqüentemente à ascensão de D. Pedro II ao poder é denominado Período Regencial. Nessa época surgiram idéias revolucionárias em várias regiões do Brasil, influenciadas principalmente pelos ideais franceses. Pela grande distância existente entre o Nordeste e a capital, o Rio de Janeiro, e também pela autonomia conservada por 9 10 Op. cit., p 172. POMBO, 1953, 292. 115 seus líderes políticos que não sofriam influência do poder monárquico central, o Nordeste era considerado quase como um outro “Brasil”. Assim, ressurgiu em Pernambuco, o movimento liberal com bases nas tradições francesas, sempre presentes no espírito de nosso povo. O líder da onda liberalista pernambucana era Antônio Francisco de Paula Holanda Cavalcanti. Ele defendia as suas idéias com muito ardor e dinamismo e mantinha relações pessoais com o representante da França no Brasil, Edouard Pontois. É de espantar a atitude tomada por Holanda Cavalcanti, um líder político com poder capaz de imobilizar forças políticas importantes nacionais e até mesmo internacionais. Negociou com o representante da França um projeto de secessão do Brasil pelo qual o País seria dividido em dois reinos, o do Norte, a partir da Bahia, e o do Sul. O escritor Alberto RANGEL, em seu livro Textos e pretextos11, escreve: “Em despacho número 75, de 28 de setembro de 1830, o alto representante da França no Brasil (Edouard Pontois) enviou ao Conde Sebastiani, Ministro de Estrangeiros sob Luís Filipe, com abundantes considerações e esclarecimentos, as grandes linhas do cometimento no qual via as mais altas vantagens para que merecesse toda a atenção e apoio do seu governo.” O conde recebeu o projeto de secessão do Brasil e o enviou a Luís Filipe. O rei francês, por vários motivos, como o parentesco existente entre ele e o imperador do Brasil, e para não descumprir o Tratado de Utrecht no que dizia respeito às fronteiras do Brasil com a França na região Amazônica, não aceitou o projeto. O governo da França acompanhava de perto os acontecimentos políticos brasileiros da época, prova disso é que aqui dispunha de uma frota naval ancorada no porto do Rio de Janeiro, pronta para apoiar o nosso governo quando este solicitasse e, é claro, quando a medida fosse de acordo com os interesses da política exterior francesa. Nesse período de regência o que se mostra evidente é a ameaça que pesava sobre a unidade nacional ainda não solidificada no momento em que o Brasil começava a ensaiar seus primeiros passos. 5 SEGUNDO REINADO 5.1 Casamento entre Orléans e Braganças A união entre as famílias reais de Orléans e Braganças se deu a partir do casamento entre François-Ferdinand-Philipe D’Orléans, o príncipe de Joinville, filho do Rei Luís Filipe D’Orléans, rei dos franceses e sucessor de Carlos X, com a princesa Francisca de Bragança, filha de D. Pedro I. François chegou ao Brasil em uma viagem da Marinha e se apaixonou pela princesa brasileira logo no primeiro encontro. Conta a crônica da época que o casamento foi o final feliz de um verdadeiro romance. Afirma-se que resultou muito mais das inclinações recíprocas dos dois jovens do que das conveniências políticas, ou de negociações diplomáticas entre as duas famílias, como era de costume entre famílias imperiais. 11 RANGEL, 1926. 116 Mais tarde, em 1869, Gastão D’Orléans, o Conde D’Eu, neto de Luís Filipe, casouse com Isabel de Bragança, filha e herdeira do Imperador D. Pedro II. Em 9 de agosto de 64, a bordo do vapor Paraná, fizeram a travessia do Atlântico dois rapazes do melhor sangue europeu. Eram primos, um Orléans, outro Coburgo. Chegaram ao Brasil em 2 de setembro. O primeiro seria de Leopoldina, e o segundo de Isabel. Mas o destino quis o contrário como nos revela uma página do diário de Isabel. Ela assim escreveu: “Chegaram o conde d’Eu e o duque de Saxe. Meu pae desejou essa viagem com o fito de nos casar. Pensava-se no conde d’Eu para a minha irmã e no duque de Saxe para mim. Deus e os nossos corações decidiram diferentemente.12 O Conde D’Eu preferiu Isabel, e D. Pedro II aceitou para príncipe consorte o sobrinho de sua irmã Francisca. Em 11 de outubro lavrou-se a escritura pré-nupcial, a Corte inteira participou das cerimônias. A lua-de-mel se deu em Petrópolis e teve como continuação a Europa, onde Isabel conheceu o nobre sogro Nemours, a sua tia Francisca de Bragança casada com o príncipe de Joinville, os condes de Paris e outros nobres franceses. No caso de um 3o reinado com a abdicação de D. Pedro II, o Conde D’Eu, por ser casado com a herdeira do trono brasileiro, servia de alvo aos críticos nacionalistas e republicanos da época. Heitor LYRA, no seu livro A queda do império diz que Se a opinião pública acabasse, apesar de tudo, se conformando em aceitar a Princesa Imperial como Imperatriz, o que dificilmente toleraria seria a presença do marido ao lado dela. Não obstante as provas por ele dadas de interesse e mesmo de afeição ao Brasil e aos brasileiros, da perfeita correção que sempre mantivera ao lado da mulher, inclusive nas vezes em que ela exercera a Regência do Império, e do seu comportamento exemplar na Guerra do Paraguai – bem poucos estavam dispostos à reconhecer suas qualidades.13 No quadro brasileiro da época, dominado pelas paixões políticas e pelo movimento republicano, os líderes e os jornais que combatiam a Coroa, encheram-no de apelidos – o Francês, o Marroquino, o Exportador de cortiços –, tornando assim cada vez mais difícil para a opinião pública identificá-lo na sua verdadeira figura, fiel a causa do Brasil, pelo qual lutou com bravura e jogou a vida na Guerra do Paraguai. 5.2 Perfil de D. Pedro II O novo imperador do Brasil foi educado segundo os modelos franceses, como era próprio da época. Seu mestre principal foi o francês Alexius Boulanger que se encarregava da caligrafia, das letras grossas e da Geografia e História. Os outros eram o Reverendo Boiret, emigrado francês professor de leitura ou de primeiras letras, sendo dessa forma o imperador alfabetizado em francês; o pintor Félix Emilio Taunay para ensinar-lhe o desenho e a pintura; o tutor José Bonifácio. Foi principalmente para a França que D. Pedro se voltou, e daí vieram as preferências não apenas pelos livros, como também pelas relações pessoais com os grandes nomes da cultura francesa. Como exemplo das ilustres amizades que o imperador cultivava na França, temos Victor Hugo, o autor mais lido e venerado do Brasil. 12 H. LYRA, 1964, 400. 