relações internacionais no mundo atual

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RELAÇÕES INTERNACIONAIS
NO MUNDO ATUAL
ENTIDADE MANTENEDORA
ASSOCIAÇÃO DE ENSINO NOVO ATENEU
FACULDADE DE CIÊNCIAS ADMINISTRATIVAS
DE CURITIBA
1
EXPEDIENTE
Publicação oficial da Faculdade de Ciências Administrativas de Curitiba
Rua Chile, 1.678 – CEP 80220-181
Fone/fax: (041) 333-8778
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FACULDADES INTEGRADAS CURITIBA
Diretor Institucional: Francisco Accioly Neto
Diretor-Geral: Danilo Vianna
Diretor Acadêmico: Nelson Hauck
Coordenadora da Faculdade de Ciências Administrativas de Curitiba:
Sheyla Luiz da Costa
Subcoordenadora do Curso de Relações Internacionais: Elizabeth Accioly
TIRAGEM: 1.000 exemplares
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
RELAÇÕES INTERNACIONAIS NO MUNDO ATUAL /
Faculdades Integradas Curitiba
Ano 1, n.1. 20001. Relações Internacionais-Periódico. I. Faculdade de
Ciências Administrativas de Curitiba
2
SUMÁRIO
• Apresentação .................................................................................................................. 5
• Nacionalidade de empresas transnacionais: paradoxo central no
contexto de globalização
Ana Lucia Guedes ........................................................................................................... 7
• Panorama da história das relações internacionais do Brasil, 1930-1995
Wilson Maske ................................................................................................................... 25
• Por que respeitar as instituições jurídicas?
Carlos Luiz Strapazzon .................................................................................................... 35
• Questões do desemprego no Brasil e políticas recentes
Sérgio Luiz Lacerda ......................................................................................................... 59
• Relações entre Brasil e Estados Unidos no século XIX
Bianca Carvalho Pazinatto, Ella Souza Freitas, Jorge Luis Marques Ferreira .......... 75
• Relações diplomáticas entre Brasil e Áustria, no período de 1822 a 1889
Fabiana Brett Clemente, Michelle Karine Muliterno Carrion,
Thiago Schenkel Dedecek ............................................................................................... 89
• Relações entre Brasil e França, no período de 1822 a 1889
Carolina Camargo de Lacerda, Ricardo Salini Abrahão,
Thais Aranão Bastos ...................................................................................................... 109
3
4
APRESENTAÇÃO
Resultante de um esforço conjunto de nossos professores e alunos, surge o
primeiro número da revista Relações Internacionais no Mundo Atual, das Faculdades
Integradas Curitiba, relevante contribuição à efetividade da comunidade acadêmica no
que concerne às questões internacionais, em suas múltiplas clivagens.
Trata-se de labor intelectual revelador de um perfil de curso que pretendemos
desenvolver, conscientes das profundas transformações do mundo globalizado, que
derruba muros, modifica dogmas e obriga à reflexão.
Nossa revista, para além de um marco no cenário acadêmico brasileiro, busca
refletir o nível de nossa produção cultural e, mesmo, a excelência criativa de uma geração
massacrada pelas mentiras do bipolarismo ideológico.
Em nosso número exordial, os trabalhos publicados nos proporcionam o registro de
uma época de entusiasmo e de idealismo, de uma percepção de um mundo diferenciado pelo
otimismo, mas sempre ciente de uma realidade política trágica para os países emergentes.
Os trabalhos aqui publicados compreendem as grandes áreas das Relações
Internacionais: “A nacionalidade de empresas transnacionais: paradoxo central no
contexto da globalização”, da lavra da Professora Ana Lucia Guedes; o “Panorama da
história das relações internacionais do Brasil, 1930-1995”, é abordado pelo Professor
Wilson Maske; as “Questões do desemprego no Brasil e as políticas recentes” são
analisadas pelo Professor Sérgio Luiz Lacerda; e, por fim, o Professor Carlos Strapazzon
indaga “Por que respeitar as instituições jurídicas”?
Seguem os trabalhos dos nossos alunos que abordam as relações internacionais
entre o Brasil e os Estados Unidos, por Bianca Pazinatto e Jorge Ferreira; entre o Brasil
e a Áustria, por Fabiana Clemente, Thiago Dedecek e Michelle Carrion; entre o Brasil e
a França, por Carolina Lacerda, Thais Bastos e Ricardo Abrahão, todos no recorte
histórico do século XIX.
Nossos agradecimentos, portanto, são dirigidos a todos que colaboraram para a
realização deste trabalho, que traz também o signo de tradição da Associação de Ensino
Novo Ateneu e de seu exemplo de excelência na formação intelectual de sucessivas gerações.
Elizabeth Accioly
SUBCOORDENADORA DO CURSO DE
RELAÇÕES INTERNACIONAIS
5
6
NACIONALIDADE DE EMPRESAS
TRANSNACIONAIS:
PARADOXO CENTRAL NO CONTEXTO DE
GLOBALIZAÇÃO*
Ana Lucia Guedes
Ph. D. em Relações Internacionais,
London School of Economics,
Professora das Faculdades Integradas Curitiba
SUMÁRIO: 1 Antecedentes. 2 Nacionalidade da empresa: implicações do contexto de
origem. 3 Análise comparativa. 4 Conclusões. Bibliografia.
1 ANTECEDENTES
Este artigo apresenta alguns resultados de uma pesquisa mais abrangente focada
na implementação de políticas ambientais corporativas em subsidiárias brasileiras. A
decisão de realizar uma investigação com múltiplos níveis de análise1 levou à necessidade
de uma abordagem interdisciplinar, incluindo as áreas de relações internacionais, negócios
internacionais e organizações. Pode-se afirmar que a adoção de vários paradigmas resultou
da aliança de teoria, método e análise dos dados, o que constitui uma das contribuições
do estudo. Em outras palavras, distintos paradigmas serão mencionados ao longo do
artigo porque nenhuma abordagem isoladamente discutia de forma satisfatória a potencial
influência da nacionalidade da empresa2 para questões ambientais.
(*)
Artigo apresentado no 24º Encontro da Associação Nacional dos Programas de PósGraduação em Administração (ENANPAD), Florianópolis, 10 a 13 de setembro de 2000. A autora
agradece o apoio financeiro concedido pela CAPES para realização da pesquisa.
1
Os primeiros estudos focados em ETNs e questões ambientais assumiam múltiplos níveis de
análise (GLADWIN, 1977, e PEARSON, 1987).
2
Na área de ciência política o conceito de “caráter nacional” é fundamentado em explicações
culturais. Em relações internacionais esse conceito tem sido discutido em estudos que seguem a
abordagem realista por seu foco nos Estados e em suas representações de poder. STOESSINGER (In:
LITTLE e SMITH, 1991) enfatiza o paradoxo envolvendo o conceito de caráter nacional: “ao
mesmo tempo que o caráter nacional parece ser um fator indiscutível não existe acordo na literatura
sobre o que são padrões culturais”. CUCHE (1999) discute o mecanismo pelo qual o Estado reconhece
apenas uma identidade cultural para definir a identidade nacional.
7
A necessidade de uma abordagem interdisciplinar para investigar empresas
transnacionais (ETNs) é parte do debate em negócios internacionais. Pela complexidade
dessas organizações é difícil manter as fronteiras da discussão dentro de poucas
perspectivas (SUNDARAM e BLACK, 1992; GROSSE e BEHRAM, 1992). O foco do
estudo em políticas e práticas ambientais de ETNs justificava também uma abordagem
interdisciplinar. Por exemplo, no âmbito de relações internacionais, HURRELL e
KINGSBURY (1992, p. 3) enfatizam que ecologia e economia política internacional não
devem continuar sendo tratadas como esferas separadas. No âmbito de sociologia,
REDCLIFT (1987, p. 3) argumenta que ambos, economia política e o ambientalismo,
podem ganhar ao compartilhar uma perspectiva analítica. Isso decorre principalmente
do fato de a crise ambiental ser o resultado da crise econômica.
STRANGE (1994, p. 80) afirma que a perspectiva de economia política internacional3
(EPI) parece mais apropriada para investigar as práticas de empresas transnacionais, porque
é impossível separar questões políticas das econômicas, ou considerar somente as relações
interestatais. No entanto, existem lacunas nessa literatura com relação à potencialidade de
questões sociais, culturais, ambientais e, também, da nacionalidade da empresa (como sugerido
por STOPFORD e STRANGE, 1991, p. 232), explicarem o comportamento de Estados e
ETNs em uma economia mundial. Mais especificamente, as raras referências no âmbito de
EPI à temática ambiental motivaram críticas extremas. CHOUCRI (1993, p. 220), por exemplo,
afirma que todas as teorias sobre ETNs ignoram os impactos das atividades corporativas no
ambiente natural. O termo “ambiente natural” não é nem citado nos índices dos volumes
sobre empresas multinacionais ou economia política internacional.
O presente artigo argumenta que políticas e práticas de empresas transnacionais
não são explicadas somente por aspectos políticos e econômicos. O artigo também assume
que ETNs e suas subsidiárias, mesmo aquelas localizadas em países em desenvolvimento,
possuem autonomia na definição e implementação de questões ambientais. Tal posição
exige que a abordagem estrutural de EPI seja suplementada por tratar as corporações
como “caixas pretas” (com exceção de STOPFORD e STRANGE, 1991, e SALLY, 1994, p.
164) excluindo da investigação variáveis relacionadas com o âmbito organizacional.
Em outras palavras, investigações que objetivam explicar as relações entre os
níveis internacional e nacional e o organizacional requerem, necessariamente, o uso de
perspectivas adicionais. Nesse sentido, a literatura de negócios internacionais constituise em relevante referência para a investigação de ETNs apesar de sua origem recente
(como descrito por PARKER, In: CLEGG et al., 1998). Primeiro, cabe ressaltar que o países
industrializados têm sido predominantemente considerados como foco das investigações.
Segundo, são raras as explicações do comportamento de ETNs exclusivamente com base
em aspectos culturais, como, por exemplo, FAYERWEATHER (1969) e HOFSTEDE (1980).
Dessa forma, torna-se evidente a contribuição do presente artigo por causa da ausência
de: (a) investigações focadas em países em desenvolvimento e (b) explicações do
comportamento ambiental de ETNs fundamentado em aspectos culturais.
3
Em termos conceituais, EPI envolve não somente os arranjos sociais, políticos e econômicos
que afetam o sistema de produção, troca e distribuição, mas também a mistura de valores refletidos
neles (STRANGE, 1994, p. 18). Pode-se afirmar que esse conceito tende a evoluir visto que autores
como STUBBS e UNDERHILL (1994, p. 18-38) apresentam interessantes desenvolvimentos quanto
a aspectos políticos, sociais e até ambientais na área de EPI, como uma das mais recentes abordagens
em relações internacionais.
8
Nesse sentido, a abordagem de STOPFORD e STRANGE (1991) é rara e
interessante porque combina as literaturas de EPI e negócios internacionais. O modelo
teórico elaborado pelos autores, com base na “diplomacia triangular”, sustenta o
argumento seguido neste artigo por enfatizar a interdependência entre Estados e firmas.
Adicionalmente, os autores reconhecem a importância do papel desempenhado pelas
ETNs em países anfitriões, mais especialmente em países em desenvolvimento.
Cabe ressaltar que os autores fazem somente duas referências ao tema ambiental.
A primeira refere-se aos impactos ambientais de novos projetos e a avaliação dos benefícios
por parte de empresas e governos.4 Na opinião de STOPFORD e STRANGE (1991), as
empresas fazem cálculos em termos de retorno global; os governos, por sua vez, olham
somente para os efeitos locais. Dessa forma, as decisões ambientais das empresas não
podem ser interpretadas como filantrópicas, mas seguindo “bom senso comercial”. As
decisões governamentais, por sua vez, tendem a se basear em padrões inferiores aos
melhores padrões ambientais internacionais em função das pressões pela industrialização
(o caso de Cubatão é mencionado como exemplo desse tipo de decisão governamental ).
Os autores concluem que os incentivos para que boas práticas sejam estabelecidas
em parceria entre empresas e governos decorre de pressões dos consumidores e da opinião
pública. Essas fontes de pressão estão tradicionalmente situadas em países desenvolvidos
sendo questionável sua existência em países em desenvolvimento. Na verdade, existe vasta
literatura indicando que empresas não incorporam preocupações ambientais voluntariamente
(GLADWIN, 1977; NEDER, 1992; PEARSON, 1987; UNTCMD, 1993; MILLER, 1995).
A segunda referência diz respeito ao fato de que governos perderam, coletivamente,
o poder de barganha para ETNs como conseqüência da intensa competição por riqueza
entre os Estados. As ETNs, como grupo, exercem considerável influência sobre as escolhas
governamentais; a ação coletiva delas pode produzir ou influenciar os padrões internacionais
em várias questões (tais como tratados bilaterais tributários e padrões ambientais).
Nesse contexto, GLECKMAN (1995) enfatiza que governos são cruciais para
controlar as atividade ambientais das ETNs. A legislação ambiental nos países de origem é
o fator isolado mais importante, motivando o estabelecimento de políticas ambientais globais
pelas ETNs. Ao contrário, na arena internacional, a batalha para a definição de um
comportamento corporativo aceitável (incluindo a divulgação das avaliações ambientais)
ainda não terminou, apesar das tentativas no estabelecimento de códigos de conduta para
ETNs pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (The Economist,
January 15th 2000) e Nações Unidas (UNCTC, 1985; 1990). A relevante questão sobre quem
definirá o comportamento sustentável de ETNs permanece sem resposta (EDEN, 1994).
2 NACIONALIDADE DA EMPRESA: IMPLICAÇÕES DO
CONTEXTO DE ORIGEM
Com base na discussão precedente, seria apropriado enfatizar dois pontos: (a) a
noção de que ETNs possuem capacidade política (BODDEWYN, 1988) que pode resultar
4
Segundo STOPFORD e STRANGE (1991) a Shell assumiu, em parceria com governo do
Gabão, estudo de impacto ambiental para o desenvolvimento de um campo petrolífero; a subsidiária,
no Kênia, da British American Tobacco apoia os fornecedores de fumo que usam madeira de
reflorestamento para curar o produto.
9
em ações individuais e coletivas, e (b) a embeddedness das ETNs com relação aos
demais atores em seus contextos de origem. Segundo SALLY (1995, p. 206), é
precisamente essa área de interação entre empresas e outros atores, em que estão as
variáveis de poder relativo e escolha política, que afeta a vantagem competitiva das
empresas e a competitividade das economias nas quais elas fazem negócios.
A influência dessa embeddedness sociológica foi confirmada pelos resultados de
uma pesquisa sobre gerenciamento ambiental em ETNs realizada pela UNTCMD (1993).
Os resultados indicam que a natureza do ambiente regulatório no país de origem da
corporação explica as variações entre regiões quanto às práticas de gerenciamento
ambiental, ocupacional e de segurança. Fica, também, evidente que a política regulamentária
tem um esfera de influência nacional. Isso significa que não há expectativas de que as
políticas regulamentárias ambientais dos países de origem tenham qualquer efeito coercitivo
no contexto dos países anfitriões. GLADWIN (In: PEARSON, 1987) havia indicado que a
probabilidade de qualquer tentativa dos países de origem em estender as regulamentações
ambientais extraterritorialmente é pequena em razão dos problemas diplomáticos.
Por outro lado, as ETNs tendem a adotar como princípio corporativo os padrões
estabelecidos pela legislação do país de origem. A pesquisa da UNTCMD (1993, p. 93)
relata que as práticas ambientais, ocupacional e de segurança de ETNs, em países em
desenvolvimento, refletem a região de origem da corporação. BIRDSALL e WHEELER
(1993, p. 137) confirmam a extraterritorialidade de padrões que prevalecem nos países de
origem, apoiados no argumento de que essa seria a maneira mais barata de enfrentar a
ameaça de futura regulamentação.
STRANGE (In: STUBBS e UNDERHILL, 1994, p. 112) indica que a nacionalidade
da empresa merece atenção especial nas relações Estado-empresa. No entanto, a autora
sugere que evidências de etnocentrismo (PERLMUTTER, 1969), como o fato de empresas
norte-americanas raramente recrutarem não norte-americanos para o alto escalão
gerencial, não significam que o comportamento e interesses das empresas possam ser
sempre previstos com base no país de origem. Segundo STOPFORD e STRANGE (1991,
p. 233-234) é exatamente sobre a relação entre identidade nacional e identidade corporativa
que os conflitos em relações internacionais emergem com relação ao gerenciamento de
comércio e investimento internacional.
No entanto, SALLY (1994, p. 170) indica que as ETNs são instituições embeddeded
em um conjunto de ambientes institucionais diferentes. Essa perspectiva reconhece
implicitamente que nações possuem “diferentes modelos de expressão institucional e
operação capitalista” (como sugerido por HAMPDEN-TURNER e TROMPENAARS,
1995). No âmbito de negócios internacionais, BUCKLEY e CASSON (1991, p. 101)
encontraram evidência suportando a hipótese de que “nacionalidade da empresa” exerce
uma influência significativa no comportamento de ETNs. BARTLETT e GHOSHAL
(1992) indicam os impactos da cultura nacional nas empresas dentre outros aspectos
que influenciam o gerenciamento de ETNs.
Em resumo, outros estudos apresentaram resultados confirmando a influência
da nacionalidade de multinacionais nas preferências de propriedade das subsidiárias
(ERRAMILLI, 1996), na performance financeira de unidades que possuem coerência
entre práticas gerenciais e cultura nacional (NEWMAN e NOLLEN, 1996), na percepção
de questões éticas (SCHLEGELMILCH e ROBERTSON, 1995), no conteúdo dos códigos
de ética (LANGLOIS e SCHLEGELMILCH, 1990).
Paralelamente, evidências de diferenças na cultura de políticas ambientais
10
governamentais estão disponíveis em alguns estudos. Por exemplo, VERNON (1993)
afirma que o poder e a persistência de características nacionais poderão distinguir os
respectivos papéis dos EUA, Japão e da Comunidade Européia em futuras negociações
ambientais e no estabelecimento de acordos internacionais. Segundo O’RIORDAN (1981)
existem diferenças em termos de cultura política entre os EUA e o Reino Unido,
principalmente com relação à participação política, comportamento administrativo das
autoridade, processos de tomada de decisão e o papel das leis ambientais. VOGEL (1986,
p. 21) acrescenta que, apesar de possuírem raízes do sistema político e legal em comum, os
EUA e o Reino Unido possuem abordagens diferentes para regulamentação ambiental.
Um diferença crucial entre essas abordagens é o acesso do público às informações
coletadas pelas autoridades ambientais. Não existe um “direito automático” de acesso
no Reino Unido, pois a política regulamentária é executada por meio de consultas
seletivas com as partes interessadas. Ao contrário, nos EUA, a informação tem estado
disponível ao público desde 1966. Além disso as decisões envolvendo temas ambientais
são resultados de barganhas e concessões negociadas por meio de lobby político
(O’RIORDAN, 1991). Mais especificamente, uma pesquisa realizada pela entidade Friends
of the Earth (1992) reconhece que o direito do público à informação não faz parte das
políticas ambientais na Europa. Esse relatório afirma ainda que as empresas européias
divulgam, nos EUA, as informações ambientais de suas subsidiárias por ser um
requerimento legal sem que tal prática seja seguida na Europa (com a exceção da Noruega
onde o Enterprise Act de 1989 estabeleceu tal prática).
A UNEP (1994, p. 24-28) indica que a cobertura geográfica dos relatórios
ambientais das ETNs tem-se limitado aos países de origem. Essa pesquisa encontrou
dois tipos distintos de relatório corporativo ambiental, denominados Anglo-Saxão e
Reno. O primeiro modelo, seguido pela maioria das empresas norte-americanas e
britânicas, tem como base uma declaração de política ambiental, a descrição de práticas
de gerenciamento e um inventário de emissões. Ao contrário, o modelo Reno, utilizado
por empresas alemãs e escandinavas, é alicerçado em um “ecobalanço” que inclui o
ciclo de vida dos insumos e produtos ao longo das operações da empresa.
A possibilidade de convergência futura dessas abordagens é, no entanto,
constrangida pelos estilos de gerenciamento que refletem aspectos sociopolíticos e culturais.
O caso norte-americano é bem ilustrativo, porque a exigência de divulgação de dados, tais
como os requerimentos do Toxic Release Inventory e da Securities and Exchange Commission,
tem formado o contexto dentro do qual empresas desenvolveram os seus programas
voluntários de relatórios ambientais. De forma similar, a União Européia adotou em 1993 uma
regulamentação sobre gerenciamento ambiental e sistemas de auditoria para motivar as
empresas a, voluntariamente, avaliarem suas operações e divulgarem relatório para o público.
Em resumo, a discussão quanto à influência da nacionalidade da empresa na
literatura sugere que o tema deva ser levado em consideração, quando políticas ambientais
corporativas são investigadas. Dessa forma, existem expectativas de que aspectos da
legislação do país de origem sejam incorporados aos princípios corporativos. A
disseminação desses princípios para as subsidiárias resultaria da racionalidade
econômica seguida pelas ETNs que se baseia na difusão de escolhas estratégicas e
ativos, tais como tecnologia, para manter a competitividade.
Finalmente, a revisão da literatura indica que a inclusão de explicações
sociológicas e culturais para a análise da relação Estado-empresa é incomum dentro da
perspectiva de EPI. No entanto, é impossível ignorar o fato de que gerentes crescem em
uma sociedade particular em um período particular. Por essa razão, as idéias dos gerentes
11
não podem deixar de refletir os constrangimentos do ambiente que eles conhecem
(HICKSON, 1997; HOFSTEDE, 1994). Alguns autores repudiam a retórica atual de um
mundo “sem bordas” e corporações “sem origem” ao indicar o quanto até mesmo as
maiores multinacionais retêm fortes raízes domésticas (WHITTINGTON, 1993, p. 29).
3 ANÁLISE COMPARATIVA
A seguir, serão apresentados resultados da análise comparativa por nacionalidade
de oito casos envolvendo subsidiárias de ETNs com origem nos EUA, Reino Unido e
Alemanha. Os dados foram coletados nos países de origem e no Brasil durante o período
de 1996-1998 como parte da pesquisa de doutorado da autora. Os dados primários
foram obtidos por meio de entrevistas semi-estruturadas realizadas em empresas
selecionadas. Seguindo a estratégia de triangulação de dados foram consultadas outras
fontes, tais como associações empresariais, agências governamentais, acadêmicos e
organizações não-governamentais. A tabela a seguir ilustra a amostra estratificada.
Tabela 1 − Amostra estratificada
SETOR INDUSTRIAL /
PAÍS DE ORIGEM
REINO
UNIDO
ESTADOS
UNIDOS
ALEMANHA
fumo
químico
caso 1
caso 2
−
−
caso 5
caso 7
farmacêutico
limpeza
caso 3
caso 4
caso 6
−
caso 8
−
As explicações para distintas abordagens de gerenciamento ambiental parecem
ser fundamentadas nas diferentes estruturas regulamentárias dos países de origem
como sugerido pelos casos norte-americanos investigados. O contexto regulatório norteamericano é altamente legalista e contencioso, e a legislação ambiental tem restringido
a autonomia administrativa pelo estabelecimento de padrões uniformes (UNTCMD,
1993). Esse contexto reflete na excessiva preocupação com processos legais, imagem e
padronização de procedimentos. DOYLE et al. (1992) encontraram evidências similares
do comportamento de empresas norte-americanas em outros países. Elas possuem uma
orientação clássica para o país de origem, principalmente pela resistência em continuar
utilizando gerentes norte-americanos e sistemas de controle centralizados.
Paralelamente, as explicações para as distintas abordagens estão vinculadas ao
estilo de gerenciamento estabelecido pelos contextos culturais dos países de origem,
como sugerido pelos casos ingleses e alemães. A abordagem regulamentária seguida na
Europa resultou em uma relação mais cooperativa e consensual entre reguladores e
representantes da indústria.
O grau de intervenção do Estado é um elemento diferenciando as diversas formas de
capitalismo na Europa (HODGES e WOOLCOCK, 1993). Por exemplo, a Alemanha possui
uma extensa estrutura regulamentária que permite as forças do mercado operarem somente
12
dentro das regras prescritas limitando a autonomia dos atores. A sociedade alemã mantém
ligações estreitas entre empregados e indústria, o que fortalece a relativa influência do
contexto de origem. Ao contrário, o Reino Unido tem tradicionalmente baseado suas políticas
na interpretação discricionária sem as restrições de um estrutura regulamentária, e com
definições do interesse público que variam de acordo com o partido no poder.
Existem, então, diferenças entre a economia social de mercado na Alemanha e o
livre mercado no Reino Unido. O último (denominado modelo anglo-americano ou
capitalismo Atlântico) é caracterizado por seu foco nos resultados individuais e lucros de
curto prazo. O modelo alemão (ou capitalismo do Reno) coloca ênfase em resultados
coletivos e consenso público. O mais interessante é que existem evidências de preocupação
excessiva com lucros no curto prazo, nos casos ingleses, e de resultados de longo prazo
com participação das audiências interessadas, nos casos alemães. A tabela abaixo ilustra
os distintos contextos em termos de controle corporativo nos países selecionados.
13
Os resultados dos casos enfatizam a importância do contexto e cultura no
estabelecimento da abordagem para gerenciamento ambiental como será demonstrado
a seguir.
3.1 Casos britânicos
Dentre os casos ingleses foram encontradas similaridades entre os casos 2 e 3,
bem como entre os casos 1 e 4. Casos 2 e 3 apresentaram relatos de impactos ambientais,
não-cumprimento com requisitos legais, estrutura descentralizada e dependência na
obtenção de lucros no mercado brasileiro para realizar novos investimentos. Casos 1 e
4 apresentaram preocupação em explorar o gerenciamento ambiental, produtos
ecologicamente seguros e plantas menos intensivas em poluição nas suas abordagens
de relações públicas. Caso 1 mostrou particular interesse em melhorar sua imagem
perante a opinião pública, visto que o setor vem sendo bombardeado com campanhas
antitabagismo, ações legais e denúncias de contaminação nas plantações de fumo.
O fato de as autoridade ambientais britânicas evitarem confrontação por meio de
negociações caso a caso (VOGEL, 1986) pode ser uma indicação de um contexto menos
rígido (WINTLE, 1994). VAUGHAN e MICKLE (1993, p. 30) afirmam que as pressões
ambientais são fortes da parte de organizações não-governamentais, público, mídia e
competidores, porém, superficial da parte de associações empresariais no Reino Unido.
Ao mesmo tempo, pode ser identificado um decréscimo nos investimentos britânicos na
América Latina ao longo deste século (MILLER, 1993). Tal contexto pode ter sido
indiretamente responsável pela responsabilidade legal por danos ambientais enfrentada
no Brasil pelos casos 2 e 3. Ambas as corporações são altamente dependentes de vendas
fora do mercado britânico, no qual América Latina representa um percentual abaixo de 5%
das vendas mundiais. Esses fatos poderiam explicar parcialmente por que as empresas
britânicas podem serem vistas como casos de “maquiagem verde” no Brasil.
3.2 Casos norte-americanos
Empresas norte-americanas são reconhecidas por suas tentativas de reduzirem
os padrões duplos ambientais existentes mundialmente entre subsidiárias. Há indicações
(UNTCMD, 1993, p. 39) de que a visibilidade global dessas empresas, combinada com
as pressões de ambientalistas no contexto de origem, são as principais explicações para
tal comportamento. Em outras palavras, estas empresas apresentam grande preocupação
com a imagem diante de uma mídia agressiva5 e a ameaça de ações legais, mesmo
aquelas decorrentes de incidentes/acidentes em outros países, como Bhopal.6
5
Robert Repetto do renomado World Resources Institute afirmou durante uma vídeoconferência (co-patrocinada pela Secretária de Estado do Meio Ambiente e Ernst & Young, São
Paulo, outubro de 1996) que um dos efeitos positivos da globalização era a possibilidade de organizações
não-governamentais norte-americanas denunciarem os padrões duplos de ETNs norte-americanas no
mundo para a mídia nos EUA.
6
Ver: SHRIVASTAVA (1992) para uma exaustiva análise do acidente na planta da Union
Carbide em Bhopal, Índia. Esse acidente chocou a indústria química, particularmente nos EUA, não
somente por questionar a segurança das operações mas também pelas ações legais nas Cortes norteamericanas para compensar as vítimas.
14
Dentre os resultados dos casos 5 e 6 se destaca a forte preocupação com
penalidade legais decorrentes de impactos ambientais. Mais especificamente, isso traduz
a grande preocupação com a manutenção da imagem corporativa. Ambos os casos
seguem procedimentos semelhantes quanto a adoção, implementação e avaliação dos
princípios ambientais corporativos. Novos procedimentos são sempre adotados de
acordo com prazos preestabelecidos e simultaneamente disseminados para todas
subsidiárias. Existem também evidências de que os princípios ambientais corporativos
foram criados como resposta a demandas legais específicas nos EUA.
É possível identificar o cumprimento de requerimentos legais7 dos EUA no
relatório do caso 5 (como, por exemplo, no Progress Toward Goals de 1993, citado por
UNEP, 1994, p. 73). Essa evidência confirma a influência do contexto de origem no
gerenciamento ambiental. O caso 5 é um exemplo típico de importação de tecnologia e
cultura gerencial, no qual foi necessário resgatar o histórico da empresa para o
entendimento das suas atuais práticas ambientais.
De forma semelhante, o caso 6 apresentou evidências de indicadores de performance
utilizados mundialmente pela corporação que refletem a inclusão de padrões do contexto de
origem. Por exemplo, o percentual de acidentes baseia-se nos padrões definidos pela
Occupational Safety and Health Association, e a lista de substâncias proibidas foi definida
pela Environmental Protection Agency. Esses exemplos são evidências da influência do
contexto de origem, principalmente se combinados com as características etnocêntricas da
corporação em face da sua recente estratégia de globalização.
As respostas da comunidade empresarial norte-americana para questões
ambientais foram, em princípio durante as décadas de 70 e 80, baseadas em mecanismos
de comando e controle. No entanto, características do ambiente institucional, como,
por exemplo, a comercialização de ações no mercado e a existência de inúmeros acionistas
demandando uma melhor performance ambiental (FREDERICK et al., 1992), pressionaram
para mudanças nos padrões ambientais das empresas. Durante a última década as
empresas têm demonstrado a preocupação com eficiência no longo prazo e a revelação
ao público de informações ambientais em virtude de interesses dos acionistas.8
Adicionalmente, a criação e o uso de instrumentos orientados para o mercado, como
permissões de poluição e iniciativas voluntárias, resultaram em uma abordagem
regulamentária mista para o controle de poluição industrial.
A incorporação tecnológica (iniciada com equipamentos de fim de linha nos
anos 70 e 80, FREDERICK et al., 1992; CHOUCRI, 1991; DIMENTO, 1986) é atualmente
7
Com base em padrões legais norte-americanos para emissões tóxicas e de carcinógenos, nas
reduções de um grupo específico de produtos químicos de acordo com iniciativa voluntária da
Environmental Protection Agency e resíduos perigosos estabelecidos pelo US Resource Conservation
and Recovery Act (UNEP, 1994, p. 105).
8
Além das pressões relacionadas com a lucratividade de curto e longo prazos, a US Securities
and Exchange Commission enfatizou que a política ambiental corporativa é uma questão importante
com repercussão nas preocupações financeiras dos acionistas. Essa posição confirma posição anterior
quando acionistas solicitaram ao Grupo DuPont para acelerar o processo de banimento do CFC
(Business and the Environment, May 1994, p. 2).
15
muito avançada na “tecnologia limpa ou ambiental”. Entretanto, padrões duplos entre
subsidiárias localizadas em países industrializados e aquelas localizadas em países em
desenvolvimento permanecem como característica das operações de ETNs. A lacuna
tecnológica parece atualmente ser menor do que nos anos 60 e 70 principalmente pelos
imperativos da competição global. Em outras palavras, as corporações disseminam os
desenvolvimentos técnicos e gerenciais para as subsidiárias como forma de manter sua
competitividade mundial. A hipótese de pressão mundial é particularmente verdadeira
para empresas norte-americanas, cujo alto percentual do faturamento vinha do mercado
doméstico (como mercados sagrados, DOZ, 1986), e estão atualmente tentando aumentar
a participação no mercado mundial (como, por exemplo, o caso 6) pelo aumento de
vendas nos mercados emergentes (fora dos mercados preferenciais da Europa e Japão).
Em resumo, as empresas norte-americanas não estão somente preocupadas com
obrigações e penalidades legais. Existem outras forças pressionando, tais como
acionistas, consumidores e oportunidades na venda de tecnologia e serviços. Assim,
surpreendentemente para os ambientalistas, as ETNs têm sido proativas para questões
ambientais até no contexto de países em desenvolvimento. Por exemplo, o caso 6 instalou
incinerador para o descarte de resíduos no Brasil, como forma de antecipar uma legislação
mais restritiva ao mesmo tempo em que explora comercialmente o gerenciamento de
resíduos (cujos principais clientes são subsidiárias de ETNs).
3.3 Casos alemães
Cabe notar que os casos 7 e 8 estão primariamente preocupados com os modos de
produção, mais especificamente, uma preocupação com a segurança do processo foi
encontrado em ambos os casos. Apesar da implementação de práticas ambientais
representarem custos, ambos casos apresentaram mudanças substanciais nos processos.
Investimentos foram feitos para modernização das operações, o que inclui a instalação de
novas unidades e de incineradores para disposição final de resíduos (antecipando-se à
legislação mais restritiva e explorando comercialmente o gerenciamento de resíduos).
Existe também evidência de que as metas são mais realistas, e a busca das causas (e não
dos efeitos) é o ponto focal do gerenciamento ambiental. A preocupação com a opinião
pública e com imagem não foi considerada relevante pelos gerentes dos casos alemães.
Ambos os casos apresentaram indicação de preocupação com a segurança dos
empregados e dos consumidores. Existe uma ênfase nos riscos associados com a manipulação
de substâncias químicas, apesar de serem setores industriais distintos. Finalmente, existem
similaridades no estilo gerencial, considerando que não são sistemáticos e não possuem
rígidos mecanismos de controle como nas empresas norte-americanas.
As principais características do contexto legal (excessivamente regulamentado)
na Alemanha são padrões rigorosos com ênfase em procedimentos tecnológicos.
Segundo VAUGHAN e MICKLE (1993, p. 33), as empresas consideram os procedimentos
alemães para aplicação da legislação complexos. Por exemplo, a obtenção de permissões
para descarga de poluentes pode levar até treze meses; se houver um interesse público
declaradamente nacional, o prazo poderá ser ainda maior. Além disso, as empresas
indicam que o governo federal alemão interpreta as regulamentações européias mais
rigidamente do que outros países membros. Finalmente, empresas alemãs indicam que
16
há excessiva ênfase em padrões ambientais aplicados nacionalmente e sugerem que
acordos voluntários seriam melhores para a indústria.
Como um todo, os padrões ambientais rígidos resultaram em problemas para a
economia alemã, desde que o cumprimento desses rígidos padrões tornou atividades
empresariais intensivas em custos. Existe a perspectiva de algum ajustamento no futuro
porque as empresas não podem resistir a pressões tão intensas dos sindicatos e
consumidores. Nesse sentido, a pressão exercida pelas uniões de trabalhadores constituise no fator-chave, explicando a preocupação ambiental das empresas alemãs. ROBERTS
(1995, p. 40) indicou que os empregados são a principal fonte de pressão nas empresas
por meio da solicitação de segurança e proteção ambiental nas indústrias.
Adicionalmente, alguma pressão surge por intermédio da mídia e dos consumidores e
em menor intensidade dos competidores. Tais aspectos confirmam a afirmação de
HODGES e WOOLCOCK’S (1993, p. 332) de que na Alemanha “consenso entre gerentes,
proprietários e trabalhadores de cada firma e com a sociedade em geral é considerado
um pré-requisito para prosperidade sustentada”.
O caso 7 proporcionou evidências de pressões oriundas da Alemanha na
implementação da política ambiental corporativa no Brasil. Ambientalistas e sindicatos
alemães são informados por seus respectivos pares no Brasil e, conseqüentemente,
fizeram pressões na matriz que posteriormente cobrou posição da subsidiária sobre o
tema. Por exemplo, a notícia de um acidente no transporte de matérias-primas chegou à
matriz por meio de reclamações de representantes dos trabalhadores. Mais
especificamente, o sindicato na região metropolitana de São Paulo mantém contato com
colegas alemães e com agência governamental Gesellschaft für Technische
Zusammenarbeit. Da mesma forma, informações sobre greves, acidentes etc., envolvendo
a empresa na Alemanha chegam até a subsidiária brasileira.
Após a reestruturação da subsidiária brasileira (caso 7) a área de segurança e
meio ambiente ficou subordinada à divisão de engenharia. Tal decisão enfatiza ainda
mais a incorporação desses temas, em termos tecnológicos, ao processo operacional.
Existem indicações de que essa abordagem seja comum entre empresas alemãs.
HAMPDEN-TURNER e TROMPENAARS (1995, p. 233) sugerem que o entusiasmo
alemão pela engenharia, mais especificamente “fazer e gerenciar coisas” possui o mesmo
status porque technik inclui tudo necessário para fazer técnicas funcionarem incluindo
bom gerenciamento.
3.4 Comparações entre casos norte-americanos e europeus
De forma simplificada, fontes empresariais e governamentais indicaram no início
da pesquisa de campo no Brasil que a comparação das políticas ambientais corporativas
de empresas de distintas nacionalidade iria somente revelar que elas possuem distintas
culturas gerenciais. As evidências dos casos confirmaram tal indicação. Por exemplo,
empresas norte-americanas implementam iniciativas ambientais com mais facilidade do
que outras porque seguem as políticas, manuais e procedimentos das matrizes que lhes
garantem acesso às tecnologias de gerenciamento ambiental.
As comparações também indicam maior uniformidade entre empresas norteamericanas operando no mesmo setor industrial. Como decorrência disso, o caso 5
17
compara suas práticas ambientais com outras empresas norte-americanas para determinar
o benchmark setorial porque elas possuem um desempenho ambiental semelhante. O
gerente do caso 5 afirmou ser difícil fazer benchmarking com empresas européias por
causa das diferenças culturais. O caso 6 também indicou que empresas norte-americanas
e européias não possuem o mesmo nível de preocupação ambiental.
Em termos práticos fica evidente que as norte-americanas seguem princípios
mais rígidos, com menos flexibilidade para adaptação local. Mais adiante, o gerente do
caso 2 enfatizou que a matriz nunca impôs mudanças, práticas e procedimentos, mas
sim objetivos acordados o que seria um estilo mais flexível de gerenciamento, se
comparado com o estilo das empresas norte-americanas.
Quando foram comparadas as práticas de subsidiárias norte-americanas e
européias, ficou evidente que as últimas se ressentem, em termos de gerenciamento
ambiental, de maior orientação das matrizes. Apesar desse ressentimento havia
evidências de acesso à tecnologia ambiental nos casos 1, 2, 4, 7 e 8. Na verdade, a
grande dificuldade das empresas européias do setor químico refere-se à implementação
do programa setorial, denominado Atuação Responsável. Nos casos alemães, isso é
explicado pelo fato de que o programa foi implementado simultaneamente na Alemanha
e no Brasil, constituindo-se em novidade tanto para a matriz quanto para a subsidiária.
Existe também o reconhecimento, por parte de gerentes brasileiros em empresas
européias, de que o estilo de gerenciamento ambiental adotado pelas empresas norteamericanas resulta em vantagem competitiva (PORTER, 1990). Isso decorre do fato de
que os parâmetros internacionais de benchmarking nessa área são quase que
exclusivamente baseados em linguagem gerencial, técnicas e procedimentos de domínio
das empresa norte-americanas.
Nesse sentido, USUNIER (1998, p. 39) indica que a ligação básica entre cultura
e gerenciamento decorre do entrincheiramento dominante em um contexto nacional
particular, o dos EUA. Conceitos e práticas gerenciais, embora parcialmente originários
da Europa, foram desenvolvidos nos EUA e posteriormente emprestados e adotados
por vários países porque pareciam poderosas ferramentas para desenvolver e controlar
os negócios. Coincidentemente, isso tudo ocorre no período pós-guerra quando os
EUA (incluindo o fenômeno de internacionalização de suas empresas) assumem papel
hegemônico no contexto internacional (GILPIN, 1976).
Em resumo, as práticas ambientais das empresas norte-americanas tornaram-se
o benchmarking no setor químico brasileiro. A adoção de tal abordagem de
gerenciamento ambiental ocorreu sem que fossem discutidas suas limitações (UNEP,
1994). Conforme depoimento do gerente ambiental do caso 7: o modelo norte-americano
será mais avançado, se o parâmetro de avaliação for a implementação do Programa
Atuação Responsável.9 Mas falta nesse modelo um entendimento mais abrangente
dos impactos ambientais da indústria. Ao contrário, existem indicações (UNEP, 1994) de
que o modelo de gerenciamento seguido pelas empresas alemãs possui uma perspectiva
mais abrangente porque inclui como parâmetro o conceito de ciclo de vida do produto.
9
Responsible Care Status Report. International Council of Chemical Associations, 1996.
18
4 CONCLUSÕES
A origem e evolução do fenômeno de internacionalização das empresas,
atualmente denominadas de empresas transnacionais, fortalece o conceito de cultura
global e torna paradoxal qualquer tentativa de explicar práticas ambientais (outro
tema com repercussões globais) por meio da nacionalidade da empresa. No entanto,
as evidências sugerem que independente do fenômeno contemporâneo de globalização
vários aspectos do gerenciamento de ETNs continuam a ser influenciados, definidos
e controlados pelos seus respectivos países de origem. Isso se deve inicialmente ao
simples fato de que são esses os contextos nos quais as empresas surgiram, expandiram
e consolidaram suas posições em setores específicos, bem como onde se encontram
seus principais acionistas, pesquisadores e consumidores. Tal fato impede que interculturalidade se estabeleça como regra e, talvez mais relevante, que especificidades dos
países de operação não estratégicos (como é o caso do Brasil para as empresas
investigadas) sejam consideradas quando da definição, implementação e controle de
políticas corporativas.
Os resultados dos casos confirmam que a performance ambiental das subsidiárias
combinam influências e pressões da legislação do país de origem e da política ambiental
corporativa com a ausência de pressões ambientais no contexto brasileiro. Dessa forma,
pode-se afirmar que a consolidação de políticas corporativas ambientais é um resultado
do processo de tomada de decisão que ocorre no país de origem com a participação
exclusiva das principais subsidiárias. Assim, fica estabelecido um padrão corporativo
único ao mesmo tempo em que subsidiárias localizadas em contextos legais mais rígidos,
tais como EUA, Alemanha e países nórdicos, devem cumprir os requerimentos dos
países de operação. Nesse sentido a literatura indica que empresas européias cumprem
normas ambientais específicas nos EUA mas não seguem os mesmos princípios nas
subsidiárias européias.
O presente artigo apresentou evidências de que a nacionalidade das empresas
transnacionais é um fator relevante explicando as políticas ambientais corporativas.
No entanto, é reconhecido que a questão da nacionalidade requer desenvolvimentos
adicionais por englobar (a) as políticas regulamentárias ambientais, (b) a política
ambiental corporativa, (c) o estilo gerenciamento, (d) desenvolvimento tecnológico,
(e) divulgação da performance ambiental. Em face das evidências aqui discutidas
não deve ser assumido que ETNs são redes dispersas de poder ou agentes sem
poderes em um mundo globalizado. Em realidade, ETNs ainda possuem um centro
de poder e influência, em que decisões estratégicas são tomadas, localizado nos
países industrializados.
Em outras palavras, as evidências de que nacionalidade é uma variável que explica
implementação de políticas ambientais corporativas em países em desenvolvimento resultam
em que pressões ambientais nacionais e internacionais devem ser feitas nos países de origem.
Isso decorre principalmente do fato de que decisões de investimentos são feitas nas matrizes
em que estão localizados seus principais acionistas, consumidores e audiências particulares
que influenciam em nível local e global os significados de fatos, práticas e políticas.
19
Finalmente, é sugerido que investigações similares utilizem uma estrutura de
análise interdisciplinar englobando distintos níveis, i.e., internacional, nacional e
organizacional. Apesar da aparente complexidade e lacunas nas respectivas literaturas,
o real entendimento do comportamento de ETNs exige uma abordagem mais crítica
conforme sugerida no presente artigo. Tal abordagem crítica deverá ser principalmente
seguida quando a investigação, tentando superar a predominância de estudos em
países industrializados, estiver focada no comportamento de ETNs em países em
desenvolvimento.
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24
PANORAMA DA HISTÓRIA DAS
RELAÇÕES INTERNACIONAIS DO BRASIL,
1930-1995
Wilson Maske
Mestre em História pela UFPR e
Professor de História Brasileira
no Curso de Relações Internacionais das
Faculdades Integradas Curitiba
O rápido avanço da globalização nos últimos anos nos ensina que a forma como
o Brasil se insere no contexto internacional é que vai determinar seu papel no mundo
futuro, assim como o estilo e o padrão de vida que seus cidadãos irão usufruir. As
influências externas são tão poderosas que país nenhum poderá pensar em escapar
delas. O que pode ser feito é conhecê-las da melhor forma possível, para que se criem
estratégias que possibilitem a melhor inserção internacional do Brasil em frente das
tendências internacionais sobre as quais o País pouco domínio tem.
