1 INTRODUÇÃO A Educação Física no contexto escolar trata de um conteúdo chamado “cultura corporal” da qual faz parte toda a amplitude de manifestações culturais, como esportes, jogos e lutas, além de conteúdos chamados “conhecimentos sobre o próprio corpo”, o qual trata de conhecimentos anatômicos, fisiológicos, biomecânicos e bioquímicos do corpo humano.1 Na escola, o que se deve buscar é uma reflexão sobre a cultura corporal enquanto formas de representações do mundo que o homem tem produzido no decorrer da história, exteriorizadas tanto pela expressão corporal, quanto pelos jogos, danças, lutas, exercícios ginásticos etc. Estas podem ser consideradas como formas de representação simbólica de realidades vividas pelo homem, sendo historicamente criadas e desenvolvidas culturalmente. A postura, como forma de expressão corporal é um tema a ser desenvolvido nas aulas de Educação Física. De acordo com BARBANTI, postura é a “posição do corpo, com referência particular a retidão das costas quando em pé ou sentado, ou no posicionamento dos membros. A postura corporal é mantida principalmente por contrações isométricas da musculatura de suporte. Uma postura inadequada pode levar a várias desordens musculares ou esqueléticas”.2 Para FERREIRA, a postura é entendida como a “posição do corpo ou de 1 Cf. PIRES, Célia Maria Carolino & SOARES, Maria Tereza Perez.Parâmetros Curriculares NacionaisEducação Física (5ª a 8ª séries), [199-], p. 68-70. 2 BARBANTI, V. J .Dicionário de Educação Física e Esporte. São Paulo: Manole, 1994, p. 230. 2 uma parte dele”3, resultado de várias forças que atuam sobre ele, como as forças musculares e da gravidade. Podemos perceber pelas definições acima que a postura é definida, no primeiro caso, por um profissional da área da Educação Física pautado num ponto de vista biomecânico e fisiológico, sendo que sua principal preocupação parece ser com a saúde do indivíduo, em especial, com as desordens musculares e esqueléticas, enquanto que, no segundo caso, a postura é entendida como a interação de várias forças. Não podemos ignorar, no entanto, que existem outras forma de se pensar a postura, as quais estão, por exemplo, ligadas à expressividade do indivíduo. É possível encontrar inclusive “guias” para que se entenda o caráter do indivíduo a partir de sua postura, de suas formas corporais.4 Outros especulam sobre o modo como o indivíduo age e as posturas que assume para analisarem e entenderem suas intenções, mostrando que a postura pode ter um entendimento mais amplo.5 Esses “guias” e outras formas de pensar esse tema ilustram que a postura nem sempre é entendida da mesma forma. Além dos fatores biomecânicos é preciso que se entenda a postura de uma maneira mais ampla, interagindo-a com fatores culturais e emocionais, como mostram os PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais) e alguns autores como MEDINA, que enfatiza que o corpo humano não deve ser tratado de forma mecânica, sendo necessário que se entenda o ser humano em sua totalidade, como um ser total e indivisível e não como um amontoado de músculos e ossos, como uma “máquina”. 6 Amplamente discutido, este assunto evidencia, que as causas ou determinantes da postura devem ser entendidos como fatores mecânicos ou gravitacionais, emocionais e, também, políticos e sociais. 3 FERREIRA, A. B. H., Novo dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 1373. 4 Veja por exemplo KURTZ, Ron & PRESTERA, Hector. O corpo revela: um guia para leitura corporal. Tradução de Maria Aparecida Barros Libanio. 2. ed. São Paulo: Summus, 1989, ou KELEMAN, Stanley. Anatomia emocional. Tradução de Myrthes Suplicy Vieira. 2. ed. São Paulo: Summus, 1992. 5 WEIL, Pierre & TOMPAKOW, Roland. O corpo fala. 38. ed. Petropólis: Vozes, 1995. 6 MEDINA, J. P. S., A Educação Física cuida do corpo... e “mente”. 8. ed. Campinas: Papirus, 1989, p. 41-2. 