O lugar do amor na transição da adolescência para a vida adulta1 Michele Melo Reghelin 2009 Na área da psicologia, a escolha conjugal e o relacionamento conjugal são entendidos como um processo maturacional do desenvolvimento emocional. Neste sentido, Monteiro e Cardoso (2008), referem que uma das grandes conquistas da vida adulta consiste em amar com intimidade. As relações adultas resultam do senso de integridade e do senso de individualidade (Monteiro e Cardoso, 2008). O senso de identidade é o que diferencia esta etapa da adolescência. A intimidade implica numa aproximação sem fusão e sem confusão psíquica e está relacionada à confiança adquirida e a capacidade de confiar. Conforme Kernberg (1995), a consolidação para o amor sexual maduro baseia-se numa identidade de ego integrada. Esta identidade é construída gradualmente desde bebê até a primeira infância. A capacidade de se apaixonar é uma das sustentações do relacionamento conjugal (Kernberg, 1995). Para estabelecer um relacionamento objetal profundo é necessário unir a idealização ao desejo erótico. A idealização que ocorre na relação amorosa, posteriormente facilitará a integração da excitação sexual e do desejo erótico idealizando o objeto amado e integrando o desejo erótico à ternura. Gradualmente, se desloca da idealização do corpo da pessoa amada, para a idealização do outro como pessoa total, até chegar à idealização do sistema de valores do objeto amado (éticos, culturais e estéticos), o que garantirá a capacidade de amar romanticamente. A escolha de um objeto sexual amoroso vai da transição dos objetos idealizados da adolescência até a completude do amor genital, diz Sandler (2004). Ainda, conforme Sandler (2004), ao amar um objeto se ama a representação dele, conscientemente ou inconscientemente. Nesse sentido, não podemos falar em investimento de energia libidinal do self, como Freud cunhou em 1930. Há valores vinculados ligados à representação objetal e ao self, que constituem o investimento de sentimentos. É normal, refere Sandler (2004,) o processo de escolha objetal. Escolhe-se um parceiro a partir do contato entre respostas conscientes e inconscientes complementares com ele. Cada indivíduo representa um papel e tenta moldar o outro no 1 * Estudos feitos para a construção da dissertação de Mestrado. papel complementar que ele designou (cada um atualiza o relacionamento fantasmático de forma dissimulada). Kernberg (1995) refere que o amor maduro implica no comprometimento dos sistemas de valores, emocional e sexual. Ele amplia-se do desejo erótico para o relacionamento com uma pessoa específica no qual a ativação dos relacionamentos inconscientes do passado, juntamente com os aspectos conscientes da vida futura como casal, se combina com a ascensão de um ideal de ego em conjunto. O afeto se constitui nos primeiros anos de vida e está ligado aos instintos sexuais (que compõe os instintos eróticos), lembra Freud (1912/1996). Durante esse período, este afeto é dirigido ao outro (a família, por exemplo) e em contrapartida deve ser reinvestido na criança, estabelecendo uma troca de investimento, formando a base da auto preservação. Esta é a escolha de objeto primária. Durante a infância, o erotismo é deixado de lado, e acaba sendo revivido com a maturidade sexual na puberdade. É preciso esforço para transpor o incesto e assim poder encontrar objetos estranhos, escolhidos a partir do modelo dos objetos infantis, refere o autor. De acordo com Kernberg (1995), entre os quatro e os seis anos de idade, após o ápice do Complexo de Édipo, constrói-se um sistema moral que depende das adaptações que o indivíduo fará com o meio em que vive, no caso da escola e o mundo adulto em geral. Esse período vai até a adolescência. Esse sistema também serve para proteger a relação pai-filho, a ternura e os conflitos sexuais agressivos do estágio edípico. A fase da latência é o período da consolidação das relações amistosas com os pais e a repressão dos anseios sexuais com o objeto edípico e da competição agressiva com o rival edípico (Kernberg, 1995). Há certa curiosidade sexual, mas também há a desvalorização da sexualidade genital. O sentimento, o amor romântico e o pensamento simples são predominantes. Não se tolera as ambivalências e tudo fica dissociado: bom e mau, sexualidade e ternura. Ainda conforme Kernberg (1995), o superego fica intensamente projetado no grupo, persistindo até a adolescência para chegar à vida adulta sendo capaz de integrar a sexualidade com a ternura e o apaixonamento. As mudanças hormonais da puberdade desencadeiam uma excitação