Arraia ultima - WordPress.com

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Mito de fundação ou navegação de devaneio.
"... é o vazio ou o cimo?
é um pomar de espumas...".
Antonio Ramos Rosa.
"… onde o silêncio da terra,
cresceu à altura das árvores
unânime sabor enorme das folhas que nas mãos
se enrolam frescas
somos quase a água de um segredo".
Antonio Ramos Rosa.
Quando é profunda a navegação o corpo perde a referência da terra. O devaneio é profundo e não se distingue tanto a vida da morte. Um sono ou um choro é confundido com uma simples travessia. São
águas fortes essas das praias daqui; Bartolomeu certa hora do dia não se atreve a entrar. Sua bota está gasta e anda a esmo. A areia entra mesmo sendo fechada sua bota. Bartolomeu tira seu calçado e
descansa. Resolve ficar. O rio sai da mata e cai naquele mar agitado. Bartolomeu vê as cores que vem com a água. Percebe o céu emaranhado de nuvens brancas fortes... sobe para cima de uma duna de
areia. Vê a vastidão e o horizonte, percebe como está isolado. Como seria caminhar a esmo anos à frente. Sabe da presença dos barcos saqueadores que vem de outros mares; demora seu olhar na vista do
horizonte; tenta ver algum barco com alguma bandeira que se ergue ao longe. Sua vista alcança água e sol. O Vento ataca seu rosto e sua roupa; sal gruda em seu corpo criando uma crosta. Parece que venta
mais agora do que quando chegou por aqui. Parece que os dias na solidão dos limites da praia o faz sonhar demais. Na frente do mar parece que as águas nunca passam. O mais estranho é que os sonhos na
frente do mar são fortes e reais, o devaneio aumenta em Bartolomeu, seus sentidos se aguçam, o cair da noite e o correr das águas lhe traz a lembrança da morte. O cheiro do sal lembra a conserva dos dias
quentes, e agora absorto em sua natureza selvagem, encosta em um monte de areia. Bartolomeu sonha no tempo da noite. Sabe que não pode arquitetar em tamanha vastidão. Como usar da razão naquele
vazio? Sozinho não faria nada! Começa a perceber que não pode nada além de esperar olhando para a vastidão da faixa de areia. Sua parada na duna de nome desconhecido, sob o cair da noite representa,
vista de longe, algo que nos dava mais do que poderíamos ter com nossa parca linguagem e nossa disposição de falar sobre o que pode ter sido aquela passagem pela costa brasileira. Dias de devaneio:
Bartolomeu se instaura nos limites do território, não adentra a mata, não adentra os rios; depois de descer de seu barco e ver sua tripulação ir embora para o interior do novo mundo descoberto, não sai da faixa
litorânea: anda a esmo pela faixa de areia e toma banho de mar nas marés baixas. Sua passagem durou o tempo de sua fome que foi maior que sua força. Seu devaneio não pode ser ouvido por ninguém do
outro lado do oceano. As espumas estouram à sua frente; está de roupa fechada e sente o calor lhe assar dentro de tanto pano. Se tirasse o calor passa, mas sua pele seria queimada pelo sol. Seu chápeu,
desde que desceu do barco e desde que o barco encalhou e naufragou, não tira da cabeça. Bartolomeu tinha um segredo. Sua passagem na costa brasileira não seria como as de costume: ao embarcar seus
tripulantes no outro continente, sabia que ia ficar por aqui. Morrer por aqui, na vastidão, nas águas: essa era uma idéia; a outra seria criar um mito ali agora, algo que fundasse logo aquela nação. Tenta fazer um
breve histórico:
Sai da Ibéria, dá de cara com a paisagem brasileira, verdejante, esplendorosa, calorenta e lavada pela chuva. Sua primeira viagem ao estrangeiro. Sai de Vila Nova de Gaia e corta o Atlântico: na vastidão
força e coragem que ainda não é um reduto fortificado, vagueia pela costa, pela faixa de areia. Os que ali habitam vêem diante de si um branco a andar pelo suas terras, mas deixavam-o, pois era de se esperar
que sucumbisse um dia. A superioridade dos que ali habitam, os da terra, era latente. Não guerreavam, pois, a guerra era inútil: matar o outro, não era o que queriam os que ali habitam. Esses da terra sabiam
que o trabalho da travessia, ou seja, o projeto da navegação, coisas grandes assim não funcionam; se não der ouvidos a eles, iam sucumbir diante da diferença dos continentes. Pois a guerra vem da razão do
Ocidente. Diante das espumas salgadas dos verdes mares da costa, Bartolomeu espera para ser levado pelas águas até sua cidade ao norte do planeta: entra lentamente nas águas do mar. Os que ali habitam
sabem que ele vai ser levado embora pela correnteza, dão de costas com respeito pelo feito. Bartolomeu não tinha chances. Sua passagem durou o tempo de sua fome que foi maior que sua força. Os que ali
habitam ao encontrar seu corpo disseram que estava em paz, como se estivesse dormindo.
Continua.
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