3 Para FREIRE, a “questão da postura corporal não se resume a um jeito de andar ou sentar, mas a um jeito de viver”.7 Outros, entretanto, ressaltando um caráter histórico no trabalho com a postura na escola, enfatizam que deve ser demonstrado aos alunos que o homem primitivo não tinha a mesma postura que o homem de hoje, sendo aquele quadrúpede e este bípede, sendo que esta passagem se deu em razão de necessidades impostas pela natureza e superadas pelo homem. Assim, essa conquista e produção humana transformou-se em um patrimônio cultural da humanidade, sendo que todos os homens se apropriaram dela e a incorporaram a seu comportamento.8 Apesar de opiniões diferentes a respeito do tema, temos como pressuposto que, de forma geral, ainda não foi dada a atenção necessária às influências emocionais sobre a postura. É nesse sentido que o objeto de estudo desse trabalho é a postura e a forma como esta interage com as emoções ou, mais amplamente, como ocorre a interação entre o psíquico e o somático. De forma geral, o trabalho pretende questionar, através de uma revisão de literatura, as formas como a postura tem sido tratada na Educação Física, procurando obter uma visão mais global, ainda que o principal foco seja sobre a questão emocional. Pretende-se relacionar a postura a aspectos mais amplos da vida humana, procurando entendê-lá de diversas formas, sem ignorar o fato de que um desvio na coluna vertebral, como por exemplo, um achatamento ou acentuação de suas curvaturas pode causar solicitações funcionais prejudiciais, além do que, podem evidenciar aspectos emocionais.9 Na realidade, a idéia de que existiriam relações entre corpo e mente, ou entre psíquico e somático, remonta a antigüidade. Em 400 a.C., na Grécia, HIPÓCRATES já procurava pesquisar as características da personalidade e hábitos de vida de seus pacientes, já que acreditava que as doenças estavam ligadas a fatores emocionais. No oriente, a medicina chinesa descobriu um tipo de energia vital que flui no nosso corpo e acompanha 7 FREIRE, João Batista. Corpo e sociedade. In: BRASIL. Ministério da Educação e do desporto. Postura corporal: integração dos fatores culturais e sociais aos fatores biológicos. Brasília, DF, 1994, p. 16. 8 COLETIVO DE AUTORES. Metodologia do ensino de Educação Física. São Paulo: Cortez, 1993, p. 38. 9 AMADIO, Alberto Carlos (Coord.) & DUARTE, Marcos (Coord.) Fundamentos biomecânicos para a análise do movimento. São Paulo: Laboratório de Biomecânica- EEFUSP, 1996, p.106. 4 os processos fisiológicos e emocionais, sendo que as doenças envolveriam perturbações neste fluxo de energia.10 Outro autor que retomou esta discussão, razão pela qual será o principal referencial teórico desse trabalho, é Wilhelm REICH — ainda que outros sejam mencionados — cuja obra despertou interesse especial pela forma de considerar as relações entre o psíquico e o somático e por transpor algumas idéias para um campo mais amplo, vendo na forma como se organiza a sociedade a fonte de diversos problemas e patologias, ressaltando a importância do uso do corpo na reprodução estrutural da ordem social. Um exemplo que o autor expõe é a atitude postural militar, com pescoço rígido, peito para fora, abdômen para dentro, próprios de uma expressão corporal rígida. De acordo com REICH, ensinar o povo a assumir uma atitude rígida e não-natural é um dos meios mais essenciais usados por um sistema social ditatorial para produzir, com a perda da vontade, organismos que funcionem automaticamente. Esse tipo de educação não se restringe aos indivíduos; é um problema que concerne ao âmago da estrutura e da formação do caráter do homem moderno. Afeta grandes círculos culturais, e destrói a alegria de viver e a capacidade para a felicidade em milhões sobre milhões de homens e mulheres. Assim, vemos uma única linha que se estende na prática infantil de prender a respiração para não precisar masturbar-se, até o bloqueio muscular dos nossos pacientes, até a rígida posição dos militaristas, e até as técnicas artificiais destrutivas de auto-controle (sic), de círculos culturais inteiros. 