13 H. LYRA, 1964 117 Graças à sua cultura, D. Pedro conquistou a amizade e a admiração das figuras mais representativas do liberalismo francês. No Brasil, as elites, os homens de pensamento e os estudantes se formavam principalmente em francês, a segunda língua mais falada no Brasil, perdendo apenas para o português. As maiores e melhores livrarias do Brasil eram francesas, como, por exemplo, a Garrald, em São Paulo, a Garnier e a Briguiet, no Rio de Janeiro. D. Pedro criou estabelecimentos de ensino mantidos pelo Estado, já que os poucos existentes na época, com exceção das ordens religiosas, eram de caráter privado, e se empenhou em contratar professores estrangeiros para lecionar no Brasil. Em 1874, o imperador convidou o francês Henri Claude Gorceix com grande experiência na Escola Normal Superior de Paris e na Escola Francesa de Atenas para montar no Brasil uma Escola de Minas. Foi ele o fundador da Escola de Minas de Ouro Preto. 5.3 D. Pedro II na França (1871-1872) Em 26 de junho de 1871 o imperador e sua comitiva chegaram à França fortemente abatida pela ocupação alemã após a guerra franco-prussiana, e pelas lutas da Comuna. D. Pedro II era a primeira personalidade estrangeira a visitar a França após a queda do Império. Não era um momento apropriado para uma visita ao país, por isso D. Pedro II apenas passou rapidamente pelo território francês, deixando para mais tarde a visita longa a Paris, às suas instituições culturais e aos seus sábios. Após visitar a Inglaterra, a Bélgica, a Alemanha, a Áustria, o Egito e a Itália, D. Pedro II retornou à França, por Estrasburgo, chegando a Paris na noite de 15 de dezembro. Uma multidão o esperava, além da representação oficial do governo francês, da representação diplomática brasileira, e de sua irmã Francisca e do príncipe de Joinville . Hospedado no Grand Hôtel, no Boulevard des Capucins, D. Pedro II ocupou o Pavillion de L’Ópera, com saída particular isolada dos outros hóspedes, mobiliado com muito luxo e cuidado pelos antigos guardas do Palácio das Tulherias. Apesar de esclarecer a todos que viajava em caráter particular, o imperador não teve como impedir que o governo francês desse a maior importância à sua visita. O Jornal do Comércio assim publicara: “Onde Suas Majestades tiveram de passar, foram os mesmos augustos senhores cumprimentados pelas principais autoridades com guardas de honra, e prontas para lhe fazerem todos os obséquios. S. M. o Imperador, porém, os dispensou sempre, agradecendo muito, mas declarando que viajava inteiramente como qualquer particular.”14 Já na França, quase todos os jornais parisienses escreviam sobre a personalidade esclarecida e instruída do imperador, como, por exemplo, o Le Figaro: “Um dos monarcas mais esclarecidos do mundo, modelo que devia servir aos monarcas constitucionais.”15 Os dias na capital francesa propiciaram ao imperador o tão benquisto convívio com os “sábios”, com a nata da sociedade e do espírito francês. Assistiu à várias reuniões, como as da Sociedade de Geografia de Paris, compareceu a bailes e era grande freqüentador do teatro francês da Rua Richelieu, movimentando assim as indústrias, as ciências e as artes parisienses. Poucos dias após a sua chegada, D. Pedro II, com Gobineau e a condessa de Barral, 14 Jornal do Comércio, seção “Gazetilha”, “Viagem de SS. MM. Imperiais”, 3 de agosto de 15 Le Figaro, tomo 1871/72, Paris. 1871. 118 servindo de intermediários, recebeu a visita de Renan16, personalidade de suas maiores admirações. Retribuiu-lhe a visita indo ao Instituto da França, com o objetivo de escutar seu discurso como presidente da Académie des Inscriptions et Belles-Letteres. O imperador assistiu a várias reuniões do Instituto e da Academia de Ciência, onde se encontrou com Renan, conhecendo de perto Jules Simon17, Jean-Baptiste Dumas18, Eugéne de Lhuy, três vezes ministro dos Negócios Estrangeiros da França. Dentre outros sucederam-se os contatos com artistas como Rémusat19 e Morin20, e com cientistas do porte de Claude Bernard22. Foi à Academia para assistir aos debates sobre a elaboração do Dictionnaire Historique, e visitou várias outras instituições culturais francesas. Na época, o chefe de governo da França era Adolphe Thiers. Este convidou o imperador do Brasil a visitar Versalhes. D. Pedro II partiu da Estação do Oeste em 24 de dezembro de 1871 acompanhado por uma pequena comitiva. Ao chegar ao Palácio do Petit Trianon, conversou mais de uma hora com Thiers, mas este não se satisfez com um primeiro contato convidando D. Pedro II, dois dias mais tarde, para jantar no Palácio de Versalhes. Em retribuição às gentilezas de Thiers, o imperador convidou-o para um jantar em Paris, o que se realizou na intimidade dos salões particulares do imperador no Grand Hôtel. Em 31 de dezembro de 1871 visitou pela última vez o Instituto da França e partiu em direção a Toulon, Marselha, Nice e depois a Madri. 5.4 D. Pedro II na França (1877) D. Pedro II apenas pôde retornar a Paris, sua cidade preferida, em 1887. Ao entrar no Grand Hôtel, onde reservara todo o primeiro andar, deparou-se com a bandeira brasileira na fachada sobre a Rua Auber. Sendo sua viagem de caráter particular, o imperador pediu que a bandeira fosse retirada. Todos os jornais de 19 de abril publicaram a notícia da chegada do imperador e sua comitiva a Paris. Na manhã seguinte à sua chegada sua majestade já percorria os bulevares, pois queria ver as mudanças pela qual a cidade havia passado de 1871 para cá. 16 Ernest Renan, escritor francês, historiador das religiões, líder da escola revisionista, o filósofo sem crenças. 17 Importante político francês, professor de Filosofia da Sorbonne (1839), deputado republicano de 1863 a 1870, ministro da instrução pública e presidente do Conselho. 18 Químico francês, primeiro a montar corretamente as equações que representam as reações químicas, estabeleceu os fundamentos da atomística moderna, concebeu um método para medir a densidade de vapor e aperfeiçoou a dosagem do carbono, do hidrogênio e do nitrogênio. Foi ministro da Agricultura e do Comércio e presidente do Conselho Municipal de Paris. 19 Professor de Chinês no Collège de France. Deu novo impulso aos estudos da língua e civilização chinesa na França. 20 Sociólogo francês, procurou compreender o “indivíduo sociológico”, utilizando os recursos da sociologia empírica e da observação compreensiva da realidade cotidiana. 21 Fisiologista francês, descobriu a função glicogênica do fígado e criou uma teoria sobre a origem da diabete, o que lhe deu grande notoriedade. Descobriu a existência dos nervos vasomotores e dos nervos excitantes e inibidores do sistema nervoso simpático e teve considerável influência sobre os positivistas da época. 119 A presença do imperador constituía se em um acontecimento não só para Paris, mas também para ele próprio. Logo ao chegar, D. Pedro II visitou a Exposição Universal, foi ainda ao Palácio D’Elyseé cumprimentar o presidente da república, Mac-Mahon. No dia seguinte o Imperador recebeu Mac-Mahon e sua mulher em visita oficial que durou uma hora. Em Paris, D. Pedro II visitou a Exposição Internacional de Horticultura, onde novamente se encontrou com Thiers, compareceu a recepções dadas em sua honra pelo Conde de Paris e pelo presidente Mac-Mahon nos salões de Faubourg St.