Essa, porém, não é uma idéia nova. Os governos brasileiros já desde a
Independência, ou antes ainda, tinham consciência do papel que o País desempenhava
no concerto internacional. Seu lugar como economia periférica, fornecedora de matériasprimas, gravitando em torno de uma potência hegemônica, era conhecido. As políticas
estabelecidas por esses governos levavam em conta tal situação, buscando resguardar
os interesses de uma elite política, ora aceitando imposições do Reino Unido, ora utilizando
de subterfúgios para escapar de suas imposições, ou ainda enfrentando essa potência,
assim como vizinhos que ameaçavam os interesses brasileiros na Bacia Platina. Assim, o
modo de produção utilizado no Brasil, a escravidão, o produto exportado, o café e outras
matérias-primas eram determinados pelas contingências externas, às quais o País tentava
se adaptar, liderado por uma elite em pleno acordo com o enquadramento brasileiro no
sistema internacional do capitalismo industrial sob a condição dependente.1
Assim, desde a Independência, o Brasil, tal qual a América Latina, esteve sob
influência inglesa. Essa situação só veio a conhecer um fim no início deste século,
quando os Estados Unidos se tornaram a potência hegemônica hemisférica, em função
de haver-se transformado no principal parceiro comercial do Brasil, pois era o maior
1
CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. São
Paulo : Atica, 1992. p. 24.
25
comprador de café brasileiro. Os EUA já se haviam tornado um referencial em termos
de política externa brasileira, por ocasião da adoção do regime republicano, fato
esse possibilitado pelo exemplo de ser a primeira colônia européia a ficar
independente no Continente Americano e ter inspirado as demais independências
do Hemisfério Ocidental.
A política externa brasileira no início do período republicano se caracterizou
por um alinhamento automático às pretensões norte-americanas no continente.
Ingenuamente o novo governo brasileiro considerava que bastaria a adoção do
regime republicano para que as questões de fronteira fossem resolvidas com os
vizinhos. A Argentina saudou festivamente o novo regime no Brasil, mas não deixou
de reivindicar a anexação da região de Palmas ao seu território, o que quase logrou
conseguir por causa do fraco, senão irresponsável, desempenho de Quintino
Bocaiúva nas negociações arbitrais ocorridas em Montevidéu.2 Logo, no entanto,
as elites dirigentes retornaram aos pontos essenciais da diplomacia imperial, o que
não impediu a celebração do Acordo Comercial com os Estados Unidos, o primeiro
com uma grande potência mundial, desde que os tratados de comércio com o Reino
Unido e a França, extremamente prejudiciais à economia brasileira, caducaram em
1840. Durante o restante da República Velha, com exceção do trabalho de fixação
das fronteiras feito pela equipe do Barão do Rio Branco, a política externa brasileira
esteve a serviço da economia cafeeira.
Após a Revolução de 1930 e ao longo de toda a era Vargas, a política externa
passaria a repercutir fortemente uma aproximação maior com os Estados Unidos no
plano dos interesses comerciais e financeiros. Inicialmente Vargas não demonstra
essa vertente de sua política exterior. Sua condução refletiu as novas condições
políticas do País, como o populismo, o nacionalismo e o autoritarismo. A própria
recepção favorável do regime autoritário de Vargas pelos governos da Alemanha
nazista e da Itália fascista demonstra a identificação inicial do Estado Novo com
esses regimes3. Entre os norte-americanos houve de início uma série de inquietações,
que foram negadas pelas atitudes do Brasil, as quais não indicavam uma futura adesão
ao Eixo. As relações com os EUA não sofreram retraimento algum, enquanto o prestígio
da diplomacia alemã jamais conseguiria superar o da norte-americana junto ao Itamaraty.
A campanha de nacionalização instituída pelos governos estaduais e pelo
governo federal foi um golpe profundo que forçou a integração das grandes colônias
alemãs e italianas sediadas em São Paulo, Curitiba, Joinville, Blumenau e Porto Alegre.
Com isso, as escolas de língua alemã e italiana foram definitivamente fechadas, e a
utilização dessas línguas foi gradativamente diminuída no Sul do Brasil.4 Também a
atividade das células do Partido Nazista entre os alemães e seus descendentes no
2
DANESE, Sérgio. Diplomacia presidencial: história e crítica. Rio de Janeiro : Topbooks,
1999. p. 251.
3
Cf. CERVO. Op. cit. p. 225.
4
Cf. MASKE, Wilson. Biblia e arado: a construção da identidade étnica dos alemães
menonitas no sul do Brasil. Curitiba : UFPR. Dissertação de Mestrado, 1999.
26
Brasil foi severamente vigiada e coibida pelo governo brasileiro.5 Mas a Alemanha
estava profundamente interessada em transformar o Brasil em um fornecedor neutro
de matérias-primas e alimentos, o que fez com que os nazistas ignorassem a
perseguição que os alemães sofriam no Brasil. Aproveitando a situação de momento,
Vargas transformou o interesse alemão pelo Brasil em poder de barganha
(eqüidistância pragmática), pelo qual pressionou os Estados Unidos a cooperarem
com seus planos de industrialização brasileira, sob a ameaça de aceitar o apoio
econômico, financeiro e tecnológico da Alemanha nazista, o que tinha apoio de
amplos setores do governo.6
A Segunda Guerra Mundial liquidou a estratégia de Vargas. O Brasil colaborou
estreitamente com os Estados Unidos com a cessão da base militar de Natal aos Aliados, em
função de sua proximidade com o norte do Continente Africano, com o fornecimento de
alimentos e matérias-primas, com a patrulha marítima do Atlântico sul e com o envio da
Força Expedicionária Brasileira, composta de 23.000 soldados, à Itália. Essa aliança,
denominada Alinhamento Automático, se manteve até o fim do governo Dutra, em 1951.
A acanhada política externa de Dutra nada mais era do que um reflexo do imediato
pós-guerra, quando o Brasil e a América Latina como um todo, ficaram sob a evidente
hegemonia norte-americana, tanto sob o ponto de vista político, como o econômico e o
cultural. Cabe destacar aqui a falta de visão de Dutra em não dar prosseguimento à
política de Vargas, de aproveitar os momentos oportunos para determinar sua política
externa e não estabelecê-la a priori, por causa de alianças que não mais eram de interesse
de quem as propunha (EUA) nem de quem as aceitava.
A influência norte-americana sobre o Brasil foi resultado de uma estratégia
mais ampla formulada no início da Segunda Guerra Mundial, com o intuito de
arregimentar a simpatia e a colaboração do Brasil e de outros países da América
Latina, para fazer frente à concorrência dos países do Eixo, em especial à Alemanha.
A estratégia norte-americana visava a objetivos mais amplos, que iam além da
própria resolução da Segunda Guerra Mundial. Os norte-americanos tinham por
objetivos a conquista de mercados e de esferas de influência econômica,
consolidando seu próprio sistema de poder.
O Brasil, por sua vez, em função de haver colaborado com os Estados Unidos
durante a Segunda Guerra Mundial e de haver logrado estabelecer um sistema
democrático de governo, esperava ser recompensado pelos norte-americanos. Mas,
para os Estados Unidos as áreas planetárias prioritárias eram aquelas que estavam
diretamente ligadas ao conflito Leste-Oeste, na iminência de serem absorvidos pela
URSS. E eram elas que deveriam obter recursos para o desenvolvimento para fazer
frente ao comunismo. A América Latina só seria levada a sério pelos americanos quando
a Revolução Cubana chamar-lhes a atenção para a situação do continente.
Com o retorno de Getúlio Vargas ao poder em 1951, foi instituída uma política
5
Cf. SEITENFUS, Ricardo. O Brasil de Getúlio Vargas e a formação dos blocos (19301942). São Paulo : Nacional, 1985.
6
Cf. CERVO. Op. cit. p. 247.
27
externa nacionalista que agradava às massas e tinha o apoio de partidos populares,
como o PTB e o PCB, e de setores burgueses e militares, mas desagradava
profundamente aos liberais, entreguistas e conservadores em geral da burguesia, do
Exército e dos partidos conservadores, como a UDN. Apesar das promessas, o segundo
governo de Vargas contrasta profundamente com o primeiro por causa da conturbada
política interna, que lhe deixou pouco espaço de manobra em política externa, em
comparação com o período ditatorial. Isso se deve ao fato de que em seu segundo
mandato Vargas não era mais um ditador todo poderoso, mas um presidente eleito
controlado pelo Congresso Nacional. Além disso, a cena política interna e externa
havia mudado substancialmente, eliminando o poder de barganha que as relações
brasileiras com a Alemanha haviam representado no contexto hemisférico. A isso
podemos acrescentar que as contradições da Guerra Fria já haviam sido internalizadas
na sociedade brasileira, gerando sucessivas crises. Esse quadro foi gradativamente
aprofundado, culminando no cenário do suicídio de Vargas.
A transição do governo de Vargas para o de Juscelino Kubitschek foi
tremendamente tumultuada, não deixando espaço para que Café Filho pudesse introduzir
qualquer nova diretriz em termos de política externa.
Somente com Kubitschek é que a política externa brasileira pode ser redirecionada
para objetivos como a questão do combate ao subdesenvolvimento na América Latina
e, a partir daí, propôs a reorientação das relações com os Estados Unidos, de onde
surgiria a teoria do nacional-desenvolvimentismo e a Operação Pan-americana. Segundo
as idéias correntes, tanto na direita como na esquerda, a política externa poderia servir
como um instrumento que pudesse fomentar o desenvolvimento do País.
Para que o Brasil pudesse ser resgatado do subdesenvolvimento, faziam-se
necessárias não só reformas interna profundas, mas também alterações nas relações
internacionais do Brasil. Segundo as propostas dos teóricos dessas estratégias, havia
a necessidade de o País receber investimento de capital externo e repasse de tecnologia
que permitisse o desenvolvimento industrial brasileiro. O País precisava urgentemente
se industrializar, pois os tradicionais produtos exportados – matérias-primas e produtos
agrícolas – estavam tendo seus preços rapidamente deteriorados em face do preço de
produtos industrializados. Havia a necessidade de ampliar o mercado exterior para
possibilitar a obtenção de capitais necessários à importação de bens e equipamentos
que o desenvolvimento econômico demandava.
Segundo BUENO (1992, p. 256), o nacional-desenvolvimentismo, perceptível a
partir da gestão Kubitschek, “passou a chave para a compreensão das relações
internacionais do Brasil. Com as ressalvas de detalhes e de ênfase, de avanços e recuos,
assim tem sido a política exterior do Brasil desde a segunda metade da década de 50 até
aos nossos dias.”
Aproveitando a conjuntura externa favorável e colocando o Itamaraty em ação,
Juscelino lançou a Operação Pan-Americana em 1958. Seu objetivo era colocar em
funcionamento uma proposta de cooperação internacional para o desenvolvimento em
nível hemisférico. Segundo JK, o desenvolvimento e o fim da miséria seriam as maneiras
mais competentes de barrar o avanço das ideologias de esquerda e antidemocráticas
que propunham a solução dos graves problemas sociais que assolavam o continente.
28
A proposta da OPA buscava uma tradução econômica para a solidariedade política. A
cooperação econômica daria a verdadeira força ao pan-americanismo e, à medida que os
povos latino-americanos saíssem da miséria, surgiria uma capa protetora perante a a
difusão de ideologias alienígenas.
JK via uma solução em conjunto para os problemas da América Latina. Ele tinha
a percepção de que não haveria uma solução isolada para os problemas do Brasil.
Deveria existir uma solução global para os problemas da América Latina.
A OPA era um meio de consolidar o pan-americanismo e afastar a América
Latina da influência soviética, entretanto não avançou por causa de sua falta de objetivos
concretos e da pouca atenção que o governo americano dava para a América Latina.
Somente após a Revolução Cubana é que os EUA passaram a dar maior importância
para o sul do continente. Numa proposta feita pelo Presidente Kennedy, ideais originais
da OPA foram incorporados na Aliança para o Progresso, visando contemplar de alguma
forma as reivindicações da América Latina.
A movimentada política externa de Juscelino Kubitschek daria origem a uma
proposta de diretriz para a condução das relações internacionais do Brasil, a qual tomaria
sua forma definitiva nos mandatos de Jânio Quadros e de João Goulart, a Política
Externa Independente.
A PEI buscou situar o Brasil no concerto internacional em uma posição
eqüidistante do conflito Leste-Oeste (Guerra Fria) e ao mesmo tempo solidária com os
povos subdesenvolvidos do mundo inteiro. Baseada no nacionalismo, a PEI ampliou a
visão de JK, solidária com a América Latina, para uma solidariedade para com todo o
mundo subdesenvolvido, simplesmente denominado Sul. Jânio Quadros aproveitou
um momento oportuno para lançar sua política externa: a Revolução Cubana havia
acontecido recentemente, e os EUA temiam que outros países latino-americanos
escapassem de sua esfera de influência. Em termos globais outros fatores favoreciam a
adoção de uma política externa arrojada por parte do Brasil. Na África e na Ásia o
processo de descolonização estava em pleno andamento, e as relações entre russos e
americanos passavam por uma de suas piores fases. Era o momento ideal de o Brasil
estabelecer uma nova política externa, arrojada, bem ao gosto de Getúlio Vargas, sem
compromissos, que procurava obter vantagens para o País em um mundo dividido em
dois blocos. Alegando o direito de autodeterminação dos povos, procurava uma maior
movimentação do Brasil no concerto internacional, visando aos interesses econômicos
brasileiros.
Assim podemos sintetizar as principais características da PEI7:
a. mundialização das relações internacionais do Brasil, impedindo que elas se
circunscrevam exclusivamente à América e à Europa Ocidental;
b. atuação isenta de compromissos ideológicos, não obstante a afirmação de
que o Brasil é ocidental;
c. ênfase na bisegmentação do mundo entre Norte e Sul e não Leste-Oeste;
d. busca da ampliação das relações internacionais do Brasil com objetivos
7
Cf. CERVO, Amado. Op. cit. p. 280.
29
comerciais, o que explica a procura da Europa Oriental e da Ásia;
e. desejo de participação nas decisões internacionais;
f. luta pelo desenvolvimento, pela paz e o desarmamento;
g. adoção de posição claramente contrária à realização de experiências nucleares;
h. adoção dos princípios da autodeterminação dos povos e da não-intervenção;
i. aproximação com a Argentina.
Cabe ainda citar que os resultados práticos efetivos em nível externo foram bastante
reduzidos e que internamente o governo Jânio Quadros apresentou uma estratégia bem
mais conservadora do que externamente, o que não deixou de ser observado pela imprensa
e por outros setores. Aliás, essa política teve mais o mérito de despertar o temor das
parcelas conservadoras da classe média e das Forças Armadas quanto à cubanização da
situação política brasileira e teve alguma influência na deflagração do golpe de Estado
que mergulhou o País na ditadura que se prolongou pelos vinte e um anos seguintes, com
graves conseqüências políticas, econômicas e sociais para os brasileiros.
Durante o regime militar, o Brasil oscilou entre a Política Externa Independente
(nacionalista) e o Alinhamento Automático (aliança norte-americana), com surpreendente
preponderância da primeira.
Inicialmente os militares desejaram retornar ao padrão de alinhamento automático,
segundo as concepções da nova ordem internacional organizada pelos Estados Unidos
após 1945, nas quais devemos destacar a ênfase dada ao liberalismo econômico. Essa
política passou ser conhecida como Correção de Rumos. Na verdade, era apenas uma
tentativa de destruir a PEI e não uma contraproposta viável de política externa. Em termos
de características da Correção de Rumos, que vigorou entre 1964 e 1967, podemos citar:
a. o bipolarismo, no qual o Brasil se filiava oficialmente ao lado americano da
Guerra Fria, ressaltando seu pertencimento ao Ocidente e seu alinhamento
automático às decisões e opções americanas e de seus aliados, sem se importar
com os interesses particulares do Brasil;
b. a abertura ao capital estrangeiro, a qual se opunha ao nacionalismo e à estatização,
propondo-se criar condições de liberdade nas quais o capital internacional fluiria
espontaneamente para o Brasil. Isso teria a finalidade de induzir o desenvolvimento
brasileiro pelo livre jogo do mercado, sem Estado e sem fronteiras, o que obviamente
acabou por não ocorrer. Tal equívoco infelizmente não serviu de lição para governos
posteriores ao regime militar, que não conhecedores da história, o repetiram e mais
uma vez falharam.8
O projeto de política externa de Castello Branco, como não podia deixar de ser,
teve vida curta, já que não trouxe resultados reais, pois não privilegiava os verdadeiros
interesses do País, mas colocava o Brasil dentro do confronto bipolar ao lado de uma
das potências hegemônicas e não o utilizava de forma neutra e pragmática para obtenção
de vantagens que de fato convinham aos brasileiros.
Além disso, o Brasil prestou um desserviço aos outros países subdesen8
Cf. CERVO. Op. cit. p. 333.
30
volvidos nos foros internacionais. Como um dos grandes países do Terceiro Mundo,
o alinhamento brasileiro aos países imperialistas não ajudou a descolonização da
África e da Ásia, em especial no caso das colônias portuguesas na África, nas quais
o País poderia intervir para uma independência pacífica e consentida por Portugal e
impedindo assim uma guerra de independência que se transformaria em uma guerra
civil posteriormente.
Entretanto, parcelas mais esclarecidas, mesmo entre os conservadores, viam
claramente as contradições da política da chancelaria de Castello Branco e contribuíram
para sua revisão e posterior abandono. Segundo CERVO, as críticas provinham de
partes da imprensa “que avaliaram negativamente o ocidentalismo; das Forças Armadas,
a cuja linha dura nacionalista repugnava a subserviência aos interesses norteamericanos; do empresariado e das classes médias, descontentes com a
desnacionalização da economia e a recessão.”
Uma política de relações exteriores um pouco mais independente correspondeu
ao projeto geopolítico militar de fazer do Brasil uma potência emergente e nesse
sentido adequou suas parcerias e alianças político-econômicas, objetivando esse
fim. Essa política caracterizou sobretudo o governo Geisel, considerado um marco na
história da política exterior brasileira, pois tentou buscar novos parceiros
internacionais para o Brasil, os quais pudessem, além de representar novos mercados
para os produtos brasileiros, se tornar fornecedores de tecnologias que o País ainda
não dominava. Da mesma forma, a chanceler de Geisel, Saraiva Guerreiro, buscou uma
aproximação com os países não-alinhados e com o Terceiro Mundo, livrando-se de
camisas-de-força e de opções exclusivistas por ideologias que pouco significado
tinham para o Brasil. Era o pragmatismo responsável, uma certa versão brasileira de
Realpolitik, que considerava o mundo como de fato era, aos olhos brasileiros e não
como uma superpotência o idealizaria.
O Brasil buscou então uma maior participação nos foros multilaterais do período
com o objetivo de obter informações e conhecimentos que permitissem a sustentação
de suas posições diante de novos parceiros; influir na tomada de decisões; fazer da
política exterior um instrumento auxiliar no desenvolvimento do País. Rapidamente
ficou claro que os países em desenvolvimento não conseguiriam resolver seus problemas
isoladamente. Havia a necessidade de se estabelecer uma estratégia grupal que
beneficiasse todos os envolvidos. Apesar do ceticismo brasileiro perante a competência
dos órgãos multilaterais para a solução dos problemas do Terceiro Mundo, o País
sempre se mostrou solidário com os reclamos de outros países desenvolvidos nas
organizações internacionais, que, ao final, eram advogadas dos interesses de seus
membros do Primeiro Mundo. Assim, o fim do regime militar, em termos de política
externa, se caracterizou por uma desilusão ante os aos resultados pouco animadores
alcançados pelo País.
Na transição democrática ocorreu um fortalecimento da identificação do
Brasil com o Terceiro Mundo e o País chegou à conclusão de que os problemas
dramáticos dos países pobres só seriam resolvidos, em conjunto, por eles mesmos.
O Primeiro Mundo não teria interesse algum na resolução dos problemas dos
países subdesenvolvidos. Afinal, o equilíbrio econômico mundial é bastante
31
pragmático e não é realmente de se esperar uma postura solidária com os interesses
dos pobres.
Desde 1985, o eixo da política externa brasileira foi fixado no apoio à plena
democratização da América Latina e na sua real integração econômica, fator considerado
essencial para a solução de seus problemas econômicos. Reflexo desse pensamento,
podemos citar as iniciativas da gestão Sarney, que deu os primeiros passos, lado a lado
com seus parceiros da Argentina, Paraguai e Uruguai, para dar vida ao Mercosul, uma
entidade destinada a colocar em prática os ideais de integração latino-americana,
acalentados desde os anos 50.
Vimos também um retorno dos partidos políticos à política externa9 a partir
de 1985. Durante o período militar foi estabelecido um sistema bipartidário artificial,
em que os dois partidos políticos, MDB e ARENA, eram na verdade marionetes,
cuja existência buscava dar um aspecto de legalidade à ditadura. Não lhes cabia, na
ordem política estabelecida, uma participação da elaboração da política externa.
Com a democratização, houve um restabelecimento do estilo de negociações entre
partidos políticos pré-1964. A questão das relações internacionais do Brasil passou
a figurar, ainda que timidamente, no programa político e ideológico da maioria dos
partidos surgidos na década de 1980.
Ainda sob o governo Sarney, a nova Constituição (1988) inovou em termos de
história constitucional brasileira, pois codificou algumas orientações gerais em matéria
de política internacional. Segundo ALMEIDA10, a inovação se dá “pela postulação
inicial, dentre os princípios basilares do ordenamento jurídico e constitucional brasileiro,
de algumas linhas de ação dedicadas especificamente a guiar os dirigentes eleitos e os
agentes diplomáticos no que se refere à postura externa do país.”
Com o aprofundamento contínuo da democratização do País, a questão da política
externa passou a ser um elemento constante nos programas dos principais candidatos
às eleições presidenciais. No caso da eleições de 1994, a análise dos programas permitiu
detectar uma certa timidez em termos diplomáticos, assim como uma postura pouco
inovativa e pragmática diante das questões internacionais, o que pode inclusive
significar desinteresse e mesmo desinformação quanto aos efeitos dos eventos
internacionais sobre o Brasil. Apenas o PT teve a coragem de colocar em pauta uma
“Nova Política Externa”, diferente da adotada até então pelo Itamaraty.
Desde então, há uma tendência, não só em nível político e partidário, mas
também dentro da sociedade organizada, de um interesse maior pelas questões
internacionais e pela inserção internacional do Brasil. Isso se deve ao fato de que se
tem chegado à conclusão de que os problemas que afligem pesadamente a sociedade
brasileira (distribuição desigual de renda, miséria, globalização, fragilidade ante capitais
especulativos, investimentos externos para desenvolvimento, repasse de tecnologia,
dívida externa, questão ambiental etc.) são também os problemas dos outros países
9
Cf. ALMEIDA, Paulo Roberto de. Relações internacionais e política externa do Brasil.
Porto Alegre : UFRGS, 1998. p. 209.
10
Idem, p. 217.
32
em desenvolvimento e que somente poderão ser resolvidos em conjunto pelos
próprios interessados. Daí que se dá um avanço, por meio de órgãos integracionistas
multilaterais, como o Mercosul, buscando efetivamente passar das palavras e
intenções para as atitudes que resultem numa real tentativa de começar a solucionar
os problemas.
BIBLIOGRAFIA
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Porto Alegre : UFRGS, 1998.
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33
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SKIDMORE, Thomas. Uma história do Brasil. São Paulo : Paz e Terra, 1998.
VIZENTINI, Paulo Fagundes. A política externa do regime militar brasileiro. Porto
Alegre : UFRGS, 1998.
34
POR QUE RESPEITAR AS
INSTITUIÇÕES JURÍDICAS?*
Carlos Luiz Strapazzon
Mestrando em Direito Público – UFSC,
Professor de Direito Público, no curso de
Relações Internacionais, e de Ciência Política,
no curso de Direito das
Faculdades Integradas Curitiba
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Por que sujeitar-se à lei e ao direito? 3 Por que sujeitar-se às
autoridades e ao direito num regime democrático? 4 Algumas considerações sobre o
estado atual da democracia representativa. 5 Considerações finais. Bibliografia.
1 INTRODUÇÃO
Quando uma decisão política é tomada, o súdito, isto é, aquele que deve se
submeter ao dito de outrem tem pelo menos duas maneiras diferentes para agir. Ele pode
entender que é legítima a imposição da decisão e acatá-la sem resistência, ou então
poderá, por alguma razão, não reconhecer nenhuma autoridade nela e rebelar-se.
A moderna elaboração do discurso jurídico, especialmente do direito público,
está profundamente ligada por esse problema de aceitação dos comandos políticos, e
por conta disso se empenha, há mais de três séculos, em fazer com que os homens
deixem de se ver como súditos para se reconhecerem como cidadãos, é dizer, como coautores das decisões políticas que devem observar.
A partir de postulados que precisavam se opor aos do antigo regime é que o
pensamento jurídico moderno tratou de desenvolver sua nova doutrina. Em verdade, o
direito público teve de articular sua fala com os postulados da democracia representativa
para que esse propósito fosse atingindo. Tornou-se senso comum, então, a partir do
século XIX, dizer que a dominação legítima é apenas aquela que observa os
procedimentos postulados pelo regime democrático, e que só o regime democrático
pode legitimamante definir o que é um Estado de Direito.
Todavia, parece que a realização da democracia representativa na experiência
política contemporânea acena para uma espécie de descompasso entre o modo pelo
qual o direito público tem fundamentado sua própria razão de ser, de um lado, e o modo
(*)
Este trabalho foi elaborado com o apoio da CAPES
35
pelo qual as decisões políticas se convertem em lei, de outro. É que o controle institucional
da coisa pública não se exerce da mesma maneira desde que as relações entre Poder
Executivo e Poder Legislativo deixaram de ser equilibradas. Além disso, o afastamento
cada vez maior do cidadão comum das questões da política tem provocado uma espécie
de privatizaçao do espaço público.
O presente estudo tem o restrito propósito de recolocar na ordem do debate uma
velha e conhecida questão da filosofia política: a do fundamento da legitimidade das
instituições jurídicas. E nesse terreno a pergunta a ser respondida é: “por que respeitar
as leis e o direito?”
2 POR QUE SUJEITA-SE À LEI E AO DIREITO?
Não seria exagerado dizer que na história política da humanidade todos os povos
organizados em sociedade, e que por isso mesmo estiveram submetidos ao império da
vontade de alguns poucos como condição de sua sobrevivência organizada, procuraram
dar respostas categóricas a essa pergunta. É que o exercício do poder precisa estar
atento a ela, sem o que não há sentido na submissão a normas públicas. De fato, essa
pergunta a respeito de por que eu devo me submeter às decisões tomadas por um outro
homem constituiu-se na principal questão para a história moderna do Direito. Não só
porque com apoio nela é possível compreender o próprio desenvolvimento das
instituições jurídicas, mas também porque ela viabiliza uma aproximação das justificações
doutrinárias elaboradas para legitimar o tipo específico de instituições jurídicas que
nesse momento nos importa: as democráticas.
É claro que não se pode fugir completamente ao risco de cometer abusos quando
o objeto da pesquisa são fenômenos complexos, e a investigação pretende compreendêlos tomando como ponto de partida e de chegada uma única questão central, a saber,
tentar identificar os elementos fundamentais da justificativa democrática para que as
instituições jurídicas sejam observadas. Todavia, como há bons indícios para supor
que as mais importantes transformações ocorridas na história das instituições jurídicas
do Ocidente, pelo menos dos últimos três séculos, estão ligadas, de uma forma ou de
outra, a uma preocupação prática e doutrinária de articular respostas democráticas à
pergunta “por que se devem observar as leis?”, talvez a utilidade da reflexão encubra o
caráter pretensioso da pesquisa.
Sabe-se muito bem que o estado de sujeição ao comando de outros, cedo ou
tarde, suscita a reflexão acerca do porquê esse poder se exerce como norma, ou então,
por que alguns homens são investidos de poder para dar ordens com força de lei. Aliás,
é justamente essa tomada de consciência da existência de normas impostas por outros
homens que marca o aparecimento da política como atividade filosófica.
O ponto, portanto, de onde parte a teoria política é a investigação das causas
pelas quais alguns homens estão legitimados a estabelecer normas a outros com o
poder de sancioná-los caso não sejam respeitadas. Mas isso é, no fundo, uma busca do
fundamento da validade de uma ordem jurídica e da legitimidade de sua existência,
36
questão predileta da doutrina publicista moderna.
Se, por um lado, é certo que a filosofia política e a doutrina jurídica sempre se
preocuparam em apresentar os fundamentos que autorizam o exercício do poder, não
será demasiado dizer que as respostas1 apresentadas têm sido muito diversificadas,
variando conforme o tempo e o local em que foram produzidas.
No direito primitivo, por exemplo, o que valida a submissão aos comandos
normativos é a crença de que existe um “Deus natural”, suprema força controladora da
natureza, que se comunica com “sacerdotes eleitos” pela divindade. Os sacerdotes, em
vista da especial capacidade de compreender as intenções das forças obscuras que
regem a natureza, poderiam antecipar aos seus pares os desígnios não só das atividades
humanas, como as guerras, mas também do comportamento da própria natureza, como
a fertilidade da terra. E se podem fazer isso, acredita-se então que reúnem as melhores
condições para definir ou aconselhar os líderes sobre como os demais integrantes da
comunidade devem ou não proceder. Nesse caso, o fundamento da submissão a regras
jurídicas comuns está no fato de que as ordens são dadas por homens incomuns, os
eleitos, que representam as forças da natureza.
A obediência à lei, num contexto com tais características, é devida porque, em
última análise, é a vontade da própria natureza que se impõe por intermédio dos videntes.
As decisões tornadas públicas pelos governantes, por eles aconselhados, são
apresentadas e interpretadas não como atos deliberados dos próprios governantes, mas
como a realização de uma vontade inumana – a do “Deus natural” – esclarecida pelos
sacerdotes, dos quais a comunidade não espera nem supõe a mentira ou a traição.
Nas sociedades em que predominou ou ainda predominam práticas jurídicas
primitivas2, as instituições políticas têm caráter sagrado. E são alguns poucos homens
que monopolizam o poder de decidir, sendo investidos nessa autoridade por uma “eleição
divina”. De uma forma esquemática, são esses os principais traços do direito natural
primitivo3, e de algumas de suas variantes modernas, por exemplo a doutrina do direito
divino dos reis.
Além do modelo primitivo, há pelo menos dois outros grandes modelos
doutrinários de justificação da submissão a uma ordem jurídica: de um lado, daquele
que concebe as instituições jurídicas como tradicionais, para o qual o Direito é sobretudo
histórico, e de outro, daquele para o qual o Direito não está sujeito a pré-definições,
1
KELSEN, H. “Por que a lei deve ser obedecida?” In: O que é justiça? p. 251-259.
2
Seria um erro supor que só se deve falar de direito primitivo voltando os olhos para o início
da história das sociedades humanas. Práticas primitivas são comuns em todas as fases da história do
direito e em todas as sociedades. Mesmo em sociedades capitalistas desenvolvidas há práticas e
crenças jurídicas que se enquadrariam bem nesse tipo ideal. Veja-se, por exemplo, o dever que se impõe
a testemunhas nos júris norte-americanos de dizer a verdade com a mão direita sobre a Bíblia. Está
implícito aí a crença de que o jurado jamais poderá mentir aos olhos do “Deus Supremo”, que tudo vê
e tudo sabe. Implicitamente é dado um aviso ao depoente: se ele mentir aos homens será punido pelas
forças sobre-humanas.
3
Esse modelo, a propósito, foi descrito por Weber como o tipo ideal de dominação carismática.
Ver WEBER, Max. (1982, p. 134 e ss.)
37
quer sobrenaturais, quer tradicionais, uma vez que o seu único conteúdo legítimo seria
fornecido por decisões humanas racionais.
Antes de prosseguir, porém, é bom que se diga que a classificação acima proposta
não tem a pretensão de sugerir que a história do direito seja uma evolução ascendente
para a racionalização, isto é, de que as práticas primitivas e mitológicas tenham sido
substituídas por práticas modernas e racionalizadas. Ela simplesmente propõe uma via
de acesso ao que interessa mais de perto a esse estudo e que será tratado mais adiante,
isto é, compreender os grandes fundamentos da resposta democrática moderna à
pergunta “por que devo me submeter à lei?” E isso significa pelo menos duas coisas:
primeiro, que a presente classificação não pressupõe que atualmente estejamos vivendo
a era mais racional do Direito; e a segunda, que ainda que se possam encontrar exemplos
de sociedades que vivem experiências institucionais profundamente distintas daquelas
vividas pelas sociedades primitivas, não se quer rotular estas últimas de as mais
evoluídas e com isso defini-las como as melhores instituições. O que se busca, por
hora, é apenas identificar as principais justificações formuladas para cada modelo de
instituições jurídicas historicamente existentes.
Dito isso, vale salientar que a tradição4 talvez seja o conceito que melhor ajude
na descrição das bases em que estão assentadas as instituições jurídicas de uma
sociedade pautada em normas do direito histórico. Esse modelo explicita a força que o
culto aos antepassados exerce sobre as instituições jurídicas do presente. Em outras
palavras, nesse modelo as instituições políticas e jurídicas são respeitadas porque, em
larga medida, as práticas sociais estabelecidas pelos antepassados sempre asseguraram
a ordem e a estabilidade social.
Ora, desde logo se percebe que a sujeição e a obediência, também aqui, têm um
caráter acentuadamente religioso, não obstante o sentido religioso do respeito às normas
desse direito não seja, como no modelo anterior, metafísico ou vinculado à crença do
que dizem supostos eleitos pelo “Deus natural” para interpretar a vontade Dele. Antes
disso, o tom religioso desse tipo de submissão está relacionado com a tradição. Por
isso, as normas vigentes devem ser acatadas porque gozam da autoridade que só a
sabedoria dos fundadores da sociedade pode reivindicar. É um direito religioso no
sentido romano antigo5 do termo, é dizer, de que a sujeição à lei é devida porque elas já
foram aprovadas pelos antepassados. E o fato de terem sido adotadas no passado e
assegurado a ordem bem como a preservação da comunidade presente é motivo de
sobra para que a sabedoria dos antigos seja reconhecida como suprema autoridade.
4
Ver FRIEDRICH, C.J. (1974, p. 15-49.) e também, ARENDT, H. (1992, p. 43-69.)
5
No clássico estudo feito por Foustel de COULANGES sobre A cidade antiga, consta que: “A
palavra religião não se tomava no significado que para nós tem; por esta palavra entendemos certo
corpo de dogmas, uma doutrina sobre Deus, um símbolo de fé acerca dos mistérios que vivem em nós
e em nossa volta; este mesmo termo entre os antigos significava ritos, cerimônias, e atos de culto
exterior. [...] Todas essas fórmulas e práticas lhes tinham sido legadas pelos antepassados, que já
haviam provado a sua eficácia. Nada havia a inovar. Deviam apoiar-se no que os antepassados
praticaram e a suprema piedade estava em proceder como esses antigos. [...] No pensar destes povos,
tudo o que era antigo se considerava respeitável e sagrado. Quando algum romano queria falar de
38
Desde logo, então, a herança política deixada por eles deve ser observada pelos novos
já que – pressupõe-se – as instituições jurídicas herdadas do passado reúnem a
experiência política mais remota e simbolizam a própria prudência. As práticas
institucionais preservadas pelo tempo passado estão, por conseguinte, em melhor
condição para sugerir o que é mais razoável adotar como direito para o presente e para
o futuro. Nessas circunstâncias, como é de supor que todo o cidadão tem algum interesse
em preservar a ordem e a segurança coletiva mantendo a coesão dos laços sociais,
observar as instituições vigentes passa a ser uma obrigação moral.
Essas poucas linhas, ainda que de modo ligeiro, caracterizam a maneira pela qual
em sociedades tradicionais se articulam as justificativas para a observância das instituições
jurídicas. O pensamento jurídico elaborado a partir dessas circunstâncias é também
conhecido como conservador, já que para ele as instituições justas, ou então as melhores
instituições jurídicas são sempre as herdadas do passado, e é só o natural desenvolvimento
histórico da sociedade, que acumula a experiência política de muitas gerações, que está
autorizado a impor como se devem constituir os poderes e o direito de dizer aos homens
o que é certo ou errado. Por esse viés, o próprio povo não tem o direito de subverter a
ordem jurídica instituída. É que fatos novos não justificam novas instituições.
A sociedade, diz BURKE, o mais importante representante do moderno
pensamento jurídico conservador6, “é certamente um contrato”, mas não um contrato
cujas partes podem estipular o que bem entendem. O Estado, diz ele,
[...] é uma associação que leva em conta toda ciência, toda arte, toda virtude e toda
perfeição; e como os fins de tal associação não são obtidos em muitas gerações, o Estado
torna-se uma associação não só entre os vivos mas também entre os que estão mortos e
os que irão nascer. Os contratos que regem cada Estado em particular são cláusulas do
grande contrato primitivo da sociedade eterna, que liga as naturezas mais baixas às mais
elevadas, liga o mundo visível ao mundo invisível, conforme a inviolável lei que mantém
todas as naturezas morais e físicas, cada uma em seu lugar determinado.7
E o mesmo Burke dirá, ainda em sua carta célebre a um jovem fidalgo de Paris, em
resposta aos princípios de um tal Dr. Price, que
qualquer coisa como de sua muita estimação logo dizia: isto é antigo para mim.” (1971, 205-8.) Vale
registrar também o que diz H. ARENDT: “Em contraste com a Grécia, onde a piedade dependia da
presença imediatamente revelada dos deuses, aqui [em Roma] a religião significava, literalmente, religare: ser ligado ao passado, obrigado para com o enorme, quase sobre-humano e por conseguinte
sempre lendário esforço de lançar as fundações, de erigir a pedra angular, de fundar para a eternidade.”
(1992, 163.) Assim também C. J. FRIEDRICH: “Maquiavel referiu-se a esse aspecto de uma forma
bastante clara: ‘E, da mesma maneira como a observância das ordenações da religião é a causa da
grandeza de um Estado, seu abandono também é a ocasião de seu declínio’. Este pensamento foi
extraído de Políbio, que atribuíra à devoção dos romanos um papel importante ao explicar a grandeza
da cidade. A religião proporciona o elo, isto é, a conservação da tradição dos antepassados, e o Senado
era chamado a cuidar de sua observância, como sua autoridade (auctoritas) tinha de reforçar as
decisões do povos.” (1974, 29.)
6
Ver a análise de Oakeshott (1995) sobre a tese de Burke acerca da função moderadora do
governo.
7
BURKE, E. (1982, p. 116.)
39
O senhor poderá notar que da Carta Magna à Declaração de Direitos a política de nossa
Constituição foi sempre a de reclamar e reivindicar nossas liberdades como uma herança,
um legado que nós recebemos de nossos antepassados e que deveremos transmitir a
nossa posteridade; como um bem que especificamente pertença ao povo deste reino, sem
nenhuma espécie de menção a qualquer outro direito mais geral ou mais antigo. Desta
forma, nossa Constituição conserva uma certa unidade na tão grande diversidade de suas
partes. Nós temos uma coroa hereditária, um pariato hereditário, uma Câmara dos Comuns e um povo que detém, de uma longa linha de ancestrais, seus privilégios, suas
franquias e suas liberdades.8
Em suma, a doutrina do Direito histórico tanto em sua versão medieval quanto
moderna destaca que é preciso observar a tradição e a autoridade da experiência passada
para que seja exigida legitimamente a sujeição a normas jurídicas e o respeito a autoridades
constituídas. Normas jurídicas e autoridades políticas que observam a tradição moral
do povo serão as mais prudentes e seguramente estarão agindo conforme o interesse
público. Por isso, mas só nessas condições, devem ser respeitadas e acatadas.
Em que pese o que já foi dito, é recomendável observar que não se deve confundir
esse modelo de legitimação histórica da submissão às leis com a tradicional “Escola
Histórica do Direito”. Não é incomum ver a idéia de “espírito do povo”, objeto de
pesquisa política e jurídica na Europa do século passado e, portanto, também da Escola
Histórica do Direito9, vinculada à imagem segundo a qual a Escola Histórica seria ela
mesma um modo de legitimação da dominação jurídica.
Diante disso, e ainda que sejam razoavelmente conhecidos os postulados
fundamentais da importante Escola de Savigny, é bom que se diga que a Escola Histórica
do Direito, obra do pensamento jurídico científico alemão do final do século XIX, não
representa um modelo histórico de justificação da dominação pelo direito. A Escola Histórica
é sobretudo o nome dado uma nova formulação de métodos de pesquisas sobre o Direito.
Tendo partido dos pressupostos culturais de caráter geral, com os quais a investigação se
terá porventura ocupado demasiadamente, chegamos assim ao cerne da natureza da Escola Histórica do Direito: a reconstituição de uma ciência jurídica consciente dos seus
próprios métodos e sistemática. (...) O seu núcleo é (...) constituído por um processo de
mutação interna da própria ciência jurídica ao mesmo tempo positiva – i. e., autônoma –
e filosófica – i. e. – sistemático-metódica10
É, bem entendida, uma proposta de pesquisa do Direito a partir de sua evolução
histórica, como oposição ao método jusnaturalista. Desse modo, a Escola Histórica tem
8
BURKE, E. (1982, p. 69.)
9
“O advento da consciência nacional na Europa central sugeria precisamente que os povos
e as suas culturas nacionais fossem encarados como executores da missão da história universal. As
camadas cultas em ascensão descobriram em si mesmas o povo como nação cultural e interpretaram
as criações culturais como manifestações do espírito do povo. Também o direito já não podia ser
agora entendido como produto racional do legislador estadual, [...] Antes aparecia como parte da
cultura global, como um «tranqüilo» desabrochar a partir do inconsciente dos povos [...] Os fundadores
da Escola Histórica do Direito tiveram as suas raízes, em todos os aspectos, nesta viragem da
sensibilidade cultural.” WIEACKER, F. (1980 p. 408.)
10
WIEACKER, F. (1980, p. 419.)
40
uma preocupação, por assim dizer acadêmica, científica, com a história do Direito. Ainda
que muitos de seus autores, e especialmente Savigny, estivessem preocupados em difundir
que a fonte mais legítima do Direito seria o “espírito do povo”11, ou então os valores mais
tradicionais da sociedade, essa pretensão acadêmica de definir novas bases para a
hermenêutica jurídica não se confunde com a história das instituições e das práticas
jurídicas vigentes na Alemanha do século passado, a qual está marcada pelo centralismo
administrativo, pelo formalismo na aplicação da lei e pelo universalismo burocrático.12
Feito esse comentário, resta agora discutir os postulados do outro modelo de
justificação que no início desse estudo foi indicada como baseada num Direito racional.
Como ocorre com as outras formas de direito suscintamente já delineadas, também
nesse caso estaremos diante de um conjunto de instituições jurídicas criadas em
conformidade com certos e determinados postulados políticos que, à sua maneira,
respondem à pergunta básica formulada de início. A diferença para os outros modelos
repousa, então – como era de esperar – nos pressupostos do regime político que dão
sentido ao direito que é criado por suas instituições.
Se no modelo primitivo de justificação da submissão a uma ordem jurídica se
admite que as regras sobre o certo e o errado provêm da vontade de um Deus natural,
cujas intenções são interpretadas por instituições religiosas dirigidas por sacerdotes
eleitos pelo tal Deus, é de se presumir que somente por motivos sagrados o conteúdo
do direito pode ser alterado; por conseguinte, é rara a intervenção dos negócios humanos
na constituição da ordem jurídica. E, se no modelo tradicionalista se doutrina que a
fonte mais legítima do direito está na autoridade dos antepassados e nas tradições
culturais deixadas por eles, então, nessas circunstâncias específicas já não é tão difícil
que temas mundanos façam parte da ordem jurídica, e também já não é tão remota
possibilidade de que a ordem jurídica possa ser alterada.
O modelo racional de justificação de uma ordem jurídica, por sua vez, toma o
Direito como algo suscetível de plena manipulação pelo intelecto humano. O direito não
é objeto de culto sagrado e está inteiramente desvinculado de qualquer necessidade de
ser coerente com o passado. O homem, nessa concepção, é o senhor absoluto do
11
Cf. LARENZ, K. (1989, p. 12.) Mas mesmo para Savigny, anota WIEACKER, uma coisa
era a história do Direito, e outra a história do Estado: “A unidade do passado e do presente, o sentido
da continuidade espiritual característicos do historicismo romântico, dominaram, é certo, a consciência
histórico-científica de Savigny (do mesmo modo que a compreensão romântica de totalidade orgânica
influiu na sua teoria da instituição); mas isso dificilmente terá acontecido relativamente às suas
convicções gerais; uma análise mais próxima também o não comprova em relação aos seus equívocos
textos programáticos. Para ele, a história do direito é essencialmente uma história («literária») de
tipo científico, mas não uma história do povo ou do Estado.”
12
“Poder-se-ia dizer que a burocracia na Europa como um todo, e na Alemanha em particular,
atravessou quatro estágios típicos e parcialmente simultâneos: uma fase durante a qual o administrador
nada mais era que um servo particular do príncipe; um período em que concebeu a sua função como
pública, distinta da casa real, mas durante o qual, não obstante, continuou a manipular abertamente o
cargo como patrimônio privado; uma época em que o funcionário público repudiou qualquer uso
direto do poder governamental; e finalmente, uma era em que a burocracia surgiu como guardiã de um
interesse universal.” UNGER, R. M. (1979, p. 195-6.) Ver ainda WEBER, M. (1985, p. 3-83.)