11 Podemos, atualmente, perceber influências de REICH na área da Educação Física, sobretudo nas chamadas práticas corporais alternativas. Essas práticas pretendem alcançar através de abordagens corporais, algo mais do que o corpo: o psíquico do indivíduo. De acordo com MATTHIESEN, essas práticas, muitas vezes, se apropriam das teorias de REICH, reconhecendo nele um precursor.12 Pretende-se explorar as idéias de REICH, para que se possa entender de que forma essas práticas, cada vez mais valorizadas no âmbito da Educação Física, a têm influenciado. Mas desde já, diríamos que essas atividades devem ser valorizadas, já que privilegiam uma 10 Cf. TROTTA, Ernani Eduardo. Wilhelm Reich e a psicossomática. In: MALUF JÚNIOR, Nicolau (Org.). Reich: o corpo e a clínica. São Paulo: Summus, 2000, pg. 106. 11 REICH, Wilhelm. A função do orgasmo: problemas econômico-sexuais da energia biológica. Tradução de Maria da Glória Novak. 17. ed. São Paulo: Brasiliense, 1992, p. 296-7. 12 Cf. MATTHIESEN, Sara Quenzer. Teorias de Educação do corpo: de Wilhelm Reich às práticas corporais alternativas. Filosofia, sociedade e educação, Uberlândia, ano 1, n. 1, p. 153- 162, 1997. 5 melhor consciência corporal e autoconhecimento. No entanto, algumas delas são apresentadas como uma solução para todos os males, excluindo fatores de ordem social, influências consideradas essenciais por REICH, e certamente essenciais para o entendimento da postura e sua relação com as emoções. Este trabalho tem início com a apresentação de uma visão biomecânica sobre a postura, embora sem procurar aprofundar nos detalhes técnicos, mas valorizando sua compreensão sobre os “defeitos posturais” e suas causas, tendo em vista que a idéia de que uma “boa postura” é considerada uma questão de saúde e é bastante valorizada na Educação Física. Procuraremos, portanto, apresentar algumas formas de correções ainda existentes e praticadas nos dias de hoje, mostrando como algumas podem estar relacionadas a um controle social, sendo praticadas com o intuito de tornar o corpo humano mais “útil”, mais eficiente e controlado. Por outro lado, procuraremos apresentar na seqüência do trabalho, duas práticas corporais que tratam do problema da postura de modo diferenciado, como algo capaz de conduzir a transformações psíquicas e somáticas. Ou seja, de forma ampla exploram a idéia de que a melhoria “física” da postura conduziria a melhoras emocionais. Práticas como essas, denominadas práticas corporais alternativas, se encontram no âmbito da Educação Física e apresentam uma forma diferenciada de concepção do ser humano, valorizando o corpo e o movimento. Devem, portanto, também merecer a atenção de pesquisadores da área da Educação Física, bem como dos alunos, para que obtenham uma visão mais integrada do ser humano e consequentemente, tenham, também uma concepção de movimento mais abrangente. Como todas as práticas, essas devem ser acompanhadas de reflexões e críticas, buscando-se um entendimento de ser humano completo e complexo. Por fim pretendemos apresentar algumas teorias de Wilhelm REICH, contando parte de sua história, por considerá-la importante para que se entenda suas idéias, principalmente sobre o movimento enquanto expressão humana, intimamente ligado à postura, suas compreensões sobre o organismo humano e o entendimento do ser humano como algo unitário e inseparável, sem distinção entre corpo e mente ou psíquico e somático e a relação existente entre a repressão do corpo, das emoções e suas influências sobre a postura. 