-Honoré e no Palácio D’Elysée, respectivamente; compareceu também à recepções dadas pela Legação do Brasil e pelo ministro da Instrução Pública, dentre várias outras. O mundo sedutor que é Paris obrigava o soberano brasileiro a movimentar-se sem parar. Todos os domingos ia à missa na Igreja da Madeleine ou na de Saint-Augustin; percorreu a pé várias ruas de Notre-Dame; freqüentou incógnito algumas clínicas e organizações hospitalares; assistiu durante 3 dias às aulas da Escola de Artes e Ofícios e aos cursos do Instituto de Agronomia e da Escola normal; compareceu aos teatros Châtelet, Vaudeville, Lírico, Francês, Odeon e outros. O imperador visitou também a Societé d’Agriculture, da qual era associado, e a Societé d’Hygiène, que escolhera o imperador como presidente de honra. D. Pedro II era freqüentador assíduo da Biblioteca Sainte-Geneviève e da Sorbonne, onde assistiu a várias conferências. Em 24 de fevereiro de 1875, a Academia de Ciências o elegeu sócio correspondente da Seção de Geografia. Nessa temporada parisiense, D. Pedro II freqüentou com grande interesse os famosos institutos científicos e literários e relacionou-se com grandes nomes da cultura francesa, como Claude Bernard, Pasteur22, Renan, Victor Hugo e outros. Sem dúvidas, o contato que despertou maior emoção por parte de D. Pedro II foi o que ele manteve com Victor Hugo. Em 15 de maio de 1877, as vitrines de Paris exibiram seu último livro: L’art d’êntre grand pére. Na manhã de 22 de maio, sem aviso prévio, D. Pedro II bateu à porta de Victor Hugo às nove horas. Dois dias mais tarde, Hugo, cumprindo o combinado, passou pelo Grand Hôtel para deixar ao imperador uma fotografia. Os contatos entre D. Pedro II e Hugo não acabaram nessa primeira visita. Em 29 de maio, ele foi novamente à casa do poeta. A última vez que o imperador viu Victor Hugo foi de longe, fazendo parte do cortejo fúnebre do deputado republicano Edmond Adom. Entre as grandes amizades que o imperador cultivou na França, a mais famosa foi a de Victor Hugo. Era D. Pedro II, por si só, um elo natural entre o escritor e o Brasil. Entre as preciosidades ligadas ao Imperador D. Pedro II, no Instituto Histórico Brasileiro, há um exemplar de L’art d’êntre grand père, onde se lê na primeira folha em branco: “a D. Pedro de Alcântara – Victor Hugo – Paris”, e pregado à página encontrase um envelope com excelente fotografia do poeta com seus netos. Esta traz a assinatura de Victor Hugo. O imperador não permaneceu somente em Paris, aproveitou domingos e feriados 22 Químico e biologista francês. Descobriu os organismos anaeróbicos, foi nomeado decano da Faculdade de Ciências de Lille, foi administrador e diretor de estudos científicos da Escola Normal. Descobriu a causa dos furúnculos e da osteomelite, micróbio denominado hoje estafilococo, conseguiu obter uma vacina contra a raiva para ser aplicada no homem depois de mordido por animal raivoso, o que o consagrou. Em 1888 foi designado chefe do Instituto Pasteur. 120 para visitar Versalhes, Chantilly, Compiègne, Tours, Blois, o Forte de Chântillon e Órleans. No dia 14 de junho chegou ao fim a deliciosa temporada de primavera do imperador, deixando Paris e seguindo em direção à Inglaterra. 5.5 D. Pedro II e seu tratamento na França O problema de saúde do imperador brasileiro foi o motivo oficial da viagem à Europa. Aos 30 minutos de 20 de julho de 1887, D. Pedro II chegou à estação parisiense de Austerlitzer e foi recebido pelas autoridades francesas e por muitos brasileiros. Logo após à sua chegada, foi residência do Barão de Nioac, pois os aposentos no Grand Hôtel estavam reservados apenas a partir de 22 de julho. D. Pedro II visitou o presidente da França, Grëvy, no Palácio d’Elysée. A entrevista durou 45 minutos. Duas horas mais tarde, como era de protocolo, o presidente retribuiu ao imperador a visita feita. Mostrando-se cada vez mais interessado pelas ciências, D. Pedro visitou a Faculdade de Medicina, foi ao Observatório de Paris, foi à exposição permanente da Sociedade de Relevos Geográficos e a várias outras instituições francesas. Assim, movimentando-se em um ritmo intenso, o imperador parecia esquecido do principal motivo de sua viagem a Paris que era a consulta aos médicos. A estação d’águas escolhida pelos médicos franceses foi a de Baden-Baden. Em 30 de julho a estação Lyon se encheu de amigos e representantes do governo, para despedir-se do imperador que partia. O dia era especialmente festivo, pois era o dia do 41º aniversário da Princesa Isabel. Muitos jornais parisienses deram grande publicidade a esse fato e ao bom estado de saúde do imperador. Em Baden-Baden, D. Pedro II iniciou as aplicações de duchas, massagens, ginásticas e passeios pequenos, além de uma dieta a ser rigorosamente seguida pelo mperador. No dia 1º de outubro os soberanos retornaram a Paris via Bruxelas, chegando à cidade em 9 de outubro. Em Paris o imperador teve uma surpresa, pois seus habituais aposentos no Grand Hôtel estavam ocupados, ficando assim com os quartos do fundo. Durante os 21 dias passados na cidade de Paris, o imperador movimentou-se sem parar, mas excluiu os compromissos oficiais. Em 12 de outubro, após uma visita a Pasteur, a imprensa parisiense divulgou a notícia de que seria fundado no Rio de Janeiro, por iniciativa de D. Pedro II, o Instituto Pasteur, sob a direção do Dr. Pereira dos Santos, um dos discípulos de Pasteur. Dez dias depois o imperador foi recepcionado no Collège de France por Renan, com quem teve uma longa conversa. Com o objetivo de homenagear D. Pedro, Renan convidou-o para o jantar anual do Instituto, realizado na noite de 27 de outubro. No dia 28 de outubro, o imperador embarcou para Cannes, a poucos quilômetros de Nice, de Monte Carlo, de Mônaco e de Fréjus; ele podia ir e vir em constante atividade. Esta temporada em Cannes teve de especial a presença de Antônia, neta de D. Miguel de Portugal e sobrinha de D. Pedro II. O nome do imperador não parava de ser citado nos jornais franceses, que publicavam quase diariamente notas sobre a sua saúde. Depois de 6 meses de repouso, o imperador iniciou um cruzeiro pela Riviera italiana. Em princípios de junho, com sua saúde muito debilitada, D. Pedro II deixa Milão e parte em direção a Aix-les-Bains a meio caminho de Bordéus, onde o imperador devia tomar o navio para o Brasil, chegando aqui no dia 22 de agosto de 1888. 