41
conteúdo das normas jurídicas porque se vê como único responsável pelo seu próprio
destino político. Não tem obrigações com entidades supra-humanas, nem com práticas
sociais antigas. Se as observa, não é porque seja temeroso de que a natureza se voltará
contra a sorte de sua comunidade ou porque seja mais virtuoso sujeitar-se a elas.
Respeitam-se instituições tradicionais por que esse comportamento é, em alguma medida,
conveniente e prudente. Porém se fatos novos reclamarem mudança de hábitos, e nessa
medida, do conteúdo de direitos e obrigações já estabelecidos, isso não será motivo
para qualquer convulsão social de natureza grave. Fatos novos, nesse modelo, desde
que publicamente apresentados e razoavelmente fundamentados, podem justificar
profundas alterações institucionais e transformações da ordem estabelecida.
É importante salientar, todavia, que há pelo menos duas maneiras de conceber
esse modelo de justificações “racionais” do direito. Uma delas foi descrita por Max
Weber. Ele demonstrou a relação existente, mais ou menos a partir do século XVII, entre
a formalização do raciocínio jurídico e o advento da burocracia na Europa. De acordo
com Weber, o direito dos Estados europeus modernos e ocidentais passa a ser
interpretado por critérios exclusivamente racionais. E com isso ele quer dizer que o
raciocínio jurídico, a partir daí, estará com base em conceitos formais, que serão
instrumentos de sistematização e ordenação de um discurso técnico. O direito positivo,
por sua vez, foi unificado em grandes codificações, todas elas na língua oficial de cada
Estado nacional. Ele aponta ainda que o Direito deixa de ter uma dimensão ética para o
seu aprendiz pois o Estado providenciou os meios para que uma classe específica de
profissionais fosse treinada em escolas especializadas, a fim de adquirir conhecimentos
técnicos para manejar as regras jurídicas, compreender e lidar com um sistema unificado
e argumentar com base em conceitos formais. Essa a maneira pela qual tanto o Direito
positivo quanto o raciocínio jurídico se racionalizaram no mesmo ritmo e em colaboração
com a racionalização da economia e da política.13
A outra maneira pela qual se apresenta a justificação racional de instituições
jurídicas está associada ao modo pelo qual o Direito deve ser instituído ou institucionalizado, ou seja, tem que ver com o tema das condições para que alguém seja autorizado
a criar regras jurídicas imperativas. Por esse viés, a resposta que prevaleceu no Ocidente
democrático tem origem num princípio político freqüentemente repetido nos séculos
XIII e XIV, remanescente da máxima jurídica latina quod omnes tangit, ab omnibus
approbetur. 14 Essa máxima, derivada do direito processual romano antigo,
especificamente do litisconsórcio, foi decisiva, em todo o período medieval e moderno,
em especial nas lutas por sistemas políticos representativos e nas lutas por liberdade.15
13
“Esse preparo era necessário devido à crescente complexidade dos casos jurídicos práticos
e da economia cada vez mais racionalizada que exigia um processo racional de provas, e não uma
afirmação de fatos verdadeiros pela revelação concreta ou garantia sacerdotal...” WEBER, M.
(1982, p. 253.)
14
Que de acordo com João Carlos Brum TORRES significa “o que interessa a todos deve ser
aprovado por todos.” (1989, p. 248-249.)
15
“As palavras que se citam com tanta freqüência nos séculos XIII e XIV «quod omnes
tangit, ab omnibus approbetur», podem ter sido pouco significativas no antigo império romano, mas
42
O que há de essencial naquele princípio da política medieval é o fato de ele ser o
antecedente dessa exigência democrática para a qual o Direito, agora concebido como
ato puramente humano, deve ser criado e aplicado por homens que devam e possam
estabelecê-lo sem prejudicar nenhum interessado. E isso indica, em última análise, que
onde se concretizou a justificação racionalizadora, presumiu-se que o governante, seja
ele um monarca ou um colégio de representantes do povo, não é senhor absoluto do
conteúdo das normas jurídicas. E, mais ainda, que a comunidade de governados tem
direito de avaliar a razoabilidade e a conveniência do direito positivo instituído pela
autoridade política, anulando-o até, se for o caso.
Michel Villey sugere que as origens dessa concepção de Direito podem ser
encontrada entre as idéias políticas contemporâneas à formação do Estado moderno, já
por volta do século XVI.16 Ele também salienta que a lei válida, nesse novo contexto, é
obra do príncipe ou de um colégio de representantes, mas é, sobretudo, ato deliberado
de uma vontade plenamente humana.
Já CARLYLE é mais reticente a esse respeito. Escreve que é arriscado afirmar
com segurança o momento exato em que apareceu pela primeira vez a doutrina segundo
a qual seria “permitido fazer ou modificar a lei por decisão deliberada e racional da vontade
humana”. Lembra porém que no século IX já se pode encontrar evidências de que em
algumas repúblicas prevalecia o princípio segundo o qual a lei requer o consenso do povo.17
na Idade Média traduziam a realidade, já que o direito da comunidade era feito pela própria comunidade
e obrigava os governantes da mesma maneira que a todos os outros membros dela”. (Las palabras que
se citan con tanta frecuencia em los siglos XIII y XIV «quod omnes tangit, ab omnibus approbetur»,
pueden haber tenido poca significación en el antiguo Imperio romano, pero en la Edad Media
traducían la realidad, ya que el derecho de la comunidad lo hacía la comunidad y obligaba al
gobernante en la misma medida que al resto de aquélla.) (CARLYLE, A. J., 1982, p. 273.)
16
“Passemos aos tempos de Hobbes: Occam e seus nominalistas não podem evidentemente
compreender a lei como a ordem do todo. Para eles, ela não se abstraía completamente; ela emana do
indivíduo, posto que não há nada além de indivíduos: é a essência do nominalismo. Ela é obra de uma
vontade, a ordem arbitrária de uma autoridade investida de uma potestas absoluta: Deus primeiramente,
em seguida os príncipes, seus mandatários temporais.
Em seguida durante o século XVI, as influências nominalistas, estóicas, bíblicas se fundem,
nós já descrevemos o triunfo dessa segunda concepção individualista de lei: comando do príncipe
soberano, segundo a fórmula de Bodin – e para Grottius, que é sobretudo um estóico – dictamen rectae
rationis (trata-se da lei natural...)
[...] E já podemos adivinhar qual será a posição de Hobbes: influenciado pela Bíblia, nominalista,
individualista, ele só poderia juntar-se aos adversários de Aristóteles. [...] Ele será o filósofo que
reverterá a Política de Aristóteles”. (Et passons aux temps proches de Hobbes: Occam et ses
nominalistes ne peuvent évidemment comprendre la loi comme l’ordre d’un tout. Pour eux, elle ne
s’abstrait pas d’un tout, elle émane d’un individu, puisqu’il n’y a que des individus: c’est l’essence
du nominalisme. Elle est l’ouvre d’une volonté, l’ordre arbitraire d’une autorité investie d’une
«potestas absoluta»: Dieu premièrement, ensuite les princes se mandataires au temporel.
Ensuite durant le XVIème siècle, les influence nominalistes, stoïciennes, biblique se mêlant,
nous avons décrit le triomphe de cette seconde conception individualiste de la loi: commandemant
du prince souverain, selon la formule de Bodin – et pour Grottius, qui est surtout nourri de stoïcisme
– dictamen rectae rationis (il s’agit de la loi naturelle)...
[...] Et déjà nous pouvons deviner quel sera le parti de Hobbes: nourri de la Bible, nominaliste,
individualiste, il ne peut que rejoindre le camp des adversaires d’Aristote. [...] il sera le philosophe
que renverse la Politique d’Aristote. VILLEY, M. (1968, p. 680-1.)
17
O Edictum Pistense, de 864, já descrevia as leis como obra do consensus populi et
constitutione regis. (CARLYLE, A. J., 1982.)
43
Entre os séculos XVI, XVII e XVIII, em especial na França, e também em outros
Estados nacionais, começa a se consolidar uma administração pública centralizada e
racionalizada.18 É a era de esplendor do regime monárquico e das doutrinas absolutistas.
É também, por outro lado, um período de grande resistência ideológica à legitimidade
dos governos, que confundem a pessoa física do rei com o próprio reino, é dizer, que
não separam os assuntos inerentes à vida pessoal do governante, sua vida privada,
dos assuntos de interesse público.
Apesar de a força política do monarca favorecer que a atividade legislativa se
mantenha em suas mãos, e haver grandiosa literatura, tanto política quanto jurídica, em
defesa de uma submissão absoluta do povo à vontade legisladora do príncipe19; em
meio a tudo isso se difundia e se consolidava cada vez mais a idéia de que o conteúdo
do Direito provém sim da razão humana, mas a fonte de onde ele nasce não seria a
exclusiva razão do príncipe soberano.
De acordo com o entendimento mais liberal, na verdade, só um sistema de princípios
políticos seria aceitável por todos os homens e válido em todas as sociedades, e nessa
medida digno de ser Direito – a saber, o sistema que respeitasse a dignidade da vida
humana, da liberdade de crença, de pensamento e de manifestação do pensamento; do
direito de ter a propriedade dos frutos do próprio trabalho; que reconhecesse a igualdade
dos homens entre si e de todos perante a lei, e mais ainda, que assegurasse a todos os
súditos a possibilidade de participarem da tomada de decisões que envolvessem assuntos
de seus interesses. Segundo o discurso racionalista que se opunha ao direito absoluto
dos reis, apenas a observância desses princípios poderiam fazer de uma ordem jurídica e
de suas instituições políticas, algo merecedor de respeito e de obediência.
Não bastasse isso, a resistência ao absolutismo exporá ainda que esses princípios
fundamentais não estejam inscritos, necessariamente, num documento jurídico, nem
18
“No antigo regime [...] não havia nenhuma cidade, aldeia, vilarejo ou povoação da
França, por menor que fosse, nem hospital, fábrica, convento ou colégio algum com o direito de
administrar independentemente seus negócios particulares ou seus bens. Na época, como aliás hoje,
a administração tutelava todos os franceses e, se a insolência da palavra ainda não se produzira, a
coisa em si já existia. [...]
Quem lê os decretos e declarações do rei publicados no decorrer do último século da
monarquia, como também os decretos do Conselho promulgados na mesma época, não encontra
muitas atas em que o governo, após ter tomado uma medida, não acrescenta [...] a fórmula
habitual: ‘Sua Majestade manda, além do mais, que todas as contestações que poderão surgir
quanto à execução do presente decreto, circunstâncias e dependências sejam apresentadas ao
intendente para que as julgue, exceto quando houver recurso ao Conselho. Proibimos aos
nossos tribunais e cortes de justiça que deles tomem conhecimento.” (TOCQUEVILLE, A.,
1997, p. 88-9.)
19
Entre os principais autores, segundo Carlyle (1982), situam-se o francês Jean Bodin, Six
livres de la république, de 1586; o escocês Willian Barclay, De regno et regali potestate, de 1600; o
monarca inglês James I, The true laws of the free monarchies, de 1603; a dogmática obra de vários
teólogos anglicanos e galicanos escrita em 1690 intitulada Bishop overall’s convocation book; o
inglês Robert Filmer, Patriarcha, de 1680; os juristas franceses Le Bret, De la souveraineté du roy, de
1632, e Bussuet, Politique tirée des propres paroles de l’écriture sainte; Thomas Hobbes, “Leviathan”,
de 1651.
44
são obra de um sábio, sacerdote ou monarca. Eles são – por assim dizer – algo inerente
à própria condição de ser racional do homem, por conta do que, são imperativos da
razão comum.
Fica estabelecido a partir de então, que ainda que o príncipe — que se via como
encarnação do próprio Estado – pretendesse ser a fonte primária do direito positivo, ele não
o seria jamais, pois sua vontade individual não poderia estar acima da razão humana, que é
universal. Cabe ao príncipe, então, como primeiro magistrado do Estado, observar esses
princípios fundamentais exigidos por todos os homens esclarecidos, pois só nessa medida
haverá condições para o prevalecimento de uma sociabilidade sem rebelião ao seu poder.20
Ao contrário, pois, das justificações tradicionalistas, para as quais o direito é
sempre comunitário, quer dizer, é o direito de um lugar específico que comunga dos
mesmos antepassados, essa visão racional do direito, prevalecente no século XVIII,
mas que deixou raízes profundas para a posteridade, tem pretensões universalistas, ou
seja, procura argumentar que, independentemente das decisões políticas adotadas pelas
autoridades constituídas, há um conjunto de direitos, que são normas fundamentais de
toda e qualquer ordem jurídica, cuja validade não depende da ratificação de nenhum
príncipe. E essas normas-princípio seriam, a bem da verdade, direitos fundamentais do
homem. Desse modo, nenhum governante pode violá-las sem estar ao mesmo tempo
pisoteando a própria condição do homem enquanto ser racional, o que, desde esse
ponto de vista, seria algo absolutamente inaceitável.
Toda justiça e toda aceitabilidade de uma ordem jurídica e das instituições criadas
e preservadas por ela serão, a partir daí, avaliadas por esses princípios fundamentais. O
reconhecimento dos direitos fundamentais do homem colocam-se, então, como um
marco divisório entre o que merece o respeito e a aceitação pública e o que deve ser
desprezado e esquecido.
De fato, a era moderna racionaliza não só a interpretação do direito positivo mas
também a justificação da submissão. E isso até mesmo em sociedades, cujo direito
sempre teve suas fontes ligadas à tradição, como é o caso da Inglaterra. É bem sabido
que o direito, na matriz inglesa, sempre esteve associado, e por muitas vezes foi até
mesmo confundido com a noção de “Direitos Naturais Fundamentais” ou Direitos
20
Quentin Skinner afirma que essas ideologias de resistência ao poder absolutista darão
origem ao constitucionalismo moderno, e que, por paradoxal que possa parecer, elas têm origem no
direito romano, apesar de a autoridade do Digesto ter sido freqüentemente invocada para legitimar
governos absolutistas, em especial, com apoio na cláusula segundo a qual todo príncipe deve ser
considerado legibus solutus, ou seja, livre da ação das leis. Mas prossegue dizendo que “uma das
maneiras de se utilizar a autoridade do direito romano para fundamentar uma posição constitucionalista
foi adaptando-se argumentos de direito privado que justificavam o emprego de violência. Embora os
juristas normalmente interpretassem todos os atos de violência como injúrias, também admitiam que
esse axioma fundamental do direito fosse posto de lado em alguns casos especiais. Naturalmente, é
certo que nenhuma dessas exceções pretendia influir no direito público ou constitucional. Mas a
autoridade dos livros jurídicos era tal que todas essas concessões foram lidas com avidez e adaptadas
por todos aqueles que desejavam justificar atos de violência política.” E segue afirmando que um dos
princípios de direito privado romano que mais influenciaram as teorias da resistência foi o da “legítima
defesa”, que estava no Digesto assim estabelecida: vim vi repellere licet: é sempre justificável repelir
com força a força injusta. (SKINNER, Q., 1996, p. 403-5.)
45
Constitucionais21 – (de certo modo estabelecidos na Magna Carta do século XIII22 – e
na Petition of rights, do século XVII).
Mas em que pese a semelhança terminológica, “direitos naturais” na Inglaterra
moderna já não significam direitos de origem teológica, como fora compreendido ao longo
do medievo. Na sua versão moderna, o direito fundamental do homem inglês é compreendido
como o resultado de um suposto pacto de mútuo respeito celebrado entre governantes e
governados23 e, desse modo, é encarado sobretudo como ato da razão humana.
Na análise detalhada que faz do tema, J.W. Gough recorta muitas decisões judiciais
e escritos jurídicos e políticos bastante elucidativos dessa condição racional mesmo no
direito inglês. Revela nesse estudo que pelo menos a partir do século XVI, na tradição
jurídica inglesa, a relação entre o Direito e a razão são muito mais próximas do que se
presume comumente.24 E isso significa que no moderno e contemporâneo direito inglês,
mesmo um costume deve passar por um juízo de razoabilidade feito pelos tribunais; só
depois poderá ser admitido como direito vigente.
Em última análise, para voltar ao ponto deste ensaio, o que ocorreu na Inglaterra,
como de resto em todas as outras sociedades nas quais prevaleceu a doutrina dos
Direitos Inalienáveis do Homem, foi a elaboração de um discurso – ou ideologia –
segundo a qual toda ordem jurídica, para ser legitimamente imperativa, deveria estar
conforme àqueles princípios fundamentais da razão humana, pois só assim pode uma
sociedade política ser bem constituída.
Interessa observar agora, para irmos além, os postulados basilares da doutrina
democrática moderna, erigida em teoria para justificar a existência de novas instituições
e de uma nova ordem jurídica.
21
Ver as famosas conferências de McIlwain (1991) sobre os históricos princípios políticos do
constitucionalismo.
22
“A supremacia da lei, dogma fundamental da nossa lei comum, que, aliás, filiamos à Magna
Carta, é simplesmente a supremacia do direito divorciada, por ocasião da Reforma, do elemento
teológico. [...]. Sob certo aspecto a Magna Carta constitui reparação aos agravos dos grandes
proprietários de terras impondo limites de ordem e razão às exações do rei como senhor feudal
supremo. Mas põem-se em primeiro lugar os agravos da Igreja. É, portanto, igualmente satisfação aos
agravos da Igreja, impondo respeito pela separação, então fundamental, dos poderes entre o espiritual
e o temporal.” (POUND, R., 1976, p. 18-9.)
23
No pequeno ensaio sobre as leis canônicas e feudais escrito em 1765, John ADAMS, em
defesa das liberdades norte-americanas, representa bem essa situação. Diz ele: “Que se faça saber que
as liberdades britânicas não são concessões de príncipes ou parlamentos, mas direitos originais,
condições de contratos originais, coiguais a prerrogativas e coevos ao governo; que muitos de nossos
direitos são inerentes e essenciais, aceitos como máximas e estabelecidos como preliminares antes
mesmo da existência de um parlamento. Que examinem os fundamentos das leis e do governo da GrãBretanha na constituição da natureza humana e do mundo intelectual e moral. Veremos que ali a
verdade, a liberdade, a justiça e a benevolência são suas bases duradouras, e, fossem estas removidas,
destruir-se-ia, naturalmente, a superestrutura.” (ADAMS, J., 1964, p. 17-8.)
24
Para ilustrar essa perspectiva, Gough salienta o que afirma, por exemplo, Christopher St.
Germain, importante jurista inglês e autor dos Dialogues in english between a doctor of divinity and
a student of the laws of England, publicados em 1523, que assim escreve:
“... quando alguma situação estiver conforme à lei natural, diz-se que é a razão que assim
deseja, e se a lei natural impede alguma situação, então se diz que a tal situação contraria a razão...”
(quand quelque chose est fondé sur la loi naturelle, on dit que la raison veut que cela soit fait, et s’il
est interdit par la loi naturelle, on dit qu’il est contraire à la raison...) GOUGH, J.W. (1992, 26.)
46
3 POR QUE SUJEITAR-SE À LEI E AO DIREITO NUM
REGIME DEMOCRÁTICO?
Dos muitos autores clássicos que dentro dessa linha racional de argumentação
se destacaram pela defesa feita ao regime democrático e suas instituições, dois em
especial costumam despertar a atenção; são eles: Thomas Paine e Alexis de Tocqueville.
Esses homens, além de investigadores dos fundamentos do regime democrático
(americano), podem ser lidos também como bons representantes da doutrina que faz a
defesa desse regime político. Eles se tornaram clássicos, dentre outras razões, porque
também – e isso nos interessa mais de perto – apresentaram ao público as principais
razões para que numa ordem jurídica democrática a submissão à lei fosse aceitável.
Nos passos de Gough pode-se sugerir ainda que é partir do século XVII que a noção de Lei
Fundamental adquirirá no direito inglês um sentido puramente humano, é dizer, deixará de ser
compreendido como um conjunto de antigos direitos inscritos na Magna Carta, para ser um conjunto
de “princípios gerais do direito inglês”, noção essa que apesar de não abandonar os preceitos concebidos
na Magna Carta ou na Petition of rights, estará muito mais próxima da idéia de “razoável” do que de
direito natural, tal qual era compreendido no medievo.
“Se a idéia de lei fundamental acabou (em grande parte em razão do uso americano moderno) por se
identificar com a de controle judicial, elas não estão intrinsecamente ligadas, como se pode ver
claramente pelo que essa noção de lei fundamental significou no seu momento mais importante, na
Inglaterra do século XVII. Nessa época, ela era freqüentemente tomada, não como controle judicial
mas como um princípio que subordinava a política à ética, por força do que, a rebelião ou a revolução
poderiam, em último caso, ser moralmente defensáveis.” (Si l’idée de loi fondamentale a fini (en
grande partie du fait de l’usage américain moderne) par s’indentifier à celle de controle judiciaire,
elles ne sont pas intrisèquement liées, comme le montre clairement le rôle joué par la notion de loi
fondamentale à son apogée, dans l’Angleterre du XVIIe. siècle. A l’époque, elle représentait, le plus
souvent, non le contrôle judiciaire mais le principe que la politique est subordonnée à l’éthique et
que, par suite, la rébellion ou la révolution peut être moralmement défendable, en dernier ressort).
GOUGH, J.W. (1992, p. 221.)
É por isso que ele afirma que com o naufrágio da antiga doutrina, fundada nos direitos naturais
inscritos na Magna Carta, restou a necessidade de o direito inglês moderno procurar saber o que vem a
ser o “razoável”, muito mais do que direitos naturais.
“A idéia antiga de lei fundamental (à qual se associou a de lei natural) repousava sobre a «razão»
que a commom law pretendeu encarnar, o que significa que na prática as cortes supunham sempre que as
leis eram feitas para preservar e defender, e não para atacar ou violar a liberdade e a propriedade
individuais. Essa tendência individualista da commom law subsiste, mas de uma forma atenuada. [...]
Assim, não saberíamos imputar ao legislativo a intenção de privar um sujeito daquilo que lhe pertence
sem lhe assegurar o direito de obter reparação pela perda, a menos que essa intenção esteja expressa de
modo inequívoco.” (L’idée ancienne de loi fondamentale (à laquelle s’était ajoutée celle de loi
naturelle) repousait sur la «raison» que la commom law était censée incarner, ce que voulait dire qu’en
pratique les cours supposaient toujours que les lois étaient faite pour préserver et défendre, et non pour
attaquer ou violer, la liberté et la proprieté individuelles. Cette tendance individualiste de la commom
law subsiste, mais sous une forme atténuée. [...] Ainsi, «on ne saurait imputer ao législatif l’intention
de priver un sujet de ce qui lui appartient sans lui laisser le droit d’obtenir réparation de cette perte, à
moins que cette intention ne soit exprimée sans équivoque.) GOUGH, J. W. (1992, p. 224.)
As cortes judiciais por conta disso, relata Gough, passaram a assumir o direito e o dever de
declarar desarazoado, contrário ao direito e sem valor qualquer uso comercial ou costume que
afrontasse um “princípio fundamental de justiça.”
47
Tomemo-los, portanto, como chaves para acessar o discurso democrático.
O primeiro, Thomas Paine25, discorre sobre o regime democrático freqüentemente
associando-o ao regime representativo e à forma de governo republicana. E procede
assim justamente para tentar demonstrar que eles não devem ser entendidos como entes
desvinculados entre si. É que – argumenta – o regime democrático há de ser representativo
e republicano porque só a democracia representativa dá à ordem jurídica as leis mais
sábias, já que só ela permite que os homens mais sábios sejam investidos de autoridade
política. Não obstante, o regime democrático representativo é recomendável também
porque incita e favorece o desenvolvimento intelectual da comunidade toda ao exigir a
participação dela nos negócios públicos e a afirmação de seus interesses. Por causa
disso, o republicanismo é absolutamente coerente com o sistema democrático
representativo, pois republicanismo, diz Paine, não é uma forma particular de governo,
mas representa o conjunto de valores que todo e qualquer sistema político bem constituído
deve adotar, ou seja, preocupar-se com assuntos públicos de uma maneira pública.26
Não é por outra razão que, segundo ele, o governo da América merece ser
reconhecido como o melhor governo. Esse governo está totalmente fundamentado no
sistema de representação e não tem outro objetivo senão o interesse público e os
negócios públicos. A democracia americana seria, nesses termos, um regime político
moderno – num sentido preciso de estar preparada para os novos tempos – porque, à
diferença da democracia ateniense – que segundo Paine fora a melhor forma de governo
existente na Antigüidade – a América congrega toda a comunidade nos assuntos
públicos pela forma representativa sem deixar de ser transparente e equilibrada no trato
da coisa pública (res publica). Nesse modo de governar, todos os homens públicos são
compelidos a trabalhar para o interesse público.27
“A «justiça natural», mesmo que seja encontrada na história de nosso direito, nem sempre teve
o favor de nossas cortes, e a lei natural não tem, como lei, um lugar reconhecido em nosso sistema jurídico.
Mas nenhum jurista inglês dirá que o direito está totalmente separado da moral; em face disso, toda a
doutrina do direito natural serviu primeiramente para lembrar que em última análise, o direito significava
uma obrigação superior. Se eles não estiveram sempre de acordo a respeito do que entendiam por isso, pelo
menos quando, ao longo da história, os ingleses invocaram uma lei fundamental, era a mesma fé que
proclamavam.”(Les références à la «justice naturelle», bien que l’on en rencontre parfois dans l’histoire
de notre droit, n’ont pas toujours la faveurs des cours, et la loi naturelle n’a pas, comme loi, une place
reconnue dans notre système juridique. Mais aucun juriste anglais ne considère que le droit est totalement
distinct de la morale; après tout, toute la doctrine du droit naturel servait d’abord à rappeler qu’en
dernière analyse, le droit reflétait une obligation supériore. S’ils n’étaient pas toujours d’accord sur ce
qu’ils entendaient par là, quand, au cours de leur histoire, les Anglais invoquaient une loi fondamentale,
c’était bien la même foi qu’ils proclamaient.) GOUGH, J.W. (1992, p. 228.)
25
PAINE, T. Os direitos do homem (1989); Senso comum (1973)
26
“Governo republicano não é outra coisa senão governo estabelecido e conduzido para o
interesse público, tanto individual quanto coletivamente. Não está necessariamente ligado a alguma
forma particular, mas muito naturalmente associado à forma representativa, que é considerada
como a que melhor garante a finalidade para a qual existe uma nação às custas da qual ele é
sustentado.” (PAINE, T., 1989, p. 154.)
27
“Aquilo que é chamado governo, ou que nós preferiríamos que o governo fosse, não é mais do
que um centro comum onde todas as partes da sociedade se unem. Não pode ser realizado por nenhum
método tão útil aos vários interesses da comunidade quanto pelo sistema representativo. Ele concentra o
conhecimento necessário ao interesse das partes e do todo. Coloca o governo numa situação de maturidade
48
O governo representativo, assim constituído, não apenas favorece a difusão do
conhecimento sobre assuntos de governo – o que por si só acaba com a ignorância e ao
mesmo tempo com governantes impostores – mas também não dá lugar para mistérios,
pois nesse sistema político os governados sabem tanto quanto os governantes o que
se passa com os negócios públicos. Numa democracia representativa, diz PAINE, “a
razão para cada coisa deve aparecer publicamente” e é só dessa maneira que se pode
conciliar o governo com a tão almejada liberdade, pois a liberdade política “não está nas
pessoas, mas nas leis” elaboradas pelos representantes do povo.28
Tem-se, então, que o direito constituído por instituições democráticas,
representativas e republicanas deve ser respeitado porque é feito pelos melhores homens
da comunidade sem a possibilidade de privilégio para nenhuma classe deles, haja vista
que em democracias representativas republicanas todos são igualmente legisladores e
perseguem interesses públicos.29 Nessa medida, os interesses de uns são sempre
respeitados de modo compatível com os interesses iguais dos outros. É, em síntese, o
único regime que concilia igualdade, liberdade e soberania popular.
Tocqueville, por sua vez – mais analítico mas não menos doutrinador – na obra30,
de 1835, e com aquele tom profético que caracterizou sua escrita, constata o seguinte: do
século XVIII para o XIX estaria ocorrendo uma profunda alteração na forma de vida das
sociedades ocidentais, cuja tendência seria um movimento irreversível a caminho da
ampliação da igualdade entre os homens. Sendo assim, todo governo para ser estável e
bem constituído deveria ter instituições adequadas às exigências dos novos tempos. Não
é por outra razão que ele se dedica ao estudo das instituições americanas, uma vez que na
América – diz – há muito tempo reina absoluto o princípio da igualdade; todos os princípios
sobre os quais repousam as instituições americanas, como o respeito à soberania popular,
à ordem, ao equilíbrio de poderes e ao direito, devem ser bem compreendidos, pois são
princípios indispensáveis a qualquer república que pretende adotar a igualdade e a liberdade
como linhas mestras de suas instituições políticas.
A democracia, então – que na leitura de Tocqueville se vinha realizando por
baixo –, na vida social, reclamava apenas uma revolução nas instituições políticas.31 Um
Estado democrático é antes de mais nada uma exigência da história, e atender a ela
constante. Como já observamos, nunca é jovem, nunca é velho. Não está sujeito à maturidade nem à
segunda infância. Nunca está no berço nem sobre muletas. Não admite separação entre conhecimento e
poder e é superior, como o governo sempre deveria ser, a todos os acidentes do homem individual e é,
portanto, superior àquilo que se chama monarquia.” (PAINE, T., 1989, p. 156.)
28
“O direito de votar em representantes é o direito básico através do qual os outros direitos
ficam protegidos. Tirar este direito significa reduzir um homem à escravidão, pois a escravidão consiste
em ficar submetido à vontade de outrem.” (PAINE, T., citado e traduzido por Florenzano, 1998,
p. 203.) Do texto Dissertation on first principles of governement, de 1795.
29
Que poderiam ser resumidos em três grandes princípios: “... liberdade, propriedade a todos os
homens e livre exercício da religião, de acordo com os ditames da consciência...” (PAINE, T., 1973, p. 71.)
30
TOCQUEVILLE, A. A democracia na América, 1987.
31
“Imagino, então, uma sociedade na qual todos, considerando a lei como obra sua, ter-lheiam amor e a ela se submeteriam de bom grado; uma sociedade na qual, por ser a autoridade do governo
respeitada como algo necessário e não de natureza divina, o amor que se demonstraria ao chefe de
Estado não seria jamais uma paixão, mas um sentimento racional e tranqüilo. Como todos teriam
49
parece ser a mais racional das decisões humanas. Nesse caso, adotar a igualdade perante
a lei se impõe como um dos mais importantes princípios da nova ordem. Essa decisão,
aliás pioneiramente, já fora tomada pelos habitantes da Nova Inglaterra. Para o autor,
por isso, é preciso conhecer bem os costumes e hábitos daqueles habitantes das colônias
do norte para captar a substância de todo o edifício político da América, pois lá o
respeito à liberdade e à igualdade, mais do que em qualquer outro lugar, predomina; e foi
com base nesses valores que os americanos se constituíram em sociedade, nomearam
seus magistrados, decidiram coletivamente sobre a paz e a guerra, definiram regulamentos
de polícia e criaram leis para si mesmos “como se só devessem fidelidade a Deus”.
Os princípios gerais sobre os quais repousam as constituições modernas, princípios que
a maior parte dos europeus do século dezessete mal compreendia e que triunfavam ainda
incompletamente na Grã-Bretanha, são todos reconhecidos e fixados nas leis da Nova
Inglaterra: a intervenção do povo nos negócios públicos, a livre votação de impostos, a
responsabilidade dos agentes do poder, a liberdade individual e o julgamento pelo júri
acham-se neles estabelecidos positivamente e sem discussão.32
Esse apego do povo americano pela autoconstituição da sociedade só pode ser
explicado pelo modo como eles conciliavam os ideais de igualdade e liberdade.
Tocqueville aproveita essa idéia para dizer que só nas sociedades em que cada indivíduo
é considerado uma porção igual do poder soberano, o povo pode participar do governo
do Estado. É que nessas condições o indivíduo é considerado tão esclarecido ou
virtuoso quanto qualquer outro de seus semelhantes, e assim, nenhum governante dá
ordens ou toma decisões por ser moralmente superior aos governados, mas apenas por
que foi autorizado pelos demais a tomar decisões em assuntos públicos.
Nessa medida, ordenar e obedecer são eventos que se colocam como um pacto
de mútuo respeito, algo premeditado e bem compreendido por todos. Só isso explicaria
a submissão tranqüila às leis e ao governo na América, tanto que à pergunta “Por que
então, o povo americano obedece à sociedade, e quais são os limites naturais dessa
obediência?” Tocqueville responde “[...] Obedece à sociedade nunca porque seja inferior
àqueles que a dirigem, ou menos capaz do que outro homem de se governar por si
mesmo; obedece à sociedade porque a união com os seus semelhantes lhe parece útil e
ele sabe que essa união não pode existir sem um poder regulador.”33
Numa organização política com tais características, apenas a concentração do
governo é admitida, ao passo que a descentralização administrativa é uma exigência da
razão. De fato, se sob o regime político democrático todos se sentem soberanos, não há
direitos e lhes seria assegurada a conservação de seus direitos, estabelecer-se-ia entre todas as classes
uma confiança viril e uma espécie de recíproca condescendência, tão distante do orgulho quanto da
humildade servil. Conhecendo os seus reais interesses, o povo compreenderia que, para tirar proveito
dos bens da sociedade, seria preciso submeter-se aos seus encargos. A livre associação dos cidadãos
poderia substituir então o poder individual dos nobres e o Estado ficaria ao abrigo da tirania e da
licenciosidade.” (TOCQUEVILLE, A. 1987, p. 16.)
32
TOCQUEVILLE, A. (1987, p. 39.)
33
TOCQUEVILLE, A. (1987, p. 57.)
50
fundamento para tolerar a concentração do poder político. Como o legislador americano
desconfia sempre da honestidade humana, mas nunca de sua inteligência34, organiza o
poder de um tal modo que o governante seja ao mesmo tempo forte sem ser autoritário:
ele governa nos limites da lei e sob o controle de outras autoridades. O poder, assim,
quer da União ou dos Estados, quer seja o de julgar, legislar ou administrar, não será
nunca personalizado. “Nos Estados Unidos a pátria se faz sentir por toda parte”, e é
isso o que o autor mais admira nos efeitos da descentralização administrativa.
Na América, o povo designa aquele que faz a lei e aquele que a executa; constitui ele
mesmo o júri que pune as infrações à lei. As instituições não são democráticas apenas no
seu princípio, mas ainda em todos os seus desenvolvimentos; assim o povo indica diretamente os seus representantes e os escolhe em geral todos os anos, a fim de tê-los mais
completamente na sua dependência. É pois, realmente o povo que dirige e, embora a
forma do governo seja representativa, é evidente que as opiniões, os preconceitos, os
interesses e mesmo as paixões do povo não podem encontrar obstáculos duráveis que
lhes impeçam de se produzir na direção cotidiana da sociedade. Nos Estados Unidos,
como em todo país onde o povo reina, é a maioria que governa em nome do povo. Essa
maioria compõe-se principalmente de cidadãos pacíficos que, seja por gosto, seja por
interesse, desejam sinceramente o bem do país.35
Em seu ver, essa participação efetiva do povo na gestão dos negócios públicos
deve ser estimulada sempre mais. Não só porque é a única maneira de interessar os
homens pela sorte de sua pátria mas também porque assim procedendo não se deixa
morrer a idéia fundamental de soberania popular, que em último grau é o direito que o
povo detém de autodefinir suas leis e, nessa medida, de ser livre. Todavia, ainda que
não exista nada mais fecundo do que a arte de ser livre, “nada há de mais difícil do que
o aprendizado da liberdade.”36 Porém, só quando um povo aprende a ser livre, isto é,
quando aprende a dar leis a si mesmo, deixará de encontrar dificuldades para se submeter
ao direito e às instituições democráticas.37
Tocqueville não faz conceituação acabada do regime democrático. Entretanto deixa
entrever que o admira porque é o mais adequado a uma época em que a igualdade está por
todas as partes e também porque é o regime que melhor garante o respeito à liberdade sem
abdicar da ordem pública.38 A defesa da ordem jurídica está feita, ainda que indiretamente:
34
TOCQUEVILLE, A. (1987, p. 67.)
35
TOCQUEVILLE, A. (1987, p. 135.)
36
TOCQUEVILLE, A. (1987, p. 185.)
37
“... nos Estados Unidos, cada qual tem uma espécie de interesse pessoal em que todos
obedeçam às leis, pois aquele que hoje não faz parte da maioria talvez esteja amanhã em suas fileiras;
e esse respeito, que professa agora pelas vontades do legislador, em breve teria ocasião de exigi-lo para
as suas. Ainda que a lei seja malsã, o habitante dos Estados Unidos submete-se a ela, por isso mesmo,
sem dificuldade, não somente por ser obra da maioria, mas ainda por ser obra também sua; consideraa do ponto de vista de um contrato do qual é uma das partes. [...]. De resto, o povo, na América, não
obedece à lei apenas porque ela é obra sua, mas ainda porque pode mudá-la, quando por acaso ela o fira;
e submete-se a ela em primeiro lugar como um mal que se impôs a si mesmo, e depois como um mal
passageiro.” (TOCQUEVILLE, A., 1987, p. 186-187.)
38
“... se nos parece útil encaminhar a atividade intelectual e moral do homem para as
necessidades da vida material e empregá-la para produzir o bem-estar; se a razão nos parece mais
51
o regime democrático, ao assegurar liberdade e igualdade acolhe os postulados fundamentais
constantes do sistema fundamental e universal de direitos do homem, e esse parece ser um
motivo bastante razoável para que suas instituições sejam respeitadas.
4 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O ESTADO ATUAL DA
DEMOCRACIA REPRESENTATIVA.
Parece claro que boa parte da discussão contemporânea sobre a legitimidade de uma
ordem jurídica não vacila em sustentar que já não há mais ambiente político para o
prevalecimento regimes não democráticos. Há até, para ir além, um relativo consenso dos
organismos internacionais a esse respeito. Não obstante, paralelamente, a teoria política tem
salientado que neste século vem se expandindo um processo corrosivo dos fundamentos
do regime democrático representativo, o que, de certa forma, reabre a clássica discussão,
que com as democracias representativas parecia ter sido esgotada, é dizer, reabre-se a
discussão a respeito do por que a lei e as instituições que a criam devem ser respeitadas.
Carl Schmitt, num célebre trabalho39, procura demonstrar que a democracia, a
proveitosa aos homens que o gênio; se o nosso objetivo de modo nenhum é criar virtudes heróicas,
mas hábitos pacíficos; se antes queremos ver vícios do que crimes, e se preferimos encontrar menor
número de grandes ações com a condição de encontrar menos ofensas; se, em vez de agir no seio de
uma sociedade brilhante, basta-nos viver no meio de uma sociedade próspera; se, afinal, o objetivo
principal de um governo de modo nenhum, em nossa opinião, é dar a todo o corpo da nação a maior
força ou a maior glória possível, mas fornecer a cada um dos indivíduos que a compõe a maior parcela
de bem-estar e evitar-lhe maior miséria; então, igualemos as condições e constituamos o governo da
democracia.” (TOCQUEVILLE, A., 1987, p. 190.) Essa citação rendeu o seguinte comentário de
Raimond ARON a propósito do conceito de democracia na obra de Tocqueville: “Ao seu ver a
democracia é a igualização de condições. É democrática a sociedade na qual não subsistem distinções
de ordens ou classes, na qual todos os indivíduos que compõem a coletividade são socialmente iguais,
o que não significa intelectualmente iguais, o que seria um absurdo, nem economicamente iguais, o
que, segundo Tocqueville, seria impossível. A igualdade social significa que não há diferenças hereditárias
de condições, e que todas as ocupações, todas as profissões, todas as dignidades, todas as honrarias são
acessíveis a todos. São desse modo inerentes à idéia de democracia a uma só vez a igualdade social e a
tendência à uniformidade dos modos e níveis de vida. [...] Mas o que ele entende por liberdade? O
termo primeiro que constitui a noção de liberdade é a ausência de arbítrio. Quando o poder se exerce
apenas com base em leis, os indivíduos estão em segurança” (À ses yeux, la démocratie est l’égalisation
des conditions. Est démocratique la sociéte oú ne subsistent plus le distinctions des ordres et des
classes, où tous les individus qui composent la collectivité sont socialement égaux, ce qui ne signifie
d’ailleurs pas intellectuellement égaux, ce qui serait absurde, ni économiquement égaux, ce qui,
d’aprés Tocqueville, serait impossible. L’égalité sociale signifie qu’il n’y a pas de différence héréditaire
de conditions, et que toutes les occupations, toutes les professions, toutes les dignités, tous les
honneurs sont accessibles à tous. Sont donc impliquées dans l’idée de démocratie à la fois l’égalité
sociale et la tendance à l’uniformité des modes et niveaux de vie. [...] Mais qu’entendait-il par
liberté? [...] Le terme premier qui constitue la notion de liberté, c’est l’absence d’arbitraire. Quand
le pouvoir ne s’exerce que conformément aux lois, les individus sont en sécurité. (ARON, R., 1967,
p. 225 e 227.)
39
SCHMITT, Carl. Situação intelectual do sistema parlamentar atual, 1996.
52
partir da queda dos regimes absolutistas, passou a estar associada a um sistema
representativo parlamentar, cuja ratio ou princípio básico é ser um modelo institucional
de formar as leis com base na discussão pública de argumentos e contra-argumentos, e
na separação ou balanceamento de poderes. O propósito dessa idéia é fazer com que o
equilíbrio das discussões públicas possa definir melhor o conteúdo das leis do que a
mera ordem baseada na autoridade.
Todavia, o mesmo autor diz também que o dilema dos regimes democráticos
contemporâneos reside justamente na incapacidade de se “publicizar” o debate e a
discussão. Basta ver, por exemplo, que em razão do volume das questões debatidas nos
parlamentos, a formação de comissões técnicas e especializadas restringe drasticamente
a publicidade dos debates, e com isso o sistema parlamentar perde sua base intelectual.40
Norberto Bobbio41, por exemplo, num trabalho relativamente recente, evidencia
certas incompatibilidades de algumas realidades contemporâneas com a idéia de regime
democrático formulado ao longo dos três últimos séculos.
A primeira dessas incompatibilidades diz respeito ao agigantamento das
organizações atuais. De um lado temos o fato de a democracia ter sido concebida para ser
um regime político para pequenas comunidades; de outro o que se constata atualmente é
o surgimento de grandes organizações sindicais, partidárias, empresariais e mesmo de
Estados-nação com dimensões territoriais pouco imagináveis no século XVIII.
Outra incompatibilidade se refere à necessidade que a democracia têm de realizar
controle popular da coisa pública, de um lado, e de outro o que se vê é o exagerado
crescimento da burocracia estatal, que a tornou demasiado complexa dificultando
sobremaneira um controle desse gênero.
Além disso, é cada vez menor a capacidade do cidadão comum para discernir os
reais problemas sociopolíticos do cotidiano, e ao mesmo tempo os governos fomentam
um modelo de gestão apoiado cada vez mais em especialistas com falas cada vez mais
técnicas, o que compromete a transparência do discurso político e a avaliação popular
das decisões oficiais.
Outro paradoxo diz respeito à autonomia do indivíduo, fundamento dos regimes
democráticos. Diz o autor que também este – se já não desapareceu – está por um fio. É
que o advento das sociedades de consumo de massa está provocando uma espécie de
padronização de gostos, costumes, emoções e valores, o que tende a deteriorar a própria
idéia de individualidade, e com ela o sujeito com idéias próprias – conceito nuclear das
doutrinas políticas modernas – sem o qual perde sentido o postulado da eleição individual
de representantes.
Bobbio salienta ainda que o modelo democrático também está ameaçado pela
crise de governabilidade, que em síntese significa que se torna cada vez mais
desproporcional a relação entre demandas da sociedade e a capacidade efetiva de as
40
“Se, na realidade efetiva do Parlamento, a publicidade e a discussão passaram a ser só uma
formalidade vazia e inócua, então o Parlamento, do modo como se desenvolveu no século XIX,
também perdeu, desde então, o seu fundamento e o seu sentido.” (SCHMITT, Carl., 1996, p. 48.)
41
BOBBIO, N. A crise da democracia e a lição dos clássicos, 1987.
53
instituições públicas satisfazê-las. Nesse caso, a multiplicação das demandas e o
fracionamento dos interesses faz com que os governos sejam cada vez menos capazes
de formar base de apoio parlamentar para realizar projetos, ou seja, é cada vez mais
difícil formar coalizões e governos estáveis. O fato novo é, no que diz respeito à
governabilidade, que está havendo uma crise não de abuso do poder – o grande
problema da democracia moderna – mas falta ou ausência de poder para formar governos
estáveis e capazes de responder às expectativas populares.
Paul Hirst42, numa linha de análise semelhante à dos dois outros autores
precedentes, está preocupado em demonstrar que a democracia representativa atual
não dispõe de meios adequados para o povo supervisionar, limitar e controlar o que ele
denomina “grande governo”, que é representado pelos Estados de bem-estar. Existem,
em seu ver, algumas contradições entre a teoria e a prática democrática atual que
complicam a legitimidade do regime.
A primeira contradição desse modelo institucional está no fato de apesar de o
eleitor escolher algumas das pessoas que poderão participar de uma decisão
governamental, ele não pode escolher diretamente o conteúdo das decisões. É dizer, os
eleitores não podem controlar as decisões de seus representantes depois do processo
eleitoral, e isso significa que os eleitos podem decidir de modo incompatível com o
discurso de campanha sem que daí decorram maiores responsabilizações políticas.