sexual e um desejo erótico com nova intensidade (Kernberg, 1995). Para lidar com os conflitos relacionados à sexualidade, usa-se a cisão como defesa, o que aponta para uma regressão parcial das funções do ego. Os sentimentos são contraditórios, com misto de culpa, supressão da resposta sexual e anseios sexuais infantis perversos polimorfos. Há uma reorganização do superego, os mecanismos repressivos diminuem e necessita-se integrar os anseios sexuais com as proibições do superego infantil. Segundo Halperin (2004), a primitiva paixão da adolescência é essencial para a independização sendo transformacional. A paixão vem de “paschein, passion” e carrega etimologicamente o sentido de passividade. Ela sinaliza que o eu vive na dependência do outro. Halperin (2004) refere que ao chegar à adolescência, já não serve mais para o jovem o ambiente familiar, que anteriormente lhe dava ternura e continha suas angústias. O jovem, agora, necessita buscar outras estruturas e objetos para satisfazer seus desejos. Ele precisa viver uma paixão para que possa se desligar da mãe (dos seus desejos libidinosos por ela) e direcioná-los a outro objeto amoroso. Ele desinveste o objeto anterior e investe em um novo, que vai sendo criado a partir de uma ilusão amorosa, tolerando as desilusões impostas pela realidade. O adolescente teme perder o amor dos pais e a segurança que sua família oferece. Ao se relacionar exogamicamente, ele teme ser abandonado ou excluído da família, necessitando de confiança que lhe garanta que não perderá os objetos de amor infantis. Para Halperin (2004), paixão significa reviver a plenitude do ego ideal quando ele fantasia a restauração do narcisismo primário. O jovem fica com a idéia de que irá encontrar a sua completude no outro amado. E é neste momento das primeiras desilusões que o amor pode se instaurar, pois ele revive a decepção infantil de que não é o único desejo da mãe. A partir daí o outro ganha vida, independência e existência. A paixão pode resgatar o adolescente da situação de congelamento que ele se encontra, pois ele sai da fixação dos objetos primitivos para a liberdade de viver e amar. A partir de uma paixão intensa se desestabiliza um equilíbrio narcísico e incestuoso (Halperin, 2004). Assim, Costa (2007) considera que a característica mais importante para a manutenção de um casamento na vida adulta, é separação do cônjuge da sua família de origem e na independização do filho em relação aos pais. Isso faz com que os cônjuges não sejam dependentes de seus pais e nem reproduzam essa dependência na relação, construindo seu casamento. Além disso, aceitar a família do outro é valorizar o parceiro. Costa (2007) ainda acrescenta que as pessoas que puderam usufruir melhor de sua vida de solteiras, constroem relacionamentos mais satisfatórios, porque não ficam imaginando o que deixaram para trás. Portanto, diz Kernberg (1995), apaixonar-se implica na reconfirmação das boas relações com os objetos internalizados do passado, deixando pra trás os objetos reais da infância. É um processo de luto relacionado a crescer e se independizar, pois o indivíduo torna-se capaz de receber e dar. Assim, é possível constituir um relacionamento amoroso estável, com ternura, preocupação e idealização mais aprimorados, além da capacidade de identificação e empatia com o objeto de amor. REFERÊNCIAS Costa, G. P. (2007). O amor e seus labirintos. Porto Alegre: Artmed. Freud, S. (1996). Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor - 1912 (Contribuições a Psicologia do Amor II). In J. Salomão (Dir. e Trad.), Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição Standard brasileira. (Vol. 11, pp. 181-195). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1912). Halperin, C. A. (2004). Paixão na adolescência. In R. B. GRAÑA & A. B. S. PIVA (Orgs.), Atualidade da psicanálise de adolescentes: formas do mal estar na juventude contemporânea. (pp.59-68). São Paulo: Casa do Psicólogo. Kernberg, O. F. (1995). Psicopatologia das relações amorosas. Porto Alegre: Artes Médicas. Monteiro, T. F., & Cardoso, L. S. (2008). Casa, do latim, acasalamento: a casa como metáfora para a capacidade de intimidade. In J. Outeiral & L. Moura & S. M. V. Santos (Orgs.). Adultescer: a dor e o prazer de tornar-se adulto. (pp.161-176). Rio de Janeiro: Revinter. Sandler, A. M. (2004). O amor na adolescência: algumas reflexões sobre a escolha de objetos de amor genital. In R. B. GRAÑA & A. B. S. PIVA (Orgs.), Atualidade da psicanálise de adolescentes: formas do mal estar na juventude contemporânea. (pp.51-58). São Paulo: Casa do Psicólogo.