6 7 CAPÍTULO I A POSTURA: DEFINIÇÕES E “DEFEITOS” MAIS COMUNS De acordo com MELLO, a postura ideal é um conceito criado para que se tenha um referencial para avaliar a diversidade de padrões posturais existentes. A postura ideal é aquela na qual “ao se passar um fio de prumo, real ou imaginário, na frente do corpo, passando pelo nariz, apêndice xifóide, umbigo e entre os pés, divide-o em duas metades absolutamente simétricas”. 13 Lateralmente, o fio passará pelo pavilhão auricular, centro do ombro, meio da articulação coxofemoral, joelho e à frente do maléolo externo. A boa postura oferece “somaticamente uma atitude ereta, equilibrada, fácil e econômica, leve e natural; os movimentos são executados com boa amplitude articular, com trajetória econômica, com ritmo e expressividade apropriados, coordenados e descontraídos”. 14 O mesmo autor define que, psiquicamente, o indivíduo que apresenta boa postura deverá ter muita confiança em si, aspectos de pensamento positivo, transmitindo a aparência de um vigor inesgotável. Talvez esta compreensão já traga em si a idéia de que existiriam relações entre a “boa postura” e as emoções, idéia bastante explorada no decorrer do nosso trabalho. De acordo com RASH & BURKE, a avaliação de uma boa postura é feita, muitas vezes, de maneira arbitrária, já que somente o tipo muscular determina a postura ideal. Não se pode esquecer que a postura não é algo exterior ao indivíduo, e sim parte inseparável 13 14 MELLO, Paulo Roberto Barcellos de. Introdução a ginástica escolar especial. São Paulo: Manole, 1986. Ibidem, p. 40. 8 dele, sendo portanto uma questão individual.15 Cabe ressaltar que é impossível medir todas as influências a que um indivíduo está submetido no seu dia a dia, as quais certamente interferem em sua postura. A postura ereta, de acordo com os autores, não é a mais eficiente. Para se ter uma idéia, a postura “militar” requer 20% a mais de energia do que a postura relaxada. Além disso, os autores explicitam que não há nenhuma evidência de que a correção de “defeitos” posturais tragam benefícios fisiológicos.16 Mesmo com aparelhos científicos para a medição gráfica da postura que vêm sendo desenvolvidos nos últimos anos, RASH & BURKE explicam que há dificuldades na análise dos significados das informações deles provenientes, as quais estão sujeitas à suposições subjetivas e arbitrárias do observador. 17 Mesmo assim, a “má postura” existiria e teria as seguintes causas: Traumatismo: acontece quando um osso, ligamento ou músculo é lesado e tende a debilitar a sustentação nesse ponto e desequilibrar a estrutura esquelética do indivíduo. Durante o tempo em que persistir essa condição, a postura “perfeita” será, de acordo com os autores, impossível. Doença: algumas debilitam os ossos ou os músculos, ou limitam a força ou a liberdade de ação das articulações, dificultando o domínio da postura com a mesma intensidade dos traumatismos. Hábito: o hábito da postura é adquirido, muitas vezes, de uma forma inconsciente. No caso de um mau hábito de postura, os segmentos corporais são mantidos desalinhados por um longo tempo, com determinadas partes suportando um peso excessivo em relação a outras, com certos músculos se alongando e seus antagonistas se encurtando, de forma que a postura “defeituosa” parece natural para o indivíduo, enquanto a postura correta lhe parece ser estranha. Os hábitos defeituosos de postura podem surgir também devido a traumatismo ou doenças. 15 Cf. RASH, Philip J. & BURKE, Roger K. Cinesiologia e Anatomia aplicada: A ciência do movimento humano. Tradução de Olavo Pires de Camargo e Flávio Pires de Camargo. 5. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1977, p.429. 16 Ibidem, p. 430-431. 17 Cf. ibidem, p. 432. 