Desse modo, a eleição se converte numa escolha entre um pequeno conjunto de
organizações partidárias, e nunca numa expressão pura da vontade do povo.
A segunda contradição que ele apresenta diz respeito ao pressuposto jurídico já
consolidado de que as leis, por serem normas gerais, não ferem direitos individuais,
quando na verdade a “maior parte da legislação consiste na delegação de poderes de
decisão e ação a órgãos executivos, que têm o poder derivado de criar leis quando
necessário e de administrar uma atividade” específica. O Poder Executivo não está mais
submetido ao Legislativo como supõe a doutrina tradicional; ele tem, na realidade, a
maior parte da iniciativa das leis, e os programas de governo são aprovados graças à
disciplina partidária coordenada a partir do Executivo.
O autor acrescenta, não obstante, que em face dessas contradições, as
democracias têm de enfrentar quatro43 grandes problemas ou áreas de preocupação. A
primeira se refere à tendência de o regime democrático se converter em “despotismo
eletivo” do governo partidário. E isso porque os políticos (profissionais) têm explorado
ao máximo a centralização administrativa para satisfazer interesses pessoais. A segunda
diz respeito ao agigantamento da máquina burocrática e à descentralização decisória
que passou dos cargos eletivos para os cargos técnicos: o poder se exerce atualmente
com grande influência dos burocratas, que em boa medida não são fiscalizáveis. E é
essa relação entre poder e burocracia que origina a terceira preocupação de Hirst, qual
seja, a de que cresce a pressão pelo segredo e pelo controle da informação política por
burocratas que exercem o poder por longos períodos. Não bastasse isso, a necessidade
de formar governos de coalizão favorece composições ministeriais de matizes diversos,
42
HIRST, P. A democracia representativa e seus limites, 1992.
43
HIRST, P. (1992, p. 40.)
54
o que, não poucas vezes se torna um obstáculo à execução de um programa uniforme de
governo, já que muitas visões ministeriais podem se apresentar como resistência
administrativa ao avanço político de um programa.
Outros autores sugerem44 que, apesar de a representação política não ser um
conceito ainda descartável, o certo é que ele está profundamente modificado, se
considerarmos o seu sentido doutrinário clássico. É que a crise de representação estaria
mais associada a transformações estruturais da sociedade, como a “fragmentação da
classe trabalhadora, a extrema instabilidade e fluidez das posições no mercado de trabalho
e a complexa imbricação dos conflitos de interesse” do que propriamente com o
burocratismo ou com o partidarismo. Desse ponto de vista, tais “transformações sociais
de envergadura” eliminaram da sociedade a própria idéia de classes que pudessem ter
interesses comuns para defendê-los por via dos partidos políticos. A sociedade, desse
modo, não tem mais capacidade de criar uma imagem de si como uma unidade, nem de
formar identidades coletivas em geral. Como conseqüência, desaparece o “cidadão”, os
interesses de classes, e o próprio espaço público-político, já que a mídia fabrica uma
opinião pública resultante da “espetacularização da vida política”.
Há outros autores ainda, como Guillermo O’Donnel45, que analisam o caso específico
latino-americano para dizer, em rápida síntese, que a experiência democrática por aqui não
avançou para além do voto direto. A transição do autoritarismo para a democracia representou
apenas a conquista de eleições universais, mas nenhum país latino-americano conseguiu
criar um sistema integrado de instituições politicamente capazes de fiscalizar a gestão dos
negócios públicos para impedir desvios de finalidade, nem foram capazes de coibir a
ascendência do Poder Executivo sobre o Legislativo e o Judiciário.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Talvez seja o caso de apontar que não só a complexidade da estrutura do
Estado, mas também a tremenda importância que temas econômicos complexos
passaram a ter para a política, inibem não apenas a construção da cidadania participativa
mas até a consolidação de instituições representativas que possam acompanhar de
perto o processo decisório e influenciá-lo. São decorrências desses fenômenos o
distanciamento do eleitor da vida pública e o definhamento do controle popular sobre
as autoridades eleitas.
O propósito deste ensaio era destacar, todavia, que as justificativas democráticas
– das quais deriva o grosso dos argumentos jurídicos relativos à necessidade de
obediência da lei e das instituições jurídicas – estão ligadas pela característica de que
representação, controle popular e institucional da gestão dos negócios públicos e a
legitimidade das instituições jurídicas demandam a existência de um espaço público
do qual o povo participe efetivamente, pois só nessa medida o súdito se converte em
44
NOVARO, Marcos. O debate contemporâneo sobre a representação política, 1995.
45
O’DONNELL, G. “Democracia delegativa?” 1991.
55
cidadão. Entretanto, temos em vista um processo de significativa transformação do
conteúdo da política em razão da deterioração do espaço público, que já não é mais
um espaço que permite o debate aberto e o confronto de ideologias. É o pragmatismo
e o poder de autoridades executivas, que não têm sequer vínculos de representação
popular, fundado na autoridade da técnica que predominam.
E se isso significar alguma coisa para o problema da legitimidade das autoridades,
talvez se possa dizer que é cada vez menos adequado doutrinar que devemos respeitar
as instituições jurídicas por causa da democracia, já que nas circunstâncias atuais os
governantes têm muito mais possibilidade de mentir, sem serem percebidos, e de decidir
sem serem contrariados pelos seus representados.
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da teoria social. Trad. Roberto Raposo. São Paulo : Civilização Brasileira, 1979.
57
VILLEY, Michel. La formation de la pensée juridique moderne. Paris : Montchrestien,
1968
WEBER, Max. Os três tipos puros de dominação legítima. Trad. Amélia Cohn e
Gabriel Cohn. In: Max Weber: sociologia. 2. ed. São Paulo : Ática, 1982.
(Grandes cientistas sociais)
——. Burocracia. Trad. Waltensir Dutra. In: Ensaios de sociologia. 5. ed. São Paulo :
Zahar, 1982
––––. Parlamentarismo e governo numa Alemanha reconstruída. Trad. Maurício
Tragtenberg. In: Max Weber: textos selecionados . 3. ed. São Paulo : Abril Cultural,
1985.
WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Trad. A. M. Botelho. Lisboa :
Fundação Calouste Gulbenkian, 1980.
58
QUESTÕES DO DESEMPREGO NO
BRASIL E POLÍTICAS RECENTES*
Sérgio Luiz Lacerda
Professor de Economia das
Faculdades Integradas Curitiba,
mestrando em Integração LatinoAmericana, na UFSM
A Convenção sobre a Política de Emprego nº 122, de 9 de julho de 1964, que
corrobora a Declaração Universal dos Direitos do Homem, defende o direito ao trabalho,
a livre escolha de emprego, condições justas e favoráveis de trabalho e a proteção
contra o desemprego. O conteúdo desse documento deveria conduzir a sociedade
brasileira a uma profunda reflexão sobre a política de rendas do atual governo.
Embora não sendo objeto de estudo deste artigo, caberia, nesse aspecto, resgatar
uma análise sobre os desafios da competitividade e da geração de empregos neste final
de século, para que se entenda o caso brasileiro.
Indiscutivelmente os países, em geral, como é o caso do Brasil, vêm enfrentando
importantes transformações econômicas como conseqüência da sua inserção no mundo
globalizado. A busca de conciliação entre as exigências da melhoria na competitividade
das empresas e a expansão das oportunidades de emprego tornou-se um grande desafio.
É uma tese que deve ser discutida em sua sistemática e, necessariamente, em seus
resultados práticos, fundamentados pela teoria econômica e interpelados pelos
fundamentos ideológicos e elitistas das classes dominantes.
O capitalismo tecnoburocrático, componente básico do comando político e
econômico das três últimas décadas do Brasil, é superado com a reintegração ao capitalismo
monopolista.1 O financiamento da economia brasileira passa a ser realizado pelo ingresso de
significativa massa de capital externo e especulativo, mantendo elevados níveis de
concentração e centralização de capital aos interesses das empresas transnacionais. Por
isso, ao se buscar um modelo brasileiro de competição, não é possível desvincularem-se da
marca histórica da dependência externa as características intrínsecas do capitalismo tardio.2
(*) Versão inicial apresentada em palestra na PUC/PR, em outubro de 1999, sobre O fenômeno
do desemprego no Brasil: perspectivas e diagnósticos – Conselho de Reitores das Universidades
Brasileiras. Agradeço os comentários dos professores e colegas Carlos Luiz Strapazzon, Sandro
Aparecido Gonçalves e Wilson Maske.
1
PEREIRA, Luiz Bresser. Economia brasileira – uma introdução crítica. 9. ed. São Paulo :
Brasiliense, 1986. p. 58.
2
Conforme E. Mandel, capitalismo tardio não se trata de uma nova dimensão do capitalismo,
59
Sob esse aspecto vinculam-se as questões da educação, seu direcionamento
ainda maior aos interesses dessa mesma classe na formação dos gerentes do sistema,
que no momento atual, com a voracidade dos mercados cada vez mais competitivos,
aprofunda com mais intensidade a lacuna entre as possibilidades de uma ampla
homogeneização de direitos e a geração de empregos. Ao se observar o despreparo
da classe trabalhadora brasileira, quanto às “novas sistemáticas” sobre o trabalho 3,
não se excluem as questões paternalistas e populistas do velho modelo de governo
que acaba engendrando os mecanismos contraditórios para dentro dos novos rumos
da educação (término do ensino profissionalizante de nível médio; crescimento
desordenado e indisciplinado do número de faculdades, que, segundo os preceitos
neoliberais e sob os auspícios da “concorrência”, permanecerão em “pé” as
eficientes; controle de qualidade do ensino de terceiro grau pela realização do
Exame Nacional de Cursos, o “Provão”), afetando inclusive as elites que também se
conflitam ao se defrontarem com o novo modelo econômico neoliberal e concentrador
de renda, sendo adotado pelos governos do Brasil da década de 90 (a “garantia” de
emprego estará na razão direta do coeficiente obtido pela escola e pelo aluno).
Como o sistema de ensino brasileiro da década de 70 para cá produziu a queda
generalizada da qualidade do aprendizado, com efeito a sociedade deve atentar-se,
com significativo senso crítico, para o crescimento recente das indústrias de MBA
(Menagement Business Administration).
A reprodução da divisão do trabalho não se dá mais pela subdivisão de tarefas
respaldadas, unicamente, por meio da força de trabalho humano, como já se verifica na
maioria dos centros consideradas chamados de ponta. De fato, em certos segmentos de
mercado, que sistemas de marketing, por exemplo, não estejam ainda totalmente
artificializados, é mera questão de tempo. O consumidor artificial-virtual-final não está
muito longe de ser alcançado pelas pesadas estruturas econômicas oligopolizadas mundiais.
Havendo fortes razões para cada uma das duas exigências, o que se tem
claramente definido é o aprofundamento da crise histórica entre capital e trabalho, com
tendência de supremacia final do primeiro, observando-se a primazia tecnológica como
sendo a única relação verdadeira entre o desejo humano e a fantasia da demanda.
1 EXPANSÃO DA CONCORRÊNCIA:
MECANISMOS BÁSICOS
A expansão da competitividade neste final de século, ocorrida de modo acelerado
em comparação com épocas anteriores, é resultante da ampliação da concorrência entre
apenas que pela amplitude advinda da revolução tecnológica (fundamentalmente em 1940/45, quando
se dá sua fase atual) a produtividade do trabalho passa a ser afetada pela repartição da renda que se
concentra entre o capitalista fruto da incorporação das revoluções técnicas, da expansão do comércio
mundial e do aprofundamento da dependência, capazes de proporcionar às economias industrializadas
matérias-primas baratas e abundantes. MANDEL, Ernest. Capitalismo tardio. p. 370.
3
A nova ordem sobre o trabalho no mundo como no Brasil é fruto do novo padrão econômico
mundial, em que a eficiência, o baixo custo de produção e alta competitividade movimentam os fluxos
produtivos intra e enter nações, fazendo com que o trabalho absorva impactos de todos os lados, com
as indústrias enfrentado e gerando o desaparecimento das fronteiras nacionais. (Veja, 1533, 11/12/1998)
60
empresas, que na maioria dos países acontece em uma escala muito acentuada.
Analisando-se a expansão da concorrência, surgem alguns tópicos a serem
analisados a seguir.
! Aumento da competitividade entre as empresas, resultante do deslocamento da
concorrência para grandes centros internacionais, conseqüência do aumento
da dependência da internacionalização do capital, fruto da aceleração
tecnológica do modo faciendi de produção, aliada à apropriação de novas
técnicas de gerenciamento e logística industrial. Resultado disso é a a grande
desigualdade econômica imposta na maioria das atividades econômicas,
afetando de maneira importante a remuneração do trabalho.
! Esse mesmo procedimento conduz países à concentração econômica, por meio da
busca do mesmo referencial competitivo, integrando produção, capital,
tecnologia e trabalho amplamente qualificado. Em relação à propalada
sustentação do crescimento não é demais situá-lo entre os neoliberais como
resultante da ampliação das áreas de livre comércio. A discussão surge a
partir do novo modelo de concorrência, em que seu alcance se dará pela
remoção de barreiras tarifárias para a livre circulação de mercadorias. Segundo
Rossetti
[...] na Europa, durante o processo de integração, tarifas aduaneiras e restrições quantitativas ao comércio intracomunitário foram abolidas: os postos de fronteira continuaram a existir como pontos de controle para levantamento de dados estatísticos e
adoção de medidas de segurança. No Brasil, em resposta às pressões mundiais de
liberalização e em decorrência da integração regional, as tarifas de proteção aduaneira
caíram, entre 1990 e 1994, de 32,2 para 14,2%.4
Mais recentemente, na conferência da Organização Mundial do Comércio
(OMC), em Seattle, (EUA), o neoprotecionismo assume nova roupagem por
meio de organizações “sindicais” e “ecológicas”, dissimulando os interesses
neoliberais dos países ricos, que propalam explicitamente que, se permitirem
uma abertura maior de suas economias, estariam aprofundando os níveis
internos de desemprego.5
É bom que se afirme, diante desse contexto, que o Brasil, ao cumprir com suas
obrigações neoliberais globalizantes, coloca-se mais uma vez à mercê das grandes
economias industrializadas, na prática histórica da desnacionalização econômica, que
têm no cosmopolitismo um pseudo-instrumental de financiamento de longo prazo de
sua economia. Os países pobres, não sendo mais considerados de Terceiro Mundo,
porém na condição de emergentes, devem continuar a “exportar alimentos brutos a
granel ou matérias-primas com impostos baixos ou simplesmente isentos. Mas, se
quiserem exportar manufaturas, passarão a incorporar abusivas alíquotas, como é o
caso do café solúvel, com taxa de 18% na Alemanha, onde não se planta café”.6
! Formação dos mercados regionais, conseqüência da migração das grandes
4
ROSSETTI, J. P. Introdução à economia. 17. ed. 1997. p. 376.
5
Veja, 1627, n. 49, de 8 de dezembro de 1999.
6
Veja, 186.
61
empresas, agravando-se os oligopólios na forma de megamercados. Se, de um
lado, a expansão da competitividade caminha a passos largos; de outro,
buscam-se meios para que as oportunidades de emprego cresçam. Isso porque
alguns problemas se encontram instalados e outros, em função do crescimento
natural da população, direcionam esse contingente para o mercado de trabalho,
necessitando, por conseguinte, de medidas concretas de parte dos países no
encontro de soluções.
! Aumento de ingressos de mão-de-obra no mercado de trabalho formal, a partir
da presença da mulher na força de trabalho, a qual se consolida de forma
rápida e eficiente no mundo. Para isso, faz-se necessária a criação de
mecanismos de expansão de oportunidades desse gênero de emprego, nas
diversas áreas da economia.
! Crescimento significativo do contingente migratório da população economicamente ativa – indicador de que a competição se elevará já a partir da crescente
mobilização que se impõe, além da mão-de-obra jovem que se incorpora no
mercado de trabalho. Isso significa, conforme ROSSETTI “que apenas entre
1992-2000, 483,9 milhões de pessoas a mais estarão aptas a procurar por
oportunidades de trabalho. Desses, 18 milhões nos países de alta renda; os
restantes 465,9 milhões nos de média e baixa renda.”7
2 ASPECTOS DA COMPETITIVIDADE NO BRASIL
A década de 90, para o Brasil, transformou-se em uma corrida contra o tempo, na
inclusão no processo de competitividade mundial, daí porque toda a base teórica está
calcada em modelos neoliberais, daí porque todo “modelo de financiamento da economia”
recente é norteado exclusivamente por ingressos de capitais estrangeiros e privatizações.
O Estado mínimo inerente às leis de mercado preconiza no automatismo e na sensação
de liberdade criada pela ideologia neoliberal (autoregulação do mercado) a ampliação
nos lucros do setor privado e, por meio deles, a geração de renda que conduza à
expectativa do pleno emprego. Inegavelmente, aí está franqueada a escolha feita, pelos
economistas do governo, pela escola neoliberal e monetarista, o que caracteriza nada
mais, senão, o regresso à mão invisível de Adam Smith e à de David Ricardo, este hoje
tendo sua teoria de alguma forma remodelada e reconduzida pela Vantagem competitiva
das nações, de Michael Porter.8
7
ROSSETTI, J. P. Op. cit. p. 378.
8
A Teoria das vantagens comparativas, de David Ricardo, acaba sendo redesenhada por
Michael Porter. Ao alinhar metodologicamente as estruturas de mercado, a partir de um conteúdo
essencialmente teórico são detectadas, por meio de relações interindústrias, vantagens das cadeias de
valor, em que a reordenação do comércio mundial acaba não se verificando unicamente pelo modelo
de concorrência clássica, porém centrando as regras de mercado aos complexos de produção, distribuição
e consumo para dentro dos países altamente industrializados em razão do enorme fluxo de identidades
e semelhanças intra nações gerados irrompido pela globalização. PORTER, Michael. Vantagem
competitiva das nações. São Paulo : Campus, 1993.
62
Seria preciso, então, que a conquista da estabilidade pela economia brasileira fosse
deflagrada e que, necessariamente, se instalassem na vida do mais simples cidadão as
modificações pretendidas à incorporação da globalização competitiva. São os meios
justificando os fins: abertura econômica indiscriminada e privilégios ao capital externo
especulativo ajustado sobre os critérios históricos e tradicionais do cosmopolitismo
ideológico das elites brasileiras. Seria necessário que a legitimidade do novo sistema se
desse, por um lado, por uma alteração profunda nos hábitos de consumo, e de outro, por
uma corrida das empresas em busca de competitividade e qualidade, conduzindo-as a um
profundo processo de reorganização. É importante salientar, por conseguinte, que a
reengenharia se deu por intermédio de uma adequação contínua sobre um enorme avanço
tecnológico, gerencial e organizacional, que amplia de forma estratégica a dependência
econômica pelos países avançados, revelando aí a importante fragilidade do setor privado
brasileiro, pois a concentração econômica e a competitividade dão-se em cima de um processo
de extrema desigualdade no que tange à geração de produto e renda.9
Na verdade, conforme afirmam João Sayad e Simão Davi Silber em cima da tese
do economista sueco B. Linder, as teorias clássicas do comércio internacional sofreram
significativas modificações, quando o comércio passa a ter importância para dentro dos
países ricos, conseqüência dos mesmos padrões de renda per capita, de demanda
semelhante, de estruturas de produção também parecidas, refutando as teses ricardianas,
ao afirmar que as diferenças de fases de desenvolvimento entre nações ricas e pobres
intensificariam o comércio e homogeneizariam o desenvolvimento. O avanço das novas
teorias do comércio internacional aprofunda ainda mais a estratégia comercial entre as
nações a partir da elevação do grau tecnológico, que passa a se incorporar, cada vez
com mais velocidade e precisão, à aceleração do ciclo de vida do produto e do próprio
potencial da demanda. Cabe salientar que esses novos modelos de comércio ocorrem,
ou pela concorrência monopolística, e aí, por meio de economias de escala e diferenciação
de produtos, com um intenso comércio intra-industrial, ou por meio de oligopólios
(duopólios)10 adotados pelos países industrializados, possibilitando que suas empresas
saiam à frente, com custos diferenciados, associados a uma intensa política de learning
by doing e de P & D (Planejamento e Desenvolvimento).11
O equacionamento, portanto, da inserção no mercado de trabalho do grande
contingente populacional brasileiro passa pelo desafio de compatibilizar eficiência
econômica com geração de oportunidade de empregos.
9
BAUMANN, R. et al. O Brasil e a economia global. São Paulo : Campus, 1996. p. 232-234
10
Duopólio enseja um modelo simplificado que revela os princípios essenciais da teoria do
oligopólio, que se caracteriza por uma situação de mercado na qual há somente dois vendedores. É
uma situação intermediária entre o monopólio e a concorrência perfeita. Contudo as conclusões
extraídas da análise do problema de dois vendedores podem ser ampliadas para cobrir situações em que
há três ou mais vendedores. Na condição de que há somente dois vendedores produzindo uma mercadoria,
uma mudança no preço ou na quantidade produzida de uma delas afetará o outro, e as reações deste por
sua vez afetarão aquele. Assim, cada vendedor percebe que uma alteração no seu preço ou na quantidade
da sua produção gerará uma seqüência de reações. Dentre as inúmeras suposições que um fará em
relação ao outro, os ganhos de ambos serão independentes. (SELDON, A.; PENNANCE F. G.
Dicionário de economia. Rio de Janeiro : Bloch, 1969. p. 202.)
11
PINHO, D. B; VASCONCELLOS, M. A. S. et al. Manual de economia. 3. ed. São Paulo :
Saraiva, 1998. p. 477.
63
A reorientação do modelo econômico brasileiro de desenvolvimento a partir de
1990, buscou a reordenação do sistema produtivo essencialmente protegido para uma
economia aberta e competitiva, aliada à estabilização da moeda. A conseqüência disso
tem sido a intensificação dos impactos sobre os fluxos de comércio e de capitais internos,
modificando e ampliando o conflito nas relações de trabalho (baixo custo de produção
e alta competitividade somente é possível a partir de novas regras de emprego e trabalho,
isso porque no capitalismo monopolista e, agora, global, trabalho agoniza em comparação
ao elevado grau de tecnologia incorporada). Esses impactos seriam, talvez, menos
danosos, se o atual governo e o Congresso gerassem concretamente uma nova ordem
fiscal no País, a qual viesse reduzir o custo Brasil no interior das empresas.
Contudo em uma economia globalizada e competitiva, a questão central para o
mercado de trabalho recai sobre os aumentos de produtividade, o que acaba por elevar a
eficiência do sistema econômico e, portanto, as chances de sucesso de uma economia
integrada internacionalmente reduzem o choque do crescimento da produção sobre a
geração de empregos. Todavia, segundo os neoliberais, o desafio reside em promover o
desenvolvimento econômico sustentável de forma a dinamizar o mercado de trabalho. Dessa
maneira, o discurso que reflete o objetivo das políticas públicas tem sido o de aliviar os
custos sociais e econômicos da transição, especificamente no curto prazo, em que as
soluções acabam por ser sempre emergenciais e tangentes ao problema.
O cinismo liberal do capitalismo globalizado brasileiro afiança que a solução
gravita pela necessidade de se alcançar uma elevada trajetória de crescimento de emprego,
assegurando que os trabalhadores tenham acesso aos ganhos de produtividade gerados
no âmago desse processo sem, contudo, afetar negativamente a competitividade da
economia. Ora, a tentativa de se entender tal afirmação é funesta, haja vista que, para se
chegar a um ritmo internacional de competitividade, as empresas devem se obrigar a um
determinado grau de tecnologia, substitutiva de trabalho.
3 GOVERNO E QUESTÕES DO EMPREGO: CRÍTICA
O governo de Fernando Henrique Cardoso acredita que os requisitos para enfrentar
a questão do emprego em uma economia aberta e competitiva residem nas ações a seguir.
! Assegurar a estabilidade pelo equacionamento definitivo do déficit público.
! Dar continuidade às mudanças institucionais necessárias para construir um
ambiente propício ao crescimento econômico duradouro. Essas mudanças deverão
gerar poupança e atrair novos investimentos, nacionais e estrangeiros, ao criarem
um ambiente e expectativas favoráveis a um ciclo sustentado de crescimento.
! Investir em capital humano, especialmente na educação básica e secundária
das crianças e dos jovens, e na formação profissional da força de trabalho.
! Reformar as instituições que regulam o funcionamento do mercado de trabalho
e os conflitos de natureza econômica entre empregadores e trabalhadores.
Indiscutivelmente o gasto do setor público pressiona a formação dos custos
das empresas brasileiras. Entretanto a inexistência de uma política de emprego e renda
no Brasil, que garanta níveis de demanda sustentáveis, distanciará ainda mais tal realidade
de uma política de renda que venha a ser criada.
Em outras palavras, é inverdade a afirmação apregoada pelos neoliberais de que
64
o nível de emprego depende do crescimento da economia e das forças livres de mercado.
Se assim fosse, a Suécia, que não adota a política econômica neoliberal e cuja economia
cresceu menos que a da Espanha em 1998, deveria ter um índice de desemprego maior
que o espanhol, o que não se verificou.
É um contra-senso acreditar-se que apenas por mudanças institucionais,
seguidas de amplas privatizações, seja possível gerar poupança interna suficientemente
capaz de reverter o quadro recessivo e desempregador brasileiro. O governo brasileiro
não explica como gerar uma política consistente de retomada do crescimento, por
meio de ações que não privilegiem as empresas nacionais com protecionismo audaz,
mas que as equalize às internacionais.
O Brasil navega em um mar de ingenuidade transportando-se para uma cruel
realidade. O paternalismo governamental transferido aos setores empresariais com
que se fabricou, ao longo dos últimos 40 anos, o modelo de crescimento econômico
acelerado, que fundamentou o capitalismo industrial, desobrigou maiores ações sobre
o processo educacional brasileiro, principalmente no que tange aos ingressos da
qualificação de terceiro grau. Educar significa libertar; libertar a consciência, o que
significa perderem-se as rédeas do poder constituído para novos mecanismos de
comando e decisão. Como a educação no País é mão de uma única via, considerandose os interesses das grandes elites, pergunta-se: de que tipo de educação o brasileiro
necessita, se a despersonalização da produção indica não mais tecnologia de produção
e sim, tecnologia de processo de produção?
Como afirma Jeremy RIFKINS
Para que retreinar, em a Mágica da tecnologia e realidades de mercado, é ingenuidade
acreditar que grandes números de trabalhadores sem qualificação e semiqualificados,
administrativos e operários possam ser treinados para tornarem-se técnicos de alto nível,
profissionais de diversas origens. A lacuna nos níveis educacionais entre aquelas que
precisam de emprego e tipo de cargos de alta tecnologia disponíveis é tão grande que
nenhum programa de treinamento poderia vir a atualiar de forma adequada o desempenho
profissional de trabalhadores, para que estivessem à altura do número limitado de oportunidades de cargos especializados que existem.12
O avanço da tecnologia apontado como o principal motivo da eliminação de
postos de trabalho na indústria, tem agora na tecnologia da informática e da comunicação
a responsabilidade pelo desaparecimento de várias categorias de ocupação. O setor de
serviço, que absorvia a mão-de-obra liberada na indústria, também está sendo invadido
por novas tecnologias e, por isso, não consegue gerar postos de trabalho em
quantidades suficientes para impedir o crescimento do desemprego. Portanto, alguma
reforma nos instrumentos que restaram e que ainda resguardam os direitos dos
trabalhadores, inquestionavelmente, eliminará por definitivo a segurança do trabalhador
em manter-se empregado. Dessa forma, acentuam-se debates reformistas equivocados,
transferindo-se as soluções dos problemas para o empreendedorismo; ataca-se na maioria
dos discursos como sendo a criação do próprio negócio a redenção do desemprego.
Modismos da irresponsável administração da realidade, que se reduz à lei do mínimo
esforço, comprometida pela ignorância imposta à maioria da população, em que a
comunicação espúria utilizada pela maioria dos veículos comprometidos da nação
12
RIFKINS, Jeremy. O fim dos empregos. São Paulo : Makron Books, 1996. p. 38
65
aniquila qualquer mudança que venha favorecer a manutenção do emprego no Brasil.
O desemprego transformou-se no maior dilema para os trabalhadores. A maioria
das pesquisas tem demonstrado essa dura realidade, porque o emprego, ainda, não é
entendido como um direito (o trabalhador desconhece os mecanismos para a sustentação
de seu direito ao trabalho). Com as atuais políticas desenvolvidas pelo governo, o
problema tenderá a aumentar.
3.1 Oferta da força de trabalho segundo diagnóstico governamental
Segundo dados oficiais, a população brasileira vem crescendo ao ritmo de 1,5%
ao ano, com desaceleração no crescimento populacional, da qual a grande responsável
é a queda na taxa de fecundidade. Entretanto o governo reconhece que a população
economicamente ativa vem apresentando crescimentos anuais a taxas estimadas de
2,7%, superior não apenas ao da população como um todo, mas também ao da população
em idade ativa (10 anos ou mais), que se vem expandindo à taxa média de 2,0% ao ano.
Isso significa que, para os anos iniciais do novo século, a taxa de participação na força
de trabalho, ou seja, a percentagem da população em idade ativa que está ocupada ou
procurando trabalho, manterá, segundo as projeções, tendência de crescimento.
Em seis áreas metropolitanas (Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro,
São Paulo e Porto Alegre), a força de trabalho cresceu 2,2% entre janeiro de 1997 e janeiro
de 1998, puxada pelo acréscimo de pessoas desocupadas ou procurando trabalho. Esses
dados revelam, segundo análises do próprio governo13, que a busca por trabalho,
particularmente nas principais áreas metropolitanas, continua intensa em decorrência da
dinâmica demográfica que conduziu, no País como um todo, a um crescimento da população
em idade ativa a uma taxa anual média de 2,1% de 1992 em diante. Convém ressaltar a
existência de controvérsias levantadas pelo DIEESE sobre as taxas de desemprego no
Brasil, resultando em diferenciações nas taxas determinadas pela Pesquisa de Emprego e
Desemprego (PED), da Fundação Seade/DIEESE e a Pesquisa Mensal de Emprego (PME),
do IBGE, que expressam diferentes conceitos metodológicos, quanto à forma de
organização e funcionamento do mercado de trabalho urbano brasileiro.14
Para o DIEESE, o método estatístico deve ser adequado às características do
País em que se desenvolve a pesquisa. Os levantamentos e informações devem
contemplar a própria realidade do País, diferindo dos referenciais adotados em outros
países. A diferenciação recai não apenas sobre o desemprego aberto (procura ativa de
trabalho nos últimos 30 dias, conceito utilizado na maioria das pesquisas realizadas em
diversos países), porém no reconhecimento do desemprego oculto pelo trabalho precário
(entendido como o tipo de desemprego em que a pessoa desempregada a um determinado
tempo – seis meses, por exemplo – já tendo o seguro-desemprego encerrado, em troca
de uma remuneração, sujeita-se a trabalhos fora de sua habilidade ou mesmo
especialidades) e do desemprego oculto pelo motivo do desalento (entendido como o
tipo de desemprego em que a pessoa desempregada a um determinado tempo – oito
meses por exemplo – não encontrando trabalho na cidade em que mora, desistiu de
procurar no mês passado, embora ainda precise trabalhar).15
13
www.mtb.gov.br: Emprego no Brasil – diagnóstico e políticas, 22/10/1999.
14
www.dieese.org.br: Controvérsia sobre taxas de desemprego no Brasil, 22/10/1999.
15
www.dieese.org.br. Op. cit., 20/10/1999.
66
Na região metropolitana de São Paulo, onde se obtém importante sinalização
sobre o ritmo de emprego e desemprego no Brasil e utilizando-se a metodologia
proposta pelo DIEESE e Fundação Seade, por intermédio da Pesquisa de Emprego
e Desemprego (PED), o que possibilita extrair maior confiabilidade nas informações,
a taxa de desemprego total para o ano de 1999 (estimativa para 19,4%) deverá ficar
acima à do ano de 1988 (18,2%). A taxa de desemprego aberto deverá registrar
também um aumento (12,2%, em 1999), ainda que pequeno em relação ao ano de
1988 (11,6%). A taxa de desemprego oculto pelo trabalho precário em 1999 estimase em torno de 5,1% superior a 1988, que ficou em 4,6%. A taxa de desemprego
oculto pelo motivo do desalento também deverá apresentar um índice superior em
1999 (2,1%) em relação a 1988 (1,9%).
Com base no último informativo do DIEESE, o de novembro de 1999, a taxa de
desemprego total para as principais regiões metropolitanas, no período outubro-98/outurbro99 registrou um resumo de dados preocupante, conforme se pode constatar na tabela 1.
Ainda que alguns números não estejam disponíveis, em outubro de 1999 a taxa
média de desemprego total para as seis principais regiões metropolitanas objeto de
estudo pelo DIEESE se repetiu, caracterizando a rigidez com que se depara a economia
brasileira, após sua inserção no neoliberalismo.
A qualidade da força de trabalho é também baixa, levando-se em conta os padrões
internacionais. As estimativas da média de escolaridade da PEA (10 anos ou mais)
indicam que ela se elevou de menos de 4 para 6,4 anos desta década (segundo PNAD de
1996, 6 anos para homens e 7 anos para mulheres). Argentina e Chile, em 1992, já
detinham uma média de escolaridade acima de 8 anos. Os níveis de escolaridade muito
67
baixa da força de trabalho brasileira constituem uma séria desvantagem em uma economia
aberta e competitiva, uma vez que os novos paradigmas tecnológicos e organizacionais
são intensivos em conhecimento. Jamais se deve perder de vista o comportamento
histórico do Estado brasileiro no que concerne ao aprimoramento da educação. Durante
a década de 70, por exemplo, a transnacionalização do capital, de origem norte-americana,
na busca de sócios para fazer frente à Guerra Fria, combatendo o crescimento do
socialismo no mundo, abre uma ampla frente de financiamento das economias
subdesenvolvidas, em que se insere o Brasil.
É nesse contexto que todas as regras do ensino brasileiro passam a enfrentar
transformação, gerando de maneira rápida e eficaz um contingente de mão-de-obra
qualificado capaz de fazer frente à demanda das multinacionais da época. De forma
indiscriminada e irreal projetou-se o ensino no Brasil, e isso se mantém até os dias atuais.
Já obsoleto e inadequado, não mais se amolda às novas necessidades do País, tendo em
vista que o modelo de financiamento da economia brasileira não mais corresponde à
realidade. Contudo os modelos se repetem e, como o Brasil politicamente sempre assumiu
posicionamento cosmopolita em seu contexto econômico, privilegiando o capital externo
como fonte primária de financiamento da produção e dos gastos públicos, novamente vai
à busca da mão-de-obra, que se encontra despreparada a exemplo do passado, e deverá
produzir os mesmos efeitos, apenas com a diferença de que nos dias atuais as economias
se encontram globalizadas (aí se explica por que cresce recentemente no Brasil o “negócio
lucrativo” denominado MBA). Afinal a grande diferença, tendo em vista os significativos
avanços da tecnologia, é a busca de um profissional generalista, “que entenda de tudo”,
fale dois ou mais idiomas e que ao final seja “espiritualizado” na empresa.
3.2 Demanda da força de trabalho
Dentro desse contexto inquietante e desanimador, o que ficam são reações e
contra-reações.
Todos os anos, uma quantidade enorme de jovens ingressam no mercado de
trabalho. A economia do País deveria criar, pelo menos, um número de novas vagas
equivalentes. No entanto, o que tem ocorrido é uma diminuição dos postos de trabalhos.
Somente nas seis principais regiões metropolitanas do País, o DIEESE identificou, em
outubro de 1988, antes do efeito Hong Kong, a existência de 2 milhões, 313 mil e 600
desempregados, um número equivalente a 16,34% da população economicamente ativa
nas regiões pesquisadas, levando-se em conta que a taxa de desemprego total atingiu
índice superior, para o mesmo período.
No final do mês de outubro de 1999, só na região metropolitana de São Paulo, o
contingente de desempregados chegou a 1,5 milhão, segundo pesquisa Seade/DIEESE.
Se a taxa registrada em outubro for estendida para o País, em uma população
economicamente ativa de 70 milhões de pessoas, o Brasil atingiria 11 milhões 438 mil
desempregados. Para relembrar, isso aconteceria em um país em que os cidadãos se
encontram desprotegidos. Sob esse aspecto, o gasto social previsto por habitante no
Brasil é US$ 130,00 ao ano. Países como Argentina e Uruguai destinam US$ 457,00 e
US$ 488,50, respectivamente.
Mantidas as atuais políticas, o destino do Brasil é a construção de um país
68
cada vez mais violento, selvagem e desigual. Dessarte, a sobrevivência material da
maioria dos brasileiros encontra-se em franca crise. Por isso o combate ao desemprego
deve se transformar em uma luta contínua e crescente em defesa da sobrevivência de
valores como solidariedade, justiça e democracia.
3.3 Políticas recentes – reformas que o governo busca
Segundo o governo brasileiro a melhor política de emprego é o crescimento
econômico sustentado. Na continuidade, é preciso chegar-se à conquista definitiva da
estabilidade. Assim, com inflação, o crescimento não consegue atingir índices
satisfatórios. Desse modo, segundo ele, é premente que reformas administrativa,
previdenciária e tributária venham de encontro com a erradicação definitiva das causas
primárias da inflação, que estão condicionadas ao término do déficit público. Dessa
forma, a sustentação da atual política macroeconômica constitui a base sobre o qual se
assentam as possibilidades de um crescimento sustentável.
O direcionamento do governo brasileiro sobre a economia é, inegavelmente, o
impedimento à retomada da inflação. Com efeito depreende-se da argumentação e da
práxis a tese empírica de Phillips no que diz respeito à taxa de inflação e de desemprego.
Logo o desempenho da economia do Brasil será maior ou menor, conforme o interesse
pelo desenvolvimento de políticas públicas geradoras de emprego, desde que não gere
inflação. Segundo a teoria econômica16 a diferença entre a taxa de desemprego efetiva
(defini-se como a diferença entre o total de trabalhadores dispostos e capazes de trabalhar)
e a taxa de desemprego natural (é a taxa de desemprego que existe em uma situação de
equilíbrio de longo prazo) evidencia a existência da relação inversa entre inflação e
desemprego. Ao se pretender diminuir o desemprego, o que resultará é o aumento da
inflação e vice-versa. O combate à inflação exige ampliação do desemprego ou, como
afirmam os economistas do governo, é preciso que a sociedade se imponha um certo grau
de sacrifício, para que seja possível uma clara visualização dos níveis de oferta agregada
e demanda agregada e a busca do equilíbrio. Ora a economia brasileira desconhece o
pleno emprego. Fazer suposição de que aumentos na demanda agregada (dispêndio total
por bens e serviços) não venham exercer algum efeito sobre o nível geral de preços,
enquanto a economia não alcança o nível de produção de pleno emprego, é fantasiar
sobre a realidade considerando a complexidade da economia brasileira.
Suponha-se uma economia em que as curvas de demanda e oferta agregradas
sejam dadas como D1 e O1. Se por alguma razão os produtores de suprimentos (matériasprimas, embalagens etc.) elevarem os preços dos bens essenciais, a curva da oferta
agregada se elevará para O2. Acontecerá um novo equilíbrio no nível de renda menor
Y1 a um preço médio mais elevado de P1. Logo, em um nível constante de demanda
agregada, qualquer elevação sobre o preço de oferta de bens e serviços resultará em
aumento de preço médio da produção seguido de diminuição de seu nível.17 O gráfico a
seguir representa o entendimento proposto, quando se compara o desequilíbrio da
economia à tese empírica de Phillips, o que resulta em quebra dos salários reais e do
desempenho dela.
16
VASCONCELLOS, M. A. S.; LOPES L. M. Manual de macroecnomia. São Paulo : Atlas,
1998.
17
SALVATORE, D.; DIULIU E.; CAMPIRO A.; COMUNE, A. Introdução à economia. São
Paulo : MacGraw Hill, 1981.
69
preços
médios
O2
P1
W1
O1
P0
% variação
anual de
salários
W0
D1
0
Y1 Y0
produção real
Fica patente o redirecionamento do governo de Fernando Henrique Cardoso
para as benesses da escola monetarista, em que a solução, segundo seus correligionários,
passa unicamente pela regulação do mercado, que, entre a oferta e a demanda monetária,
possa estabelecer mecanismos que conduzam, da mão invisível de Adam Smith, a
princípios e valores, ao crescimento econômico, à melhoria da qualidade de vida e à
geração indistinta de trabalho.
Nesse contexto, a adoção de ações visando às reformas está citada a seguir.
a. Organização sindical e negociação coletiva: nesse caso, o governo visa
promover o fortalecimento dos sindicatos como entidades que representam
os trabalhadores. Por outro lado, ao enxergar que as negociações coletivas
exigem um sindicalismo forte e audaz, contraditoriamente induz a mudanças
profundas no tocante à sua organização e à sua forma de financiamento. Ao
mesmo tempo em que reconhece nos sindicatos o órgão máximo de
representação dos trabalhadores, impõe novas regras, que acabem com a
contribuição compulsória que, segundo ele, é um monopólio que estabelece a
principal dependência dos sindicatos ao Estado. Isso significa levar à perda
da autenticidade e conseqüentemente à destruição da sua legitimidade.
b. Contrato por prazo determinado: segundo o governo, constitui-se uma
forma de estimular o emprego, porque se amplia o leque de possibilidades
quanto a contratos de trabalho que reduzem os custos de admissão e de
demissão. Acredita o governo que aí está uma forma moderna de assegurar
direitos adequados às características de uma economia aberta e competitiva.
É a tentativa espúria de se diminuir o valor real dos salários, uma vez que não
há nenhuma garantia por parte do trabalhador de angariar a remuneração
necessária à sua sobrevivência e, em linhas gerais, tampouco de obter emprego.
Outro aspecto de grande relevância é o fato de que uma medida dessa natureza,
vindo em momento de excesso de oferta de mão-de-obra, ampliará ainda mais os
níveis de desvantagem do trabalho em relação ao capital. Acaba sendo uma
exigência em que os trabalhadores, para terem carteira assinada e se beneficiarem
de algum direito, se obrigam a essa realidade cruel e selvagem.
c. Redução e flexibilização da jornada de trabalho: conforme crê o governo,
tais mecanismos buscam reduzir os impactos das flutuações de demanda e
das crises conjunturais das empresas sobre o nível de emprego. É sintomático
das crises do capitalismo. O que não se pode, nem se deve aceitar, é considerar
o desemprego um problema individual e que sua solução passe somente pelo
âmbito do mercado de trabalho. Em uma análise muito desinteressada do
70
problema, mesmo considerando que o desemprego atinge amplos setores da
classe trabalhadora no mundo inteiro, os responsáveis pelo problema
continuarão sendo sempre os governos federal e estadual e o segmento de
alianças que os sustenta.
d. Redução do custo não salarial do trabalho: aqui talvez se salve alguma coisa no
que tange à política macroeconômica de correção. Os encargos sociais, sem
sombra de dúvidas, afetam em muito o custo do trabalho, cujo nível e variação,
em função da taxa de câmbio e do crescimento da produtividade, podem ser
decisivos para a elevação do grau de competitividade da economia no seu todo.
Ele entende que é preciso reduzir o peso fiscal sobre a folha de pagamentos, o
que contribuirá para reduzir o custo Brasil. É bem verdade que recentemente o
governo vem desenvolvendo mecanismos fiscais próprios para as pequenas
empresas, e estas já obtiveram uma certa folga tributária.
e. Contrato temporário: o que o governo pretende é regulamentar a instituição do
trabalho tipicamente terceirizado (ampliar a prestação de serviços a terceiros). Sem
dúvida alguma, essa, então, será a forma mais perversa de eliminação de emprego,
uma vez que possibilitará às empresas, sob a proteção da concorrência e do aumento
da produtividade, o descarte de trabalho sem critério algum ou simplesmente
determinado por interesse que na maioria das vezes será unilateral. Se algo dessa
natureza prevalecer em definitivo, a malfadada supremacia do capital sobre o trabalho
será uma realidade insofismável.
f. Cooperativas de trabalho: a busca de regulamentação por parte do governo
sobre essa modalidade de trabalho, vem de encontro ao aparecimento de falsas
cooperativas que acabam por penalizar o trabalhador, ao invés de auxiliá-lo na
consecução do trabalho. O que acaba por ocorrer é uma forma de exploração,
em que a organização se prevalece dos benefícios, acabando por não repassálos ao trabalhador.
g. Lei do serviço voluntário: institui-se o trabalho voluntário sobre o qual não
incidem encargos sociais e trabalhistas. Essa é uma modalidade de trabalho que
acontece na grande maioria dos países. Contudo, a exemplo do “estágio”
remunerado, que no Brasil se transformou em uma modalidade de emprego
(disfarce encontrado para se reduzir direitos trabalhistas) e largamente utilizada
pela maioria das empresas. O cuidado que se deve ter com o serviço voluntário
é procurar eliminar a mínima possibilidade de que venha se transformar em uma
forma de emprego, porque seguramente não o é.
Em suma, diante a tudo o que ficou exposto, a realidade quanto ao desemprego no
Brasil é resultante do encontro de dois processos. Em primeiro lugar, do aumento da
produtividade do trabalho, sem que seja distribuído eqüitativamente, por meio de melhores
salários e/ou redução de jornada, provocando um aumento na taxa de lucro e uma
diminuição na oferta de emprego. Em segundo lugar, da política de integração subordinada
da economia brasileira às economias centrais somadas aos efeitos da sobrevalorização do
real, implicando uma redução por meio de juros altos e de importações predatórias.
