1 PEDAGOGIA PERFORMATIVA PARA O CARTOGRAFAR: OITO PROGRAMAS-PISTAS (E AS PERFORMANCES DA ATENÇÃO) Thaise Luciane Nardim1 RESUMO Tendo por inspiração as oito Pistas do Método da Cartografia, componho oito programas performativos direcionados a uma pedagogia do fazer cartográfico em pesquisa, arte e educação. Isto feito, apresento as dificuldades enfrentadas em tal composição, voltando o debate para as relações entre a arte da performance e a pedagogia da atenção. Por fim, pousando a pena sem buscar o fechamento da proposição, aponto para a necessidade do lírico na composição do programa performativo e sua função nessa transcriação, quando se intenciona uma interação pedagógica performática não centrada na enunciação do sujeito. Palavras-chave: atenção; cartografia; performance; pedagogia; programa performativo. ABSTRACT Inspired by the eight Pistas do Método da Cartografia, I wrote eight performative programs directed to a pedagogy of making cartographic research, art and education. This done, I present the difficulties faced in this composition, irecting the debate to the relationship between performance art and the pedagogy of attention. Finally, without seeking the closure of the proposition, I point to the need of the lyric in the composition of performative program and its role in this transcreation when it intends performative pedagogical interaction not focused on the subject enunciation. Keywords: atention; cartography; performance; pedagogy; performative program. "É preciso pegar as coisas para extrair delas as visibilidades... É necessário rachar as palavras ou as frases para delas extrair os enunciados" (Deleuze,1992) Ao professor-performer é preciso frestar os discursos para fazer ventar a sala de aula, ventá-la com seus próprios braços. Um pouco acima e um pouco abaixo dos territórios que os dizíveis e os visíveis habitam – ali, onde não há praticamente nada – nas rachaduras dos dispositivos educacionais, o professor-performer, com suas práticas de jogo, forja cenários momentâneos em que os jogadores praticarão provisórios estados de presença reluzente, de inutilidade produtiva – ou, mais adequadamente dizendo, de inutilidade desejante - e de atenção contextual. São jogos, como dissemos, momentâneos, mas que tendem a alastrar-se pela vida, na medida em que é como vida que serão experienciados. O contexto garante que os jogadores permaneçam com o mínimo pé no discurso de um currículo, sem esvair-se na plena aceleração da escola 1 Professora-performer. Professora Assistente no curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal do Tocantins (UFT). Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Universidade Estadual de Campinas. Membro do Grupo de Pesquisa Arte na Pedagogia (GPAP – Mackenzie/SP). ALEGRAR - nº15 - Jun/2015 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 2 isso porque a matéria, além da experiência, também importa - especialmente dada a indissociabilidade forma/conteúdo. A matéria, neste ensaio, é o fazer cartográfico, que como todas as outras matériasvida pede a invenção de sua própria didática. Professora-performer que sou, busquei compor rascunhos de mapas para jogar – ou programas performativos – que orbitassem as oito pistas do (chamado) método da cartografia, proposto por Passos, Kastrup e Escóssia (e colaboradores) no livro “Pistas do método da cartografia, pesquisaintervenção e produção de subjetividade” (2009). Nessa obra, os organizadores e outros autores-colaboradores nos apresentam seus esforços coletivos na sistematização de um método de investigação em processos de subjetivação orientado pelo conceito de cartografia, conforme proposto por Gilles Deleuze e Félix Gattari na obra Mil Platôs. Tal orientação os conduz a deixar de lado em suas investidas investigativas o método (metá-hodos, metas impondo um caminho), assumindo um hodos-metá, o caminho propondo as metas, a experiência aproximando a investigação “dos movimentos da vida ou da normatividade do vivo” (PASSOS, KASTRUP E ESCÓSSIA, 2009, 11). Pistas não são regras, mas