9 Fraqueza: a postura ereta não pode ser mantida sem nenhum gasto de energia necessitando, portanto, de força e resistência. A fraqueza muscular e a falta de vitalidade seriam reponsáveis em predispor o indivíduo a adotar uma posição de descanso com a finalidade de conservar energia. Hereditariedade: a cifose pode ser hereditária e é possível que outros “defeitos posturais possam ter uma base genética”.18 Indumentária: de acordo com os autores, o uso de sapatos com salto alto provoca um aumento acentuado de atividade do gastrocnêmio, do sóleo e do fibular longo, por deslocar o centro de gravidade para frente, podendo provocar um desvio. Atitude mental: a postura, muitas vezes, pode refletir a atitude mental do indivíduo. Os estados de exaltação, confiança e satisfação ajudam na manutenção da postura ereta enquanto a humildade e a depressão atentam contra ela. Segundo RASH & BURKE “uma boa atitude mental é, da mesma forma, manifestada por uma postura ereta e alerta, enquanto que a atitude mental deprimida é refletida por uma postura desleixada”.19 Nota-se que aqui aparece a idéia que relaciona a postura com a expressividade e, portanto, com as emoções. Contudo, por ser tão sintética, não abarca todas as implicâncias sobre a postura e sua profunda relação com as emoções. Uma outra compreensão de corpo e de doença, como a de REICH por exemplo, levaria a um aprofundamento desse aspecto, como veremos no desenvolvimento desse trabalho. Se RASH & BURKE consideram que a postura é uma questão altamente individual, teríamos de esquecer um pouco as medições que se fazem acerca da postura para procurar entendê-la de forma diferenciada e individual, de pessoa para pessoa. Assim seria necessária não só uma medição da postura, mas sim um conhecimento do indivíduo com quem se está lidando. De acordo com BANKOFF, a excessiva preocupação com trabalhos corporais que visam a um modelo postural, se devem principalmente ao grande número de problemas funcionais decorrentes do processo de adaptação do homem à postura ereta, desde que o homem pré-histórico passou da posição de quadrupedia à bipedia. Segundo a autora, é 18 19 Ibidem, p. 441. Ibidem, p. 442. 10 impossível responder qual seria a postura corporal mais correta, já que a adaptação à posição bípede ainda não está completa e não sabemos em que estágio do desenvolvimento estamos. É necessário, segundo ela, considerar os problemas posturais como decorrência de fatores sociais e culturais que se refletem sobre o corpo humano.20 De acordo com a autora, vários fatores mecânicos mudaram com a passagem da bipedia para a quadrupedia como, por exemplo, o fato de que os membros superiores foram libertados e isto permite um maior número de movimentos com maior amplitude dos braços, estando esses a favor da gravidade como se fossem dois pêndulos. Isso já causaria um abaixamento dos ombros e escápulas naturalmente, tendendo à cifose. No entanto, BANKOFF acredita que não se deve criar um modelo sobre a postura, mas deve-se conscientizar a criança sobre seu corpo e sua postura.21 São várias as alterações posturais consideradas patológicas pela bibliografia consultada na área. No entanto, abordaremos apenas aquelas definidas como lordose, cifose e escoliose, por serem consideradas mais comuns e de maior domínio do profissional de Educação Física. De acordo com RASH & BURKE, a cifose é uma convexidade posterior aumentada da coluna torácica, a qual pode estar associada a outro defeito estrutural, isto é aos “ombros caídos”, que é um desvio para a frente da cintura escapular. A lordose é “um aumento da concavidade posterior da curvatura lombar ou cervical, acompanhada por uma inclinação da pelve para frente”. 22 Os músculos da porção lombar das costas estão encurtados, enquanto os abdominais estão alongados, de forma que nessa posição “um peso demasiado é aplicado nas bordas posteriores dos corpos das vértebras lombares, havendo uma acentuada tendência a adotar a posição de ombros caídos para compensar o deslocamento do peso corporal para trás”.23 20 BANKOFF, Antonia Dalla Pria. Fatores biológicos da postura ereta: causas e conseqüências. In: BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Postura corporal: integração dos fatores culturais e sociais aos fatores biológicos. Brasília, DF, 1994. 