Assim, além de perderem o emprego, os trabalhadores vêm perdendo em qualidade
na sua relação de trabalho. Entre 1989 e 1997, a taxa de desemprego total em São Paulo
medida pela Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED), desenvolvida pelo DIEESE, saltou
de 7% para 16,6%. No mesmo período, emprego em carteira assinada no setor privado
71
diminuiu 18,9%, enquanto o dos assalariados sem carteira assinada cresceu em 65,6%.
As principais vítimas da política governamental, os trabalhadores, ainda não
conseguiram desenvolver mecanismos que possibilitem a reversão. O mais grave é que,
quanto mais o desemprego aumenta, piores são as possibilidades de luta e conquistas.
O desemprego desorganiza a classe, a individualiza e deixa à mercê do setor patronal.
Nesse quadro, o emprego, apesar de inscrito na Constituição como um direito
social, assim como a saúde e a educação, não é visto como tal pelos trabalhadores. Ainda
se sustenta que o desempregado é um incompetente, um “desocupado”. Lamentavelmente
aí está a cultura de que o desemprego é um problema único e exclusivo do desempregado.
Por essas e outras as razões, considerar-se o desemprego no Brasil como um
problema irreal é muito antigo e cultural. Para os refrões e discursos que provêm das
diferentes organizações, sejam governamentais ou empresarias, os únicos culpados da
importante diminuição de postos de trabalho seriam os próprios trabalhadores e as
novas tecnologias. Os trabalhadores, porque não acompanham a evolução tecnológica,
conseqüentemente, não se reciclam, logo estariam ganhando muito e, com isso, levando
os empresários e governo a demiti-los, substituindo-os por máquinas, os computadores
e as novas técnicas, porque estes seriam os verdadeiros responsáveis pelo desemprego,
mas contra os quais nada pode ser feito. Ao final, ao desempregado restaria apenas o
preço a pagar pela modernidade e pela “boa vida” que estaria tendo.
Concordando com Aloízio MERCADANTE, a realidade que fica é uma só:
[...] os desempregados vão cortando todos os gastos com os filhos; muitas vezes os
próprios laços familiares vão se desfazendo na sensação permanente de impotência que
os acompanha. Os novos e modernos economistas escrevem artigos, dão entrevistas e
fazem um imenso esforço teórico para romper uma tradição que tinha em J. M. Keynes
e tantos outros economistas do passado uma verdadeira obsessão com o pleno emprego.
A economia teve um dia no emprego um grande objetivo; hoje é um subproduto. A
economia do trabalho tem pouco espaço acadêmico neste mundo neoliberal, semelhante
ao espaço que o mundo do trabalho tem tido neste governo.”18
Afinal o que vem a ser o trabalho no capitalismo global senão o sentido de velha
mercadoria comum e reciclável aos interesses hoje da tecnologia amplamente
internaciolizada e concentrada? Onde esta rão as reais e verdadeiras políticas de
empregos do atual governo para fazer frente a essa realidade?
Em concordância com Ofelia Stahringer de CARAMUTI 19, em seu texto “El nuevo
ordem mundial y La Integracion del Cono Sur Americano em Los `90”, quando na análise do
contexto internacional e regional confirma a regra básica e imprescindível regulação das
estruturas de mercado, onde, pero la imensa tarea que impone la redefinición del modelo
de crescimiento e inserción no puede dejarse librada al exclusivo juego de las fuerzas del
mercado; resulta imprescindible que los lineamientos estratégicos de un nuevo patrón de
crescimiento sean acompañados desde el Estado para orientar el esfuerzo productivo y
de inversión.
18
www.alternet.com.br: MERCADANTE, Aloízio. Carta aos inimpregáveis, 22/10/1999.
19
CARAMUTI, Ofelia Stahringer. “El nuevo ordem mundial Y La integración del Cono Sur
Americano em Los ‘90”, palestra realizada no Iº Curso de Pós-Graduação em Direito Internacional –
Mercosul. Curitiba, ago./set. 1995.
72
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73
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www.arturbruno.com.br/pesquisa/brasil/pesqbr11.html. Pesquisa do IBGE confirma
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www.mtb.gov.br/public/emprego/emp idx.html. Emprego no Brasil: diagnósticos e
políticas.
www.dieese.org.br/ped. Pesquisa de emprego e desemprego na região metropolitana de
São Paulo.
74
RELAÇÕES ENTRE BRASIL E
ESTADOS UNIDOS NO SÉCULO XIX
Bianca Carvalho Pazinatto
Ella Souza Freitas
Jorge Luis Marques Ferreira
Acadêmicos do 3º período do curso de
Relações Internacionais das
Faculdades Integradas Curitiba
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Relações entre Brasil e Estados Unidos: 1800-1822. 3 Relações
entre Brasil e Estados Unidos no Primeiro Reinado e Período Regencial. 4 Relações
entre Brasil e Estados Unidos no Segundo Reinado. 5 Questão Amazônica. 6 Papel das
missões protestantes nas relações entre Brasil e Estados Unidos no século XIX.
7 Conclusão. Bibliografia.
1 INTRODUÇÃO
As relações entre Brasil e Estados Unidos no século XIX é o tema tratado nesta
pesquisa. Desde os primeiros anos desse século até a queda do Império em 1889,
levantamos dados referentes aos acontecimentos envolvendo o Brasil e os Estados Unidos.
O início das relações diplomáticas, os primeiros acordos, os incidentes, enfim, no período
de 1800 a 1889, estudaremos os acontecimentos que envolveram esses dois países.
Primeiramente faremos uma análise das relações entre Brasil e Estados Unidos nos
primeiros vinte e dois anos do século XIX. Destacaremos os primeiros relatos comerciais
e o início do interesse americano no Brasil, ainda colônia, e sob forte influência britânica.
No capítulo referente ao Primeiro Reinado e Período Regencial, observaremos
os primeiros anos do Brasil independente e sua política externa que mesmo sob influência
inglesa já começava a se aproximar dos Estados Unidos.
Nas relações entre Brasil e a potência do Norte no Segundo Reinado, discutiremos
os principais incidentes e poderemos notar a independência da política externa do
Império, que gradativamente se afastou da órbita britânica e se aproximou da norteamericana. Destacamos nesse período a Questão Amazônica como um dos principais
acontecimentos envolvendo o Brasil e os Estados Unidos no século XIX e o papel das
missões protestantes americanas no território brasileiro, com ênfase no projeto de alguns
missionários em “protestantizar” o Brasil.
Entendendo um pouco mais as relações diplomáticas poderemos compreender o
porquê da aproximação aos Estados Unidos, a conjuntura econômica do Brasil Império
e as mudanças ocorridas no fim do século XIX.
75
2 RELAÇÕES ENTRE BRASIL E ESTADOS UNIDOS:
1800-1822
Após a Guerra de Independência, os Estados Unidos passam a figurar
definitivamente no cenário internacional. Os ideais republicanos começam a se espalhar
pelo restante da América, inaugurando uma fase histórica fundamental para se entender
a atual conjuntura americana.
Para que possamos entender a ascensão norte-americana, recorremos aos estudos
de Celso Furtado. Em sua análise a respeito do desenvolvimento econômico dos Estados
Unidos podemos perceber claramente a importância do processo industrial, colocado
em prática já antes da independência pela Grã-Bretanha, que diante do fracasso da
tentativa de introdução de um sistema agroexportador, acaba instalando na colônia
indústrias que não competissem com as existentes na Europa. O desenvolvimento da
colônia, auxiliado pela necessidade interna de fomentar a produção, surpreende. Um
dos fatores que mais contribuiu para impulsionar o crescimento econômico norteamericano foi o avanço da indústria naval, pois era por meio dos navios que escoava o
excedente da produção industrial, criado pelo forte estímulo à produção interna
provocado pela independência. Emergia na América uma nova potência que voltava
seus interesses principalmente para as nações latino-americanas da época.
Os anseios republicanos já eram notados no Brasil desde a Inconfidência Mineira.
A partir daí, a influência norte-americana cresce gradativamente, de início tímida diante
dos interesses britânicos e depois marcada pelo forte interesse imperialista. Segundo
Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno, os primeiros relatos americanos de comércio
entre Brasil e Estados Unidos datam de 1802. Até por volta de 1808, as relações comerciais
revelaram-se tímidas, principalmente por causa da dominação portuguesa, que mantinha
o Brasil subjugado ao regime colonial.
A vinda da família real e a abertura dos portos brasileiros despertam ainda
mais o interesse norte-americano. Em 1809 foram enviados Henri Hill e Thomas Sunter
Jr. com o objetivo de dar boas-vindas à Corte. Mas a tentativa de aproximação dos
Estados Unidos ao Brasil esbarrava sempre na hegemonia britânica. Segundo Demétrio
Magnoli, o Brasil, ainda sob domínio português, era obrigado a obedecer às regras
estabelecidas em tratados firmados com a Grã-Bretanha. Exemplo disso foram os
Tratados de Methuem1 e o de Utrecht2. Os interesses norte-americanos enfrentavam
barreiras fortíssimas, principalmente após os Tratados de 1810 3, quando a Grã-Bretanha
obteve vantagens alfandegárias.
Para Cervo e Bueno, os entraves impostos nas relações comerciais com os
1
Acordo comercial firmado, em 1703, entre Portugal e Inglaterra, em que os lusitanos
ficariam livres da ameaça de dominação franco-espanhola, mas que estabeleceu a dependência
econômica com relação à Inglaterra.
2
Foi responsável pela hegemonia marítima e comercial da Inglaterra no século XVIII.
3
Foram dois acordos firmados entre Portugal e Inglaterra. O primeiro de Amizade e Aliança
e o segundo de Comércio e Navegação.
76
Estados Unidos fazem com que os norte-americanos voltem seus interesses ao apoio
nas revoltas contra o Império, como, por exemplo, na resistência de Artigas4 no Uruguai,
em 1817, e na Revolução Pernambucana no mesmo ano. Nesta última, os Estados Unidos
serviam como um modelo republicano que deveria ser seguido pelas futuras nações
que desejassem um regime democrático de governo. Segundo Kahler, a revolução estava
diretamente voltada aos interesses republicanos e fez os norte-americanos reviverem o
seu próprio passado. Pernambuco foi um dos primeiros centros brasileiros de riqueza e
prosperidade, onde se notava claramente um forte sentimento nacionalista. Kahler ainda
ressalta a importância estratégica da região por sua proximidade com os Estados Unidos.
A influência americana na Revolução de Pernambuco, mesmo obviamente notada, não
fora oficialmente reconhecida, porque não havia certeza da durabilidade do governo
provisório de Pernambuco e porque os Estados Unidos mantinham cordiais relações
diplomáticas com Portugal que até aquela data exercia a dominação sobre o Brasil.
No início da década de 20, o Brasil caminhava para a independência. Moniz
Bandeira destaca três importantes fatos que deixavam cada vez mais em evidência a
necessidade de autonomia em relação a Portugal: as revoltas regionais, a expansão da
Revolução Liberal e a crescente insatisfação da opinião pública. Os Estados Unidos
apoiavam a independência, e o Brasil deixava transparecer o interesse na aproximação
com os norte-americanos. D. Pedro procurava a simpatia dos Estados Unidos sempre
contornando os incidentes provocados por representantes americanos.
3 RELAÇÕES ENTRE BRASIL E ESTADOS UNIDOS NO
PRIMEIRO REINADO E PERÍODO REGENCIAL
Em 1822, o Brasil torna-se independente. D. Pedro é coroado imperador,
estabelecendo na América a única monarquia da época. Para Magnoli, os Estados
Unidos viam com bons olhos a independência, porém a instalação do regime
monárquico não era considerada a mais apropriada, sendo criticada pelos norteamericanos. O regime era considerado “anômalo” que se diferenciava totalmente dos
modelos republicanos das nações hispano-americanas da época. A Monarquia era
vista como uma extensão dos reinos europeus e ameaçava o bem-estar do Novo
Mundo.5 Por isso, o Brasil passa por um período de grande isolacionismo em relação
aos vizinhos sul-americanos, enfrentando revoltas internas pela instauração da
República e também pela emancipação política.
Os dois primeiros anos após a Independência foram marcados pela instabilidade
política do País. Bandeira destaca nesse momento a guerra civil do Nordeste brasileiro
como a principal revolta. Essa guerra culminou com a proclamação da Confederação do
Equador em 1824, por Manuel de Carvalho.
4
Militar e político uruguaio que dirigiu operações de guerrilhas durante a guerra de independência
uruguaia.
5
O conjunto das Américas, em oposição ao Velho Mundo.
77
Mesmo diante de um quadro político interno de instabilidade, os Estados Unidos
são o primeiro país a reconhecer o Brasil independente, em maio de 1824. Delgado de
Carvalho destaca a Missão Silvestre Rebelo como responsável pelo sucesso quanto ao
reconhecimento. Seu objetivo principal era o de “promover o ‘reconhecimento solene e
formal da independência, integridade e dinastia do Império do Brasil.” (CARVALHO,
1959, p. 37.) Kahler ressalta as instruções dadas a Rebelo de tentar conseguir dos
Estados Unidos a “solidariedade continental” para conter o avanço dos poderes
europeus. Além disso, Rebelo deveria desfazer qualquer falsa impressão que o governo
dos Estados Unidos tivesse formado por meio dos relatórios exagerados feitos pelo
cônsul americano, Raguet.
As relações diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos, marcadas quase sempre
pela priorização dos interesses comerciais, podem ser consideradas como oficiais a partir do
ano de 1822, quando chegam ao Brasil o Ministro John Graham, o Cônsul Henri Hill, além de
Condy Raguet, responsável pela Repartição de Negócios Estrangeiros e pelos principais
incidentes diplomáticos do período. A partir de então, os interesses norte-americanos no
Brasil foram dia após dia ganhando terreno, mas esbarrando sempre na hegemonia britânica.
A ameaça da reaproximação com a Europa, por intermédio dos interesses da
Santa Aliança6 faz com que, em 2 de dezembro de 1823, o presidente dos Estados
Unidos, James Monroe, declare a Doutrina Monroe, numa tentativa de afastar as
pretensões européias. Apoiado por Quincy Adams, Henry Clay e pelos antigos
presidentes Jefferson e Madison, pretendia uma declaração conjunta entre os Estados
Unidos e Grã-Bretanha. Segundo Delgado de Carvalho, na Doutrina Monroe destacaramse dois princípios: o da não-intervenção em questões européias e o do não-restabelecimento de colônias européias na América. Moniz Bandeira destaca ainda que no Brasil,
nessa época, os norte-americanos tentavam convencer o imperador a usar a Doutrina
Monroe como meio de evitar que França e Inglaterra obtivessem vantagens, como as
obtidas por Portugal. Para Delgado de Carvalho, outra aplicação da doutrina em questões
envolvendo o Brasil aparece em 1827, quando as Províncias Unidas do Prata7 consultam
os Estados Unidos no apoio contra o Brasil e “a ameaça européia”. A Doutrina Monroe
foi alvo de diferentes interpretações, que eram responsáveis pelos ideais de cooperação
e proteção continental surgidos nessa época. Uma dessas interpretações, feitas pelas
principais lideranças do Império, fora responsável por outro aspecto da incumbência de
Silvestre Rebelo, de 1824. Além do reconhecimento da Independência, Rebelo deveria
sondar uma possível aliança defensiva e ofensiva com os Estados Unidos, para garantir
a soberania dos povos americanos, assegurando a paz no continente e afastando de
vez a ameaça do projeto de reconquista da América pela Santa Aliança.
Em 1824 os Estados Unidos reconhecem a Independência do Brasil que, segundo
Kahler, apresentava um alto grau de unidade e estabilidade superior à apresentada na
América Espanhola. Essas considerações seriam suficientes para superar os preconceitos
antimonárquicos e para induzir os Estados Unidos a receber o Brasil com status de uma
nova nação americana.
No Rio de Janeiro, Condy Raguet estremecia as relações diplomáticas entre
6
Pacto de fraternidade e assistência mútua firmado em Paris, em 1815, entre Alexandre I
(Rússia), Francisco I (Áustria) e Frederico Guilherme III (Prússia).
7
Nome dado às províncias que constituíram pela Assembléia de Tucumán (1816) a República
Argentina, proclamando sua independência da Espanha.
78
Brasil e Estados Unidos. Suas declarações, nas quais utilizava uma linguagem ofensiva,
provocaram uma série de incidentes. Em 1826, Raguet declara em despacho ao Secretário
de Estado Norte-americano, Henry Clay: “Now is the moment to make this government
(brasileiro) feel the influence which we are destined to maintain in this Hemisphere of
Liberty and if it is desirable to negociate a treaty of commerce, perhaps now is the
moment when the footing of the most favored nation might be obtained as the price of
reconciliation.” (RODRIGUES, 1995, p. 139.)8
Para Moniz Bandeira, o cume dos incidentes diplomáticos acontece com o
apresamento do navio Spark, acusado de servir de corsário a Buenos Aires. Por trás
desse acontecimento estava a questão do bloqueio do Prata. “Raguet, como tantos
outros americanos, que serviram no Brasil, confundiam, porém, firmeza e energia
com ameaça, provocação, insulto e prepotência. Como empresários eram diplomatas.
Como diplomatas, empresários.” (BANDEIRA, 1978, p. 62-63.) Os norte-americanos
tentaram por toda lei romper o bloqueio do Prata, que prejudicava as firmas
americanas estabelecidas no Brasil. Com isso, aproximaram-se da Argentina, pois
viam no Império os interesses da Grã-Bretanha. Acreditavam ser a única forma de
conter a hegemonia da potência européia. Desse ato vem a suspeita do envolvimento
norte-americano na resistência de Artigas, no Uruguai. O incidente do apresamento
do Spark foi o responsável pelo rompimento das relações diplomáticas entre Brasil
e Estados Unidos. Raguet utilizava uma política de intimidação com o Império,
chegando inclusive a ameaçar o Brasil de guerra após a captura do navio Ruth por
navios brasileiros.
Em 1828, William Tudor é nomeado Encarregado de Negócios Estrangeiros,
sucedendo a Raguet. As relações são reatadas e é assinado o Tratado de Amizade,
Navegação e Comércio. Com esse tratado, os Estados Unidos passam a ter condições
de competir com os ingleses pelo mercado brasileiro. Bandeira destaca o crescimento
do comércio com os Estados Unidos entre 1820 e 1830, evidenciado pelo aumento do
número de navios americanos nos portos brasileiros. Houve certo equilíbrio na balança
comercial dos dois países, mas o tratado de 1828 trazia a expectativa do crescimento das
relações comerciais.
Em 1835, William Hunter assume o lugar de Tudor. A década de 30 foi marcada
pelo crescimento do comércio bilateral, mas com aumento das exportações brasileiras
para os Estados Unidos. O saldo portanto era favorável ao Brasil.
A Grã-Bretanha começa a perder terreno para outros países, principalmente
para a potência do Norte. A política externa do Império começa a mostrar sua
força exercendo a soberania e endurecendo nas negociações externas. Segundo
Demétrio Magnoli, é somente a partir da década de 40 que o Império começa o
afastamento da órbita britânica, assinalando para uma futura política externa
significativamente autônoma.
8
Tradução do autor: “Agora é a hora de fazer o Governo Brasileiro sentir a influência que nós
pretendemos manter neste Hemisfério de Liberdade e se faz de desejo negociar um tratado de comércio,
talvez o momento seja este onde a condição da nação mais favorecida pode ser obtida com o preço
da reconciliação.”
79
4 RELAÇÕES ENTRE BRASIL E ESTADOS UNIDOS NO
SEGUNDO REINADO
O governo de D. Pedro II (1840-1889) foi marcado pela firmeza nas relações
internacionais. O período é marcado por uma política externa que se reservava o direito
de autonomia na resolução de seus conflitos e evitava assumir compromissos externos.
Essa política é evidenciada, segundo Moniz Bandeira, quando o governo imperial opta
pela não renovação dos tratados com a Inglaterra e com os Estados Unidos. Isso
possibilitou ao Brasil decidir os rumos de sua política externa, caracterizada pelo
afastamento da influência britânica e aproximação com os Estados Unidos. Vale ressaltar
que, mesmo optando pelo alinhamento com os norte-americanos, as relações entre o
Império e a América do Norte sempre estiveram cercadas por cautela e avaliação das
atitudes tomadas em relação ao Império.
O Segundo Reinado foi um período importante para as relações exteriores. No
que diz respeito às relações entre Brasil e Estados Unidos, foi um período povoado por
questões diplomáticas que oscilavam entre incidentes, solução de conflitos e
estreitamento dos laços econômicos, políticos e culturais.
Os Estados Unidos, numa tentativa de forçar o Brasil a renovar o Tratado de
Comércio, ameaçava trazer à tona o problema ocorrido com as presas do bloqueio do
Rio da Prata.
Em 1842, o encarregado de Negócios Estrangeiros é elevado ao cargo de
enviado extraordinário e ministro plenipotenciário. O primeiro a ocupar o posto foi
William Hunter. Dois anos mais tarde, assume Henry Wise. Durante sua gestão acontece
um dos mais importantes incidentes diplomáticos da história das relações
internacionais entre Brasil e Estados Unidos, o caso Wise. Para que possamos entender
melhor o caso Wise, recorremos aos estudos de Moniz Bandeira e de Delgado de
Carvalho. Em outubro de 1846, três marinheiros americanos da corveta Saratoga foram
presos, na zona portuária do Rio de Janeiro, quando lutavam, armados com facas. O
Tenente Davis resolve reclamar a soltura dos marinheiros e acaba preso, após enfrentar
a guarda armado. Dois dias depois é solto, mas os três marinheiros permaneceram
presos. Foi o pretexto para o Ministro Wise emitir declarações, acusando as
autoridades brasileiras de insultarem o pavilhão americano. Divulgou notas, cujo
conteúdo levou a uma reação por parte do governo imperial. O Ministro Wise solicitou
uma audiência com o imperador, alegando possuir uma carta do presidente dos Estados
Unidos. Essa audiência, a pedido do Barão de Cairu, foi recusada e o governo imperial
tomou medidas enérgicas. Exigia reparação da atitude de Wise e sua retirada do País,
sob ameaça de expulsão. Wise passou a ser considerado persona non grata. O governo
brasileiro ainda retaliou a atitude do ministro brasileiro em Washington, José Maria
Lisboa, que havia apresentado um pedido de desculpas ao governo americano. Lisboa
foi retirado do posto e, em seu lugar, assumiu Teixeira de Macedo. O secretário de
Estado, James Buchanan, considerou a retirada de Lisboa como desatenção e criouse um clima nada amigável. O desentendimento só foi resolvido em 1849, quando
Clayton sucedeu a Buchanan. No Brasil, o ministro também mudara. No lugar de Wise
80
estava David Todd. As relações diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos são
reatadas, resolvendo-se a questão das presas do Rio da Prata e Pernambuco. O Brasil
concorda em pagar as indenizações ao governo americano, que reconhece o direito
do governo brasileiro em punir os cidadãos americanos que infringissem as leis do
Império, colocando um fim definitivo à Questão Wise.
Em 1853, vem para o Rio de Janeiro o Ministro William Trousdale. Nessa missão
começam as negociações sobre a Questão Amazônica, que veremos à parte. Quatro
anos mais tarde, assume o posto de ministro o General Watson Webb. Nesse período,
as relações diplomáticas mantiveram-se cordiais, mas com pequenos pesares.
Desenvolvia-se nos Estados Unidos a Guerra da Secessão.9 Os incidentes aconteceram
por causa da presença de navios americanos na costa brasileira, os quais se envolveram
em conflitos, caso do Flórida que, ao parar na Bahia para abastecer, foi atacado pelo
Wachusetts; do navio Alabama que capturou baleeiras na Região Norte do Brasil; e do
brigue Carolina, sob o qual Webb conseguiu indenizações remetidas parcialmente ao
governo americano. A Guerra da Secessão, que se desenvolveu durante o governo
Lincoln, provocara a abolição da escravatura nos Estados Unidos, fato temido pelos
brasileiros, porque se poderia criar uma onda abolicionista que se alastraria pelo restante
da América. A pressão sobre o governo imperial é notada quando é estabelecida a Lei
do Ventre Livre10, assinalando à abolição. A política brasileira em relação à Guerra da
Secessão é marcada pela neutralidade. O Império reconhecera, fundamentado no Direito
Internacional, a beligerância dos Estados Confederados, atitude duramente criticada
por Webb, que via na intransigência brasileira a influência dos ingleses, de quem
dependia o Brasil para concluir seus empreendimentos.
Após a Guerra da Secessão, os Estados Unidos passaram por um surto de
progresso. Segundo Delgado de Carvalho, esse fato poderia ser notado com a presença
norte-americana cada vez maior, fortalecida pela onda migratória que se desenvolvia
após a abertura do Amazonas e do fim da Guerra Civil americana. Para Cervo e Bueno,
essa onda progressista estava evidenciada no crescimento do comércio bilateral. Por
volta de 1870, os Estados Unidos já absorviam cerca de 75% das exportações do café
brasileiro. Essas condições externas favoráveis criam grandes excedentes que são
responsáveis, dentre outros motivos, pela redução de empréstimos brasileiros e pela
manutenção de uma economia primária, baseada no modelo agroexportador. Como a
atividade econômica primária rendia frutos excelentes, o projeto de desenvolvimento
industrial brasileiro foi colocado em segundo plano.
Em 1876, D. Pedro II visita os Estados Unidos. Desembarca em New York aos 15
de abril e começa uma jornada que duraria quase três meses. Segundo Lídia Besouchet,
a justificativa de viagem do imperador “foi a inauguração, junto com o presidente dos
9
Guerra Civil ocorrida nos Estados Unidos de 1861 a 1865, entre os Estados do Sul e os do
Norte, motivada pela abolição da escravatura.
10
Também demoninada Lei Rio Branco, declarava livre os filhos de mulheres escravas
nascidos a partir de 1871. Instituía o fundo de emancipação e o pecúlio destinado aos libertos, e
libertava os escravos pertencentes à Coroa.
81
Estados Unidos, General Grant, da Exposição Mundial de Filadélfia.” (BESOUCHET,
1993, p. 275.) Mas, além dos compromissos oficiais, D. Pedro II aproveitou a viagem
para visitar museus, exposições, teatros e manter contatos com cientistas, artistas e
escritores. Sua simplicidade e descompromisso com o protocolo fazem com que o
imperador conquistasse “popularidade; a imprensa também se mostrou muito sensível a
essa atitude. Com humor, o New York Herald sugeriu uma chapa para as eleições seguintes:
‘para presidente, Dom Pedro II; vice-presidente, Charles Francis Adams’, pois estamos
cansados de gente comum e dispostos a mudar de estilo ...” (BESOUCHET, 1993, p. 292.)
O entusiasmo econômico da década de 70 foi assinalado pela tentativa,
principalmente por parte do governo dos Estados Unidos, de aumentar ainda mais o
intercâmbio comercial. Em 1870, a Legação dos Estados Unidos oferecia ao governo
imperial várias propostas para um melhor desenvolvimento das relações comerciais
com o Brasil, baseando-se no fato de os Estados Unidos serem o maior importador do
café brasileiro e superar as importações de toda a Europa. Defendiam a redução da tarifa
alfandegária, para que os produtos americanos também tivessem um maior espaço no
mercado brasileiro.
A proximidade cada vez maior com os Estados Unidos trazia para o Brasil os
ideais americanistas.11 As instituições do Império batiam de frente com a crescente
influência e absorção do capitalismo industrial. O Brasil mantinha um certo isolamento
em relação ao resto do continente, pois cultivava um regime monárquico e uma economia
baseada no trabalho escravo. A Monarquia, desde a primeira metade do século XIX, era
criticada pelas principais correntes ideológicas pan-americanas. Dentre elas, Demétrio
Magnoli e Delgado de Carvalho destacam o bolivarianismo que via no regime monárquico
a proximidade com a Europa, o que, sob seu ângulo de pensamento, representaria uma
ameaça à autonomia e preservação da paz nas Américas.
A opção pela aproximação à órbita norte-americana pelo Brasil pode ser
considerada como um dos mais importantes fatores que contribuíram para a hegemonia
dos Estados Unidos no Continente Americano, destaca Demétrio Magnoli. Essa mesma
aproximação criaria no Brasil um embrião republicano que amadureceria em 1889, com a
Proclamação da República.
5 QUESTÃO AMAZÔNICA
Desde a década de 20 aconteciam investidas norte-americanas sobre o território
amazônico. Moniz Bandeira destaca que é somente a partir de 1840 que o interesse dos
Estados Unidos pela região aparece com força. O desenvolvimento industrial da potência
americana exigia o expansionismo territorial. Um dos destinos dessa política
expansionista era o vale amazônico.
A questão consistia na tentativa da abertura do Rio Amazonas à navegação
estrangeira. As primeiras missões americanas na região baseavam-se em interesses
11
Ideais abolicionistas e republicanos.
82
puramente científicos. Segundo Bandeira, podem ser considerados marcos do início
das discussões em relação à Amazônia as declarações do Tenente Matthew Fontaine
Maury, em que se podia verificar claramente o projeto americano de ocupação da
Amazônia. Essas declarações pintavam a Região Amazônica como local de riquezas
inesgotáveis, com um gigantesco potencial econômico que deveria ser aberto a todos.
O governo americano jamais admitiu oficialmente a idéia da conquista do
Amazonas, mas os interesses e ações na região revelavam a presença norte-americana.
Inúmeras tentativas de instalação de norte-americanos foram feitas ao longo da década
de 40. Formaram-se nos Estados Unidos companhias de comércio, navegação e
colonização, voltadas para a Amazônia.
A pressão americana foi forte. Tentavam conseguir a abertura da região por meio de
estabelecimento de tratados com os países amazônicos e pela pressão diplomática feita
principalmente pelo Ministro William Trousdale, presente no Rio de Janeiro desde 1853.
Teixeira Soares destaca o tratado entre Estados Unidos e Peru, de 1851, que garantiu a
abertura dos portos peruanos aos navios americanos. O discurso americano de abertura do
Amazonas enfatizava as relações comerciais com as nações hispano-americanas da cabeceira
do rio, que desejavam a intensificação do comércio por meio das vias fluviais.
A vinda do Ministro Trousdale para o Rio de Janeiro faz com que o centro das
negociações fosse transferido para o Brasil. A essa altura os Estados Unidos passaram
a invocar o direito natural como justificativa da defesa da livre navegação do Amazonas.
No discurso, o direito natural estaria colocado acima dos tratados firmados.
A reação da Coroa manifestou-se numa das mais importantes manobras de política
externa em que se demonstrou claramente o exercício da soberania nacional. O Império
adotou uma estratégia defensiva mantendo fechado o Amazonas enquanto se articulava
uma política que assegurasse o domínio sobre a região.
Segundo Teixeira Soares e Moniz Bandeira, receio maior do Império era o da
presença de elementos norte-americanos na Região Amazônica antes da abertura à
navegação estrangeira. A presença desses elementos poderia estimular tendências
separatistas e revoltas regionais, como a que aconteceu no Pará. O território vasto
dificultava a ação do governo imperial. Dever-se-ia, então, desenvolver um projeto de
colonização para a região. A solução encontrada foi a concessão ao Barão de Mauá do
direito de exploração da região, feita por meio da Companhia de Navegação e Comércio,
que põe em prática uma política de colonização e fortificação. Havia, na época, receio de
que houvesse presença de companhias norte-americanas na região, o que leva o Brasil
a declarar que a Amazônia estava fortemente vigiada. Era uma tentativa de inibir a
entrada de estrangeiros.
O governo brasileiro enviou três missões diplomáticas estratégicas, cujo objetivo
para Amado Luiz Cervo e Bueno seria o de tentar conter o avanço norte-americano
pelos países amazônicos. Junto à Venezuela, Nova Granada 12 e Equador fora enviado
Miguel Maria Lisboa. Seu objetivo principal era o de convencer os governos e a opinião
pública desses países do perigo da penetração imperialista. Nos Estados Unidos,
rebatendo os argumentos defendidos pelo Tenente Matthew Maury de abertura do
Amazonas e exigindo do governo americano a prova do não-envolvimento em atentados
à soberania brasileira, estava Francisco Inácio de Carvalho Moreira; e, finalmente, para
12
Antigo nome da Colômbia e, no século XVIII, vice-reino espanhol, criado em 1739, que
compreendia a Colômbia, o Equador, o Panamá e a Venezuela atuais.
83
as repúblicas do Pacífico, Duarte da Ponte Ribeiro. O Brasil preparava-se nos campos
diplomático e jurídico.
Em 1851, o Brasil assina com o Peru um tratado que regulamentou os limites
entre esses países e concedeu a navegação do Amazonas, baseando-se, segundo
Cervo e Bueno, no princípio do direito imperfeito dos ribeirinhos superiores. A concessão
da navegação foi uma medida de extrema importância, pois foi fundamentada no direito
internacional, o que garantiu uma base jurídica.
Teixeira Soares destaca a vinda do Ministro Trousdale, em 1853, como a
responsável pela intensificação das negociações. A pressão norte-americana estava
próxima ao imperador. Trousdale, em seus despachos ao Secretário de Estado norteamericano, enviava informações a respeito da evolução da negociações. Fazia propostas
de vantagens comerciais para o Império em troca da livre navegação.
O crescimento do comércio bilateral acaba por definir os rumos da solução da
questão. Não era interessante, nem para o Brasil, nem para os Estados Unidos, um
conflito que viesse a prejudicar as relações econômicas entre eles. A política externa
defendida pelo Império resistiu enquanto houve risco para a região. Foi intensamente
criticada, principalmente pelos liberais que há tempos defendiam “a abertura do Amazonas
em nome da ciência, do progresso e da civilização.” (CERVO, 1992, p. 95.)
A Questão Amazônica chega ao fim em 7 de dezembro de 1866, quando o governo
brasileiro decreta a abertura incondicional da região a todas as nações, proibindo o
trânsito de navios de guerra. Isso aconteceu após anos de preparação de uma política
regional para a Região Amazônica, garantindo a livre navegação. Para Teixeira Soares,
pela liquidação das questões de limites, pelo controle da instabilidade das províncias
Amazônicas, da colocação em prática da intenção de colonização do vale, pela garantia
da prioridade norte-americana no estabelecimento de futuros tratados internacionais e
pela militarização da região, o Brasil conseguiu assegurar a soberania, por meio de uma
política externa eficaz e ousada que revelava o pulso firme do governo imperial.
6 PAPEL DAS MISSÕES PROTESTANTES NAS RELAÇÕES
ENTRE BRASIL E ESTADOS UNIDOS NO SÉCULO XIX
Para que possamos entender o papel das missões protestantes nas relações
entre Brasil e Estados Unidos, devemos entender a situação religiosa brasileira no
período imperial. Segundo a Constituição de 1823, o catolicismo foi instituído como
“religião do Estado”, estabelecendo, assim, um vínculo entre Poder Imperial e a Igreja.
Essa ligação Estado-Igreja no decorrer do século vai se enfraquecendo, em razão do
avanço do liberalismo e das religiões “acatólicas”. Entre elas figura o protestantismo.
A introdução do movimento protestante no Brasil inicia-se com a vinda de
imigrantes alemães, ingleses e norte-americanos. Podemos nos remeter à década de 30
como o período em que o protestantismo começa a surgir no Brasil. Segundo David
Gueiros Vieira, até então, o protestantismo apresentava-se como um “enigma para o
público brasileiro”. (VIEIRA, 1980, p. 49.)
84
Com relação ao movimento protestante americano, Vieira destaca o início das
atividades por volta de 1832, quando é nomeado um capelão protestante para a
Sociedade Americana de Amigos dos Marítimos, criada em função do aumento do
fluxo de americanos nos portos cariocas rumo à Califórnia, via Estreito de Magalhães.
Sucederam-se nos postos Obadiah M. Johnson, o Reverendo Justin Spaulding, Daniel
P. Kidder, J. Moris Pease, o Reverendo Corwin e, já em 1850, James Cooley Fletcher,
que para Vieira foi o pioneiro na luta pela liberdade religiosa e pelo movimento
protestante no Brasil.
Seria impossível falar do protestantismo no Brasil sem mencionar o nome de
Fletcher. O seu plano de ação consistia em “converter o Brasil ao protestantismo e ao
‘progresso”. Para ele, o protestantismo equalizava-se ao desenvolvimento econômico,
científico e tecnológico”. (VIEIRA, 1980, p. 63.) Segundo Vieira, Fletcher foi o principal
responsável pela propaganda do Brasil no exterior. Pintava os Estados Unidos como o
“supra-sumo” que deveria servir de modelo a outras nações – entenda-se o Brasil.
Entre o grande número de pessoas com quem se envolveu estava Aureliano Cândido
Tavares Bastos, liberal que aliou às “causas do progresso”, lutando no Parlamento pela
liberdade religiosa, pela imigração protestante, pela liberalização das leis do Império e
pela separação entre Igreja e Estado.
Em seus primeiros anos no Brasil, Fletcher recebeu auxílio da legação americana que
o incorporou ao corpo diplomático, garantindo assim sua proteção. É nesse momento que
conquista um círculo de amizades que o coloca em uma posição privilegiada em relação aos
outros ministros americanos. Consegue chegar ao imperador, e o elo Vieira atribui ao poeta
Longfellow. Fletcher percebia a carência tecnológica e mão-de-obra especializada, problemas
que poderiam ser solucionados com a imigração protestante.
A atuação de Fletcher fazia-se na Corte e posteriormente no governo americano.
Mas é importante destacar outros ministros protestantes, como, por exemplo, Richard
Holden, cuja atuação foi feita em áreas de grande interesse americano, como era o Pará,
porta do vale amazônico. Vieira destaca o Pará como região marcada pela tensão política,
criada pela corrupção, esquecimento pela Corte e pelas críticas ao projeto de colonização
do vale, desenvolvida pela Companhia de Comércio e Navegação, do Barão de Mauá.
Para Holden, a agitação política e a decepção popular com o governo imperial revelava
o caráter republicano das províncias do Norte do Brasil. O trabalho desenvolvido pelos
missionários protestantes baseava-se na distribuição da Bíblia que não continha a
interpretação católica. Holden via no vale amazônico um grande potencial que deveria
ser imediatamente explorado. Mas, os planos do ministro chocaram-se de frente com a
Igreja Católica local, representada por D. Antônio Macedo da Costa, bispo de Belém.
Vieira revela que por trás do embate católico-protestante estava o movimento maçônico.
Em 1862, Holden muda-se para Salvador, Bahia. Lá mesmo com o apoio de Fletcher, bate
de frente com D. Manuel Joaquim da Silveira que pregava o avanço protestante como
forma de “dividir e enfraquecer a sociedade brasileira” e também alertava para uma
“conspiração para separar do Império a região Amazônica e entregá-la aos Estados
Unidos”. (VIEIRA, 1980, p. 191.)
Essa grande preocupação da Igreja Católica com o avanço protestante revela,
segundo Vieira, a crise por que passava o poder eclesiástico nacional.
85
Na década de 60 é criada a Sociedade Internacional de Imigração, com intuito
de cuidar da imigração protestante. Vieira revela duas facções internas nessa
sociedade: uma que apoiava exclusivamente a imigração de confederados americanos;
outra que, além dos confederados, desejava iniciar a imigração protestante européia.
Entre outras propostas, defendia a liberalização das leis e a luta pelo casamento civil.
Se, por um lado, a imigração confederada poderia trazer o avanço tecnológico
e o tão defendido “progresso” protestante; por outro, poderia significar séria ameaça
ao poder das elites regionais. Isso faz com que a reação ao avanço protestante se
manifeste na não-liberalização das leis e em outros diversos obstáculos impostos à
imigração. Mas, mesmo assim, foram estabelecidas “colônias confederadas” no Pará
e principalmente no interior de São Paulo. Nestas, houve inclusive focos de tensão
entre católicos e protestantes, apaziguados pela intervenção até mesmo do imperador.
Segundo Vieira, a imigração protestante poderia trazer consigo as idéias
republicanas, sendo esse fato diversas vezes observados em discursos e sermões dos
bispos brasileiros, apresentada como uma “ameaça à Monarquia”.
Apesar de todos os empecilhos, Fletcher prosseguiu em seus esforços, apoiando
uma linha de vapores New York–Rio e promovendo o intercâmbio cultural por meio de
exposições, como a organizada em 1855 no Museu Nacional, e da promoção de
expedições científicas, como a Expedição Thayer, liderada pelo cientista Agassiz,
admirado pelo imperador.
As missões protestantes tiveram um papel fundamental no processo de separação
entre Igreja e Estado, na liberalização futura das leis e até certo ponto no
“desenvolvimento” tecnológico, pois foi pela pequena imigração de norte-americanos
que o Brasil pode experimentar as “inovações” que auxiliariam na lavoura e até mesmo
na vida cotidiana.
O avanço protestante evidenciava a fragmentação do poder católico e o interesse
e influência americanos no País que faziam-se sentir por investidas, mesmo que não
oficiais, sobre o vale amazônico e sobre o interior brasileiro.
Mais uma vez nos remetemos a um dos personagens principais da questão
protestante, James Cooley Fletcher, que melhor que qualquer diplomata americano da
época soube conduzir seus interesses por meio de uma estratégia digna de qualquer
agente diplomático.
7 CONCLUSÃO
Pela análise das relações entre Brasil e Estados Unidos no século XIX podemos
entender muito das transformações ocorridas, tanto no contexto interno como no
internacional. O afastamento da órbita britânica e a aproximação à norte-americana seria
fundamental para explicar as transformações ocorridas no âmbito político, social e
econômico no Brasil Colônia, Império e República.
O desenvolvimento comercial, com base nas exportações do café ocasionava a
manutenção de um modelo agroexportador e do trabalho escravo. Seria também
responsável pelo crescimento do intercâmbio cultural, fazendo com que os ideais
86
americanistas chegassem com força ao Brasil, favorecendo o aparecimento do movimento
republicano, que obteria sucesso em 1889.
As relações entre Brasil e Estados Unidos durante o Império foram sempre
rodeadas de desconfiança e pragmatismo, resolvendo com sucesso os incidentes
ocorridos entre os agentes diplomáticos desde Condy Raguet até o General Webb.
Na Questão Amazônica, mesmo sob críticas ferrenhas de alguns diplomatas, o
governo brasileiro optou por uma estratégia defensiva, mantendo as negociações o tempo
suficiente para implementar um projeto de colonização e policiamento da Amazônia,
garantindo assim a soberania nacional na região. Consolidou-se, assim, uma escola
diplomática importantíssima, responsável pelos rumos da política externa brasileira.
É importante também destacar o papel das missões protestantes que procuravam se
estabelecer no Brasil com intuitos que variavam do interesse regional até os de promover o
“progresso” que somente seria possível com a vinda de imigrantes protestantes.
A opção brasileira da aproximação aos Estados Unidos foi, sem dúvida alguma,
a grande responsável pela consolidação da hegemonia norte-americana no continente.
A potência do Norte caminhava impulsionada pelo imperialismo, estendendo sua
influência sobre o restante da América, impulsionada por políticas intervencionistas. O
Império foi substituído pela República e seu rumo definiu-se, em vários momentos,
pelas inclinações das relações com os Estados Unidos.
BIBLIOGRAFIA
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dois séculos de história. 2. ed. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1978.
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Brasília : UnB, 1981.
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1961.
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MAGNOLI, Demétrio. O corpo da pátria: imaginação geográfica e política externa
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87
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São Paulo : Contexto, 1991.
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Brasil. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1995.
SOARES, Teixeira. Um grande desafio diplomático no século passado. Conselho
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VIANNA, Helio. História diplomática do Brasil. São Paulo : Melhoramentos, 1950.
VIEIRA, David Gueiros. O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no
Brasil. Brasília : UnB, 1980.
88
RELAÇÕES DIPLOMÁTICAS ENTRE BRASIL E
ÁUSTRIA, NO PERÍODO DE 1822 A 1889
Fabiana Brett Clemente
Michelle Karine Muliterno Carrion
Thiago Schenkel Dedecek
Acadêmicos de Relações Internacionais,
3º período, das Faculdades Integradas Curitiba
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Breve histórico das relações entre Brasil e Áustria que
antecederam a Independência. 3 Relações após a Independência: governo de D. Pedro I.
4 Regência, governo de D. Pedro II e queda da Monarquia. 5. Desenvolvimento das
relações científicas e culturais. 6 Influência austríaca na Igreja. 7 Imigrantes austríacos
no Brasil. 8 Comércio entre Áustria e Brasil. 9 Conclusão. Bibliografia.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo pretende retratar a complexidade e a extensão das relações
entre Brasil e Áustria, durante o século XIX. Uma relação entre Estados que, mesmo tão
distantes fisicamente, são hoje de grande interesse histórico para se compreender as
complexas relações internacionais, cujos progressos técnicos eliminaram as distâncias
entre os Estados e as relações dinásticas, que não possuem mais validade para manter
a amizade entre as nações. Alguns autores, que se interessaram pelas relações entre
Brasil e Áustria, procuraram fazer estudos mais detalhados sobre os fatos históricos
que descreveram as situações vividas na época, mas encontraram dificuldades para
relatar a historiografia, pois não encontraram fontes suficientes no Brasil, as quais
dariam veracidade as suas obras. Por isso tiveram que recorrer a documentos encontrados
somente na Áustria.
A Áustria foi durante o século XIX a encarnação do Velho Mundo, o coração da
Europa, o centro da tradição ocidental. Nela confluíram as várias correntes culturais
dos séculos passados. O Brasil era novo, imenso, recém-nascido e pouco conhecido
fora de suas fronteiras. Tinha fracas raízes na cultura européia e estava exposto a todas
influências e impulsos.