pela sua natureza também propõem o jogo - neste caso, a caça ao tesouro da possibilidade de um fazer investigativo guiado pela invenção, pela intervenção, pelo acompanhamento de processos e pelo comum, fundados numa potência rizomática. Aceitando o convite, propus-me a reescrever as pistas pela perspectiva de uma pedagogia performativa, possivelmente diminuindo a influência dos fazeres da pesquisa em clínica que o livro original apresenta e acurando o foco sobre a constituição de pesquisadores-artistas-cartógrafos - e, quiçá, pesquisadores-artistasdocentes-cartógrafos, professores-performers, como eu – mas entendendo e intentando mesmo que sejam exercícios possíveis a todo e qualquer que deseje debruçar-se sobre si em pesquisa, abrindo-se, atenta mas despretensiosamente, às virtualidades que nos compõem. Há um princípio subjacente às elaborações aqui apresentadas, que pensa que o cartógrafo em atividade acadêmica faz-se também cartógrafo em seu cotidiano, e viceversa – especialmente porque, como vemos com as Pistas e com o pensamento de Deleuze e Guattari, os planos que compõem a existência se entrecruzam e se autoengendram: pesquisador fazendo o pesquisado, pesquisado fazendo o pesquisador, pesquisador que é não-pesquisador e pesquisador, esteja ou não em atividade de pesquisa strictu sensu - e assim segue o jogo. Logo, embora não estejam direcionados precisamente ao contexto ou às formas de um fazer-pesquisa-universitária, ou mesmo, ALEGRAR - nº15 - Jun/2015 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 3 por vezes, sequer estejam orientados ao que o senso comum chamaria de outro (o objeto de pesquisa na metodologia científica conforme estabelecida), requisitam seu espaço enquanto programas-obras de legítima investigação. Os oito programas-pistas para o cartografar Pista 1 - A cartografia como método de pesquisa-intervenção (Um metaprograma) Elegendo um campo temático a investigar, como “aprendendo a construir um corpo-com o cartografar”. Escolhendo inventar algo (sim ou não-relacionado ao campo eleito): uma receita, um utensílio, uma performance, um poema. Programando-se para a invenção, escrevendo em frases curtas, obsubjetivas, o que será feito, com quê, onde, quando – ou quase isso. Meta-exemplo: “Inventando um programa para aprender a construir um corpo-com o cartografar: Redigindo o programa para a invenção do programa. Realizando o programa redigido (e assim sucessivamente)”. Outro exemplo: “Inventando um novo modo de estudar: Tendo escolhido um livro, sorteando aleatoriamente a leitura de páginas. Lendo as páginas na ordem sorteada. Escrevendo uma resenha que informe ao virtual leitor o novo livro. E então, Realizando o programa redigido, ALEGRAR - nº15 - Jun/2015 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 4 (intervindo: sobre o campo / sobre o si-pesquisador; Inventando: ao si-pesquisador / ao campo). Pista 2 - O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo Fique atento ao ritmo, aos movimentos do peixe no anzol. Fique atento às falas das pessoas que só dizem o necessário. Fique atento aos sulcos de sal de sua face. Fique atento aos frutos tardios que pendem da memória. Fique atento às raízes que se trançam em seu coração. Fique atento. A atenção é sua forma natural de oração2. Pista 3 - Cartografar é acompanhar processos Um: Há que se iniciar abrindo a palma da mão sobre as chamas e De dentro da dor, ser ao nascerem as bolhas que interpõem ar entre pele e carne. 