121 5.6 Começa o exílio Com a Proclamação da República, D. Pedro II e toda a sua família viajam para a Europa. Às 5 horas do dia 18 de novembro, o Alagoas parte com a família real brasileira. No dia 7 de dezembro, às 7 horas, o Alagoas ancorou. O desembarque em Lisboa se fez com toda solenidade e honras. O imperador instalou-se no Hotel Bragança. A situação financeira da família imperial não era boa, assim como a de muitos do grupo mais chegado ao imperador, assim os amigos mais fiéis se dispersaram para viver em locais mais apropriados. O imperador fixou residência em Cannes, onde conseguiu se manter em plena atividade intelectual. O inverno de 1889/90 foi um dos mais frios dos últimos 50 anos, principalmente na França. Em Paris a temperatura chegou a 15º graus abaixo de zero e o Rio Sena chegou até mesmo a congelar. D. Pedro II aguardava em Cannes para que o clima melhorasse. Em maio teve autorização dos médicos para ir a Paris rever seus amigos. Lá conheceu Eça de Queirós e pode constatar que ambos admiravam profundamente Claude Bernard, Renan, Vigny23, Flaubert entre outros. Depois de uma curta temporada em Paris, o imperador regressou a Cannes. Os médicos sugeriram um tratamento de duchas e ginásticas em Baden-Baden. Antes de ir passar uma temporada na estação de águas, D. Pedro II decidiu passar alguns dias em Voiron, no Castelo da família Barral. No dia 6 de agosto, o imperador e sua comitiva deixaram Voiron com destino a uma longa temporada em Baden-Baden. Em 1º de outubro D. Pedro II estava em Versalhes, chegando a Paris no dia 6 do mesmo mês. Porém, aconselhado pelos médicos, o imperador teve que deixar novamente Paris e regressar a Baden-Baden com a finalidade de continuar seu tratamento hidroterápico, e depois, seguir para Cannes. Em 2 de dezembro, o imperador estava instalado em Cannes, no Hotel Beau Sejour. O ano de 1891, o último de sua vida, começou com um luto. Em 14 de janeiro morre a tão estimada Condessa de Barral. No dia 13 de maio, D. Pedro II foi a Versalhes para ficar com sua filha. Em 25 de maio o imperador estava novamente em Paris, onde comparece à seção da Academia. Depois fez uma pequena viagem ao sul da França, à Alemanha e à Bélgica. Por conselho médico ele deixou Paris para fazer uma estação de águas em Vichy onde permaneceu durante os meses de julho e agosto sob tratamento e controle médico. Em 10 de outubro D. Pedro reentrou em Paris. Já andava com dificuldade. No aniversário de 2 de dezembro, o imperador já se encontrava confinado às quatro paredes de seu quarto no Hotel Bedford. Aos 30 minutos do dia 5 de dezembro de 1891, o mundo deixou de existir para o imperador do Brasil. Às 16 horas do mesmo dia, o corpo foi exposto à visitação pública. Durante toda a noite até as 4 horas do dia seguinte, o imperador foi velado. A notícia da morte de D. Pedro II percorreu rapidamente toda Paris. Depois do Príncipe de Gales, nenhuma outra autoridade estrangeira atingiu maior popularidade em Paris do que D. Pedro II, não apenas nas elites como nas baixas camadas sociais; entre estudantes e personalidades científicas, o imperador 23 Importante escritor francês, publicou primeiramente Poemas (1822), Poemas antigos e modernos (1826), e um romance histórico, Cinco de março (1826), depois publicou Stello (1832), e Servidão e grandezas militares (1835). Em 1845 foi eleito para a Academia Francesa. 122 gozava do mais alto prestígio. O governo francês autorizou exéquias imperiais, não as de chefe de Estado mas as de um rei exilado. A cerimônia foi marcada para dia 9 de dezembro, ao meio dia, na Igreja de Madeleine. Às 13 horas o caixão saiu pela porta principal da igreja. No momento em que apareceu na porta, as tropas estacionadas no Place de la Madeleine apresentaram as armas. A formação militar se compunha de 80.000 homens postados ao longo do trajeto a ser percorrido até o Boulevard de Saint-Germain. O corpo partiria às 20 horas em direção a Lisboa. O trem chegou à Estação dos Soldados, em Lisboa, às 12 horas do dia 12 de dezembro. O corpo do imperador foi exumado no Panteão dos Braganças, ficando colocado entre sua mulher e sua madrasta. Assim chegou ao fim a vida de nosso ilustre imperador, um grande, senão um dos nossos maiores, elos do Brasil à França, aos franceses e a sua cultura. 6 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES COMERCIAIS ENTRE BRASIL E FRANÇA Foi Edouard Gallès um grande impulsor do comércio entre França e Brasil. Em dezembro de 1828, apenas dois anos após a assinatura do primeiro tratado de comércio entre os dois países, foi publicado o livro de sua autoria: Du Brésil, ou observations générales sur le commerce et les douanes de ce pays, suivies d’um tarif de droits d’entrée sur les marchandises françaises, et d’un tableau comparatif des monnaies, poids et mesures. Tradução: Do Brasil, ou observações gerais sobre o comércio e as alfândegas deste país, seguidos de uma tarifa de direitos de entrada sobre as mercadorias francesas, e de uma tabela comparativa das moedas, pesos e medidas. A época do ano que Gallès recomendava como a melhor para viagens da França para o Brasil, tendo em vista as condições atmosféricas, era entre os meses de setembro a março, e o mais favorável era o de dezembro. O Tratado de Amizade, Comércio e Navegação assinado entre França e Brasil, em 8 de janeiro de 182624, estipulava 15% de impostos sobre mercadorias francesas que entrassem em nosso país. Para que os direitos de entrada sobre essas mercadorias fossem apenas de 15% estava estabelecida, nos termos do tratado comercial, a necessidade de que elas viessem acompanhadas de atestado de origem, firmado pelos cônsules brasileiros dos portos de embarque. Os artigos que não viessem acompanhados do atestado de origem francesa cairiam nos direitos de 24%, cobrados de modo geral sobre as mercadorias das nações com as quais o nosso país não tivesse tratados de direitos preferenciais. Pelo tratado de 1826 só eram beneficiados com os direitos de 15% os gêneros, mercadorias e artigos, importados dos portos da França para o Brasil, tanto em navios franceses quanto em brasileiros. A lei de 24 de setembro de 1828 fixara em 15% a taxa de direitos de importação de 24 Esse tratado foi ratificado por carta de lei, de 6 de junho de 1826. 123 todas as mercadorias, sem distinção de procedência. Em 21 de novembro de 1843, foi assinada, entre a França e o Brasil, uma convenção para o estabelecimento de uma linha de “paquetes de vapor” destinada ao serviço regular de correspondência e ao transporte de passageiros entre os dois países. Segundo Edouard Gallès, o serviço de navegação da linha do Brasil poderia ser executado em navios de cerca de 450 a 500 cavalos-de-força e de 1.500 a 1.600 toneladas, os quais com a velocidade de 10 nós realizariam o trajeto de Bordéus a Pernambuco em 20 dias e duas horas; de Bordéus à Bahia em 22 dias e uma hora; e de Bordéus ao Rio de Janeiro em 25 dias e 7 horas. O comércio com o Brasil fazia-se principalmente pelos portos do Havre, de Marselha, e de Bordéus. Em 17 de junho de 1857 foi promulgada a lei fundamental para o estabelecimento da navegação transatlântica a vapor na França. Foi a linha de Bordéus, com destino ao Brasil, a primeira a ser inaugurada. A concessão para a exploração dessa linha de transporte coube à Compagnie des Services Maritimes des Messagéries Impériales. O primeiro navio francês a entrar no Rio de Janeiro em 16 de junho de 1860 foi o vapor