O Império Austríaco, poder central da Santa Aliança, via no Brasil o veículo para
uma política continental, parte essencial para sua política internacional, uma vez que era
tanto de interesse desse país, como da Inglaterra, manter a única monarquia ainda
89
existente na América, visando preservar o princípio monárquico europeu, que era
considerado a melhor forma de poder organizado.
O princípio das relações entre Áustria e o desconhecido Brasil foi o casamento
da Princesa Leopoldina com o príncipe herdeiro do trono português, D. Pedro. As
relações não se limitaram apenas às questões políticas, mas também às culturais e
familiares (forte ligação entre a Casa de Bragança e a Casa de Habsburgo). A princesa
austríaca ganhou a confiança do povo e principalmente dos políticos brasileiros. No
entanto, deve-se levar em conta que, naquela época, os interesses das dinastias eram
considerados paralelos aos interesses do Estado. Com a morte de Dona Leopoldina e D.
Pedro, D. Pedro II sobe ao poder, mas não consegue manter os laços fortes que ligavam
os dois países, e assim começa o formalismo oficial nos papéis diplomáticos, tornando
as relações mais reais e duráveis.
Sintetizando, o período estudado vai desde o Congresso de Viena à queda do
Império Brasileiro, abrangendo as relações diplomáticas e políticas, completadas pelas
relações culturais, eclesiásticas e comerciais.
Destacamos que, até o momento, poucos autores se dedicaram a estudar
especificamente as relações entre Áustria e Brasil. Entre eles ressaltamos a obra de
Ezekiel Ramirez, “As relações históricas entre Áustria e Brasil”, editada já em 1968. Esse
trabalho, em que autor utiliza fontes inéditas do Arquivo Histórico-Diplomático de
Viena, é a obra mais extensa até hoje escrita sobre as relações entre os dois países.
Outros autores indiretamente contemplaram a questão das relações entre Áustria
e Brasil. Podemos destacar o livro de Glória Kaiser, “D. Leopoldina: uma Habsburg no
trono brasileiro, e o livro de Jean Roche, “A colonização alemã e o Rio Grande do Sul”.
2 BREVE HISTÓRICO DAS RELAÇÕES ENTRE BRASIL E
ÁUSTRIA QUE ANTECEDERAM A INDEPENDÊNCIA
As relações entre Brasil e Áustria se iniciam pela vontade de a Áustria, poder
central da Santa Aliança, estabelecer relações no Novo Mundo e do interesse de reforçar
o princípio monárquico. “O Pacto da Santa Aliança (1815) foi uma proposta russa a
todas as Cortes européias, no sentido de regularem as relações internacionais pelos
princípios do sistema arcaico: o legitimismo monárquico, o intervencionismo, a mística
do cristianismo, o governo supranacional dos povos”.1 Essa relação foi favorecida pela
vinda do príncipe regente de Portugal, D. João, para o Brasil, pois Portugal, nesse
momento, sofria as conseqüências das guerras napoleônicas.
Com o estabelecimento da Corte portuguesa no Novo Mundo, havia um interesse
da Casa de Habsburgo, família real austríaca, em estabelecer laços com a família real
portuguesa, família de Bragança, pois àquela interessava manter uma monarquia na
América, e a esta interessava manter relações com outro país europeu, além de Portugal,
pois ambos visavam incentivar uma cooperação política, comercial e cultural.
1
CERVO, 1992, p. 17.
90
Assim, para satisfazer o desejo das duas dinastias, foi realizado o casamento da
Princesa Leopoldina da Áustria2 com o príncipe português, D. Pedro de Alcântara.
A Inglaterra exige que D. João VI volte para Lisboa, e ele deixa o príncipe real
como regente, pois este tinha salvado a Monarquia, com seu nascimento. Com a partida
de D. João VI, os problemas do Brasil não desaparecem. As províncias do Sul pretendiam
se tornar uma nação independente, enquanto as províncias do Norte pretendiam a
independência regional, já que apoiavam as Cortes de Lisboa.
As Cortes portuguesas ordenavam a volta de D. Pedro para Lisboa, o que acaba
provocando uma contra-revolução brasileira diante do governo das Cortes, objetivando
que o príncipe real ficasse no Brasil. Então em 9 de janeiro, D. Pedro declara que ficaria
no Brasil. Essa data ficou conhecida como Dia do Fico.
D. Pedro organizou um novo ministério sob o comando de José Bonifácio,
considerado o Patriarca da independência do Brasil. Também conseguiu que as tropas
portuguesas deixassem o Brasil, desfazendo, dessa forma, os laços entre colônia e
Metrópole, e conquistou a confiança do povo brasileiro, que tinha à sua vista o exemplo
da independência dos Estados Unidos e a influência da Revolução Francesa.3 Portugal
não gostou da notícia e estava pronto para enviar tropas ao Brasil, mas a conselho de
José Bonifácio, o príncipe real vai a São Paulo, e como ação decisiva, a 7 de setembro de
1822, declara a Independência do Brasil. Esse ato é descrito ao imperador austríaco por
sua filha, Dona Leopoldina, que o relata na seguinte carta
Querido Papai
A oportunidade permite-me, Deus seja louvado, escrever-vos sem rodeios (com o
fígado desembaraçado) como dizem os meus compatriotas; é o meu único consolo e o
momento mais agradável, por ter eu a certeza do vosso amor paterno e bondade que se
preocupa e sente comigo.
Aqui tudo é confusão, por toda parte dominam os princípios novos, da afamada
Liberdade e Independência. Estão trabalhando para formar uma Confederação de Povos,
no sistema democrático como nos Estados livres da América do Norte. O meu marido
que, infelizmente, ama tudo que é novidade, está entusiasmado, como me parece, e terá no
fim que espiar tudo; de mim desconfiam, o que no fundo me regozija porque assim, mercê
de Deus, não tenho que dar minha opinião e ao mesmo tempo fico fora das lutas. Podeis
estar descansado, caro Papai, que não esquecerei, aconteça o que acontecer, o que devo à
religião e aos princípios de Austríaca; e que não vos inquieteis por mim porque confio no
Onipotente que nunca abandona aqueles que nEle se apóiam. Quando tudo andar mal e
tomar a feição de revolução francesa, irei com meus filhos para minha Pátria, pois quanto
ao meu marido, estou convencida, a meu grande pesar, que a venda da cegueira não lhe
sairá dos olhos. Espero então que me dareis a colocação de Diretor de Mineralogia que
2
“Tinha vinte anos quando, em 1817, se casou com D. Pedro, Leopoldina de Habsburgo,
filha do Imperador Francisco I da Áustria e irmã da esposa de Napoleão, Maria Luísa. Havia muito que
D. João Regente procurava casar D. Pedro; chegou mesmo a pensar em uni-lo a uma filha de Murat;
a invasão de Portugal pelos franceses o dissuadiu. A embaixada do Marquês de Marialva obteve do
Imperador e de Metternich a mão da princesa austríaca. Em 1818, nascia-lhe Dona Maria da Glória,
futura rainha de Portugal.” (CASTRO, Therezinha de. História documental do Brasil, p. 134.)
3
COSTA, Emília Viotti, p. 84.
91
uma vez me prometesse por pilhéria ao jantar. É lá então, sossegada e contente, no meio
de meus queridos, viverei pois na Pátria, junto dos parentes, onde se pode falar à vontade.
Permiti recomendar-vos não dar ouvidos a Shäffer, ele é um bom homem mas foi obrigado
a encarregar-se desta missão e considero o meu dever dizer-vos a minha opinião que não
tomeis parte, para vosso sossego, nestas questões. Por mim, repito-vos, caro Papai, não
tenhais cuidado, porque, graças a Deus, tenho coragem e força d’alma para suster-me e a
meus princípios serei fiel, aconteça o que acontecer.
Estamos todos passando bem, Deus seja louvado, e eu de esperança como me parece, o
que é aborrecido nestes tempos inconstantes.
Beijo-vos e à querida Mamãe as mãos muitas vezes e sou com o mais profundo respeito
e amor filial, querido Papai, vossa filha obediente.
Leopoldina
São Cristóvão, 23 de junho de 1822.
P.S. Lembranças de coração a todos os meus Irmãos, não escrevo a ninguém porque
esquecem de mim e há seis meses não me dão notícias.”4
Assim, no Hemisfério Ocidental, nasceu um reino de origens coloniais e
revolucionárias, monárquico, porém independente.
3 RELAÇÕES APÓS A INDEPENDÊNCIA:
GOVERNO DE D. PEDRO I
Após a declaração de independência, D. Pedro, que foi coroado imperador do
Estado do Brasil, encontrava-se numa situação muito delicada, pois, além dos problemas
existentes antes desse ato, novos problemas começaram a surgir: entre os quais estava
a falta de alterações na ordem social e econômica, isso porque a elite política que
promoveu a independência “não tinha interesse em favorecer rupturas que pudessem
pôr em risco a estabilidade do novo governo”.5 D. Pedro que não possuía instrução
necessária para estabelecer uma situação política eficiente, agora precisava de ajuda.
A ajuda veio, principalmente, das relações diplomáticas mantidas com a Áustria,
que idealizava um governo monárquico para o Brasil, tal como concebiam os estadistas
austríacos, Francisco I e Metternich, representados na Corte do Rio, pelo Barão de
Mareschall, que ocupava uma posição de confiança na Corte. O objetivo de Mareschall
era garantir os interesses da Áustria no Brasil, por intermédio das influências políticas.
A primeira grande tarefa a ser realizada por D. Pedro foi a proteção de seus
direitos como imperador, a elaboração de uma Constituição que garantisse os princípios
monárquicos e a total liberdade para o governante, que não deveria ser um instrumento
da Assembléia Constituinte. Assim, D. Pedro e José Bonifácio, chefe dos ministérios,
atendem aos ideais da Santa Aliança, isto é, da Áustria, pois esse país era o poder
central dessa organização.
4
CASTRO, Therezinha de. História documental do Brasil. p. 134-135.
5
FAUSTO, 1995, p. 146.
92
Segundo Metternich, um grande monarquista, apelidado Cocheiro da Europa6,
pois era quem comandava quase todos os assuntos referentes às relações políticas
entre os países europeus e o resto do mundo, o Brasil teria que manter a forma monárquica
de governo, porque só dessa maneira conseguiria obter o apoio da Áustria.
Metternich queria que o Brasil servisse de exemplo para as repúblicas que estavam
se formando no Novo Mundo, então para influenciar o jovem imperador com ideais
monárquicos, ele enviou o encarregado dos Negócios da Áustria, Daiser7, para dar
conselhos a D. Pedro.
Pedro I aborreceu-se com Metternich, por este querer sempre ditar como deveria
ser o governo.
Já, dentro das fronteiras brasileiras, a Assembléia Constituinte desejava diminuir
os poderes do imperador, atacando, principalmente, José Bonifácio, que agia de acordo
com a Santa Aliança e era adepto dos princípios monárquicos. Para se defender, alegava
que o rei não possuía nenhum plano de governo e, como conseqüência, se uniu à oposição.
Em setembro de 1823, o projeto de Constituição fica pronto e é colocado em
discussão. Por conseqüência desse projeto, houve várias revoltas, e por causa delas D.
Pedro dá um golpe decisivo: dissolve a Assembléia Constituinte e outorga a Constituição
de 1824, dando plenos poderes ao imperador. Essa Constituição estabelecia um regime
centralizado, a monarquia constitucional como forma de governo, distinguia os quatro
Poderes: Legislativo, Executivo, Judiciário e Moderador, que era um poder do imperador
para exercer a função de mediador, e era ele, também, o chefe do Poder Executivo.
O grande objetivo dessa Constituição era obter o reconhecimento da
independência do Brasil pelas potências européias. Porém dentro desse contexto, havia
uma condição essencial para o reconhecimento: era um acordo entre Brasil e Portugal,
no qual este reconheceria legalmente a independência daquele, e só depois os outros
países poderiam fazê-lo.
A princípio, a Áustria manteve-se neutra no que diz respeito ao reconhecimento.
Já a Inglaterra prontificou-se a fazer o reconhecimento da independência do Brasil, mas
em troca estabeleceu as velhas exigências de abolição do tráfico de escravos e de
ampliação das relações comerciais. Apesar de a Áustria não simpatizar com os ideais
ingleses, ela concordava com a Inglaterra na reconciliação do Brasil com Portugal, por
isso, logo após a ratificação do Tratado de Paz e Aliança entre Brasil e Portugal, em que
o rei português reconhecia a independência do Brasil, a 15 de novembro de 1825, a
Áustria reconhece a independência do Brasil, no dia 13 de dezembro de 1825.
O reconhecimento feito pela Áustria levou os outros países a fazê-lo também.
Desse modo ficou estabelecida a “personalidade internacional” 8 do Brasil, que
proporcionou a abertura de muitos países para negociações, visando estabelecer
relações comerciais e diplomáticas. A Áustria assinou um Tratado de comércio e
Navegação com o Brasil, em 30 de junho de 1826.9
6
RAMIREZ, 1968, p. 2.
7
Leopold, Barão de Daiser zu Sylbach, representante austríaco no Brasil, 1830-1841.
8
RAMIREZ, 1968, p. 41.
9
RAMIREZ, 1968, p. 41.
93
Logo depois do processo de Independência, D. João VI, rei de Portugal e pai
de D. Pedro I, morreu em 10 de março de 1826, deixando um dilema para ser resolvido
por D. Pedro: ele deveria romper com Portugal e abdicar da herança do trono em favor
de seu irmão, ou deveria atender aos interesses de Portugal de unir as duas Coroas, o
que colocaria em risco sua posição perante o Brasil.
D. Pedro I resolve aceitar a Coroa de Portugal, em 26 de abril de 1826, com a
justificativa de que existiam monarquias duais como as já estabelecidas: Áustria-Hungria,
Suécia e Noruega, Rússia e Polônia. Porém isso não foi aceito por nenhum dos países e
principalmente pela Áustria, já que os interesses austríacos foram contra D. Pedro, pois
não era desejável uma monarquia dual, governada pela casa de Bragança. O Partido
Brasileiro também não possuía afinidades com essa forma de governo e acabou
provocando a renúncia condicional de D. Pedro I ao trono português. Com a renúncia,
ele esperava evitar um futuro desentendimento entre D. Miguel, seu irmão e possível
herdeiro do trono, e sua filha Dona Maria da Glória (D. Maria II), que herdaria o trono em
lugar de seu pai, como pretendia anular a revolta dos radicais e revolucionários para
garantir uma Constituição liberal ao povo brasileiro.
As Cortes de Viena e Londres ficaram insatisfeitas com a atitude de D. Pedro,
exigindo que ele abdicasse incondicionalmente em favor de sua filha.10 A Corte de
Viena aprovou o casamento entre D. Miguel e D. Maria, pois segundo a política de
Metternich as Coroas do Brasil e de Portugal não poderiam ser unidas, porque a Áustria,
que nessa época, possuía a custódia de D. Miguel, via nele a continuação da Monarquia
em Portugal, e a definitiva separação dos reinos, Brasil e Portugal.
Já, D. Pedro possuía outras intenções, pois chegou a pensar em fazer uma troca
com D. Miguel, na qual assumiria o trono português, enquanto D. Miguel assumiria o
trono brasileiro. No entanto, se isso acontecesse haveria uma revolução liberal em
Portugal que seria refletida no Brasil. A Áustria temia pela revolução liberal e pela
influência inglesa em território brasileiro, por isso decidiu, juntamente com a Inglaterra,
induzir, definitivamente, D. Pedro a uma renúncia incondicional à Corte de Portugal em
favor de sua filha. Então, em 20 de março de 1828, como era desejado pela Áustria,
D. Pedro I abdica do trono português.
Mas quando o imperador fica sabendo que D. Miguel foi infiel às condições
impostas ele intervém nos negócios portugueses e, em 23 de maio de 182911, revoga sua
abdicação incondicional e impede que sua filha se case com D. Miguel.
Entre tantos problemas, negociações e busca por poderes, no ano de 1825,
nasceu D. Pedro II. Em fim chegava ao mundo um herdeiro para o trono brasileiro. Nessa
época, D. Pedro I tinha um caso com Domitila de Castro, que se tornaria Marquesa de
Santos, um título conferido pelo próprio imperador e amante, fato que entristecia a
Imperatriz Leopoldina, sua esposa.
D. Pedro, com essa história de amor, acaba perdendo a confiança que a Corte de
Viena havia depositado em sua pessoa, e também a simpatia do povo brasileiro, que
tinha um enorme carinho pela carismática Imperatriz D. Leopoldina e, como conseqüência,
conseguiu aborrecer a Áustria, visto que a imperatriz era austríaca.
10
RAMIREZ, 1968, p. 48.
11
Op. cit. p. 63.
94
D. Leopoldina morre, em 11 de dezembro de 182612 e tem sua morte atribuída ao
tratamento que recebia de D. Pedro I, seu marido. Com o enterro da imperatriz, os laços
familiares que uniam a Áustria e o Brasil estavam para sempre quebrados.
Paralelamente aos problemas pessoais e políticos de D. Pedro, não se pode
esquecer que havia estourado uma guerra entre Buenos Aires e os rebeldes do Uruguai,
a Guerra Cisplatina. O imperador, que estava com a reputação prejudicada não só perante
a Áustria mas também perante o povo brasileiro, tentou requerer o seu prestígio por
meio do bom desempenho do Exército, que obteve êxito nas províncias do Sul e seria
reforçado por tropas alemãs. O Brasil pede à Áustria que envie oficiais para treinar
soldados brasileiros, mas essa atitude falhou, pois o Brasil estava com dificuldades
financeiras e não possuía recursos para pagar aos oficiais. É assim que D. Pedro
interrompe a guerra, e a Inglaterra, em agosto de 1828, intervém e faz um acordo, no qual
Brasil e Argentina abdicaram o território em questão, a Província Cisplatina, que se
tornou um república independente e recebeu o nome de Uruguai.
D. Pedro, futuramente caindo na solidão, tenta um novo casamento com a
Áustria, não só objetivando sua felicidade, mas ainda uma reconciliação com esse
país. Seus planos não dão certo, apesar de ter tentado provar de todas as formas que
suas intenções eram verdadeiras e que a amante pertencia ao passado. Com o fracasso
do projeto de casamento, a posição de Mareschall, enviado austríaco, em relação a D.
Pedro ficou comprometida, pois pareceu ao imperador que o casamento não era de
interesse da Áustria.
O relacionamento entre Brasil e Áustria é definitivamente rompido quando o
imperador brasileiro fica sabendo do casamento da princesa austríaca com Napoleão.
D. Pedro I, que vinha perdendo popularidade já há algum tempo, fica em situação
ainda mais complicada, quando estoura a Revolução Francesa de 1830, que acaba
despertando as forças democráticas. O imperador estava perdendo seu poder, pois, durante
sua ausência da capital, o povo falava de sua abdicação em favor de seu filho ao trono.13
Como última chance de restabelecer o controle do governo, D. Pedro demitiu o
gabinete e formou um novo, porém este, também era composto por aristocratas pertencentes
à oposição. Por fim, acaba perdendo o apoio da Igreja e do Exército, e na noite de 6 de abril
de 1831 D. Pedro decidiu, ou quase foi obrigado, a abdicar em favor de seu filho.
4 REGÊNCIAS, GOVERNO DE D. PEDRO II E QUEDA
DA MONARQUIA
Com a queda de D. Pedro I, o trono do Brasil não foi preenchido, pois seu sucessor,
D. Pedro II, que na época ainda era uma criança, teria que atingir a maioridade para poder
assumi-lo. Com o impedimento da posse do príncipe real, de acordo com a lei brasileira,
deveria ser estabelecida uma regência, até que ele atingisse a idade legal, 18 anos.
D. Pedro II começou a ser preparado desde cedo para suas futuras funções. O
12
RAMIREZ, 1968, p. 43.
13
Op. cit. p. 64.
95
interesse da Áustria na educação do príncipe era grande, afinal tratava-se do neto do
imperador da Áustria, Francisco I. O Barão de Daiser, o encarregado de Negócios da
Áustria, acompanhou de perto os estudos de D. Pedro II e suas irmãs.
Durante o período regencial a situação política do Brasil tinha permanecido
estável, com exceção dos conflitos travados com a Igreja e contra pequenas revoluções
nas províncias. O regente, Araújo Lima, se deparou com o problema da proposta dos
revolucionários, na qual a Princesa D. Januária, com 17 anos, passaria à regência do
príncipe real, até que ele atingisse a idade legal. Daiser via nessa proposta, a intenção
dos republicanos de derrubarem a Monarquia no Brasil, por intermédio de um governo
de “uma jovem e inexperiente princesa”.14 Mas os republicanos ainda prepararam outro
plano, no qual D. Pedro II seria declarado maior aos 16 anos.
Os planos dos republicanos chamaram a atenção de Metternich, que considerava
os meios usados por eles para chegar ao poder. Sabia também da existência de uma
sociedade republicana secreta, a Cruzada da Liberdade15, cujo objetivo era derrubar as
dinastias, pelas idéias revolucionárias. Esse grande estadista, primeiramente, aconselhou
o regente para que não deixasse ser aprovada a ascensão prematura de D. Pedro II. Mas
como os planos dos comandantes brasileiros eram tirar o regente, Araújo Lima, do poder
e nomear D. Januária como imperatriz, ele entendeu que seria perigoso não antecipar a
maioridade do príncipe real. Agora, todos buscavam a maioridade de D. Pedro II.
Dentro da Corte brasileira, liberais e conservadores consentiam na maioridade
antecipada de D. Pedro, mas não concordavam em quando essa declaração deveria produzir
efeito. Consideravam que a ascensão do príncipe ao trono seria de grande vantagem para
o Brasil, pois D. Pedro era considerado a pessoa capaz de resolver as dificuldades do
Brasil e de produzir a paz interna no País, a qual a regência não tinha conseguido. Para
Daiser, representante direto da Áustria no Brasil, eles deveriam escolher um tempo médio,
procurando solucionar o problema, já que não era sua vontade concordar com a declaração
antecipada da maioridade e considerava tal prática uma violação da Constituição.
De nada adiantaram tantas divergências, porque a maioridade do jovem imperador
foi proclamada em 22 de julho de 1840, e no dia 23 D. Pedro II compareceu ao Senado,
jurou a Constituição e foi investido de poder supremo.
A Áustria via o ato de 22 de julho como um ato de revolução, embora, em parte,
concordasse com isso, pois já tinha suposto que o regente na sua insustentável posição
deveria deixar o poder. Além disso, a Áustria possuía grande influência sobre D. Pedro,
pois segundo Daiser, o imperador podia passar-se por um príncipe austríaco, já que
conservava muito das características dos Habsburgos, que o tinham influenciado por
meio dos seus costumes imperiais e dos métodos de ensino, que futuramente foram
aplicados em seu governo.16
D. Pedro II possuía a confiança e o amor do povo, uma vez que recebeu seu
cargo do povo (soberania popular) e não “pela graça de Deus”. Além de ser adorado, o
14
Op. cit. p. 67.
15
Op. cit. p. 67.
16
Op. cit. p. 75.
96
jovem imperador era protegido pela Áustria, que tinha esse dever, pois as relações
familiares deviam ser preservadas, isto é, na medida do interesse. E o único interesse
político e econômico era manter a Monarquia como forma de governo. Como prova
dessa relação familiar temos a escolha do Imperador Ferdinando II, sucessor de Francisco
I, como imperador da Áustria, para ser o padrinho de crisma de D. Pedro II.17
Restabelecidas as relações de família, a Áustria prometia o seguinte auxílio ao Brasil:18
1. orientação quanto aos melhores meios de manter a Monarquia forte no Brasil;
2. um segundo casamento com o Brasil, dando influência natural e indireta para
a Áustria, até mesmo nos negócios do Estado;
3. direito de exílio ao soberano e sua família em caso de revoluções no Brasil.
Começaram a procurar por jovens austríacos ou alemães para se casarem com as
princesas brasileiras, pois sem esses casamentos a Áustria perderia sua influência na
Corte do Rio de Janeiro.
As Cortes de Viena e do Rio estavam, principalmente, preocupadas com o
casamento de D. Januária, pois tanto a Áustria como o Regente Araújo Lima eram contrários
a uma aliança da França com o Brasil. Mas como os pretendentes austríacos não se
interessaram por D. Januária, as portas para as influências francesas foram abertas.
Com o fracasso casamenteiro da Corte de Viena, iniciaram-se as relações
entre Brasil e França, pois esta se adiantou e a 1º de maio de 1843, D. Francisca, irmã
mais nova de D. Pedro II, casa com o Príncipe de Joinville, da França, e logo em
seguida, D. Pedro casa com D. Teresa Cristina Maria, de Nápoles, em 4 de setembro de
1843. Essas uniões enfraqueceram as relações familiares entre Brasil e Áustria, que são
definitivamente terminadas quando D. Januária casa com o cunhado de D. Pedro II.
As relações entre Brasil e Áustria se tornaram frias e rotineiras, e até os negócios
diplomáticos ficaram retraídos.19
O governo do Brasil exigia de D. Pedro II sua grande capacidade intelectual e uma
total devoção aos negócios do Estado. O imperador era confiante, acreditava mais em si
próprio do que nos seus conselheiros. Procurou conhecer a enorme área geográfica do
Brasil por meio de viagens, a fim de facilitar a comunicação entre as províncias e conhecê-las
melhor. Seu maior interesse era ter boas relações com os Estados vizinhos20, que haviam
sido colônias espanholas e agora contaminavam o Brasil com tendências republicanas. O
republicanismo era causado pela divisão administrativa do País em que a fraqueza do poder
central e a presença de fortes elementos republicanos tornavam-no possível.
Daiser pretendia a sobrevivência da Monarquia, mas o conflito entre o povo e o
governo perturbava esse sistema.
A participação do Brasil nos negócios internacionais estava limitada em
conseqüência das revoltas contra a Monarquia brasileira. Apesar disso, as relações
17
Op. cit. p. 76.
18
RAMIREZ, p. 77.
19
RAMIREZ, p. 92.
20
RAMIREZ, p. 93.
97
com os Estados vizinhos, na década de 40, eram boas.
Metternich esperava que Daiser melhorasse as relações do Brasil com a Áustria
por informações confidenciais, mas a principal ligação entre as duas Coroas, Daiser,
adoeceu gravemente, assumindo seu lugar o Conde Bernhard von Rechberg.21
Metternich forneceu ao novo enviado instruções adequadas de como deveria configurar
a política diplomática da Áustria em relação ao Brasil e também o instruiu para tentar
consolidar as relações comerciais já existentes com o Brasil, o que serviria como base
para outros tratados com as repúblicas latino-americanas.
A popularidade de D. Pedro II estava em baixa, em razão de sua frieza e conduta
reservada. Discórdias internas causavam muito mal à família imperial e prejudicavam a
Monarquia em face do poder dos partidos republicanos.
Todos admitiam, inclusive Rechberg, que D. Januária seria capaz de remover a barreira
entre o imperador e o povo, melhorando a situação do Brasil, porém quando ela aceitou
viajar para a Europa em navio francês, o povo se revoltou, porque se encontrava largado
nas mãos dos franceses. Por trás dessa partida havia três pretensões: o Partido Francês
pretendia o trono do Brasil com a coroação do Príncipe de Joinville; o Partido Republicano
pretendia o estabelecimento de uma República Federal; o Partido Conservador esperava
pelo futuro herdeiro da Coroa para estabelecer uma regência, que seria feita por eles.22
Nos anos de 1846 e 1847 as relações entre Brasil e Áustria não foram muito
amigáveis, pois estavam com problemas em tratados que não eram assinados com
rapidez, problemas com os maus tratos aos estrangeiros austríacos, entre outros, que
contribuíram para que as relações comerciais e culturais entre os dois países não fossem
definitivamente firmadas.
O Brasil nessa época não tinha decidido se manteria relações com países
estrangeiros, mas logo depois denuncia todos os tratados de comércio que havia
assinado com as nações estrangeiras, menos com a Inglaterra, mantendo uma política
isolacionista e retirando-se da Comunidade das Nações.
Em 1847, Rechberg volta à Áustria, depois de permanecer quatro anos no Brasil,
sem alcançar o objetivo comercial para o progresso das relações entre os dois países.
Então, Hippolyt von Sonnleithner veio substituir Rechberg no Brasil.23
A Revolução de 1848 ocorrida na Europa faz com que haja novamente uma
aproximação dos reinos da Áustria e do Brasil, pois D. Pedro II, junto com Sonnleithner,
demonstrava um claro interesse pela situação austríaca.
O imperador austríaco, Ferdinando, abdicou do poder, antes do fim de 1848, em
favor de seu sobrinho Francisco José.24
Em 1851, o interesse da Áustria estava concentrado quase exclusivamente no
conflito do Prata entre Brasil e Argentina. O sucesso do Brasil na guerra fez com que
Sonnleithner elogiasse a capacidade diplomática do imperador do Brasil e de seu ministro
dos Estrangeiros.
Em 27 de janeiro de 1860, o Arquiduque Ferdinando Maximiliano da Áustria
chega ao Brasil. No momento de sua visita, o País estava com terríveis dificuldades
21
RAMIREZ, p. 95.
22
RAMIREZ, p. 101.
23
Op. cit. 1968, p. 105.
24
Op. cit. 1968, p. 106.
98
sociais e econômicas, mas o Partido Conservador, há 7 anos no poder, havia conseguido
manter a calma. As relações com as potências estrangeiras haviam melhorado, e o País
tinha acabado de ser salvo de uma revolução.
No fim da década de 60, o Brasil estava com sérios problemas, tanto financeiros
como militares, pois o Exército não possuía mais gente para lutar, por causa da guerra
com o Paraguai, e o dinheiro era pouco para suprir as necessidades. O fim da Guerra do
Paraguai deu a chance para D. Pedro levar adiante seus planos de reconstrução do País,
com a construção de estradas e diques e o embelezamento e reconstrução da capital e
outras cidades.
O imperador do Brasil honrou Sonnleithner pelos grandes esforços em prol das
relações austro-brasileiras25, embora o enviado austríaco tenha constatado que não
houve influência nos negócios internos e externos do Brasil. Sonnleithner é sucedido
pelo Barão Schreiner, que foi recebido amigavelmente por D. Pedro. Quando iniciou sua
carreira, viu como eram mal geridos os negócios públicos do Brasil e procurou fazer
relatórios à Corte de Viena.
O imperador e a imperatriz do Brasil vão novamente à Europa, viagem que causa
danos à Monarquia no Brasil, pois as reformas legislativas e financeiras de 1884 não
atingiram seus fins, e a questão da liberação dos escravos também a prejudicava.
Em março de 1888, o governo liberal foi demitido e em 13 de maio do mesmo ano
a princesa regente, Isabel, declara abolida, para sempre, a escravidão no Brasil, porque
isso era contrário aos princípios da Igreja Cristã e às instituições liberais. Assim o Brasil
não pode ser mais considerado um Estado escravocrata.
A liberdade dos escravos produziu sérias conseqüências políticas e econômicas
que provocaram o declínio da autoridade do monarca. Iniciou-se uma agitação por parte
dos republicanos, irrompeu a revolução em novembro de 1889. No mesmo ano a família
de Bragança é deposta e é efetivada a transformação do Império Brasileiro em Estados
Unidos do Brasil, com Marechal Deodoro da Fonseca como novo presidente.
A Monarquia austro-húngara tinha sido incapaz de fazer qualquer esforço para
impedir a queda da Monarquia no Brasil. O reconhecimento do Brasil deveria ser feito
pela Áustria, determinação do Imperador Francisco José.
Dessa maneira se encerraram as relações entre os impérios Austríaco e Brasileiro,
que não possuíram relações que permaneceram, mas que proporcionaram relações entre
o Velho e o Novo Mundo e que são importantes até hoje para o entendimento das
relações internacionais.26
5 DESENVOLVIMENTO DAS RELAÇÕES CIENTÍFICAS E
CULTURAIS
As relações contratuais entre duas nações podem ser feitas a partir de uma série
de acordos políticos, econômicos e comerciais, mas somente após um intercâmbio
cultural é que pode ser vista a realidade de um povo; mesmo com a perda de validade de
25
Op. cit. 1968, p. 116.
26
RAMIREZ, 1968, p. 122.
99
tratados, ainda continuará havendo ligação entre os povos. É por uma ligação cultural
que a Áustria e o Brasil tentam fazer sua parceria internacional no século XIX, com o
casamento de uma arquiduquesa austríaca, D. Leopoldina, com D. Pedro I. O casamento
propiciou não somente as relações comerciais mas também o intercâmbio social e cultural
por laços matrimoniais. Seria pela primeira vez a imagem vaga e imprecisa substituída
por informações das expedições científicas propostas pela Áustria.
As expedições foram financiadas pelo governo austríaco e pelo Museu Brasileiro
em Viena, com a intenção de enriquecer as importantes coleções do Museu Imperial de
História Natural. As descobertas deveriam ser reportadas ao governo brasileiro.
Os exploradores deveriam: coletar material científico, descrever a fauna e a flora,
a fim de embelezar os jardins imperiais austríacos, trazer ao Jardim Zoológico animais
desconhecidos e exóticos. Com esse intuito o imperador austríaco incumbiu a um grupo
de naturalistas essa missão.
Natterer27 tinha somente 33 anos, era o mais sábio participante da equipe, tendo,
na juventude, tornado-se perito em trabalho e método científico.
No começo de 1817, a equipe fazia os preparativos finais da viagem ao Brasil, ao
mesmo tempo que eram preparadas as festas do casamento brasileiro na Áustria.
Fazendo uma pequena excursão nas redondezas do Rio de Janeiro, os naturalistas
mandaram para Viena a primeira remessa que consistia em 36 caixotes de material com
uma extensa coleção de animais empalhados, plantas secas e vivas, sementes e minerais.
Após a morte de muitos animais, na segunda remessa, seu transporte foi cancelado.
Os constantes relatórios mandados por Natterer, fascinavam o imperador austríaco
extremamente interessado no assunto.
Com uma remessa de plantas e animais raros, foi mandado à Áustria um casal de
índios, que provocaram grande sensação em Viena por se tratarem de espécies
genuinamente americanas e pelas suas características físicas.
Natterer torna-se o chefe da expedição, quando o antigo voltou para Áustria.
Programou uma viagem, na qual partiriam de São Paulo, seguindo para Cuiabá. (Mato
Grosso) pelos rios Tietê, Paraná, Prado, Camapuã, Coxim, Taquari, Paraguai e Barrados.
A expedição ainda deveria passar por Vila Bela e pelos rios Guaporé, Mamoré, Madeira,
Amazonas e chegar a Belém do Pará. Natterer calculou uma viagem de dois anos, em vez
disso, por causa de uma série de dificuldades, a expedição gastou quatorze anos.
A descrição da viagem é a de uma odisséia que terminou com um efeito dramático. Após
ter sobrevivido a inúmeras doenças adquiridas na selva, no Pará, enquanto esperava o
transporte para a coleta de material, estourou uma revolução que queria expulsar todos
os estrangeiros. Natterer conseguiu salvar somente a vida. Uma multidão roubou-lhe
todos os 22 caixotes que estavam esperando para ser embarcados. Algum tempo depois,
Natterer conseguiu chegar à Inglaterra, após ter sua vida salva por ingleses.
Em Viena, a expedição que tinha sido preparada com tanto entusiasmo e com apoio
financeiro generoso, deu resultado. O Museu Brasileiro em Viena tornou-se um centro de
todas as matérias referentes ao Brasil. O público podia visitar o museu em horários restritos,
mas cientistas e pesquisadores tinham a entrada livre. Para o ingresso no museu era
necessário um rompimento por escrito restringindo a entrada somente da camada superior.
Na metade do século XIX, o Brasil era um dos países mais explorados fora da
27
Johann Natterer era o mais notável participante da equipe, foi escolhido como diretor da
expedição, pois tinha todas as qualificações exigidas para a posição.
100
Europa em virtude dos êxitos das expedições científicas austríacas e suas publicações.
Isso estimulou outro centro de ciência austríaco, a Biblioteca Imperial, que começava a
fazer coleções e assinaturas de jornais brasileiros. Mas pelos pareceres negativos do
Brasil, a Biblioteca Nacional da Corte foi forçada a cancelar planos de coleção.
Numerosos grupos de artistas austríacos foram cordialmente recebidos no Brasil,
fazendo com que vários momentos da família real fossem registrados, propiciando trocas
culturais e de experiência, influenciando inúmeros artistas brasileiros. A arte e a ciência eram
o elo entre Brasil e Áustria. Tal como o Museu Brasileiro em Viena, o Instituto Histórico e
Geográfico tornou-se para o Brasil o centro de aspirações científicas na América Latina.
D. Pedro estava, também, interessado em todas as escolas militares na Áustria,
por esse motivo mandava jovens oficiais brasileiros para fazer cursos no Corpo de
Pioneiros da Áustria. O Brasil, também, coletava informações sobre a organização militar,
uniformes e armamentos. Foi procurado saber sobre o ingresso de estrangeiros nas
academias técnicas. D. Pedro foi aceito como membro honorário em Viena, o que significou
o reconhecimento de seus ideais científicos para o mundo.
Havia então vários laços entre os dois impérios. A Áustria que não possuía
nenhum tipo de relação com o Brasil no início do século XIX, fez de tudo para estabelecer
contatos políticos, transformando-os em um intercâmbio cultural e estabelecendo um
vínculo transoceânico a fim de servir de entendimento e ao processo cultural.
Mas com as mortes de D. Leopoldina e do Imperador Francisco I enfraqueceramse as relações que haviam sido estabelecidas. Isso ficou mais visível a partir do momento
em que a Áustria partiu para tarefas de política interna com lutas constitucionais e com
a questão nacionalista que tomou suprema importância, deteriorando as relações entre
a Áustria e o Brasil.
6 INFLUÊNCIA AUSTRÍACA NA IGREJA
A Monarquia brasileira, no século XIX, estava moldada nas antigas concepções
das monarquias européias, como a austro-húngara, ou seja, poder nas mãos do imperador
e do papa (Estado e Igreja). A religião mais cultuada no Brasil era a católica romana, que
foi introduzida pelos missionários portugueses.
Apesar dessa forte ligação com a cultura européia e de o Estado proteger a
Igreja, o governo brasileiro por muitas vezes violou os direitos eclesiásticos, isso porque
o Estado tratava a Igreja como um adversário político e administrativo. Para Daiser,
representante austríaco no Brasil, “Os brasileiros reagem em religião como em política.
A Igreja Católica Romana é a igreja oficial da terra. Mas os brasileiros procuram negar a
autoridade do Papa. Ele considerava que no Brasil tudo estava imaturo, inclusive o
cristianismo. Este assunto era mais ligado a formalidade, a cerimônias do que a um
poder recriador e remodelador da vida humana.”28
Logo após a saída de D. Pedro I, surgiram vários conflitos entre o Brasil e Roma.
O primeiro e um dos principais, foi durante o governo do Regente Padre Diogo Feijó,
que era tido, em Viena, como um dos mais fortes partidários da Monarquia austríaca e
28
RAMIREZ, 1968, p.167.
101
era contra a aplicação da regra católica do celibato. Afirmou ser essa regra uma imposição
medieval, que não poderia ser considerada um mandamento divino, uma vez que era
utilizada para manter a disciplina dentro da Igreja e que qualquer bispo dentro de sua
paróquia poderia, ou não, aceitar a regra do celibato. Está aí o porquê do conflito com
Roma. A Áustria via uma possibilidade da criação de uma futura Igreja Brasileira separada
da Católica Romana. Assim, estava interessada em servir de intermediária nos conflitos
entre Brasil e Roma, que eram basicamente a respeito das nomeações de representantes
papais no País. Além da afirmação de Feijó, a Áustria via a garantia de manter o poder
monárquico conservador brasileiro separado da obrigatoriedade de seguir os dogmas
impostos pela Igreja, isso porque a própria Áustria que era um exemplo de poder
conservador não aceitava a interferência direta da Igreja nos negócios de Estado e só
mantinha relações de interesse conservador com o clero, uma vez que o Papa era visto
como o símbolo maior das forças conservadoras.
No princípio de 1836, Daiser comunicou que a Igreja no Brasil estava perdendo
sua tradicional força dominadora. Mesmo assim, o enviado austríaco em Roma informou
a Viena que o representante papal tinha admitido estar “grato à Corte austríaca pelos
bons ofícios com que Viena havia auxiliado Roma em suas dificuldades com o Brasil”.29
Mas, em 11 de agosto de 1836, Feijó diz que não havia uma maneira de solucionar o
conflito com Roma de forma pacífica. Revelou também que o número de padres que
estavam pedindo dispensa da regra do celibato vinha crescendo a cada dia.
Outra diferença entre Brasil e Roma é que no Brasil a nomeação do bispo era de
acordo com o direito consuetudinário, ou seja, quem nomeava era o imperador. Só que,
segundo o direito de Roma, a nomeação seguia o direito canônico.
Em 1837, cai o governo de Feijó e assume Araújo Lima, que volta a manter
relações amigáveis com Roma. Araújo Lima queria a Igreja ao lado do Estado, não como
parceira política e administrativa, e sim com uma força de ordem dentro do Brasil. Apesar
dos esforços do regente, as relações diplomáticas com Roma ainda estavam em conflito.
Essa tensão só foi relaxada com a coroação de D. Pedro II.
Os representantes da Áustria no Brasil visualizaram e concluíram que havia
muita falta de cultura religiosa e indiferença na população e uma imensa falta de
moralidade entre os padres. Sonnleithner30, outro representante da Áustria, comunicou
“que só um grande influxo de imigrantes europeus poderia melhorar a situação”.31 Era
evidente que nem com os conservadores no poder, em 1858, a Igreja deixaria de ser uma
entidade abaixo do Estado, subordinada as decisões deste.
Durante a década de 60, a Áustria, tendo de resolver seus próprios problemas
internos, interrompeu seu auxílio à política brasileira. Isso mostra que a relação entre os
dois países não seguia mais o sistema proposto por Metternich. “A Áustria estava
muito ocupada com seus próprios problemas. A luta da Áustria pela ordem dentro da
União dos Estados Dinásticos e a posição dessa União dentro da Europa tornou
impossível aos secretários de Negócios Estrangeiros dedicarem-se aos problemas
transatlânticos, exceto no que se referia ao comércio e à emigração.”32
29
Op. cit., 1968, p. 171.
30
Sonnleiyhner, Hippolyt von, representante austríaco no Brasil, 1847-1873.
31
RAMIREZ, 1968, p. 180.
32
RAMIRES, 1968, p. 181.
102
7 IMIGRANTES AUSTRÍACOS NO BRASIL
Em conseqüência do avanço da medicina, das boas condições de higiene, a
Europa conseguiu combater as pestes e acabar com as inúmeras mortes. Porém, outro
problema surgiu: o aumento exagerado da população que causou o aumento da miséria,
da fome. Assim, muitos países resolveram seus problemas de super povoamento
financiando a imigração para os países americanos. Já a economia brasileira, a partir do
século XIX, foi marcada por importantes mudanças: a abolição do tráfico de escravos,
a criação de um novo regime de terras, o apoio à vinda de imigrantes, a introdução do
trabalho assalariado e a expansão do comércio exterior que permite uma nova dinâmica
do comércio interno.33
A substituição paulatina do escravo pelo trabalhador livre se dá paralelamente a uma
nova visão do labor, até então visto como ato repulsivo, implicando castigos e disciplina.
A persistência do regime escravista criava barreiras para a valorização do trabalhador
livre. Portanto, os impulsos dado a desagregação da sociedade escravista, também eram
investidas na representatividade do trabalhador livre que representava
o novo tempo, o
35
progresso e a civilização.34 Ao longo do Congresso Agrícola de 1878, voltado exclusivamente para os problemas da grande lavoura, foram discutidas questões como: a introdução do trabalhador imigrante, a carência de capital, os meios para a obtenção do crédito
agrícola e os destinos da escravidão.36 e 37
Ao Brasil, chegaram principalmente emigrantes vindos da Itália, Alemanha e Portugal.
Os colonos germânicos foram encaminhados para São Leopoldo (Rio Grande do Sul), em
1824 para Santo Amaro (São Paulo), em 1827 para Rio Negro (Paraná), em 1829 para o Vale do
Itajaí (Santa Catarina), em 1835-38 e a partir de meados do século para constituir as colônias
de parceria no oeste paulista – juntamente com imigrantes suíços.38
A Áustria não via a emigração como uma solução para o problema de excesso de
pessoas, isso porque, seu ideal era: “de uma exploração econômica intensa de suas
próprias terras. O ideal era fazer as próprias terras ricas em povo e em recursos. Os
economistas exprimiam isso com ênfase no desenvolvimento do comércio, indústria e
agricultura. Os Habsburgos da Áustria estavam convencidos de que a população era a
verdadeira riqueza de uma nação.”39 Com base nesse ideal, o Imperador José II expediu
um edito que proibia a emigração: “A ninguém é permitido emigrar nem enviar a países
estrangeiros seus filhos ou pessoas sob a sua proteção e cuidado.”40 Esse edito foi
33
SANTOS, 1995, p. 48.
34
Op. cit., 1995, p. 63. SALLES, Iraci G. Trabalho, progresso e sociedade civilizadora. São
Paulo : HUCITEC, 1986. p. 118.
35
Congresso Agrícola. Rio de Janeiro : Fundação Casa Rui Barbosa, 1988, tomo VIII.
36
Op. cit. 1995, p. 64.
37
Os fazendeiros exigiam uma imigração que fosse mais dirigida e que assegurasse a remoção
dos problemas que impediam a vinda dos trabalhadores.