2 GALVÃO, Donizete. Oração natural. Mundo Mudo. São Paulo: Nankim, 2003. ALEGRAR - nº15 - Jun/2015 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 5 Cultivar as bolhas para que permaneçam em sua condição de espaço: abrir um pequeno sulco, fazer sair o ar antigo, livrar que escorra o vivo pus. Resta a pele: meio viva, meio viva. Dois: Embrenhar-se pela floresta, caçando caminhos que os mapas não veem. Dentro do espaço-bolha, recolher um pouco da terra do trajeto pisado, E nela aninhar as sementes (de) possíveis. Molhar: suor, sangue, lágrimas, dias. Três: Viver homem-semente, homem-broto, homem-arbusto, homem-cada-uma-das-folhas, homem-árvore, descobrindo a cada instante a mão com a qual escrever sobre-como. 3 Pista 4 - Movimentos-funções do dispositivo na prática da cartografia Brincar de dispositivo: “Na aula de hoje, vamos desenovelar os sentidos”, mudando de orientação deslocando-se do eterno para apreender o novo. Repetição: Você está disponível, em local de passagem, movimentado. Tem consigo linhas, agulhas. Pede aos (às) passantes que te ensinem a fazer crochê. (Saiba você fazê-lo ou não). Repete muitas e muitas e muitas e exaustivas vezes, Identificando recorrências, 3 A partir da série de foto-performances “Raíces aladas”, do artista espanhol David Catá. ALEGRAR - nº15 - Jun/2015 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 6 e variações. Explicitação: Você seleciona um tanto do aprendido e o repete diariamente, por meses e meses, sempre destramando o tramado ao final do experimento. Transformação: Você está disponível, em local de passagem, movimentado. Tem consigo linhas, agulhas. Pede aos (às) passantes que te ensinem a fazer crochê. (Saiba você fazê-lo ou não). Repete muitas e muitas e muitas e exaustivas vezes, Identificando recorrências, e variações. Pista 5 - O coletivo de forças como plano de experiência cartográfica (programa para quanto mais pessoas, melhor) Material: pó branco (farinha de trigo, polvilho, talco...) Distribuir o pó branco sobre o chão, em pequenos montes. Os jogadores posicionam-se à frente de cada um dos montes. Os jogadores se olham. Se veem. Eles não se comunicam por qualquer expressão verbal ou signos corporais intencionais. Se olham. E se veem. Os jogadores, ao se verem, chegam a um consenso: é hora de correr. Não há signo prévio que dispare a corrida. O coletivo estabelecerá seu tempo. Feito o acordo, eles então deixam seus montes e correm até um próximo, frente ao qual param. A cada rodada, deixa o jogo quem sentir que deve fazê-lo. Por que? É algo a descobrir-se. Repetir: até não restar nenhum jogador ou até não existirem mais montes de pó. ALEGRAR - nº15 - Jun/2015 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 7 Após algumas horas, retornar ao espaço de realização do jogo e contemplar o pó pelo chão, seus desenhos, suas marcas. Pista 6 - Cartografia como dissolução do ponto de vista do observador (programa para duas pessoas) Nós sairemos em deriva, de mãos dadas. Nós teremos duas máquinas fotográficas cada, uma para cada um de nossos olhos. Nós escolheremos o que desejamos fotografar, uma vista, escolhida porque-sim. Estaremos de mãos dadas, frente ao escolhido, você com seu ombro direito tocando o meu ombro esquerdo – e nós temos dois olhos cada. De uma vez, lado a lado, o fotografaremos. Posteriormente, tendo impressas as imagens fotografadas, nós montaremos, juntos, a vista daquele instante: você-esquerda+você-direita+eu-esquerda+eu direita. Nós então apagaremos as bordas que condicionam cada uma das fotografias, borraremos os limites que as delimitam, derrubaremos uma imagem na outra, verteremos minha vista na tua: vocêesquerdavocêdireitaeuesquerdaeudireita. Nós temos uma nova vista, nós temos a vista do nosso encontro. Pista 7 - Cartografar é habitar um território existencial Dedique-se a uma contagem: quantas marcas há em seu corpo que o constituem? Pergunte a cada uma das marcas sua história. ALEGRAR - nº15 - Jun/2015 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 8 Escute detalhadamente todas as respostas. Pista 8 - Por uma política da narratividade (ou “por uma política da escrita como procedimento da expressão”) Uma notícia de jornal. Reescreva-a como um depoimento. Um depoimento. Reescreva-o em forma de oração. Uma oração. Reescreva-o como uma receita de bolo. Uma receita de bolo. Reescreva-a como um artigo acadêmico. Um artigo acadêmico. Reescreva-o como um poema. Um poema. Reescreva-o como um boletim de ocorrência. Um boletim de ocorrência. Reescreva-o sobre a sua pele. Sua pele. Reescreva-a em palavras. Palavras. Reescreva-as em vento. Vento. Reescreva-o em suas paredes. Suas paredes. Reescreva-as em música. Música. Reescreva-as em sangue. Sangue. Reescreva-o doce. Doce. Reescreva-o na terra. Terra. Tente reescrevê-la como uma notícia de jornal. Fim dos oito programas-pistas para o cartografar Sobre a composição dos programas: problema (e solução) da Pista 24 Primeira tentativa de redigir o programa para a Pista 2: (pensava nos modos pelos quais acredito ter aprendido a atenção): Escolher um ambiente em que realizar sua experiência. 