Guienne. A seguinte notícia correu o Brasil O vapor Guienne, da nova linha transatlântica francesa, entrou ao nosso porto ontem ao amanhecer, inaugurando assim brilhantemente o serviço postal contratado pela Compagnie des Messagieres Impériales com o governo francês, e assegurando-nos mais uma comunicação mensal, rápida e regular com o continente Europeu. O vapor Guienne que fez a viagem de Bordéus ao Rio em vinte e dois dias e nove horas, compreendidas todas as escalas, é um excelente navio da força de 570 cavalos, de primeira marcha, e de magníficas acomodações. Saudando esta nova linha, confiando que a regularidade de seu serviço corresponderá ao que dela se espera, e desejando-lhe a maior prosperidade, não nos esqueceremos da linha inglesa de Southampton, que iniciou a navegação a vapor com o, Brasil, que tão bons serviços nos tem prestado, e que se tornou digna de elogios por sua nunca desmentida pontualidade.25 É de se notar que antes mesmo da inauguração da linha de navegação Bordéus – Brasil, o governo francês pediu ao nosso que os navios da Compagnie des Services Maritimes des Massagéries Impériales gozassem dos mesmos favores que gozavam os da companhia britânica The Royal Mail Steam Packet Company. As negociações para a identidade de tratamento entre as duas empresas, inclusive a isenção de impostos de ancoragem, culminaram com a assinatura de uma convenção entre o Brasil e a França, promulgada pelo decreto nº 2650, de 27 de setembro de 1860. Segundo o livro de Gallès, a alfândega da capital do Império tinha portas abertas das 8:30 da manhã às 2 da tarde. O expediente era prorrogado nos dias em que o imperador e o ministro iam visitá-la, ou quando havia abundância de mercadorias a despachar. Os principais produtos exportados para a França eram o algodão, o açúcar, as madeiras de tinta, o tabaco e o café. Em contrapartida, o Brasil importava da França os vinhos, as sedas, os artigos de Paris, como tecidos, perfumarias, leques e conservas. 25 Jornal do Commércio, 17 de junho de 1860. 124 7 PERSONALIDADES FRANCESAS 7.1 Victor Hugo e o Brasil Ninguém teve, no Brasil do período, projeção maior ou igual a Victor Hugo. Logo começou o fascínio da sociedade brasileira pelas artes e idéias dessa grande personalidade. Entre os escritores brasileiros, quase todos sofreram influência direta ou indireta de Victor Hugo. Podemos citar, como exemplo, Gonçalves de Magalhães, Gonçalves Dias, Teixeira de Mello, Álvarez de Azevedo, Machado de Assis, Maciel Monteiro e outros que, mesmo sem fazerem poesia social ou revolucionária, recordam Victor Hugo. Na poesia, no mundo do pensamento literário e também no aspecto político a sua influência foi imensa. A sociedade brasileira tinha grande admiração pelo lutador social e político que era Hugo. Edmundo MUNIZ afirmava que Victor Hugo era um poeta eminentemente social: “O fato é que, embora exilado e perseguido, ele foi, na Europa, o brado de revolta conta o despotismo e uma das vozes mais autorizadas na luta pelos ideais democráticos”.26 Percebe-se, então, o porquê da admiração de Rui Barbosa por esse ilustre homem e de suas idéias coincidirem em muitos aspectos. Ubaldo SOARES escreve Ambos – Rui e Hugo – lutaram contra o estado de sítio e a favor da liberdade de imprensa; ambos combateram em prol da paz e da igualdade das nações; ambos advogaram, com o mais brilhante entusiasmo, a libertação da Polônia garroteada pelo infame jugo germanoaustro-moscovita; ambos se enfeitiçaram pelas autênticas conquistas democráticas, Victor Hugo no terreno social, um pouco mais avançado do que Rui; ambos defenderam a causa dos oprimidos onde quer que estivessem.27 Há quem diga que, em 1852, diante do golpe de estado de Luís Napoleão, ao procurar um país de exílio, Hugo pensou em emigrar para o Brasil na companhia de seu amigo Ribeyrolles. No entanto, Ribeyrolles muda-se para o Brasil, e Hugo vai para Guernesey. No exílio, Ribeyrolles escreveu um livro sobre o Brasil rico em informações e em ternura por este país e pelo seu povo: Le Brésil pittoresque. Inúmeras foram as viagens feitas por ele para conhecer o País. São várias as provas de como ele pensava em seu amigo Victor Hugo ao contemplar as belezas das paisagens, ao comentar os acontecimentos sociais e também, ao sentir a cordialidade de seus contemporâneos. Em 1860, Ribeyrolles morreu subitamente. A Câmara Municipal de Niterói mandou construir um jazigo perpétuo de quatro metros de altura, em reconhecimento do que fizera pelo seu país adotivo. A imprensa brasileira dirigiu-se a Victor Hugo, pedindo-lhe um epitáfio para aquele que fora seu companheiro de exílio. Este remeteu os versos com uma expressiva carta ao brasileiros. Eis a tradução feita pelo periódico da época, Constituição28 Ribeyrolles foi ter à vossa pátria e escreveu um belo livro; livro em tudo digno 26 MUNIZ. Carioca, 3 de março de 1943, Rio de Janeiro. 27 SOARES. Carioca, 8 de dezembro de 1949, Rio de Janeiro. 28 Constituição, p. 2, ano XXII, no 61, Fortaleza, domingo, 13 de setembro de 1885. 125 desse admirável país, dessa nobre nação e da vossa história ilustre. Com simpático entusiasmo escreveu ele a vossa ascensão, cada vez mais luminosa, as regiões do progresso. Fraternalmente, em nome da democracia e da civilização fez-vos completa justiça. Algumas páginas do seu livro são lâminas de mármore em que estão gravadas as vossas conquistas gloriosas e prenunciado o vosso brilhante futuro. Ribeyrolles morreu antes de completar a sua obra. Morreu proscrito e pobre. Contraístes uma dívida para com ele e quereis pagá-la com magnificência. Ribeyrolles erigiu um monumento ao Brasil. O Brasil erige um monumento á Ribeyrolles. Honra ao povo brasileiro. Contrair por essa forma uma dívida e por tal meio pagá-la, é ser duas vezes admirável. Quereis um epitáfio para esse túmulo e é a mim que o pedis; quereis enfim gravar o meu nome nesse monumento. Dou o mais alto preço à honra que me dais. Agadeço-vos. Desde o alvorecer da história há duas entidades que dirigem a humanidade: – os opressores e os libertadores. Uma domina pelo mel, a outra pelo bem. De todos os libertadores porém o pensador é o mais eficaz – sua ação nunca é violenta. De todas as forças, a mais suave e portanto a mais ingente é a do espírito. O espírito trucida, esmaga o mal. Os pensadores emancipam o gênero humano. Sofrem assim, e muito, mas triunfam sempre. É sacrificando-se individualmente que eles conseguem salvar seus semelhantes. Morrem muitas vezes no exílio, mas que importa?! O ideal que os animava sobrevive, e a obra da liberdade, começada em sua vida, prossegue depois da sua morte. Ribeyrolles era um libertador; tinha por objetivo a liberdade de todos os povos e a emancipação de todos os homens. Teve uma única ambição, um desejo supremo, ver livres todas as nações e confraternizadas todas as raças. Foi essa a idéia fixa que o atraiu à gloria e arrastou-o