38
BRUNO, 1968, p. 119.
39
LOUISE, Sommer, Viena, 1920.
40
RAMIEZ, 1968, p. 183.
103
seguido pelo Imperador Francisco I, só com uma ressalva. Francisco I permitia a
emigração legal, com o aval das autoridades locais que concediam uma dispensa da
cidadania austríaca. Por conseqüência pouco austríacos vieram para o Brasil.
Após as guerras napoleônicas, um grande número de veteranos de guerra, de
descendência germânica41, recebeu asilo político do Brasil, e outros vieram trabalhar
nas fazendas como mão-de-obra assalariada. Assim, um grande número de imigrantes
germânicos chegou ao Brasil.
Mas os relatórios do representante austríaco sobre as condições dos emigrantes
era desanimador. Mostravam que os militares austríacos, que chegaram no Brasil, eram
levados para o campo de batalha como linha de frente, ou seja, serviam de escudo para as
tropas brasileiras e conseqüentemente eram os primeiros a morrer.
Aqueles que foram para as fazendas trabalhavam no sistema de parceria, ou seja,
Os imigrantes tinham suas passagens pagas e recebiam um adiantamento do proprietário da terra em cujas fazendas eles deviam trabalhar na colheita. Aos que chegaram à
nova pátria, eram dadas: terra para limpar, sementes para plantar e o direito a metade
da colheita. Deviam permanecer até indenizarem o proprietário de todas as despesas
feitas com eles. Poderiam então permanecer como assalariados ou se estabelecer por
conta própria.42
Contudo os imigrantes acabavam servindo como “escravos livres”, porque
ganhavam pouco, e do pouco ainda lhes tiravam a metade, e a indenização ao proprietário
da fazenda se tornava cada vez mais difícil. Tinham que combater a mentalidade
escravocrata dos fazendeiros que se viam no direito de tratar os imigrantes da mesma
forma que tratavam os escravos, ou seja, de forma subumana. Assim, “aqueles se viram
forçados a pressionar os fazendeiros, sobretudo quando ainda existia o regime servil,
para conseguirem melhores condições que os escravos”.43
Os representantes austríacos exigiram do Brasil o igual tratamento que os
imigrantes franceses e ingleses recebiam.
As primeiras províncias que proporcionaram boa condição de vida para os
austríacos foram as do Sul, porque eram as mais desenvolvidas economicamente,
possuíam o clima parecido com o europeu e, principalmente, necessitavam de trabalho
livre, já que a Inglaterra estava pressionando as províncias brasileiras a abolirem a mãode-obra escrava.
Só que o Sul era uma exceção. O representante austríaco Sonnleithner dizia: “ O
Brasil está somente tentando obter os trabalhadores que precisava, sem pretender darlhes garantias. E ainda, que o tipo de imigrante que o Brasil queria era aquele sem nenhuma
41
Apresentam-se confusões de nacionalidades como as que fizeram, em que jamais se
distinguiram os austríacos e suíços dos alemães. Tem razão, portanto, Romário Martins ao assinalar
que “notas esparsas, referências incompletas, relatos oficiais pouco informativos e sem seguimento,
conjecturas, cálculos sem base em números afirmativos, é o que tem sido a fragmentária bibliografia
de tão importante assunto.” MARTINS, 1989, p. 68-69.
42
RAMIREZ, 1968, p. 185.
43
FAUSTO, 1995, p. 205.
104
capacidade de independência, chegando ao Brasil submissos aos proprietários, a quem
ficavam devendo as passagens e obediência, de acordo com o sistema de parceria.”44
O governo brasileiro decidiu dar o assunto referente à imigração para companhias
particulares, cujos recursos vinham do Estado, o que desgostou os representantes
austríacos que temiam uma forte atuação desses agentes na República do Tirol.45 Essa
medida acabou se tornando matéria de especulação financeira.46 “Não se prometia
proteção para o imigrante, o qual, desde que tivesse assinado seu contrato, tornava-se
devedor vitalício do agente de emigração.”47
Assim, eles queriam fazer uma campanha de extrema proibição à imigração para
o Brasil, pois entendiam que com a falta de mão-de-obra o governo brasileiro ia oferecer
condições aceitáveis de sobrevivência.
“Apesar das dívidas e dos salários baixos, os imigrantes livres no Brasil, gozaram,
sem dúvida, de um padrão de vida mais alto que o da maioria dos súditos brasileiros”.48
8 COMÉRCIO ENTRE ÁUSTRIA E BRASIL
As amigáveis relações diplomáticas e culturais entre Áustria e Brasil, durante o
século XIX, poderiam levar a crer que esses países também desenvolveram extensas
relações comerciais. Entretanto, tal relação não se deu. Ambos os países esforçaram-se
em ampliar o comércio, mas grandes obstáculos surgidos desde os primeiros
entendimentos mercantes com o Brasil permaneceram como entrave aos futuros
desenvolvimentos.
O período mais significativo da política comercial externa brasileira compreende de
1822 a 1828. “Confrontam-se então os objetivos estabelecidos pelos governos estrangeiros
em suas relações com o Brasil e os que este país pretende alcançar no exterior.”49
O principal objetivo comercial da Áustria era manter fortes laços comerciais com o
Rio de Janeiro, para que se abrissem as portas para futuras relações comerciais com a
América Espanhola, visto que a maior parte desta era rica em recursos naturais (matériaprima necessária aos produtos austríacos) e principalmente serviam de mercado consumidor.
O Imperial Conselho de Comércio e o Ministério das Finanças planejaram
cuidadosamente, em 1816, a primeira exportação de produtos para o Brasil. Mas as
viagens não saíram como planejadas. A carga foi danificada por causa das más condições
marítimas enfrentadas pelos navios austríacos, e ao chegarem ao Brasil a decepção foi
grande. Os austríacos debateram-se com uma taxa de importação de 24% sobre o produto
44
Op. cit., 1968, p. 194.
45
Província mais pobre e com mais problemas da Áustria.
46
FAUSTO, 1995, p. 206. Em 1884 foi aprovada uma lei que indica bem o sentido da política
de mão-de-obra imigrante para o governo provincial.
47
RAMIREZ, 1968, p. 195.
48
Op. cit., 1968, p. 211.
49
CERVO, cap. l, p. 20.
105
e, principalmente, constataram que o mercado brasileiro estava repleto de mercadorias
similares vindas da Inglaterra e França. Houve, também, decepção por partes dos
brasileiros, uma vez que as mercadorias chegadas não correspondiam às necessidades
do mercado brasileiro, e os preços eram muito altos.
Para uma melhor negociação, o Conde Stahl, presidente do Imperial Conselho de
Comércio, ordenou ao embaixador austríaco no Rio de Janeiro, que procurasse fazer um
acordo com o Brasil para obter as mesmas vantagens comerciais concedidas aos ingleses.
Outro obstáculo a ser enfrentado pela Áustria era a difícil competição com a Inglaterra,
“visto que ambas as nações procuravam vender aproximadamente o mesmo produto ao
mesmo mercado.”50
O enviado austríaco escreveu: “Creio que a idéia de um tratado comercial entre
a Áustria e o Brasil deve ser completamente abandonada. A Inglaterra jamais consentirá
que um governo, em que ela influencia tão profundamente, possa proceder de maneira
tão contrária a seus interesses comerciais” (10 de abril de 1820).51 A Grã-Bretanha via
na independência da América Latina “uma válvula de escape ao bloqueio continental
que lhe foi imposto por Napoleão”52, e por sua vez o Brasil não restringiu o comércio
com a Inglaterra, estabelecendo relações de dependência financeira britânica.53
Em primeiro lugar, para a Áustria conseguir boas relações comerciais com o
Brasil teria que propor e firmar um tratado comercial. Esse tratado só vai acontecer após
a independência do Brasil, uma vez que todos os tratados assinados antes do fato não
iriam ser renovados até o país reconhecer a independência brasileira. Assim, a Áustria
só reconheceu após 4 anos, em 1826.
O primeiro ato oficial internacional entre Brasil e Áustria foi o Tratado de Comércio
e Navegação entre Francisco I e D. Pedro I, de junho de 1827, que deveria vigorar
durante seis anos após a ratificação. Como primeiro passo, foram propostas facilidades
para o funcionamento dos consulados. O tratado resultou numa notável animação do
comércio com o Brasil.
Quando em 1834 o tratado de 1827 estava para expirar, Viena mandou a Daiser
uma nova proposta, para renovar o antigo acordo. Porém, a situação política na qual o
Brasil se encontrava não era favorável a novos acordos, porque o Brasil se julgava
prejudicado com os tratados travados com outras nações, uma vez que lhes concediam
muitos privilégios comerciais prejudicando o próprio Brasil em relação a sua indústria,
seus produtos, suas finanças. Era o contrário do proposto inicialmente por D. João,
quando em 1810 abriu os portos às nações amigas. Seu verdadeiro ideal era que “a
emulação e a concorrência resultantes da abertura dos portos despertariam as indústrias
do país do letargo em que jaziam”.54
50
RAMIREZ, 1968, p. 214.
51
Op. cit., 1968, p. 215. Staatskanzlei. Brasil: despacho para o Rio de Janeiro, de 10 de abril
de 1820.
52
CERVO, cap. I, p. 22.
53
FAUSTO, 1995, p. 147.
54
VIOTTI da Costa, p. 80.
106
O comércio austro-brasileiro poderia ter sido facilitado, caso uma pesquisa sobre
os produtos mais usados no Brasil tivesse sido enviada à Áustria, para que pudessem
adaptar os produtos austríacos ao mercado de necessidades brasileiras. “Em 1857 o
Conselho Imperial de Comércio enviou uma coleção de artigos de exportação. Esta
expedição confirmou que não se haviam escolhido modelos para corresponder às
necessidades do comprador brasileiro.”55 As roupas enviadas não eram próprias para
o clima tropical brasileiro, e grande número de outros fatores de que dependia o sucesso
do comércio não tinha sido levado em conta. Os comerciantes austríacos não possuíam
um estudo sério sobre as condições e necessidades do mercado brasileiro.
Segundo os representantes austríacos:
O ano de 1877 é talvez o ano decisivo nas relações comerciais entre os dois países uma
vez que conseguiram proporcionar alguma relação, não muito significativas, mas faz
parte da histórias das relações entre os dois países; depois desse ano, os esforços da
Áustria concentravam-se crescentemente em outros estados da América do Sul, enquanto
decresciam no Brasil. Não ocorreu nenhum renascimento. As missões futuras, ainda que
ressaltassem as antigas dificuldades e sugerissem modificações, aceitaram a ruptura entre
a Áustria e o Brasil como fato consumado. Os relatórios comerciais observaram que o
único produto austríaco ainda encontrado no mercado da Bahia era o trigo de Trieste .56
As relações entre as duas nações não deram certo na maior parte, porque o mercado
da Áustria, por natureza fechado, não conseguia realizar bons negócios em outros
continentes, principalmente com um oceano separando as duas nações. As mercadorias
austríacas nunca foram capazes de competir com as inglesas e francesas no Brasil.
9 CONCLUSÃO
Embora a Áustria e o Brasil tenham tentado estabelecer firmes laços políticos, o
que restou foram somente heranças culturais e fracos laços familiares.
Talvez as relações não tenham se intensificado não somente pela distância
geográfica existente entre os dois países, mas também pelas divergências entre os
representantes austríacos, fortemente preparados para influenciar pertinentemente o
Brasil e o governo brasileiro, que não possuía uma tradição diplomática tão hábil como
a austríaca, a ponto de influenciar a Áustria com idéias brasileiras.
A base mais significativa da aliança austro-brasileira foi, sem dúvida, a
solidariedade dinástica resultante do casamento da Imperatriz D. Leopoldina com o
Príncipe D. Pedro I.
No que trata das relações culturais fica claro, até hoje, que ambos se influenciaram.
A presença de D. Leopoldina apresentou ao povo brasileiro um pouco de uma das
culturas mais refinadas da Europa, a austríaca. A apresentação da cultura brasileira na
Áustria ficou por conta dos exploradores austríacos que levaram não somente um
55
RAMIREZ, 1968, p. 233.
56
RAMIREZ, 1968, p. 236
107
pouco da fauna e da flora brasileira, como também suas lendas e tradições.
A respeito da imigração austríaca para o Brasil, pode-se dizer que, praticamente,
ela quase inexiste, em razão das dificuldades proporcionadas pelas leis austríacas e pela
má condição de vida que o Brasil proporcionava aos imigrantes.
Já as relações comerciais entre os dois países não foram bem-sucedidas, porque
o comércio com o Brasil estava sob completa e total submissão à Inglaterra.
Podemos concluir, por meio do estudo feito para realização deste trabalho que a
relação Brasil e Áustria não foi o que de melhor se esperava no que diz respeito a
política e comércio, mas obteve completo sucesso nas relações diplomáticas e culturais,
que permanecem até hoje.
BIBLIOGRAFIA
CALDEIRA, Jorge. História do Brasil. São Paulo : Companhia das Letras, 1997.
CERVO, Amado Luiz; BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. São
Paulo : Ática.
COSTA, Emília Viotti da. In: MOTTA, Carlos Guilherme (org.). Brasil em perspectiva.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo : EDUSP, 1995.
KAISER, Glória. Dona Leopoldina: uma Habsburg no trono brasileiro. Rio de Janeiro :
Nova Fronteira, 1997.
MARTINS, Wilson. Um Brasil diferente. São Paulo : Anhembi, 1955.
RAMIREZ, Ezekiel Stanley. As relações entre a Áustria e o Brasil: 1815-1889. São
Paulo : Nacional, 1968.
ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre : Globo, 1969.
RODRIGUES, José Honório. Uma história diplomática do Brasil, 1531-1945. Rio de
Janeiro : Civilização Brasileira, 1995.
SANTOS, Carlos Roberto A. dos. História da alimentação no Paraná. Curitiba : Fundação
Cultural de Curitiba, 1995.
VIANA, Hélio. História diplomática do Brasil. São Paulo : Melhoramentos, 1969.
108
RELAÇÕES ENTRE BRASIL E FRANÇA,
NO PERÍODO DE 1822 A 1889
Carolina Camargo de Lacerda
Ricardo Salini Abrahão
Thais Aranão Bastos
Acadêmicos de Relações Internacionais,
Faculdades Integradas Curitiba
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Visão inicial. 3 Primeiro Reinado. 4 Período Regencial.
5 Segundo Reinado. 6 História das relações comerciais entre Brasil e França.
7 Personalidades francesas. 8 Conflitos territoriais. 9 Entrelaçamento das culturas.
10 Conclusão. Bibliografia.
1 INTRODUÇÃO
As idéias da Revolução Francesa causaram impactos profundos no sistema até
então vigente. A burguesia foi elevada ao poder e o absolutismo foi abolido assim
como o que restava das instituições medievais.
Neste trabalho será mostrado um pouco da extensão das relações entre Brasil e
França e da presença francesa na política, nas instituições culturais e até mesmo na
história brasileira.
É de vital importância estudarmos o início dessas relações diplomáticas e
culturais para entendermos a intensidade da influência francesa no Brasil, sendo a
história o principal instrumento utilizado para este estudo.
Apesar de ser um assunto de grande relevância, constata-se significativa escassez
de livros que tratem do assunto. Como fonte principal para a elaboração deste trabalho,
foi ultilizado o livro Brasil-França ao longo de 5 séculos, de Tavares. Em seu livro, o
autor nos mostra a história comum desses dois países durante um longo período de
tempo, salientando a clara influência da França nos assuntos nacionais brasileiros.
Trataremos do período que vai da Independência do Brasil até a Proclamação da República.
2 VISÃO INICIAL
2.1 Vínculos que ligam a história da França e do Brasil desde o período colonial
O Brasil acabara de ser descoberto, e a França vivia numa época brilhante de
renovação literária, artística e científica. Era o Renascimento.
109
Os portugueses colonizaram o Brasil, e com eles vieram os primeiros franceses.1
Os primeiros contatos entre franceses e indígenas ocorreram em função do
mútuo interesse pelo comércio do tão cobiçado pau-brasil.2 Esse comércio aconteceu
de maneira informal, e o porto de Honfleur3, na França, foi o responsável pelas primeiras
entradas de pau-brasil em território francês.
Os franceses se voltaram para o Brasil logo após a descoberta da nova
terra. As relações entre os dois povos teve início a partir desse momento e perdura
até a atualidade.
2.2 Exploração do pau-brasil
O pau-brasil foi a riqueza brasileira que mais trouxe rivalidade e atração entre os
povos conquistadores. Era um produto que pintava as vestes da pompa eclesiástica,
dava qualidade a móveis de alta categoria, sustentava orçamentos públicos e dava o
seu próprio nome à terra, além de, em pleno período de expansão da navegação, construir
navios que se tornavam mais duros e resistentes quando colocados na água. Os pausde-tinta, como eram denominados, custavam caro na França.
O rei de Portugal não admitia a navegação de outras bandeiras em mares que lhe
pertenciam e da mesma forma não permitia a exploração de riquezas de um país que estava
sob seu domínio. No entanto, isso jamais se tornou um empecilho para a entrada dos
franceses no Brasil, pois eles não respeitavam o monopólio português sobre as colônias.
Os franceses estavam preocupados em comercializar o pau-brasil e, ao contrário
dos portugueses que utilizavam os índios como mão de obra na exploração do território,
eles preferiam utilizá-los como aliados, procurando estabelecer outro tipo de relação,
principalmente comercial feita por troca de interesses.
A primeira grande expedição ao Brasil com o objetivo de explorar o pau-brasil foi a de
Binot Paulmier de Gonneville, quando os franceses tentaram fundar aqui uma colônia.4
3 PRIMEIRO REINADO
3.1 Um Brasil independente
Desde o descobrimento do Brasil até a conquista de tornar-se uma nação
independente, os franceses é que estavam voltados para o Brasil. Eles exportavam sua
cultura, seus artistas, cientistas, homens de imprensa, seus modelos de vida social, enfim
muitas informações que tiveram uma grande influência sobre a cultura brasileira.
¹ Denunciações de Pernambuco, 1929, p. 315.
² Gilberto Freyre fala a respeito deste contrabando em seu livro Um engenheiro francês no
Brasil (p. 21). Lyra A de Tavares comenta sobre esta terra sem dono, em seu livro Brasil-França ao
longo de 5 séculos.
³ TAVARES, 1979, p. 28.
4
Conforme relata A. de Lyra Tavares em seu livro Brasil-França ao longo de 5 séculos, por
meio de Binot Paulmier de Gonneville, ocorreu a primeira grande expedição francesa no Brasil, com
o objetivo de fundar aqui uma colônia que se manteve por dez anos, de 1555 até 1565, quando foi
abatida pelos portugueses.
110
Podemos tomar como exemplo dessa influência, o conjunto de idéias de
liberdade, igualdade e fraternidade que corriam pela França e iriam mais tarde ajudar
no processo de Independência do Brasil que se deu no intervalo entre a Revolução
Francesa e a era napoleônica.
As idéias liberais, que levaram o povo francês à Revolução de 1789,
repercutiram enormemente no Brasil, como, por exemplo, na Revolução Praieira de
Pernambuco e, antes disso, na frustrada Inconfidência Mineira e em outros movimentos
de intensidade menor.
A Independência viria com o Império e foi resultado da transferência da Corte
portuguesa para o Brasil, por causa da invasão napoleônica em Portugal e da crise da
sucessão portuguesa, que colocou a autoridade real de D. João VI em perigo. O território
de Portugal sofreria a invasão de três tropas francesas, a de Junot, que entrou em
Lisboa sem deparar-se com resistência, uma vez que o governo português já havia
embarcado para o Rio de Janeiro; a de Soult, que penetraria pelo norte no território
lusitano; a de Massena, na qual a marcha, composta de oitenta mil homens, foi detida
pelas fortificações de Torres Vedra.
Depois da Independência, o Brasil se voltou para a França. Enquanto os ingleses
dominavam o comércio de produtos, como sapatos, tecidos e ferramentas, os franceses nos
vendiam artigos requintados, como chapéus, jóias, leques, perfumes, livros da moda... As
relações que se identificaram durante séculos de história comum, a partir desse momento
tomam um novo rumo, e passam para o plano de relações entre Estados soberanos.
3.2 D. Pedro I
D. Pedro I reinava no Brasil na época em que explodiu na França a Revolução de
Julho de 1830, fazendo com que Luís Filipe fosse coroado rei da França com o nome de
Luís Felipe I. Este escreveu ao monarca brasileiro quase imediatamente após a sua coroação
com o intuito de estabelecer relações diplomáticas amigáveis entre os dois países.
Conforme relata TAVARES5, o Rei Luís Filipe, depois de ascender ao trono da
França não tardou em manifestar, em carta dirigida a D. Pedro I, a sua amizade e seu
interesse de estreitar as relações do governo da França com o governo do Brasil.
Meu irmão e primo (era o tratamento da época): Certos acontecimentos, como sabeis,
tinham perturbado a paz interna da França e pareciam ameaçá-la de maiores calamidades.
Convocado pelo voto das duas Câmaras, com o assentimento geral da Nação, eu aceitei o
trono, com o título de rei dos franceses. Meus sentimentos pessoais são bem conhecidos
de Vossa Majestade para que me seja necessário recapitular todas as minhas provações
nessa conjuntura. Sofri com as desgraças dos meus antecessores de família: minha única
ambição teria sido a de enviá-las e ficar onde a Providência me havia colocado. Mas as
circunstâncias eram imperativas. Tive que enfrentá-las: a menor hesitação da minha parte
poderia mergulhar o reino em desordens de termo imprevisível, capazes de comprometer
essa paz indispensável à felicidade de todos os Estados. Em circunstâncias tão graves,
minha primeira necessidade é assegurar a Vossa Majestade a firme resolução em que me
encontro de nada omitir para fortalecer e estreitar os laços de amizade e de boa harmonia
que existem entre os dois países.
5
Op. cit., p.190.
111
Tenho razões para esperar que Vossa Majestade comungará com minhas disposições e me
ajudará a atingir esse fim, tão importante para a tranqüilidade do mundo.
Aproveito com solitude esta oportunidade para exprimir a Vossa Majestade a segurança
da alta estima e inalterável amizade com que sou, o bom irmão e primo,
Luís Filipe
Paris, 22 de agosto de 1830
Menos de um ano depois, no dia 7 de abril de 1831, D. Pedro I abdicou6, tornandose, então, duque de Bragança. D. Pedro I, mesmo depois de abdicar, era uma figura
importante no cenário internacional, e não convinha à França que ele fosse à Inglaterra.
Assim, Sebastiani, ministro francês dos Negócios Exteriores, solicitou a Talleyrand
todo o seu empenho para que D. Pedro I fosse a Paris. No mesmo mês de abril, ele
embarcou na fragata Volage para Cherburgo, aonde chegou, em 12 de junho de 1831,
seguindo logo após para Paris com o intuito de encontrar-se com a filha bastarda que
teve com a famosa Marquesa de Santos, legitimada sob o nome de Isabel Maria de
Alcântara Brasileira, a duquesa de Goiás, e preparar a luta contra D. Miguel, em Portugal.
Já em Paris, em setembro de 1831, Luís Filipe, para receber D. Pedro I como hóspede
especial, mandou preparar o Castelo de Meudon. Nessa época, um dos assuntos mais em
foco na França era o problema da sucessão portuguesa, o que justificava a atenção
provocada pela presença do ex-imperador do Brasil, filho de D. João VI e herdeiro direto
da Coroa de Portugal. Além de estar interessado na sua ação em Portugal, Luís Filipe era
o sogro da filha do então duque de Bragança, Francisca, agora princesa de Joinville.
D. Pedro organizava em Paris a intervenção militar em Portugal e tentava reunir
forças para enfrentar a luta contra seu irmão D. Miguel. Aproveitou sua estada em
Meudon para receber visitas importantes, passear em Paris e freqüentar teatros sempre
na presença de Dona Amélia e de sua filha bastarda, a duquesa de Goiás, o que despertava
grande curiosidade por parte dos franceses.
Enfim as forças de D. Miguel foram sitiadas na região do Porto e os esforços de
D. Pedro foram coroados com sucesso, pois sua filha ascendeu ao trono português,
como D. Maria II.
3.3 Brasil e França, países de exílio um para o outro
Segundo Tavares, os cinco séculos das relações históricas entre Brasil e França
nos mostram que se tornou um costume o Brasil servir de refúgio ou de exílio para a
França e vice-versa. Tais situações facultaram um maior entrelaçamento socio-cultural
entre esses dois povos.
Como prova desse tipo de relação, temos a expedição de Villegaignon, patrocinada
por Coligny, cujo objetivo era instalar no Novo Mundo um refúgio para os adeptos da
Reforma Religiosa de Calvino7. Com esse episódio o Brasil se tornou terra de exílio, que
além de acolhedora, era favorável à divulgação dos credos e das idéias defendidas.
No período em que Napoleão foi derrotado na Batalha de Waterloo, pelos ingleses,
e que foi exilado em Santa Helena, o Brasil acolheu em grande número, tanto franceses
6
Abdicação de D. Pedro I se deu após a revolta no Rio de Janeiro, provocada pela nomeação
do Ministério dos Marqueses, impopular e acusado de tendências absolutistas e favorável a Portugal.
7
A partir de 1555 a presença dos franceses tornou-se efetiva e marcante, uma mostra disso
foi a expedição colonizadora em Guanabara, comandada pelo vice-almirante, da Bretanha, Nicolas
112
adversários como amigos de Napoleão. Estes organizaram um plano para libertá-lo, cuja
expedição tinha bases nos Estados Unidos e no Nordeste brasileiro.
Outro caso foi o exílio de Dirk van Hogendorp, que nasceu na Holanda e havia
sido o mais notável e direto servidor de Napoleão, assim como outros franceses que
vieram para o Brasil a fim de viver na quietude modesta e nobre da chácara do sopé do
Corcovado, no Rio de Janeiro.
Como a França servindo de exílio para o Brasil, temos que citar o exemplo dos
irmãos Andradas na cidade de Bordeaux.8
3.4 José Bonifácio
O desejo pela liberdade fez com que o Brasil fosse conduzido à realização de sua
independência. Esse desejo veio de 3 pólos: o primeiro foi Paris, que era o centro difusor
de idéias liberais e ponto de negociação com os poderes monárquicos da Santa Aliança,
além de ser o centro de cultura, de manifestações artísticas, de costumes e da moda; o
segundo era Lisboa, a capital da Metrópole portuguesa; o terceiro ficava no Rio de
Janeiro que, além de ser a capital do País, tinha grandes influências francesas desde que
a corte de D. João VI se instalou ali em 1808. Por essa razão, era principalmente nessa
cidade que se encontrava o povo brasileiro desejoso por liberdade.
O processo de independência do Brasil teve como bases os valores da cultura
francesa, trazidas por D. João VI em 1808. O paulista José Bonifácio de Andrada e Silva,
o Patriarca da Independência brasileira, foi politicamente influenciado pelos franceses.
José Bonifácio embora não tivesse nenhum compromisso com a Revolução Francesa,
teve contato direto com ela, podendo até acompanhar as manifestações do povo, o que
foi de grande importância na sua formação de estadista. Em 1790, ele foi aluno e admirador
de dois cientistas franceses amigos de Robespierre: Fourcroy e Chaptal.
José Bonifácio era um cientista brilhante, diplomado em Direito pela Universidade
de Coimbra e voltado para os estudos das ciências exatas. Sua atuação foi decisiva na
formação do Império do Brasil, pois nas lutas pela preparação da Independência
assegurou a unidade de espírito e do território brasileiro. Por ser uma obra difícil e
Durand de Villegaignon. Queriam estabelecer uma França Antártica para servir de centro e de refúgio
aos reformadores de Calvino, vítimas de perseguições e da intolerância dos católicos.
8
O Brasil ainda era governado pelo príncipe regente, D. Pedro I, em 3 de junho de 1822,
quando foi convocada uma assembléia que tinha a finalidade de elaborar a primeira Constituição do
Brasil. Mas em razão da dificuldade de comunicação, o trabalho do projeto constitucional foi iniciado
somente em 3 de maio de 1823 pelos representantes do Partido Brasileiro, que era formado por ricos
proprietários de terra, cujo principal líder era Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, irmão de José
Bonifácio de Andrada e Silva e Martim Afonso Andrada. D. Pedro I resistiu em aceitar o conteúdo do
projeto constitucional, uma vez que seus poderes seriam diminuídos. Então, D. Pedro simpatizou com
o Partido Português que tinha, assim como ele, ideais absolutistas. Diante dessa resistência por parte
do príncipe, o Partido Brasileiro começou a fazer oposição pública por meio de jornais, como, por
exemplo, A Sentinela da Liberdade, em que os irmãos Andrada controlavam uma campanha de
críticas a D. Pedro. Este, com a ajuda das tropas imperiais, dissolveu a Assembléia Constituinte, no dia
12 de novembro de 1823. Inúmeros representantes do Partido Brasileiro ficaram descontentes e
reagiram ao decreto de D. Pedro, mas foram presos. Dentre eles, encontravam-se os irmãos Andrada,
que foram expulsos do Brasil e se exilaram na França.
113
notável, ele achava que a Independência deveria vir com a formação de um Império e
não com uma República.
José Bonifácio foi um homem de grande feitos, pois além de combater os franceses
de Napoleão, no Batalhão Acadêmico de Coimbra, foi assessor e braço direito do
Príncipe D. Pedro .
Mais tarde, ele voltaria à França, onde residiria em uma casa localizada na esquina
das ruas Palais e Galien.
3.5 Louis Alexis Boulanger
O francês Louis Alexis Boulanger, nascido em La Fire, no Aisne, no dia 2 de abril
de 1798, foi responsável pela escrita dos brasões do Império Brasileiro e pelo desenho
de armas, criando dessa maneira uma espécie de nobreza no Brasil que tinha como
distintivo insígnias heráldicas.
Boulanger morava no Rio de Janeiro, desde sua vinda de Paris no dia 30 de
outubro de 1826, no Hotel de France, na Rua do Ouvidor, que mais tarde se tornaria uma
rua praticamente francesa.
Apesar de ter um grande espírito francês, o que podemos notar pela sua
biblioteca, onde se encontram livros de Voltaire, Diderot, D’Alembert, Montaigne, La
Bruiyère, ele se dedicou ao estudo do Brasil por considerá-lo como segunda pátria,
chegando até mesmo a naturalizar-se como cidadão brasileiro
Mais tarde, vai tornar-se tutor de D. Pedro II, dada a sua profissão de litógrafo,
retratista e por ser extremamente dedicado aos assuntos artísticos. O desenhista francês
morreu no Brasil aos 73 anos.
3.6 Saída de brasileiros para a França
A cultura francesa estava muito presente no Brasil, e um reflexo disso foi o
interesse espontâneo e até exagerado dos brasileiros em estudar na França.
Com a liberdade política do Brasil ocorreu um certo desenvolvimento nacional.
Portanto, era necessária a formação de elites que preparassem as grandes tarefas
reclamadas por esse desenvolvimento.
A França foi a fonte principal que proporcionou instrução para professores,
selecionou brasileiros para cumprir atividades de que a nação necessitava e deparou-se
com o movimento espontâneo dos estudantes brasileiros que procuravam freqüentar
as suas escolas.
Porém o movimento de estudantes em direção à França foi excessivo e descontrolado,
uma vez que sem capacidade financeira os mesmos iam para a França e encontravam-se sem
recursos. Isso motivou o ofício de 12 de novembro de 1824 enviado pelo representante do
Brasil na França, Borges de Barros, ao ministro do Exterior do Brasil.
A afluência de brasileiros para este país aumenta, dia a dia, e esse fato, que alguns julgam
do seu dever aplaudir já se transforma numa espécie de mania que exige atenção dos
poderes públicos. Sem planos para o futuro nem outra ambição que a de cair no ridículo
e no vício, muitos viajam para a França e aqui cedo se encontram sem recursos.
A miséria constrange ao vício e mesmo ao crime o que não tem nobreza de alma – e essa
nobreza é pouco difundida. Muitos me têm pedido ajuda. Eu não faço mais do que me é
114
possível e eles continuam a dilapidar os meus bens. É indispensável, contudo, socorrê-los
para que eles não cubram de vergonha o nome de brasileiros.
Torna-se por isso importante não permitir a vinda para a França senão às pessoas que
disponham de meios para viver aqui.
Rogo, pois, a Vossa Excelência propor, com urgência, providências a respeito, como eu já
tenho solicitado e volto a reeiterar, porque o mal aumenta.
A formação dos quadros dos serviços públicos era feita, em sua maioria, nas
escolas francesas, incluindo os que iriam servir à Marinha e ao Exército brasileiro.
Quanto à Marinha o ofício de 11 de maio de 1824 foi muito importante na história
das relações franco-brasileiras, pois, uma vez que o governo brasileiro sentia falta de
brasileiros capacitados para equipar sua frota de guerra, foi obrigado a apoiar a vinda
de marinheiros franceses para cá .9
Vossa Excelência tem todos os poderes para dirigir-se ao ministro Chateaubriand e alistar
tantos marinheiros quanto possível, como trata-se de artistas, agricultores..., escolhendo
de preferência, os habitantes dos portos e costas marítimas. Esses homens serão mais
dados à navegação e se adaptarão melhor ao nosso país cujas costas são mais povoadas.
Os contratos serão nominais e o transporte ficará a cargo do Governo brasileiro.
Luiz José de Carvalho e Mello, ministro dos negócios exteriores do Brasil
4 PERÍODO REGENCIAL
A notícia da Revolução de 1830 na França e a queda de Carlos X, marcando o fim
das monarquias absolutistas francesas, se espalhou rapidamente no Rio de Janeiro e
por todas as províncias, causando grande repercussão no espírito nacional. Rocha
Pombo afirma em seu livro História do Brasil, que não faltou quem fizesse logo uma
curiosa analogia entre o que se passava na França e as ocorrências que se davam no
Brasil desde 1822.10
Em São Paulo, estudantes de Direito saíram às ruas para comemorar o fato e
foram presos. Líbero Badaró, redator do periódico Observador Constitucional, defendeu
os moços e foi assassinado. A morte de Badaró, considerado um mártir da liberdade,
causou uma onda de agitações políticas e movimentos liberais que atingiram enormemente
a autoridade do Imperador D. Pedro I.
No dia sete de abril de 1831, D. Pedro I, tendo perdido o apoio popular e com
seus olhos voltados para o problema da sucessão portuguesa, abdicou em favor de seu
filho D. Pedro II, que nessa época ainda não havia completado seis anos. O espaço de
tempo que vai da abdicação de D. Pedro I ao golpe da maioridade e conseqüentemente
à ascensão de D. Pedro II ao poder é denominado Período Regencial.
Nessa época surgiram idéias revolucionárias em várias regiões do Brasil,
influenciadas principalmente pelos ideais franceses. Pela grande distância existente
entre o Nordeste e a capital, o Rio de Janeiro, e também pela autonomia conservada por
9
10
Op. cit., p 172.
POMBO, 1953, 292.
115
seus líderes políticos que não sofriam influência do poder monárquico central, o Nordeste
era considerado quase como um outro “Brasil”.
Assim, ressurgiu em Pernambuco, o movimento liberal com bases nas tradições
francesas, sempre presentes no espírito de nosso povo. O líder da onda liberalista
pernambucana era Antônio Francisco de Paula Holanda Cavalcanti. Ele defendia as
suas idéias com muito ardor e dinamismo e mantinha relações pessoais com o
representante da França no Brasil, Edouard Pontois. É de espantar a atitude tomada por
Holanda Cavalcanti, um líder político com poder capaz de imobilizar forças políticas
importantes nacionais e até mesmo internacionais. Negociou com o representante da
França um projeto de secessão do Brasil pelo qual o País seria dividido em dois reinos,
o do Norte, a partir da Bahia, e o do Sul.
O escritor Alberto RANGEL, em seu livro Textos e pretextos11, escreve: “Em
despacho número 75, de 28 de setembro de 1830, o alto representante da França no
Brasil (Edouard Pontois) enviou ao Conde Sebastiani, Ministro de Estrangeiros sob
Luís Filipe, com abundantes considerações e esclarecimentos, as grandes linhas do
cometimento no qual via as mais altas vantagens para que merecesse toda a atenção e
apoio do seu governo.” O conde recebeu o projeto de secessão do Brasil e o enviou a
Luís Filipe. O rei francês, por vários motivos, como o parentesco existente entre ele e o
imperador do Brasil, e para não descumprir o Tratado de Utrecht no que dizia respeito às
fronteiras do Brasil com a França na região Amazônica, não aceitou o projeto.
O governo da França acompanhava de perto os acontecimentos políticos
brasileiros da época, prova disso é que aqui dispunha de uma frota naval ancorada no
porto do Rio de Janeiro, pronta para apoiar o nosso governo quando este solicitasse e,
é claro, quando a medida fosse de acordo com os interesses da política exterior francesa.
Nesse período de regência o que se mostra evidente é a ameaça que pesava
sobre a unidade nacional ainda não solidificada no momento em que o Brasil começava
a ensaiar seus primeiros passos.
5 SEGUNDO REINADO
5.1 Casamento entre Orléans e Braganças
A união entre as famílias reais de Orléans e Braganças se deu a partir do casamento
entre François-Ferdinand-Philipe D’Orléans, o príncipe de Joinville, filho do Rei Luís
Filipe D’Orléans, rei dos franceses e sucessor de Carlos X, com a princesa Francisca de
Bragança, filha de D. Pedro I.
François chegou ao Brasil em uma viagem da Marinha e se apaixonou pela princesa
brasileira logo no primeiro encontro. Conta a crônica da época que o casamento foi o final
feliz de um verdadeiro romance. Afirma-se que resultou muito mais das inclinações
recíprocas dos dois jovens do que das conveniências políticas, ou de negociações
diplomáticas entre as duas famílias, como era de costume entre famílias imperiais.
11
RANGEL, 1926.
116
Mais tarde, em 1869, Gastão D’Orléans, o Conde D’Eu, neto de Luís Filipe, casouse com Isabel de Bragança, filha e herdeira do Imperador D. Pedro II.
Em 9 de agosto de 64, a bordo do vapor Paraná, fizeram a travessia do Atlântico dois
rapazes do melhor sangue europeu. Eram primos, um Orléans, outro Coburgo. Chegaram ao
Brasil em 2 de setembro. O primeiro seria de Leopoldina, e o segundo de Isabel. Mas o
destino quis o contrário como nos revela uma página do diário de Isabel. Ela assim escreveu:
“Chegaram o conde d’Eu e o duque de Saxe. Meu pae desejou essa viagem com o fito de nos
casar. Pensava-se no conde d’Eu para a minha irmã e no duque de Saxe para mim. Deus e os
nossos corações decidiram diferentemente.12 O Conde D’Eu preferiu Isabel, e D. Pedro II
aceitou para príncipe consorte o sobrinho de sua irmã Francisca.
Em 11 de outubro lavrou-se a escritura pré-nupcial, a Corte inteira participou das
cerimônias. A lua-de-mel se deu em Petrópolis e teve como continuação a Europa, onde
Isabel conheceu o nobre sogro Nemours, a sua tia Francisca de Bragança casada com
o príncipe de Joinville, os condes de Paris e outros nobres franceses.
No caso de um 3o reinado com a abdicação de D. Pedro II, o Conde D’Eu, por ser
casado com a herdeira do trono brasileiro, servia de alvo aos críticos nacionalistas e
republicanos da época. Heitor LYRA, no seu livro A queda do império diz que
Se a opinião pública acabasse, apesar de tudo, se conformando em aceitar a Princesa
Imperial como Imperatriz, o que dificilmente toleraria seria a presença do marido ao lado
dela. Não obstante as provas por ele dadas de interesse e mesmo de afeição ao Brasil e aos
brasileiros, da perfeita correção que sempre mantivera ao lado da mulher, inclusive nas
vezes em que ela exercera a Regência do Império, e do seu comportamento exemplar na
Guerra do Paraguai – bem poucos estavam dispostos à reconhecer suas qualidades.13
No quadro brasileiro da época, dominado pelas paixões políticas e pelo
movimento republicano, os líderes e os jornais que combatiam a Coroa, encheram-no de
apelidos – o Francês, o Marroquino, o Exportador de cortiços –, tornando assim cada
vez mais difícil para a opinião pública identificá-lo na sua verdadeira figura, fiel a causa
do Brasil, pelo qual lutou com bravura e jogou a vida na Guerra do Paraguai.
5.2 Perfil de D. Pedro II
O novo imperador do Brasil foi educado segundo os modelos franceses, como
era próprio da época. Seu mestre principal foi o francês Alexius Boulanger que se
encarregava da caligrafia, das letras grossas e da Geografia e História. Os outros eram
o Reverendo Boiret, emigrado francês professor de leitura ou de primeiras letras, sendo
dessa forma o imperador alfabetizado em francês; o pintor Félix Emilio Taunay para
ensinar-lhe o desenho e a pintura; o tutor José Bonifácio.
Foi principalmente para a França que D. Pedro se voltou, e daí vieram as
preferências não apenas pelos livros, como também pelas relações pessoais com os
grandes nomes da cultura francesa. Como exemplo das ilustres amizades que o imperador
cultivava na França, temos Victor Hugo, o autor mais lido e venerado do Brasil.
12
H. LYRA, 1964, 400.
13
H. LYRA, 1964
117
Graças à sua cultura, D. Pedro conquistou a amizade e a admiração das figuras
mais representativas do liberalismo francês. No Brasil, as elites, os homens de
pensamento e os estudantes se formavam principalmente em francês, a segunda língua
mais falada no Brasil, perdendo apenas para o português. As maiores e melhores livrarias
do Brasil eram francesas, como, por exemplo, a Garrald, em São Paulo, a Garnier e a
Briguiet, no Rio de Janeiro.
D. Pedro criou estabelecimentos de ensino mantidos pelo Estado, já que os
poucos existentes na época, com exceção das ordens religiosas, eram de caráter privado,
e se empenhou em contratar professores estrangeiros para lecionar no Brasil. Em 1874,
o imperador convidou o francês Henri Claude Gorceix com grande experiência na Escola
Normal Superior de Paris e na Escola Francesa de Atenas para montar no Brasil uma
Escola de Minas. Foi ele o fundador da Escola de Minas de Ouro Preto.
5.3 D. Pedro II na França (1871-1872)
Em 26 de junho de 1871 o imperador e sua comitiva chegaram à França fortemente
abatida pela ocupação alemã após a guerra franco-prussiana, e pelas lutas da Comuna.
D. Pedro II era a primeira personalidade estrangeira a visitar a França após a queda do
Império. Não era um momento apropriado para uma visita ao país, por isso D. Pedro II
apenas passou rapidamente pelo território francês, deixando para mais tarde a visita
longa a Paris, às suas instituições culturais e aos seus sábios.
Após visitar a Inglaterra, a Bélgica, a Alemanha, a Áustria, o Egito e a Itália,
D. Pedro II retornou à França, por Estrasburgo, chegando a Paris na noite de 15 de
dezembro. Uma multidão o esperava, além da representação oficial do governo francês, da
representação diplomática brasileira, e de sua irmã Francisca e do príncipe de Joinville .
Hospedado no Grand Hôtel, no Boulevard des Capucins, D. Pedro II ocupou o
Pavillion de L’Ópera, com saída particular isolada dos outros hóspedes, mobiliado com
muito luxo e cuidado pelos antigos guardas do Palácio das Tulherias. Apesar de esclarecer
a todos que viajava em caráter particular, o imperador não teve como impedir que o
governo francês desse a maior importância à sua visita. O Jornal do Comércio assim
publicara: “Onde Suas Majestades tiveram de passar, foram os mesmos augustos
senhores cumprimentados pelas principais autoridades com guardas de honra, e prontas
para lhe fazerem todos os obséquios. S. M. o Imperador, porém, os dispensou sempre,
agradecendo muito, mas declarando que viajava inteiramente como qualquer particular.”14
Já na França, quase todos os jornais parisienses escreviam sobre a personalidade
esclarecida e instruída do imperador, como, por exemplo, o Le Figaro: “Um dos monarcas
mais esclarecidos do mundo, modelo que devia servir aos monarcas constitucionais.”15
Os dias na capital francesa propiciaram ao imperador o tão benquisto convívio
com os “sábios”, com a nata da sociedade e do espírito francês. Assistiu à várias
reuniões, como as da Sociedade de Geografia de Paris, compareceu a bailes e era grande
freqüentador do teatro francês da Rua Richelieu, movimentando assim as indústrias, as
ciências e as artes parisienses.
Poucos dias após a sua chegada, D. Pedro II, com Gobineau e a condessa de Barral,
14
Jornal do Comércio, seção “Gazetilha”, “Viagem de SS. MM. Imperiais”, 3 de agosto de
15
Le Figaro, tomo 1871/72, Paris.
1871.
118
servindo de intermediários, recebeu a visita de Renan16, personalidade de suas maiores
admirações. Retribuiu-lhe a visita indo ao Instituto da França, com o objetivo de escutar
seu discurso como presidente da Académie des Inscriptions et Belles-Letteres. O imperador
assistiu a várias reuniões do Instituto e da Academia de Ciência, onde se encontrou com
Renan, conhecendo de perto Jules Simon17, Jean-Baptiste Dumas18, Eugéne de Lhuy, três
vezes ministro dos Negócios Estrangeiros da França. Dentre outros sucederam-se os
contatos com artistas como Rémusat19 e Morin20, e com cientistas do porte de Claude
Bernard22. Foi à Academia para assistir aos debates sobre a elaboração do Dictionnaire
Historique, e visitou várias outras instituições culturais francesas.