4 Esta seção incorpora trechos revistos do resumo expandido “Exercícios de Atenção: arte da performance como metodologia de pesquisa”, redigido pela autora em novembro de 2014 e comunicado no XX Congresso da Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas – ABRACE. ALEGRAR - nº15 - Jun/2015 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 9 Escolher o campo pela sonoridade, aquela que interessa porque sim. Ir até lá. Posicionar-se confortavelmente. Fechar os olhos. Ouvir. Não escutar nada: apenas receber as ondas sonoras que vêm. Não são pássaros, não são automóveis, não são indústrias não são cães, não é o vento, não é a fome, não é música nem ruído, não é nada além do que é: som som som som som som som som som som som som som som som som som Soooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooom. Próximo passo: Momento de mover este programa do rastreio – primeiro gesto atencional do cartógrafo - para o toque – o segundo deles. Mas isso então me parece impossível. Como redigir o programa performativo pedagógico para a Pista 2, e especificamente para os gestos do toque, do pouso e do reconhecimento atento, se as ações para a aprendizagem da atenção são ações de redução, movimentos tendendo ao zero significado, à restrição de interpretação e recognição, ao tempo em que toda obra de arte (coisa a que se pretende este roteiro) faz justamente recortar algumas dessas ausências, promovendo assim gotejamentos de sentido sobre ela quando um espectador(-participante, no caso) a encontra? Como orientar “seja tocado por algo”, ou “deixe-se tocar por algo” se a questão do toque na atenção do cartógrafo é da (des)ordem da acontecência, se O relevo não resulta da inclinação ou deliberação do cartógrafo, não sendo, portanto, de natureza subjetiva. Também não é um mero estímulo distrator que convoca o foco e se traduz num reconhecimento automático. Algo acontece e exige atenção.” (PASSOS KASTRUP E ESCÓSSIA, 2009, 42)? Como indicar uma redução extrema que não seja, junto ao que já indicou KASTRUP (2004, 11), “a meditação budista, a entrevista de explicitação, a reza do coração, a clínica, a sessão de escrita, o aprendizado da filosofia e a própria visão estereoscópica”, e que seja todas elas ao mesmo tempo, dado que este programa se configura como uma proposição única em que intenciono efetivamente apresentar a Pista 2? Pensando a formação do cartógrafo, muitas vezes a Pista 2 parece-me ser aquela que poderia fundamentar todas as demais. Jan Maschellein aparenta também destacar a ALEGRAR - nº15 - Jun/2015 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 10 habilidade da atenção em relação a outras demandas, ao propor a instauração de uma Pesquisa Educacional Crítica – que, a despeito da divergência de referentes, pode ser lida como um método cartográfico de investigação em educação: A pesquisa educacional crítica não trata de tornar consciente ou ser consciente, mas sim de atenção e estar atento. Estar atento é abrir-se para o mundo. Atenção é precisamente estar presente no presente, estar ali de tal forma que o presente seja capaz de se apresentar a mim (que ele se torne visível, que possa vir a mim e eu passe a ver) e que eu seja exposto a ele de tal forma que eu possa ser transformado ou “atravessado” ou contaminado, que meu olhar seja libertado (pelo “comando” daquele presente). Pois tal atenção torna a experiência possível [...] Poderíamos dizer que o estado mental de alguém que tem um objeto/objetivo, uma orientação, é o estado mental de um sujeito (de conhecimento). Estar