à proscrição. É isto o que procurei sintetizar nos seis versos que remeto e que podereis, se quiserdes, mandar gravar em seu túmulo. Quanto a mim, sentindo-me feliz pelo convite que me dirigistes, apresso-me em responder. Sois homens de sentimentos elevados, sois uma nação generosa. Tendes a dupla vantagem de possuir uma terra virgem e descender de uma raça antiga. Um grande passado histórico vos liga ao continente civilizador; unis a luz da Europa ao sol da América. É em nome da França que eu vos glorifico. Ribeyrolles já o havia feito antes de mim. Ribeyrolles saudou-vos com sua máscula eloquência; aplaudiu-vos porque vos amava. Vós povo brasileiro, honrais a sua memória. É belo, é nobre isso! É a grande confraternização que aí se firma, é o encontro de dois mundos junto ao túmulo de um proscrito; é a mão do Brasil apertando a mão da França através dos oceanos! A todos cumpre agadecer-vos! Ribeyrolles, com efeito, é tanto nosso quanto vosso. Os homens de sua têmpera pertencem a todas. A proscrição que ora o fulmina aumenta a luminosidade da comunhão universal. Quando um déspota rouba-lhe a pátria é belo que um povo dê-lhe um túmulo. Saúdo-vos e subscrevo-me vosso irmão: Victor Hugo. Guernesey, Hauteville-house, 4 de novembro de 1861. Eis o epitáfio: Charles Ribeyrolles Il accepta l’exil, il aima les souffrances Intrépide il voulut toutes les délivrances Il servit tours les droits par toutes les vertus Car l,idée est un glaive et l’âme est une force: 126 Et la plume de Wilberforce Sort du même fourreau que le fer de Brutus.29 Eis a tradução: Ele aceita o exílio, ele ama os sofrimentos Destemido ele quer todas as liberdades Ele serve todos os direitos e todas as virtudes Pois a idéia é um gládio e o amor é uma força E a pena de Wilberforce Saiu da mesma bainha que o ferro de Brutus. As manifestações de Hugo pelo Brasil não param por aí. O poeta, em 1871, escreve em um jornal da Bélgica, um artigo elogiando a Lei do Ventre Livre. Em 1884, quando o Ceará e o Amazonas alforriam seus últimos escravos ele escreve: “O Brasil aboliu a escravidão com um golpe decisivo. O Brasil tem um Imperador: este Imperador é um bom homem. Que nós o felicitamos e honramos.”30 Um ano antes de saber haverem fundado um clube republicano, na Paraíba do Sul, Hugo manda uma carta de incentivo aos republicanos. É evidente a ação de Victor Hugo sobre a sociedade brasileira, prova disso é o grande numero de traduções, para o português das suas obras. A primeira tradução conhecida foi a de Gonçalves Dias, em 1846, e seguiram-se milhares até os dias de hoje. A morte do poeta causou considerável dor aos brasileiros. Desde o governo aos centros literários, da imprensa ao brasileiro em geral, em todos os cantos do Brasil, as manifestações de saudades foram imensas. A Câmara dos Deputados, a Confederação Abolicionista e o Congresso Literário Gonçalves Dias demonstraram seu grande pesar. A revista A Semana envolve em crepe as sacadas do edifício e resolve fechar as portas. Segue-se luto por oito dias e decidem promover, por meio de uma reunião de todos os jornalistas da Corte, a realização de grande sessão literária em homenagem a Victor Hugo. É dela o comentário: “Acaba de falecer o primeiro poeta da França, isto é, o primeiro poeta do mundo; porque a França da Enciclopédia, a França de Victor Hugo é a pátria da Civilização, o núcleo de todas as aspirações, de todas as lutas, de todos os séculos.”31 No dia 22 de maio de 1885, assim que Múcio Teixeira soube da morte de Victor Hugo, ele foi dar os pêsames a D. Pedro II que estava profundamente comovido. Este aconselhou o escritor a reunir as traduções dos poetas brasileiros já mortos na época e a dirigir uma carta aos vivos, pedindo a necessária colaboração para que a homenagem dos brasileiros a Victor Hugo ficasse para sempre perpetuada nas páginas de um livro. A Gazeta de Notícias assim como o Jornal de Comércio do Rio de Janeiro dão a sua primeira página em homenagem ao poeta. Da mesma maneira prosseguiram o restante dos importantes jornais e folhetins brasileiros. 29 Esse epitáfio foi colocado no verso do monumento a Ribeyrolles construído pela Câmara Municipal de Niterói, no Cemitério de Maruí, onde estão depositadas as cinzas do ilustre morto. 30 Raeders (G.) Revista da Academia Brasileira de Letras, v. 49, julho de 1935, p. 306, Rio de Janeiro. 31 A Semana, de 23 de maio de 1885, p. 3, Rio de Janeiro. 127 7.2 Debret No início do século XIX, a Revolução Francesa mudava as características da Europa e influenciava também o Brasil. Era o período de enfraquecimento das monarquias, e quando D. João VI vem para a América. Em 1808, a Corte portuguesa se estabelece na sua colônia, onde por treze anos reina D. João VI, acabando com o Pacto Colonial entre Portugal e o Brasil Após a independência do Brasil, alguns projetos começaram a se preparar, duas novas faculdades de Medicina e Cirurgia foram fundadas em São Paulo e em Pernambuco, de acordo com as de Paris, e a capital começa a se tornar cada vez mais bela por causa da influência francesa. É nesse momento que o brasileiro começa a descobrir uma simpatia maior pela França. A Academia de Belas Artes, apesar das enormes dificuldades enfrentadas, é aberta em um edifício de granito, o qual pode ser considerado como a mais bela jóia do Rio de Janeiro. Na Academia, Debret ensinava para doze alunos, que freqüentavam seus cursos por um período de quatro anos. Aos que não possuíam dinheiro, Debret oferecia pincéis, tintas e telas, dando-lhes todo o seu apoio. No geral, encontravam em Debret um coração cheio de amor pela humanidade e também pelos brasileiros. Debret realizou no Rio de Janeiro três exposições, colocando em amostra as obras de seus alunos: a primeira não teve muita atenção do público; a segunda contou com a participação de mais de duas mil pessoas, e os jornais começaram a destacar seu interesse pelos trabalhos de seus alunos; já a terceira, que durou oito dias, foi impressionante, os visitantes compareceram em grande quantidade, as salas se mostraram pequenas pelo número de pessoas. A partir desse momento, o público começou a manifestar uma maior admiração por obras de diversos estilos, e a história nacional foi traduzida em poesia muda pelos alunos do Sr. Debret. Na verdade, pode-se dizer que as belas artes encontraram no Brasil um solo criador, sendo considerada a Escola Brasileira de Belas Artes filha legítima da Escola de Paris, pois era dela que eram importadas muitas das técnicas ensinadas. Debret deixa o Brasil após a abdicação de D. Pedro I, nos deixando como legado o seu entusiasmo pela literatura, pelas ciências e as artes em geral, e também o seu entusiasmo em ensinar seus alunos. Sua influência repercutiu nas cidades, fazendo com que as câmaras aumentassem o número de escolas e academias, e os salários dos professores também melhorassem. 