Na época, o chefe de governo da França era Adolphe Thiers. Este convidou o
imperador do Brasil a visitar Versalhes. D. Pedro II partiu da Estação do Oeste em 24 de
dezembro de 1871 acompanhado por uma pequena comitiva. Ao chegar ao Palácio do Petit
Trianon, conversou mais de uma hora com Thiers, mas este não se satisfez com um primeiro
contato convidando D. Pedro II, dois dias mais tarde, para jantar no Palácio de Versalhes.
Em retribuição às gentilezas de Thiers, o imperador convidou-o para um
jantar em Paris, o que se realizou na intimidade dos salões particulares do imperador
no Grand Hôtel.
Em 31 de dezembro de 1871 visitou pela última vez o Instituto da França e partiu
em direção a Toulon, Marselha, Nice e depois a Madri.
5.4 D. Pedro II na França (1877)
D. Pedro II apenas pôde retornar a Paris, sua cidade preferida, em 1887. Ao entrar
no Grand Hôtel, onde reservara todo o primeiro andar, deparou-se com a bandeira
brasileira na fachada sobre a Rua Auber. Sendo sua viagem de caráter particular, o
imperador pediu que a bandeira fosse retirada.
Todos os jornais de 19 de abril publicaram a notícia da chegada do imperador e sua
comitiva a Paris. Na manhã seguinte à sua chegada sua majestade já percorria os bulevares,
pois queria ver as mudanças pela qual a cidade havia passado de 1871 para cá.
16
Ernest Renan, escritor francês, historiador das religiões, líder da escola revisionista, o
filósofo sem crenças.
17
Importante político francês, professor de Filosofia da Sorbonne (1839), deputado republicano
de 1863 a 1870, ministro da instrução pública e presidente do Conselho.
18
Químico francês, primeiro a montar corretamente as equações que representam as reações
químicas, estabeleceu os fundamentos da atomística moderna, concebeu um método para medir a
densidade de vapor e aperfeiçoou a dosagem do carbono, do hidrogênio e do nitrogênio. Foi ministro
da Agricultura e do Comércio e presidente do Conselho Municipal de Paris.
19
Professor de Chinês no Collège de France. Deu novo impulso aos estudos da língua e
civilização chinesa na França.
20
Sociólogo francês, procurou compreender o “indivíduo sociológico”, utilizando os recursos
da sociologia empírica e da observação compreensiva da realidade cotidiana.
21
Fisiologista francês, descobriu a função glicogênica do fígado e criou uma teoria sobre a
origem da diabete, o que lhe deu grande notoriedade. Descobriu a existência dos nervos vasomotores
e dos nervos excitantes e inibidores do sistema nervoso simpático e teve considerável influência sobre
os positivistas da época.
119
A presença do imperador constituía se em um acontecimento não só para
Paris, mas também para ele próprio. Logo ao chegar, D. Pedro II visitou a Exposição
Universal, foi ainda ao Palácio D’Elyseé cumprimentar o presidente da república,
Mac-Mahon. No dia seguinte o Imperador recebeu Mac-Mahon e sua mulher em
visita oficial que durou uma hora.
Em Paris, D. Pedro II visitou a Exposição Internacional de Horticultura, onde
novamente se encontrou com Thiers, compareceu a recepções dadas em sua honra pelo
Conde de Paris e pelo presidente Mac-Mahon nos salões de Faubourg St.-Honoré e no
Palácio D’Elysée, respectivamente; compareceu também à recepções dadas pela Legação
do Brasil e pelo ministro da Instrução Pública, dentre várias outras.
O mundo sedutor que é Paris obrigava o soberano brasileiro a movimentar-se
sem parar. Todos os domingos ia à missa na Igreja da Madeleine ou na de Saint-Augustin;
percorreu a pé várias ruas de Notre-Dame; freqüentou incógnito algumas clínicas e
organizações hospitalares; assistiu durante 3 dias às aulas da Escola de Artes e Ofícios
e aos cursos do Instituto de Agronomia e da Escola normal; compareceu aos teatros
Châtelet, Vaudeville, Lírico, Francês, Odeon e outros.
O imperador visitou também a Societé d’Agriculture, da qual era associado, e a
Societé d’Hygiène, que escolhera o imperador como presidente de honra. D. Pedro II
era freqüentador assíduo da Biblioteca Sainte-Geneviève e da Sorbonne, onde assistiu
a várias conferências.
Em 24 de fevereiro de 1875, a Academia de Ciências o elegeu sócio correspondente
da Seção de Geografia.
Nessa temporada parisiense, D. Pedro II freqüentou com grande interesse os
famosos institutos científicos e literários e relacionou-se com grandes nomes da cultura
francesa, como Claude Bernard, Pasteur22, Renan, Victor Hugo e outros.
Sem dúvidas, o contato que despertou maior emoção por parte de D. Pedro II foi
o que ele manteve com Victor Hugo. Em 15 de maio de 1877, as vitrines de Paris exibiram
seu último livro: L’art d’êntre grand pére. Na manhã de 22 de maio, sem aviso prévio,
D. Pedro II bateu à porta de Victor Hugo às nove horas. Dois dias mais tarde, Hugo,
cumprindo o combinado, passou pelo Grand Hôtel para deixar ao imperador uma fotografia.
Os contatos entre D. Pedro II e Hugo não acabaram nessa primeira visita. Em 29 de maio,
ele foi novamente à casa do poeta. A última vez que o imperador viu Victor Hugo foi de
longe, fazendo parte do cortejo fúnebre do deputado republicano Edmond Adom.
Entre as grandes amizades que o imperador cultivou na França, a mais famosa foi
a de Victor Hugo. Era D. Pedro II, por si só, um elo natural entre o escritor e o Brasil.
Entre as preciosidades ligadas ao Imperador D. Pedro II, no Instituto Histórico
Brasileiro, há um exemplar de L’art d’êntre grand père, onde se lê na primeira folha em
branco: “a D. Pedro de Alcântara – Victor Hugo – Paris”, e pregado à página encontrase um envelope com excelente fotografia do poeta com seus netos. Esta traz a assinatura
de Victor Hugo.
O imperador não permaneceu somente em Paris, aproveitou domingos e feriados
22
Químico e biologista francês. Descobriu os organismos anaeróbicos, foi nomeado decano da
Faculdade de Ciências de Lille, foi administrador e diretor de estudos científicos da Escola Normal.
Descobriu a causa dos furúnculos e da osteomelite, micróbio denominado hoje estafilococo, conseguiu
obter uma vacina contra a raiva para ser aplicada no homem depois de mordido por animal raivoso,
o que o consagrou. Em 1888 foi designado chefe do Instituto Pasteur.
120
para visitar Versalhes, Chantilly, Compiègne, Tours, Blois, o Forte de Chântillon e Órleans.
No dia 14 de junho chegou ao fim a deliciosa temporada de primavera do imperador,
deixando Paris e seguindo em direção à Inglaterra.
5.5 D. Pedro II e seu tratamento na França
O problema de saúde do imperador brasileiro foi o motivo oficial da viagem à
Europa. Aos 30 minutos de 20 de julho de 1887, D. Pedro II chegou à estação parisiense
de Austerlitzer e foi recebido pelas autoridades francesas e por muitos brasileiros. Logo
após à sua chegada, foi residência do Barão de Nioac, pois os aposentos no Grand
Hôtel estavam reservados apenas a partir de 22 de julho.
D. Pedro II visitou o presidente da França, Grëvy, no Palácio d’Elysée. A entrevista
durou 45 minutos. Duas horas mais tarde, como era de protocolo, o presidente retribuiu
ao imperador a visita feita.
Mostrando-se cada vez mais interessado pelas ciências, D. Pedro visitou a
Faculdade de Medicina, foi ao Observatório de Paris, foi à exposição permanente da
Sociedade de Relevos Geográficos e a várias outras instituições francesas. Assim,
movimentando-se em um ritmo intenso, o imperador parecia esquecido do principal
motivo de sua viagem a Paris que era a consulta aos médicos.
A estação d’águas escolhida pelos médicos franceses foi a de Baden-Baden. Em
30 de julho a estação Lyon se encheu de amigos e representantes do governo, para
despedir-se do imperador que partia. O dia era especialmente festivo, pois era o dia do
41º aniversário da Princesa Isabel. Muitos jornais parisienses deram grande publicidade
a esse fato e ao bom estado de saúde do imperador.
Em Baden-Baden, D. Pedro II iniciou as aplicações de duchas, massagens,
ginásticas e passeios pequenos, além de uma dieta a ser rigorosamente seguida pelo
mperador. No dia 1º de outubro os soberanos retornaram a Paris via Bruxelas, chegando
à cidade em 9 de outubro.
Em Paris o imperador teve uma surpresa, pois seus habituais aposentos no
Grand Hôtel estavam ocupados, ficando assim com os quartos do fundo. Durante os 21
dias passados na cidade de Paris, o imperador movimentou-se sem parar, mas excluiu os
compromissos oficiais.
Em 12 de outubro, após uma visita a Pasteur, a imprensa parisiense divulgou a
notícia de que seria fundado no Rio de Janeiro, por iniciativa de D. Pedro II, o Instituto
Pasteur, sob a direção do Dr. Pereira dos Santos, um dos discípulos de Pasteur. Dez dias
depois o imperador foi recepcionado no Collège de France por Renan, com quem teve uma
longa conversa. Com o objetivo de homenagear D. Pedro, Renan convidou-o para o jantar
anual do Instituto, realizado na noite de 27 de outubro. No dia 28 de outubro, o imperador
embarcou para Cannes, a poucos quilômetros de Nice, de Monte Carlo, de Mônaco e de
Fréjus; ele podia ir e vir em constante atividade. Esta temporada em Cannes teve de
especial a presença de Antônia, neta de D. Miguel de Portugal e sobrinha de D. Pedro II.
O nome do imperador não parava de ser citado nos jornais franceses, que
publicavam quase diariamente notas sobre a sua saúde. Depois de 6 meses de repouso,
o imperador iniciou um cruzeiro pela Riviera italiana.
Em princípios de junho, com sua saúde muito debilitada, D. Pedro II deixa Milão
e parte em direção a Aix-les-Bains a meio caminho de Bordéus, onde o imperador devia
tomar o navio para o Brasil, chegando aqui no dia 22 de agosto de 1888.
121
5.6 Começa o exílio
Com a Proclamação da República, D. Pedro II e toda a sua família viajam para a
Europa. Às 5 horas do dia 18 de novembro, o Alagoas parte com a família real brasileira.
No dia 7 de dezembro, às 7 horas, o Alagoas ancorou. O desembarque em Lisboa se fez
com toda solenidade e honras. O imperador instalou-se no Hotel Bragança.
A situação financeira da família imperial não era boa, assim como a de muitos do
grupo mais chegado ao imperador, assim os amigos mais fiéis se dispersaram para viver
em locais mais apropriados.
O imperador fixou residência em Cannes, onde conseguiu se manter em plena atividade
intelectual. O inverno de 1889/90 foi um dos mais frios dos últimos 50 anos, principalmente
na França. Em Paris a temperatura chegou a 15º graus abaixo de zero e o Rio Sena chegou até
mesmo a congelar. D. Pedro II aguardava em Cannes para que o clima melhorasse. Em maio
teve autorização dos médicos para ir a Paris rever seus amigos. Lá conheceu Eça de Queirós
e pode constatar que ambos admiravam profundamente Claude Bernard, Renan, Vigny23,
Flaubert entre outros. Depois de uma curta temporada em Paris, o imperador regressou a
Cannes. Os médicos sugeriram um tratamento de duchas e ginásticas em Baden-Baden.
Antes de ir passar uma temporada na estação de águas, D. Pedro II decidiu passar alguns
dias em Voiron, no Castelo da família Barral. No dia 6 de agosto, o imperador e sua comitiva
deixaram Voiron com destino a uma longa temporada em Baden-Baden.
Em 1º de outubro D. Pedro II estava em Versalhes, chegando a Paris no dia 6 do
mesmo mês. Porém, aconselhado pelos médicos, o imperador teve que deixar novamente
Paris e regressar a Baden-Baden com a finalidade de continuar seu tratamento
hidroterápico, e depois, seguir para Cannes. Em 2 de dezembro, o imperador estava
instalado em Cannes, no Hotel Beau Sejour.
O ano de 1891, o último de sua vida, começou com um luto. Em 14 de janeiro
morre a tão estimada Condessa de Barral.
No dia 13 de maio, D. Pedro II foi a Versalhes para ficar com sua filha. Em 25 de
maio o imperador estava novamente em Paris, onde comparece à seção da Academia.
Depois fez uma pequena viagem ao sul da França, à Alemanha e à Bélgica. Por conselho
médico ele deixou Paris para fazer uma estação de águas em Vichy onde permaneceu
durante os meses de julho e agosto sob tratamento e controle médico.
Em 10 de outubro D. Pedro reentrou em Paris. Já andava com dificuldade. No
aniversário de 2 de dezembro, o imperador já se encontrava confinado às quatro
paredes de seu quarto no Hotel Bedford. Aos 30 minutos do dia 5 de dezembro de
1891, o mundo deixou de existir para o imperador do Brasil. Às 16 horas do mesmo dia,
o corpo foi exposto à visitação pública. Durante toda a noite até as 4 horas do dia
seguinte, o imperador foi velado. A notícia da morte de D. Pedro II percorreu
rapidamente toda Paris.
Depois do Príncipe de Gales, nenhuma outra autoridade estrangeira atingiu
maior popularidade em Paris do que D. Pedro II, não apenas nas elites como nas
baixas camadas sociais; entre estudantes e personalidades científicas, o imperador
23
Importante escritor francês, publicou primeiramente Poemas (1822), Poemas antigos e
modernos (1826), e um romance histórico, Cinco de março (1826), depois publicou Stello (1832),
e Servidão e grandezas militares (1835). Em 1845 foi eleito para a Academia Francesa.
122
gozava do mais alto prestígio.
O governo francês autorizou exéquias imperiais, não as de chefe de Estado mas
as de um rei exilado. A cerimônia foi marcada para dia 9 de dezembro, ao meio dia, na
Igreja de Madeleine. Às 13 horas o caixão saiu pela porta principal da igreja. No momento
em que apareceu na porta, as tropas estacionadas no Place de la Madeleine apresentaram
as armas. A formação militar se compunha de 80.000 homens postados ao longo do
trajeto a ser percorrido até o Boulevard de Saint-Germain. O corpo partiria às 20 horas
em direção a Lisboa. O trem chegou à Estação dos Soldados, em Lisboa, às 12 horas do
dia 12 de dezembro. O corpo do imperador foi exumado no Panteão dos Braganças,
ficando colocado entre sua mulher e sua madrasta.
Assim chegou ao fim a vida de nosso ilustre imperador, um grande, senão um
dos nossos maiores, elos do Brasil à França, aos franceses e a sua cultura.
6 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES COMERCIAIS ENTRE
BRASIL E FRANÇA
Foi Edouard Gallès um grande impulsor do comércio entre França e Brasil. Em
dezembro de 1828, apenas dois anos após a assinatura do primeiro tratado de comércio
entre os dois países, foi publicado o livro de sua autoria: Du Brésil, ou observations
générales sur le commerce et les douanes de ce pays, suivies d’um tarif de droits
d’entrée sur les marchandises françaises, et d’un tableau comparatif des monnaies,
poids et mesures. Tradução: Do Brasil, ou observações gerais sobre o comércio e as
alfândegas deste país, seguidos de uma tarifa de direitos de entrada sobre as mercadorias
francesas, e de uma tabela comparativa das moedas, pesos e medidas.
A época do ano que Gallès recomendava como a melhor para viagens da França
para o Brasil, tendo em vista as condições atmosféricas, era entre os meses de setembro
a março, e o mais favorável era o de dezembro.
O Tratado de Amizade, Comércio e Navegação assinado entre França e
Brasil, em 8 de janeiro de 182624, estipulava 15% de impostos sobre mercadorias
francesas que entrassem em nosso país. Para que os direitos de entrada sobre
essas mercadorias fossem apenas de 15% estava estabelecida, nos termos do
tratado comercial, a necessidade de que elas viessem acompanhadas de atestado
de origem, firmado pelos cônsules brasileiros dos portos de embarque. Os artigos
que não viessem acompanhados do atestado de origem francesa cairiam nos
direitos de 24%, cobrados de modo geral sobre as mercadorias das nações com as
quais o nosso país não tivesse tratados de direitos preferenciais. Pelo tratado de
1826 só eram beneficiados com os direitos de 15% os gêneros, mercadorias e
artigos, importados dos portos da França para o Brasil, tanto em navios franceses
quanto em brasileiros.
A lei de 24 de setembro de 1828 fixara em 15% a taxa de direitos de importação de
24
Esse tratado foi ratificado por carta de lei, de 6 de junho de 1826.
123
todas as mercadorias, sem distinção de procedência. Em 21 de novembro de 1843, foi
assinada, entre a França e o Brasil, uma convenção para o estabelecimento de uma linha
de “paquetes de vapor” destinada ao serviço regular de correspondência e ao transporte
de passageiros entre os dois países.
Segundo Edouard Gallès, o serviço de navegação da linha do Brasil poderia ser
executado em navios de cerca de 450 a 500 cavalos-de-força e de 1.500 a 1.600 toneladas,
os quais com a velocidade de 10 nós realizariam o trajeto de Bordéus a Pernambuco em
20 dias e duas horas; de Bordéus à Bahia em 22 dias e uma hora; e de Bordéus ao Rio de
Janeiro em 25 dias e 7 horas. O comércio com o Brasil fazia-se principalmente pelos
portos do Havre, de Marselha, e de Bordéus.
Em 17 de junho de 1857 foi promulgada a lei fundamental para o estabelecimento
da navegação transatlântica a vapor na França. Foi a linha de Bordéus, com destino ao
Brasil, a primeira a ser inaugurada. A concessão para a exploração dessa linha de transporte
coube à Compagnie des Services Maritimes des Messagéries Impériales. O primeiro navio
francês a entrar no Rio de Janeiro em 16 de junho de 1860 foi o vapor Guienne. A seguinte
notícia correu o Brasil
O vapor Guienne, da nova linha transatlântica francesa, entrou ao nosso porto ontem ao
amanhecer, inaugurando assim brilhantemente o serviço postal contratado pela Compagnie
des Messagieres Impériales com o governo francês, e assegurando-nos mais uma comunicação mensal, rápida e regular com o continente Europeu. O vapor Guienne que fez a
viagem de Bordéus ao Rio em vinte e dois dias e nove horas, compreendidas todas as
escalas, é um excelente navio da força de 570 cavalos, de primeira marcha, e de magníficas
acomodações. Saudando esta nova linha, confiando que a regularidade de seu serviço
corresponderá ao que dela se espera, e desejando-lhe a maior prosperidade, não nos
esqueceremos da linha inglesa de Southampton, que iniciou a navegação a vapor com o,
Brasil, que tão bons serviços nos tem prestado, e que se tornou digna de elogios por sua
nunca desmentida pontualidade.25
É de se notar que antes mesmo da inauguração da linha de navegação Bordéus –
Brasil, o governo francês pediu ao nosso que os navios da Compagnie des Services
Maritimes des Massagéries Impériales gozassem dos mesmos favores que gozavam os
da companhia britânica The Royal Mail Steam Packet Company. As negociações para
a identidade de tratamento entre as duas empresas, inclusive a isenção de impostos de
ancoragem, culminaram com a assinatura de uma convenção entre o Brasil e a França,
promulgada pelo decreto nº 2650, de 27 de setembro de 1860.
Segundo o livro de Gallès, a alfândega da capital do Império tinha portas
abertas das 8:30 da manhã às 2 da tarde. O expediente era prorrogado nos dias em
que o imperador e o ministro iam visitá-la, ou quando havia abundância de
mercadorias a despachar.
Os principais produtos exportados para a França eram o algodão, o açúcar, as
madeiras de tinta, o tabaco e o café. Em contrapartida, o Brasil importava da França os
vinhos, as sedas, os artigos de Paris, como tecidos, perfumarias, leques e conservas.
25
Jornal do Commércio, 17 de junho de 1860.
124
7 PERSONALIDADES FRANCESAS
7.1 Victor Hugo e o Brasil
Ninguém teve, no Brasil do período, projeção maior ou igual a Victor Hugo. Logo
começou o fascínio da sociedade brasileira pelas artes e idéias dessa grande personalidade.
Entre os escritores brasileiros, quase todos sofreram influência direta ou indireta
de Victor Hugo. Podemos citar, como exemplo, Gonçalves de Magalhães, Gonçalves
Dias, Teixeira de Mello, Álvarez de Azevedo, Machado de Assis, Maciel Monteiro e
outros que, mesmo sem fazerem poesia social ou revolucionária, recordam Victor Hugo.
Na poesia, no mundo do pensamento literário e também no aspecto político a
sua influência foi imensa. A sociedade brasileira tinha grande admiração pelo lutador
social e político que era Hugo.
Edmundo MUNIZ afirmava que Victor Hugo era um poeta eminentemente social:
“O fato é que, embora exilado e perseguido, ele foi, na Europa, o brado de revolta conta
o despotismo e uma das vozes mais autorizadas na luta pelos ideais democráticos”.26
Percebe-se, então, o porquê da admiração de Rui Barbosa por esse ilustre homem e de
suas idéias coincidirem em muitos aspectos. Ubaldo SOARES escreve
Ambos – Rui e Hugo – lutaram contra o estado de sítio e a favor da liberdade de imprensa;
ambos combateram em prol da paz e da igualdade das nações; ambos advogaram, com o
mais brilhante entusiasmo, a libertação da Polônia garroteada pelo infame jugo germanoaustro-moscovita; ambos se enfeitiçaram pelas autênticas conquistas democráticas, Victor
Hugo no terreno social, um pouco mais avançado do que Rui; ambos defenderam a causa
dos oprimidos onde quer que estivessem.27
Há quem diga que, em 1852, diante do golpe de estado de Luís Napoleão, ao procurar
um país de exílio, Hugo pensou em emigrar para o Brasil na companhia de seu amigo
Ribeyrolles. No entanto, Ribeyrolles muda-se para o Brasil, e Hugo vai para Guernesey.
No exílio, Ribeyrolles escreveu um livro sobre o Brasil rico em informações e em
ternura por este país e pelo seu povo: Le Brésil pittoresque. Inúmeras foram as viagens
feitas por ele para conhecer o País. São várias as provas de como ele pensava em seu
amigo Victor Hugo ao contemplar as belezas das paisagens, ao comentar os
acontecimentos sociais e também, ao sentir a cordialidade de seus contemporâneos.
Em 1860, Ribeyrolles morreu subitamente. A Câmara Municipal de Niterói mandou
construir um jazigo perpétuo de quatro metros de altura, em reconhecimento do que
fizera pelo seu país adotivo. A imprensa brasileira dirigiu-se a Victor Hugo, pedindo-lhe
um epitáfio para aquele que fora seu companheiro de exílio. Este remeteu os versos com
uma expressiva carta ao brasileiros.
Eis a tradução feita pelo periódico da época, Constituição28
Ribeyrolles foi ter à vossa pátria e escreveu um belo livro; livro em tudo digno
26
MUNIZ. Carioca, 3 de março de 1943, Rio de Janeiro.
27
SOARES. Carioca, 8 de dezembro de 1949, Rio de Janeiro.
28
Constituição, p. 2, ano XXII, no 61, Fortaleza, domingo, 13 de setembro de 1885.
125
desse admirável país, dessa nobre nação e da vossa história ilustre.
Com simpático entusiasmo escreveu ele a vossa ascensão, cada vez mais luminosa,
as regiões do progresso. Fraternalmente, em nome da democracia e da civilização fez-vos
completa justiça. Algumas páginas do seu livro são lâminas de mármore em que estão
gravadas as vossas conquistas gloriosas e prenunciado o vosso brilhante futuro. Ribeyrolles
morreu antes de completar a sua obra. Morreu proscrito e pobre. Contraístes uma dívida
para com ele e quereis pagá-la com magnificência.
Ribeyrolles erigiu um monumento ao Brasil. O Brasil erige um monumento á
Ribeyrolles. Honra ao povo brasileiro. Contrair por essa forma uma dívida e por tal meio
pagá-la, é ser duas vezes admirável.
Quereis um epitáfio para esse túmulo e é a mim que o pedis; quereis enfim gravar
o meu nome nesse monumento. Dou o mais alto preço à honra que me dais. Agadeço-vos.
Desde o alvorecer da história há duas entidades que dirigem a humanidade: – os
opressores e os libertadores. Uma domina pelo mel, a outra pelo bem. De todos os
libertadores porém o pensador é o mais eficaz – sua ação nunca é violenta. De todas as
forças, a mais suave e portanto a mais ingente é a do espírito. O espírito trucida, esmaga
o mal. Os pensadores emancipam o gênero humano. Sofrem assim, e muito, mas triunfam
sempre. É sacrificando-se individualmente que eles conseguem salvar seus semelhantes.
Morrem muitas vezes no exílio, mas que importa?! O ideal que os animava sobrevive, e
a obra da liberdade, começada em sua vida, prossegue depois da sua morte.
Ribeyrolles era um libertador; tinha por objetivo a liberdade de todos os povos e a
emancipação de todos os homens. Teve uma única ambição, um desejo supremo, ver
livres todas as nações e confraternizadas todas as raças.
Foi essa a idéia fixa que o atraiu à gloria e arrastou-o à proscrição. É isto o que
procurei sintetizar nos seis versos que remeto e que podereis, se quiserdes, mandar gravar
em seu túmulo.
Quanto a mim, sentindo-me feliz pelo convite que me dirigistes, apresso-me em
responder. Sois homens de sentimentos elevados, sois uma nação generosa. Tendes a dupla
vantagem de possuir uma terra virgem e descender de uma raça antiga. Um grande passado
histórico vos liga ao continente civilizador; unis a luz da Europa ao sol da América. É em
nome da França que eu vos glorifico. Ribeyrolles já o havia feito antes de mim.
Ribeyrolles saudou-vos com sua máscula eloquência; aplaudiu-vos porque vos
amava. Vós povo brasileiro, honrais a sua memória. É belo, é nobre isso! É a grande
confraternização que aí se firma, é o encontro de dois mundos junto ao túmulo de um
proscrito; é a mão do Brasil apertando a mão da França através dos oceanos!
A todos cumpre agadecer-vos! Ribeyrolles, com efeito, é tanto nosso quanto
vosso. Os homens de sua têmpera pertencem a todas. A proscrição que ora o fulmina
aumenta a luminosidade da comunhão universal. Quando um déspota rouba-lhe a pátria
é belo que um povo dê-lhe um túmulo.
Saúdo-vos e subscrevo-me vosso irmão:
Victor Hugo.
Guernesey, Hauteville-house, 4 de novembro de 1861.
Eis o epitáfio:
Charles Ribeyrolles
Il accepta l’exil, il aima les souffrances
Intrépide il voulut toutes les délivrances
Il servit tours les droits par toutes les vertus
Car l,idée est un glaive et l’âme est une force:
126
Et la plume de Wilberforce
Sort du même fourreau que le fer de Brutus.29
Eis a tradução:
Ele aceita o exílio, ele ama os sofrimentos
Destemido ele quer todas as liberdades
Ele serve todos os direitos e todas as virtudes
Pois a idéia é um gládio e o amor é uma força
E a pena de Wilberforce
Saiu da mesma bainha que o ferro de Brutus.
As manifestações de Hugo pelo Brasil não param por aí. O poeta, em 1871, escreve
em um jornal da Bélgica, um artigo elogiando a Lei do Ventre Livre. Em 1884, quando o Ceará
e o Amazonas alforriam seus últimos escravos ele escreve: “O Brasil aboliu a escravidão
com um golpe decisivo. O Brasil tem um Imperador: este Imperador é um bom homem. Que
nós o felicitamos e honramos.”30 Um ano antes de saber haverem fundado um clube
republicano, na Paraíba do Sul, Hugo manda uma carta de incentivo aos republicanos.
É evidente a ação de Victor Hugo sobre a sociedade brasileira, prova disso é o
grande numero de traduções, para o português das suas obras. A primeira tradução
conhecida foi a de Gonçalves Dias, em 1846, e seguiram-se milhares até os dias de hoje.
A morte do poeta causou considerável dor aos brasileiros. Desde o governo aos
centros literários, da imprensa ao brasileiro em geral, em todos os cantos do Brasil, as
manifestações de saudades foram imensas.
A Câmara dos Deputados, a Confederação Abolicionista e o Congresso Literário
Gonçalves Dias demonstraram seu grande pesar.
A revista A Semana envolve em crepe as sacadas do edifício e resolve fechar as
portas. Segue-se luto por oito dias e decidem promover, por meio de uma reunião de todos
os jornalistas da Corte, a realização de grande sessão literária em homenagem a Victor Hugo.
É dela o comentário: “Acaba de falecer o primeiro poeta da França, isto é, o primeiro
poeta do mundo; porque a França da Enciclopédia, a França de Victor Hugo é a pátria da
Civilização, o núcleo de todas as aspirações, de todas as lutas, de todos os séculos.”31
No dia 22 de maio de 1885, assim que Múcio Teixeira soube da morte de Victor
Hugo, ele foi dar os pêsames a D. Pedro II que estava profundamente comovido. Este
aconselhou o escritor a reunir as traduções dos poetas brasileiros já mortos na época e
a dirigir uma carta aos vivos, pedindo a necessária colaboração para que a homenagem
dos brasileiros a Victor Hugo ficasse para sempre perpetuada nas páginas de um livro.
A Gazeta de Notícias assim como o Jornal de Comércio do Rio de Janeiro dão
a sua primeira página em homenagem ao poeta. Da mesma maneira prosseguiram o
restante dos importantes jornais e folhetins brasileiros.
29
Esse epitáfio foi colocado no verso do monumento a Ribeyrolles construído pela Câmara
Municipal de Niterói, no Cemitério de Maruí, onde estão depositadas as cinzas do ilustre morto.
30
Raeders (G.) Revista da Academia Brasileira de Letras, v. 49, julho de 1935, p. 306, Rio
de Janeiro.
31
A Semana, de 23 de maio de 1885, p. 3, Rio de Janeiro.
127
7.2 Debret
No início do século XIX, a Revolução Francesa mudava as características da
Europa e influenciava também o Brasil. Era o período de enfraquecimento das monarquias,
e quando D. João VI vem para a América. Em 1808, a Corte portuguesa se estabelece na
sua colônia, onde por treze anos reina D. João VI, acabando com o Pacto Colonial entre
Portugal e o Brasil
Após a independência do Brasil, alguns projetos começaram a se preparar, duas
novas faculdades de Medicina e Cirurgia foram fundadas em São Paulo e em Pernambuco,
de acordo com as de Paris, e a capital começa a se tornar cada vez mais bela por causa
da influência francesa. É nesse momento que o brasileiro começa a descobrir uma
simpatia maior pela França.
A Academia de Belas Artes, apesar das enormes dificuldades enfrentadas, é
aberta em um edifício de granito, o qual pode ser considerado como a mais bela jóia do
Rio de Janeiro.
Na Academia, Debret ensinava para doze alunos, que freqüentavam seus cursos
por um período de quatro anos. Aos que não possuíam dinheiro, Debret oferecia pincéis,
tintas e telas, dando-lhes todo o seu apoio. No geral, encontravam em Debret um
coração cheio de amor pela humanidade e também pelos brasileiros.
Debret realizou no Rio de Janeiro três exposições, colocando em amostra as
obras de seus alunos: a primeira não teve muita atenção do público; a segunda contou
com a participação de mais de duas mil pessoas, e os jornais começaram a destacar seu
interesse pelos trabalhos de seus alunos; já a terceira, que durou oito dias, foi
impressionante, os visitantes compareceram em grande quantidade, as salas se
mostraram pequenas pelo número de pessoas. A partir desse momento, o público
começou a manifestar uma maior admiração por obras de diversos estilos, e a história
nacional foi traduzida em poesia muda pelos alunos do Sr. Debret.
Na verdade, pode-se dizer que as belas artes encontraram no Brasil um solo criador,
sendo considerada a Escola Brasileira de Belas Artes filha legítima da Escola de Paris, pois
era dela que eram importadas muitas das técnicas ensinadas. Debret deixa o Brasil após a
abdicação de D. Pedro I, nos deixando como legado o seu entusiasmo pela literatura,
pelas ciências e as artes em geral, e também o seu entusiasmo em ensinar seus alunos. Sua
influência repercutiu nas cidades, fazendo com que as câmaras aumentassem o número de
escolas e academias, e os salários dos professores também melhorassem.
7.3 Cultura francesa no Brasil e obras de Vauthier
A afirmação da cultura no Brasil e a influência da técnica francesa se deu com a
chegada de D. João VI, com a vinda de artistas, engenheiros, mestres, comerciantes,
parteiras, cozinheiros e de políticos ilustres. A língua francesa e a própria influência do
livro francês contribuíram para difundir a cultura francesa no Brasil.
Segundo o seu diário, Vauthier avistou Pernambuco pela primeira vez na manhã
de 8 de setembro de 1840. Ele amou a terra estranha desde o primeiro olhar, pois, já do
mar, ele se sentiu encantado pelo Recife. Vauthier foi um dos raros estrangeiros a sentir
e a compreender a beleza do Recife, na época considerada uma cidade magra, sem
relevo, incompleta e angulosa. Louis Léger Vauthier era um engenheiro e foi contratado
128
pela presidência da Província de Pernambuco para dirigir as obras públicas, a partir da
primeira metade do século XIX.
A atração dos brasileiros pelas técnicas e pelos produtos industriais franceses,
as suas modas, livros e artes conseguiu ser mais forte do que as forças que se opunham
ao movimento, como a Revolta Praieira influenciada pela explosão do nativismo e o
ressentimento brasileiro contra a expansão do comércio francês, vencendo assim as
resistências, competições e oposições e mantendo-se por longos anos superior a
qualquer cultura européia.
A cultura francesa estava ligada de uma maneira particular, a vários aspectos,
não apenas públicos e urbanos, mas também íntimos e rurais. Na região mais influenciada
por Vauthier e por seus companheiros, o prestígio francês durou um enorme tempo. Os
franceses até mesmo em obras de saneamento se anteciparam aos ingleses, tendo até
um francês o nome ligado ao primeiro tipo moderno de aparelho sanitário do Recife.
7.3.1 Técnica revolucionária
Vauthier foi aluno da Escola Politécnica da França, em que o ingresso era
tremendamente difícil. Concluiu aquela escola um ano antes de seus colegas para dirigir
as obras marítimas do Departamento de Marbian, onde era ele quem fazia a “inspeção
imediata”, e também para ocupar-se de importantes projetos e outras obras avaliadas
em mais de um milhão de francos, que foram projetadas por ele ao governo francês.
Com relação aos quatro engenheiros trazidos por Vauthier, sabe-se que três
deles serviram com ele nas obras de Marbian; o outro estava empregado em algumas
obras em Paris, quando foi convidado para vir ao Brasil.
Em 15 de dezembro de 1841, Vauthier envia ao Barão da Boa Vista, que era presidente
da Província do Recife um longo relatório, em que cabia ao governo: 1º dirigir as obras do
Teatro Nacional; 2º levantar a planta da cidade do Recife e apresentar um projeto completo
de novos alinhamentos; 3º dirigir a execução da Ponte Santo Amaro; 4º continuar as obras
de estabelecimento, no Convento do Carmo, do Liceu Nacional da Província; 5º estudar
os projetos da estrada que ligava Apipucos, nos subúrbio do Recife, até o “Rio da Prata”;
6º estudar planos de conserto da ponte do Recife, do cais do Colégio e também da estrada
com o nome de Luiz do Rego na vizinhança da parte de Santo Amaro.
O teatro começa a ser construído em abril, pedras para a construção são
importadas de Portugal; quanto às madeiras usadas não se tinham problemas já que
havia abundância desse artigo no Brasil. A decoração interior era feita por meio da
encomenda de um hábil pintor de cenário e de um maquinista perito da Europa. Da
planta da cidade do Recife já havia sido remetida à Secretaria do Governo uma cópia do
bairro do Recife, a ponte de Santo Amaro já havia sido aberta ao trânsito em abril, as
obras no Convento do Carmo para a instalação das aulas do Liceu já haviam sido
acabadas e o projeto da estrada de Apipucos já havia sido estudado e seria apresentado
ao presidente em quinze dias.
Isso mostrava, já no primeiro ano de contrato dos novos engenheiros franceses,
que eram homens ativos e técnicos competentes e que, ainda, o jovem engenheirochefe era um realizador. Suas obras ficavam sempre rapidamente prontas, mostrando
que sua técnica revolucionária era eficiente.
No seu primeiro relatório anual, Vauthier afirma ser necessário para a prosperidade
do País a criação de meios gerais de comunicação para o interior, sugere também a formação
129
de uma escola especial teórica e prática de engenheiros civis na Província de Pernambuco.32
Vauthier volta para a França em 1846, deixando as obras do Teatro Santa Isabel
inacabadas, mas continua controlando-as de longe por correspondência.
8 CONFLITOS TERRITORIAIS
8.1 Ocupação francesa no Amapá
Com um pretexto fornecido pelas agitações da Cabanagem, no Pará, e com a grande
instabilidade política na região, Luís Filipe declara, em 1835, o estabelecimento de um
posto militar à margem direita do Oiapoque, isto é, em terras brasileiras, e em 1836 os
franceses criam mais um posto militar agora às margens do Lago Amapá.
Antônio Peregrino Maciel Monteiro, o ministro dos Negócios Estrangeiros,
recorreu à intervenção inglesa para a retirada desses postos.
A fim de evitar a colonização francesa, foi mandado ao Brasil o Comandante Harris,
para que verificasse o ocorrido na costa do Amapá. Segundo o relatório levantado pelo
comandante, os franceses construíram uma fortificação em terras brasileiras. Houve uma
forte repercussão do caso no Brasil, como nos mostra o jornal A Liga Americana33, que
abriu campanha contra a invasão francesa, recomendando aos brasileiros o boicote dos
comerciantes franceses enquanto esses não saíssem de nosso território. Após a retirada
das tropas francesas, o governo imperial criou uma colônia militar à margem esquerda
do Rio Araguari, denominada D. Pedro II, para garantir os direitos do Brasil na região.
8.2 Tentativas de fixação de fronteiras
Embora os franceses tivessem saído de região do Amapá sem imposição alguma,
convinha ao governo brasileiro, por meio de uma troca de notas, neutralizar a região
contestada. Em 1842, foram retomadas as negociações relativas às fronteiras com a Guiana
Francesa, pelo representante brasileiro em Paris. Apenas em 1853, o governo de Napoleão
III propõe reatar as interrompidas negociações com o Brasil. Estando de acordo com o
governo francês, o Brasil nomeou seu embaixador o Senador Visconde do Uruguai, que fora
titular de Negócios Estrangeiros no País. Chegando a Paris, ele entra em contato com o
embaixador francês Barão His de Butenval, mas a França continuava insistindo que a fronteira
era o Rio Araguaia. O representante brasileiro nada quis ceder e suspendeu as negociações.
Até o penúltimo ano da Monarquia brasileira, os dois países ainda se interessavam no reconhecimento e na exploração das terras do Amapá.
9 ENTRELAÇAMENTO DAS CULTURAS
A influência cultural francesa no Brasil teve origem no século XVI pelas
expedições francesas, militares e científicas. Essa influência cresceu na Província da
32
Relatório apresentado ao presidente da Província, encontrado no Arquivo Público do
Estado de Pernambuco.
33
A Liga Americana, 1839/40, redigido por Aureliano de Sousa e Oliveira Coutinho, depois
Visconde de Sepetiba, e Manuel Odorico Mendes.
130
Corte e no Nordeste, logo após a vinda da família real ao Brasil.
Até então, o Brasil não havia tido a preocupação com a formação de uma cultura
nacional. Somente a partir do Segundo Reinado, graças ao interesse de D. Pedro II
pelos assuntos culturais no campo das letras e das ciências e graças ao desejo do
imperador de desenvolver a educação e a cultura do povo, por meio de suas viagens e
dos contatos com importantes figuras representativas e com instituições francesas, é
que o País começa a formar a sua cultura, com influências basicamente francesas.
O intercâmbio cultural entre os dois países sempre se manteve desde a época do
Brasil Colônia e com a pessoa de D. Pedro II como imperador atingiu um dos seus
pontos mais altos. Nenhum brasileiro superaria D. Pedro II no seu interesse e na sua
vocação pela cultura francesa, tanto como governante quanto como nos seus
conhecimentos pessoais, o que fazia com que os grandes espíritos da época tivessem
uma grande admiração pela sua pessoa.
No começo da educação nacional, o imperador investiu com notável impulso,
criando vários estabelecimentos de ensino. O francês passou a ser a segunda língua
falada no Brasil, em função do grande número de professores franceses, além da grande
variedade de livros vindos da França, nas livrarias de São Paulo e do Rio de Janeiro.
Foram os livros franceses o veículo mais importante de aprendizagem da geração
brasileira, sem mencionar os exemplares colégios franceses, em que estudavam as moças
da sociedade brasileira nas grandes capitais do País. Na nossa literatura, além de Victor
Hugo, podemos citar Napoleão que influenciou permanentemente Castro Alves. Este
foi o grande cantor de Napoleão e se tornou tão grande como Victor Hugo e Byron.
Toda a escola romântica brasileira foi baseada nos princípios e no espírito do Romantismo
europeu. Assim nossos românticos não se esqueceriam de Napoleão, que era o eixo de
numerosas produções dos românticos.
A França foi a grande fonte de inspiração dos valores culturais brasileiros.
Portanto teria que vir da França a idéia da Academia Brasileira. Machado de Assis, um
dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, adotou as linhas básicas e de tradição
da Casa Richelieu. Podemos notar essa influencia pelo mesmo número de cadeiras,
mesmo sistema de eleições, pelos chás servidos antes das sessões e pelo fato de os
convidados visitarem os eleitores antes das eleições.
A influência francesa foi muito significativa não apenas na capital, o Rio de
Janeiro, mas também em Pernambuco e na Bahia.
Podemos constatar grande número de franceses professores de francês, o que
demostra claramente o grande interesse existente no Brasil pelo estudo dessa língua, e
também de boticários, droguistas, importadores de remédios, padeiros, modistas, alfaiates,
cabeleireiros, retratistas, atores e outros em menor escala. Prova disso é o que escreve o
Sr. Otávio Tarquínio de Sousa sobre as influencias francesas na sociedade brasileira da
época: “(...) alfaiates, chapeleiros, tintureiros, cabeleireiros, jardineiros franceses, juntamente
com architectos, pintores e gravadores também franceses, entraram a influir
consideravelmente com a sua technica, com o gôsto, com os artigos que importavam ou
confeccionavam, sobre a vida da cidade34, sobre a sua feição e seus costumes.”35
34
A cidade a que Tarquínio de Sousa se refere é o Rio de Janeiro.
35
SOUSA, 1939, p. 48-50.
131
No período começaram a surgir no País os retratistas e, com o avanço da técnica
fotográfica, começaram a surgir retratos de família. Sem dúvida, na técnica de retrato o
especialista francês pôde se notabilizar no Brasil.
Uma grande influência francesa, e talvez a mais saliente de todas; foi a da
moda feminina. Assim surgiu, no Rio de Janeiro, a Rua do Ouvidor, uma rua de modas
francesas, e no Recife, a Rua Nova, onde se situavam as casas mais elegantes. Joaquim
Manuel de Macedo, o grande precursor do romance brasileiro e o mais lido de nossos
autores do século XIX, descreve em seu livro Memórias da Rua do Ouvidor como, no
espaço de um ou dois anos, as francesas modistas ocuparam a rua mais importante da
cidade do Rio de Janeiro. Segundo o autor, foi de repente que a Rua do Ouvidor se
tornou uma rua francesa. As francesas invasoras prosperaram e ganharam uma situação
que lhes permitia conquistar a cidade. A colônia francesa foi ganhando importância,
assim como os artistas, os homens de ciências, de letras e os comerciantes franceses
e da moda francesa, não apenas no Rio de Janeiro, mas também no Brasil.
10 CONCLUSÃO
Se não fosse a França, a história do Brasil, com certeza, seria contada de uma outra
maneira, e graças a isso o Brasil teve um rápido e intenso desenvolvimento cultural.
A independência do Brasil se deu com a chegada da família real portuguesa em
sua colônia, que ocorreu por causa da invasão napoleônica em Portugal.
Com a independência temos o Primeiro Reinado, quando o Brasil passou a receber
de maneira mais decisiva as marcas da cultura francesa. D. Pedro I abdica em favor de
seu filho e parte para a França, começando assim o agitado período de regências, pois
o príncipe ainda não tinha idade para governar.
D. Pedro II tinha enorme interesse pela cultura francesa e conviveu com grandes
figuras como Lamartine, Victor Hugo e muitos outros.
O imperador importou inúmeros professores franceses para aprimorar o ensino
brasileiro, e o francês passou a ser a segunda língua mais falada no Brasil.
O espírito republicano começou a despontar conduzido pelas elites encantadas
com o republicanismo francês. Assim foi proclamada a República, dando início a uma
nova fase política brasileira.
Interessa-nos também o destaque não apenas aos franceses que estavam ligados
diretamente ao Brasil como Vaulthier e Debret, como também as celebridades que
indiretamente influenciaram não apenas nas artes e ciência dos brasileiros, mas ainda
no modo de pensar do povo brasileiro, como Victor Hugo e Napoleão.
Por fim, pode se dizer que nossa cultura e nossa sociedade são em grande parte
frutos do pensamento francês.
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