atento não é ser cativado por uma intenção, ou projeto, ou visão, ou perspectiva, ou imaginação (que sempre nos dão um objeto e capturam o presente numa re-presentação). A atenção não me oferece uma visão ou perspectiva, ela abre para aquilo que se apresenta como evidência. A atenção é a falta de intenção. (MASSCHELEIN, 2008, 42) O mesmo Masschelein propõe, já na obra Em defesa da escola, que o ambiente escolar seria um espaço-tempo privilegiado para possibilitar ao estudante que, distanciado do mundo do trabalho, da produção e da utilidade, possa experimentar e ampliar suas habilidades atencionais, sendo esta uma função fundamental e mesmo constitutiva da escola, iluminando por outra perspectiva a relação entre a atenção e a produção de conhecimento: A escola é o tempo e o lugar onde temos um cuidado especial e interesse nas coisas ou, em outras palavras, a escola focaliza a nossa atenção em algo. A escola (com seu professor, disciplina escolar e arquitetura) infunde na nova geração uma atenção para com o mundo: as coisas começam a falar (conosco). (MASSCHELEIN E SIMONS, 2013, 51) A possibilidade e a necessidade da aprendizagem da atenção foi extensamente explorada por Kastrup em outras obras que não as Pistas que nos servem aqui de referência (2004, 2005, 2012). Apresentando a atenção como um fundo de variação da cognição – e não um processo psicológico como a memória, o pensamento ou a aprendizagem – a autora questiona o entendimento atribuído à atenção nas práticas de ensino-aprendizagem, que de modo geral leem-na como a capacidade de controlar-se para manter o foco sobre as tarefas a serem desenvolvidas para a aquisição do conhecimento (2005, 8). Nessa perspectiva, a atenção apresenta-se dicotômica: ou têmse atenção, ou não. Entretanto, a autora identifica uma variedade de estados de atenção ALEGRAR - nº15 - Jun/2015 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 11 possíveis, como a atenção concentrada com foco e sem e atenção dispersa, com foco cambiante. Para o contexto do projeto de um programa pedagógico para a que vise à aproximação da qualidade de atenção do cartografar, interessa especialmente as abordagens da autora acerca do treino – dedicado à aprendizagem de toda espécie de matéria - como promotor de experiências de flexibilização e aquisição de possibilidades atencionais, concordando com o enunciado de Masschelein: A sedimentação do aprendizado ocorre através do treino, que se apresenta como um conjunto de sessões consecutivas e regulares. Trata-se de um aprendizado passo a passo, mas que nem por isso pode ser dito seqüencial ou quantificável. No processo de treino utilizam-se rotinas e algumas regras básicas. O sentido do treino é criar um campo estável de sedimentação e acolhimento de experiências afectivas inesperadas, que fogem ao controle do eu. A regularidade das sessões tem como efeito a criação de uma familiaridade com tais experiências e, enfim, o desenvolvimento de uma atitude distinta da atitude natural. Cabe também destacar que o tempo do aprendizado ultrapassa a unidade da sessão, incluindo o antes e o depois, ou seja, o movimento de engajamento no processo de treino e os pósefeitos da sessão. São identificados dois movimentos, um mais difícil e que envolve esforço, que é dito rio acima (upstream) e outro mais fácil, feito com menos esforço, denominado rio abaixo, (downstream). Esses dois movimentos imprimem ritmo ao processo, cujo mecanismo é circular (Kastrup, 2005, 12). Como artista da cena treinada em técnicas de trabalho do ator, pude identificar a relação do treino com a aprendizagem da atenção ainda antes de manter contato com a produção teórica acerca do tema. O treino, além de treinar a coisa em si – aquilo que se treina – e possibilitar explorações acerca de estados de atenção, também cerca-se de qualidades estéticas, como aponta Kastrup na passagem acima referida: tem movimentos, ritmos, impõe uma ritualística. Com isso, entendo que tenha sido graças à experiência intensiva de treinos em práticas de atuação e performance que