7.3 Cultura francesa no Brasil e obras de Vauthier A afirmação da cultura no Brasil e a influência da técnica francesa se deu com a chegada de D. João VI, com a vinda de artistas, engenheiros, mestres, comerciantes, parteiras, cozinheiros e de políticos ilustres. A língua francesa e a própria influência do livro francês contribuíram para difundir a cultura francesa no Brasil. Segundo o seu diário, Vauthier avistou Pernambuco pela primeira vez na manhã de 8 de setembro de 1840. Ele amou a terra estranha desde o primeiro olhar, pois, já do mar, ele se sentiu encantado pelo Recife. Vauthier foi um dos raros estrangeiros a sentir e a compreender a beleza do Recife, na época considerada uma cidade magra, sem relevo, incompleta e angulosa. Louis Léger Vauthier era um engenheiro e foi contratado 128 pela presidência da Província de Pernambuco para dirigir as obras públicas, a partir da primeira metade do século XIX. A atração dos brasileiros pelas técnicas e pelos produtos industriais franceses, as suas modas, livros e artes conseguiu ser mais forte do que as forças que se opunham ao movimento, como a Revolta Praieira influenciada pela explosão do nativismo e o ressentimento brasileiro contra a expansão do comércio francês, vencendo assim as resistências, competições e oposições e mantendo-se por longos anos superior a qualquer cultura européia. A cultura francesa estava ligada de uma maneira particular, a vários aspectos, não apenas públicos e urbanos, mas também íntimos e rurais. Na região mais influenciada por Vauthier e por seus companheiros, o prestígio francês durou um enorme tempo. Os franceses até mesmo em obras de saneamento se anteciparam aos ingleses, tendo até um francês o nome ligado ao primeiro tipo moderno de aparelho sanitário do Recife. 7.3.1 Técnica revolucionária Vauthier foi aluno da Escola Politécnica da França, em que o ingresso era tremendamente difícil. Concluiu aquela escola um ano antes de seus colegas para dirigir as obras marítimas do Departamento de Marbian, onde era ele quem fazia a “inspeção imediata”, e também para ocupar-se de importantes projetos e outras obras avaliadas em mais de um milhão de francos, que foram projetadas por ele ao governo francês. Com relação aos quatro engenheiros trazidos por Vauthier, sabe-se que três deles serviram com ele nas obras de Marbian; o outro estava empregado em algumas obras em Paris, quando foi convidado para vir ao Brasil. Em 15 de dezembro de 1841, Vauthier envia ao Barão da Boa Vista, que era presidente da Província do Recife um longo relatório, em que cabia ao governo: 1º dirigir as obras do Teatro Nacional; 2º levantar a planta da cidade do Recife e apresentar um projeto completo de novos alinhamentos; 3º dirigir a execução da Ponte Santo Amaro; 4º continuar as obras de estabelecimento, no Convento do Carmo, do Liceu Nacional da Província; 5º estudar os projetos da estrada que ligava Apipucos, nos subúrbio do Recife, até o “Rio da Prata”; 6º estudar planos de conserto da ponte do Recife, do cais do Colégio e também da estrada com o nome de Luiz do Rego na vizinhança da parte de Santo Amaro. O teatro começa a ser construído em abril, pedras para a construção são importadas de Portugal; quanto às madeiras usadas não se tinham problemas já que havia abundância desse artigo no Brasil. A decoração interior era feita por meio da encomenda de um hábil pintor de cenário e de um maquinista perito da Europa. Da planta da cidade do Recife já havia sido remetida à Secretaria do Governo uma cópia do bairro do Recife, a ponte de Santo Amaro já havia sido aberta ao trânsito em abril, as obras no Convento do Carmo para a instalação das aulas do Liceu já haviam sido acabadas e o projeto da estrada de Apipucos já havia sido estudado e seria apresentado ao presidente em quinze dias. Isso mostrava, já no primeiro ano de contrato dos novos engenheiros franceses, que eram homens ativos e técnicos competentes e que, ainda, o jovem engenheirochefe era um realizador. Suas obras ficavam sempre rapidamente prontas, mostrando que sua técnica revolucionária era eficiente. No seu primeiro relatório anual, Vauthier afirma ser necessário para a prosperidade do País a criação de meios gerais de comunicação para o interior, sugere também a formação 129 de uma escola especial teórica e prática de engenheiros civis na Província de Pernambuco.32 Vauthier volta para a França em 1846, deixando as obras do Teatro Santa Isabel inacabadas, mas continua controlando-as de longe por correspondência. 8 CONFLITOS TERRITORIAIS 8.1 Ocupação francesa no Amapá Com um pretexto fornecido pelas agitações da Cabanagem, no Pará, e com a grande instabilidade política na região, Luís Filipe declara, em 1835, o estabelecimento de um posto militar à margem direita do Oiapoque, isto é, em terras brasileiras, e em 1836 os franceses criam mais um posto militar agora às margens do Lago Amapá. Antônio Peregrino Maciel Monteiro, o ministro dos Negócios Estrangeiros, recorreu à intervenção inglesa para a retirada desses postos. A fim de evitar a colonização francesa, foi mandado ao Brasil o Comandante Harris, para que verificasse o ocorrido na costa do Amapá. Segundo o relatório levantado pelo comandante, os franceses construíram uma fortificação em terras brasileiras. Houve uma forte repercussão do caso no Brasil, como nos mostra o jornal A Liga Americana33, que abriu campanha contra a invasão francesa, recomendando aos brasileiros o boicote dos comerciantes franceses enquanto esses não saíssem de nosso território. Após a retirada das tropas francesas, o governo imperial criou uma colônia militar à margem esquerda do Rio Araguari, denominada D. Pedro II, para garantir os direitos do Brasil na região. 8.2 Tentativas de fixação de fronteiras Embora os franceses tivessem saído de região do Amapá sem imposição alguma, convinha ao governo brasileiro, por meio de uma troca de notas, neutralizar a região contestada. Em 1842, foram retomadas as negociações relativas às fronteiras com a Guiana Francesa, pelo representante brasileiro em Paris. Apenas em 1853, o governo de Napoleão III propõe reatar as interrompidas negociações com o Brasil. Estando de acordo com o governo francês, o Brasil nomeou seu embaixador o Senador Visconde do Uruguai, que fora titular de Negócios Estrangeiros no País. Chegando a Paris, ele entra em contato com o embaixador francês Barão His de Butenval, mas a França continuava insistindo que a fronteira era o Rio Araguaia. O representante brasileiro nada quis ceder e suspendeu as negociações. Até o penúltimo ano da Monarquia brasileira, os dois países ainda se interessavam no reconhecimento e na exploração das terras do Amapá. 9 ENTRELAÇAMENTO DAS CULTURAS A influência cultural francesa no Brasil teve origem no século XVI pelas expedições francesas, militares e científicas. Essa influência cresceu na Província da 32 Relatório apresentado ao presidente da Província, encontrado no Arquivo Público do Estado de Pernambuco. 