já em minha dissertação de mestrado, apontei para a compreensão dos programas performativos – no caso, os roteiros de Atividades elaborados por Allan Kaprow – como proposições ao mesmo tempo estéticas e pedagógicas – assumindo publicamente – isto é, para uma audiência participante, o caráter estético do treino. Assim como me proponho a redigir programas performativos de caráter íntimo, para realização que não solicita espectadores, a produção contemporânea em arte da performance atesta um sem-número de trabalhos dedicados especificamente a investigar estados de atenção diferenciados dos habituais. Esses trabalhos, apesar de estarem inscritos no regime de identificação do sistema de arte, podem ser lidos como exercícios ALEGRAR - nº15 - Jun/2015 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 12 de atenção por parte dos artistas, dada sua similaridade com o que vem sendo entendido como o treino capaz de ampliar a flexibilização desse fundo de variação cognitivo. As características da arte da performance enquanto linguagem, como a possibilidade de livre exploração do tempo e do espaço, fazem dela um campo privilegiado para esse gênero de experiência que chamaremos de autopedagógica em estados atencionais. Existem aqueles trabalhos que debruçam-se sobre estados alterados da percepção, variando consequentemente a atenção, através da agilidade, da vertigem, do excesso, da abundância – que seriam, conforme a crítica cultural, dinâmicas próprias de uma suposta arte pós-moderna. Entretanto, numerosos são aqueles que apresentam posturas críticas frente à saturação dos sentidos própria de nossos tempos e, com isso, dedicamse a explorar estados de atenção aproximando-se das dimensões identificadas por pensadores como a filósofa francesa Simone Weil que, sob inspiração da filosofia oriental, especialmente o taoísmo, desenvolveu o que seus comentadores chamarão de uma “doutrina da atenção”, articulando militância política anticapitalista e espiritualização. Esses trabalhos propõem sua experimentação e crítica de modo geral através do recurso à duração estendida, à repetição prolongada de uma mesma ação ou à utilização de movimentos extremamente lentos. São comuns as obras compostas por uma só ação, com utilização de poucos elementos plásticos e, ainda em generalização, a relação com o espectador/participante mantém traços também de uma pedagogia, por vezes pela via do engajamento físico direto em uma espécie de treinamento, por vezes revelado como uma expectativa, por parte do artista propositor, de que a experiência da fruição da obra proporcione um momento de aprendizagem em relação à atenção que poderá ser estendido para a vida cotidiana. Um artista cuja obra aproxima-se dessas experiências foi Allan Kaprow. Uma noção aproximada da prática budista que conhecemos no ocidente como desapego aparecia em Kaprow como uma qualidade de atenção que constituía um recurso composicional ou tema na elaboração dos roteiros de suas Atividades. Como se sabe, as Atividades de Kaprow eram ações artísticas participativas, elaboradas com fins pedagógicos mais ou menos enunciados, fins esses que seriam atingidos através do engajamento do coletivo de participantes nas ações previstas pelo artista. Com isso, ou seja, pela ativação do roteiro, o desapego deixa de ser exclusivamente uma temática disparadora e faz-se estado ou qualidade de atenção no participante. É o caso da ação Leaving no footprints, de 1981, em que o artista estimula os participantes a realizarem ALEGRAR - nº15 - Jun/2015 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 13 uma caminhada sobre a grama, deixando sobre ela as marcas de suas pegadas e, na sequência, realizar o trajeto inverso, levantando a grama amassada, desfazendo, assim, as marcas anteriores. Sob a influência da filosofia Zen, que tomou os Estados Unidos nos anos de 1950 e 1960 através da atuação intensiva do professor Shunryu Suzuki, Kaprow desenvolveu uma série de Atividades que podem ser tomadas como exercícios de uma pedagogia da atenção despojada. No mesmo sentido, está o trabalho de José Fiadeiro e Fernanda Eugênio com o Método Operativo AND, diretamente influenciado pela noção de não ter uma ideia, que no século XX teve uma leitura ocidental pelo filósofo e sinólogo francês François Jullien. A partir dessa provocação, reformulada na questão “Como viver sem ideia e com o que há”, a dupla desenvolveu um jogo improvisacional em formato espiral, que consiste na obra em si, em que um grupo de pessoas deverá, a princípio, encontrar o jogo comum que se estabelece naquele contexto de realização e, a partir daí, seguir estabelecendo posições e relações improvisacionais provisórias, que possibilitam o viver junto dentro de um jogo que não procura formar-se em saber, cujas regras estabelecem-se no instante, assim como se desvanecem. (EUGÊNIO E FIADEIRO, 2013). A performer colombiana Maria Teresa Hincapié explorou estados de atenção em sua relação com o trabalho em sua obra Punto de fuga, de 1989. Nela, a artista permanecia instalada em uma sala do Museu de Arte da Universidade Nacional durante doze horas por dia, por três dias. Em cada uma dessas doze horas, a performer dedicavase a tarefas domésticas comuns, como varrer, lavar roupas, lavar pratos etc., realizando cada ação em movimentos extremamente lentos, de modo a tomar todo o tempo disponível com essas realizações. Ralentando os serviços realizados cotidianamente em ritmo acelerado e com vistas à finalização tão breve quanto possível, a artista investigava em si estados de atenção passíveis de serem alcançados através do engajamento no trabalho doméstico, ao mesmo tempo em que destaca, ao espectador, o seu oposto. Também evidencia-se a questão da atenção persistente, questão essa afim ao trabalho da performer mas que não influencia diretamente a percepção do espectador sobre a obra. Em todos esses trabalhos, a performance mostra-se como um processo de pesquisa, seja sobre si e seus modos de estar atento, seja sobre os objetos ou fenômenos com os quais se constrói. Essas obras nos levam a desconfiar de que atentar seja quase um sinônimo para investigar – afirmação da qual se aproximam diversos pensadores das ALEGRAR - nº15 - Jun/2015 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 14 metodologias cartográficas de pesquisa, como a já citada Kastrup (2010) e para a qual aponta Alfredo Bosi (apud BOSI, 2003) em Simone Weil quando nos fala sobre o que seria sua “pedagogia do olhar”: o olhar atento quando repousado sobre um objeto, mantendo-se despojado e persistente, pode vislumbrar seus vários perfis, ao mesmo tempo em que permanece capaz de unificá-los, indo do uno ao múltiplo, do múltiplo ao uno – do universal ao subjetivo, e vice-versa. Esse olhar aproxima-se, ainda, daquele que Deleuze chamou de háptico, olhar que não distinguiria figura-fundo e, com isso, não operaria em termos de representação, mas promoveria uma experiência direta – modo perceptivo que, como já citado, Kastrup identifica como uma possibilidade em sua lista de possíveis cultivos do devir-consciente (2004). Dito isso, e dada a necessidade de levar adiante o projeto dos oito programaspistas, optei por propor enquanto programa performativo um texto redigido como um poema. Um texto enxuto, de ações reduzidas, mas ele em si performativo, performador de potentes imagens de atenção. Trata-se da “Oração natural”, do poeta mineiro Donizete Galvão, publicado em seu quinto livro, Mundo Mudo, lançado pela Editora Nankin em 2003. Dou a tarefa por encerrada, sabendo, porém, que deverei construir uma (esta) reflexão sobre esse momento da composição. Reflexões que indicam para uma finalização(-pouso) A composição dos programas-pistas mostrou uma dificuldade que é recorrente na elaboração de aulas–performance ou práticas didáticas performativas, dificuldade que diz respeito aos limites da tradução intersemiótica quando do confronto da linguagem verbal de elaboração conceitual para a linguagem verbal elaborada como disparador de fazeres – ou, como se impôs neste caso, por vezes uma linguagem já performativa – fazendo