33 A Liga Americana, 1839/40, redigido por Aureliano de Sousa e Oliveira Coutinho, depois Visconde de Sepetiba, e Manuel Odorico Mendes. 130 Corte e no Nordeste, logo após a vinda da família real ao Brasil. Até então, o Brasil não havia tido a preocupação com a formação de uma cultura nacional. Somente a partir do Segundo Reinado, graças ao interesse de D. Pedro II pelos assuntos culturais no campo das letras e das ciências e graças ao desejo do imperador de desenvolver a educação e a cultura do povo, por meio de suas viagens e dos contatos com importantes figuras representativas e com instituições francesas, é que o País começa a formar a sua cultura, com influências basicamente francesas. O intercâmbio cultural entre os dois países sempre se manteve desde a época do Brasil Colônia e com a pessoa de D. Pedro II como imperador atingiu um dos seus pontos mais altos. Nenhum brasileiro superaria D. Pedro II no seu interesse e na sua vocação pela cultura francesa, tanto como governante quanto como nos seus conhecimentos pessoais, o que fazia com que os grandes espíritos da época tivessem uma grande admiração pela sua pessoa. No começo da educação nacional, o imperador investiu com notável impulso, criando vários estabelecimentos de ensino. O francês passou a ser a segunda língua falada no Brasil, em função do grande número de professores franceses, além da grande variedade de livros vindos da França, nas livrarias de São Paulo e do Rio de Janeiro. Foram os livros franceses o veículo mais importante de aprendizagem da geração brasileira, sem mencionar os exemplares colégios franceses, em que estudavam as moças da sociedade brasileira nas grandes capitais do País. Na nossa literatura, além de Victor Hugo, podemos citar Napoleão que influenciou permanentemente Castro Alves. Este foi o grande cantor de Napoleão e se tornou tão grande como Victor Hugo e Byron. Toda a escola romântica brasileira foi baseada nos princípios e no espírito do Romantismo europeu. Assim nossos românticos não se esqueceriam de Napoleão, que era o eixo de numerosas produções dos românticos. A França foi a grande fonte de inspiração dos valores culturais brasileiros. Portanto teria que vir da França a idéia da Academia Brasileira. Machado de Assis, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, adotou as linhas básicas e de tradição da Casa Richelieu. Podemos notar essa influencia pelo mesmo número de cadeiras, mesmo sistema de eleições, pelos chás servidos antes das sessões e pelo fato de os convidados visitarem os eleitores antes das eleições. A influência francesa foi muito significativa não apenas na capital, o Rio de Janeiro, mas também em Pernambuco e na Bahia. Podemos constatar grande número de franceses professores de francês, o que demostra claramente o grande interesse existente no Brasil pelo estudo dessa língua, e também de boticários, droguistas, importadores de remédios, padeiros, modistas, alfaiates, cabeleireiros, retratistas, atores e outros em menor escala. Prova disso é o que escreve o Sr. Otávio Tarquínio de Sousa sobre as influencias francesas na sociedade brasileira da época: “(...) alfaiates, chapeleiros, tintureiros, cabeleireiros, jardineiros franceses, juntamente com architectos, pintores e gravadores também franceses, entraram a influir consideravelmente com a sua technica, com o gôsto, com os artigos que importavam ou confeccionavam, sobre a vida da cidade34, sobre a sua feição e seus costumes.”35 34 A cidade a que Tarquínio de Sousa se refere é o Rio de Janeiro. 35 SOUSA, 1939, p. 48-50. 131 No período começaram a surgir no País os retratistas e, com o avanço da técnica fotográfica, começaram a surgir retratos de família. Sem dúvida, na técnica de retrato o especialista francês pôde se notabilizar no Brasil. Uma grande influência francesa, e talvez a mais saliente de todas; foi a da moda feminina. Assim surgiu, no Rio de Janeiro, a Rua do Ouvidor, uma rua de modas francesas, e no Recife, a Rua Nova, onde se situavam as casas mais elegantes. Joaquim Manuel de Macedo, o grande precursor do romance brasileiro e o mais lido de nossos autores do século XIX, descreve em seu livro Memórias da Rua do Ouvidor como, no espaço de um ou dois anos, as francesas modistas ocuparam a rua mais importante da cidade do Rio de Janeiro. Segundo o autor, foi de repente que a Rua do Ouvidor se tornou uma rua francesa. As francesas invasoras prosperaram e ganharam uma situação que lhes permitia conquistar a cidade. A colônia francesa foi ganhando importância, assim como os artistas, os homens de ciências, de letras e os comerciantes franceses e da moda francesa, não apenas no Rio de Janeiro, mas também no Brasil. 10 CONCLUSÃO Se não fosse a França, a história do Brasil, com certeza, seria contada de uma outra maneira, e graças a isso o Brasil teve um rápido e intenso desenvolvimento cultural. A independência do Brasil se deu com a chegada da família real portuguesa em sua colônia, que ocorreu por causa da invasão napoleônica em Portugal. Com a independência temos o Primeiro Reinado, quando o Brasil passou a receber de maneira mais decisiva as marcas da cultura francesa. D. Pedro I abdica em favor de seu filho e parte para a França, começando assim o agitado período de regências, pois o príncipe ainda não tinha idade para governar. D. Pedro II tinha enorme interesse pela cultura francesa e conviveu com grandes figuras como Lamartine, Victor Hugo e muitos outros. O imperador importou inúmeros professores franceses para aprimorar o ensino brasileiro, e o francês passou a ser a segunda língua mais falada no Brasil. O espírito republicano começou a despontar conduzido pelas elites encantadas com o republicanismo francês. Assim foi proclamada a República, dando início a uma nova fase política brasileira. Interessa-nos também o destaque não apenas aos franceses que estavam ligados diretamente ao Brasil como Vaulthier e Debret, como também as celebridades que indiretamente influenciaram não apenas nas artes e ciência dos brasileiros, mas ainda no modo de pensar do povo brasileiro, como Victor Hugo e Napoleão. Por fim, pode se dizer que nossa cultura e nossa sociedade são em grande parte frutos do pensamento francês. BIBLIOGRAFIA BESOUCHET, Lídia. Pedro II e o século XIX. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1993. 132 CALMON, Pedro. História de D. Pedro II. Brasília : J. Olímpio, Coleção Documentos Brasileiros n. 165 A, B, C e D, 1975. –––––. A vida de D. Pedro II – o rei filósofo. Rio de Janeiro : Biblioteca do Exército, 1975. CALÓGERAS, Pandiá. A política exterior do império. São Paulo : Nacional, Série Brasiliana, 1933, v. 15. CARDOSO, Ciro Filamarion S. Economia e sociedade em áreas coloniais periféricas: Guiana Francesa e Pará ( 1750-1817). Rio de Janeiro : Graal, 1984. 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