em lugar de disparar o fazer. Como um conceito pode transpor-se para a fala que pretende provocar a experiência (acerca) do conceito? O desafio não é de simples transposição. Como já nos informam os estudos da tradução, traduzir não é meramente transpor uma matéria de um registro semiótico a outro, mas recriá-la – ou transcriá-la, como quis Haroldo de Campos (2006). Assim também os programas performativos de orientação pedagógica não se pretendem transposições de conceitos, mas recriação em diferentes registros – não apenas diferentes gêneros textuais, como debatemos acima em específico ALEGRAR - nº15 - Jun/2015 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 15 sobre a Pista 2. Tendo me deparado com a dificuldade extrema em operar a transcriação, apoiei-me mais intensivamente no referencial conceitual, exercitando a aproximação da produção teórica no campo da pista em questão daquela da prática artística e performática. Como solução, aceitei um gênero situado entre o conceito e a prática (de criação de imagens, nesse caso): o lírico. O lirismo contaminou ainda outros programas-pistas, apresentando-se como um apoio precioso quando a linguagem pragmática do programa parecia não dar conta de aproximar a experiência proposta. A escrita do programa foi ressignificada, dado que nas investigações precedentes ela vinha muito marcada pelo que chamei de pragmatismo, pela diretividade, enfim, pelo fechamento – um fechamento que intenciona abrir, mas que traz a marca forte da mão do autor, garantindo o espaço para a autoria como exercício de poder. Tal experiência recolocou-me a questão da fala na prática de sala de aula do professor-performer, ou ainda, na performance do mediador das poéticas do encontro. Qual o espaço para o lirismo nessa fala que assume a posição de proposição? Teria ele função quando se intenciona uma interação pedagógica performática não centrada na enunciação do sujeito? A investigar. À guisa de conclusão: entendo que o leitor possa ter, frente aos exercícios de transcriação e a apresentação dos embates por eles promovidos, vislumbrado que a disposição para a escrita de uma tal forma como a aqui proposta - reapresentando a redação acadêmica, buscando novo fôlego para a criação escrita em um campo que articula arte e filosofia, conceito e sensação - acaba por constituir-se como a execução de um grande programa de investigação de orientação cartográfica: eu estou a comporme corpo com o cartografar enquanto redijo essas linhas, tal como espero que possam fazê-lo não apenas aqueles que se disponham a engajar-se fisicamente na execução dos programas, mas também aqueles que se dispuseram a acompanhar essa leitura: uma pedagogia performativa das pistas-programas pela leitura, a promoção de uma leitura, de uma recepção, performativa. REFERÊNCIAS BOSI, Ecléa. A atenção em Simone Weil. Psicologia USP, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 1120, 2003. CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem e outras metas: ensaios de literatura e crítica literária. São Paulo: Perspectiva, 2006. ALEGRAR - nº15 - Jun/2015 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 16 DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34 Letras, 1992. EUGENIO, Fernanda; FIADEIRO, João. Jogo das perguntas: o modo operativo "AND" e o viver juntos sem ideias. Fractal, Rev. Psicol., Rio de Janeiro , v. 25, n. 2, Agosto de 2013. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S198402922013000200002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 30 de novembro de 2014. GALVÃO, Donizete. Oração natural. Mundo Mudo. São Paulo: Nankim, 2003 JULLIEN, François. Um sábio não tem idéia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. KASTRUP, Virgínia. A aprendizagem da atenção na cognição inventiva. Psicologia & Sociedade, v.16, n.3, 2004, p.7-16. KASTRUP, Virgínia. A atenção na experiência estética: arte e produção de subjetividade. Trama Interdisciplinar, v.3, n. 1, 2012, p. 23-33. KASTRUP, Virgínia. 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