21 Ibidem, p. 27. 22 Cf. RASH, P. J. & BURKE, R. K., op. cit., p. 451. 23 Cf. ibidem, p. 452-3. 11 Escoliose é o nome dado a desvios para um dos lados da coluna vertebral em estados avançados, representando uma combinação de desvio lateral e de rotação longitudinal. A “curvatura lateral diminui a capacidade da coluna para sustentar o peso corporal, deforma as cavidades corporais e desloca os órgãos por compressão, e, em casos avançados, leva a uma compressão dos nervos espinhais, nos pontos em que eles saem do canal vertebral”.24 A escoliose pode se originar devido a defeitos estruturais hereditários, deterioração das vértebras, ligamentos ou músculos, paralisia unilateral dos músculos espinhais, diferença de comprimento dos membros inferiores, pé plano, pronação unilateral ou desequilíbrio do desenvolvimento muscular resultante da ocupação ou hábito.25 Autores como GALOPIN, estão entre aqueles que propõem formas de “correção postural” desses desvios por meio da “Ginástica Corretiva”. Após a identificação do problema postural, o autor sugere como intervenção uma série de exercícios na área afetada. Ressalta que o resultado do trabalho começa a partir do momento em que o paciente adquire “automatismos corretivos”, ou seja, corrige sua postura involuntariamente no seu dia a dia, sem perceber.26 GALOPIN também recomenda o uso de armaduras de gesso e coletes, os quais são necessários em casos de graves deformidades da coluna vertebral. Apesar do incômodo, os pais deveriam orientar seus filhos a dormir com esse gesso ou colete, no caso dos desvios mais graves, apesar da possibilidade de resistência por parte da criança. 27 Contudo, não poderíamos deixar de observar que isso poderia causar um sentimento de inferioridade na criança, podendo acarretar prejuízos para a postura, se a considerarmos intimamente ligada à auto-estima do indivíduo. No livro “Ginástica corretiva”, o autor apresenta um apanhado de exercícios, sendo em geral 10 lições para cada “problema”. Assim, pautado em descrições dos exercícios apresenta “10 lições” para a escoliose total esquerda, com vários exercícios corretivos, “10 lições para hemitórax”, “para emagrecer” etc. 24 Ibidem, p. 455. Cf. ibidem, p. 456. 26 Cf. GALOPIN, Roger. Ginástica corretiva. 2. ed. Tradução de Ilson Ávila Dominot. Rio de Janeiro: Livro Íbero Americano, 1984, p. 35. 25 12 Devemos lembrar aqui, que exercícios são meios de se fazer um determinado movimento “cientificamente”, ou seja, com o amparo de ciências como a fisiologia e a biomecânica. No entanto, essas ciências não costumam levar em consideração a individualidade de cada um e, em geral, têm a tendência de se guiarem pela média ou por um padrão “normal” que, na realidade, não existe quando se trata da postura, já que esta é altamente individual. Segundo GALOPIN, a mudança de atitude postural se daria inconscientemente, condicionando um hábito ou atitude, parecendo, de certa maneira, um “adestramento”. Na verdade, a mudança na postura deveria ser dada pela consciência do indivíduo, adquirindo um maior sentido corporal, uma propriocepção mais apurada, e não pela inconsciência. MICHEL FOUCAULT salienta que uma das formas de docilizar o corpo, de tornálo obediente é através da postura. Assim , “corrige-se” a postura tendo como modelo o soldado, habituando o corpo a manter a cabeça ereta e alta, manter-se “direito” sem curvar as costas, salientando-se o peito e encolhendo-se o dorso.28 Não podemos esquecer como a Educação Física já reproduziu — e alguns professores ainda reproduzem — essas práticas de “adestramento”, de “docilização” dos corpos. Para FOUCAULT, é “dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado”.29 A principal forma pela qual ocorre a docilização é através de uma disciplina rígida, descrita como métodos que permitem um controle minucioso das operações do corpo, exercendo a sujeição constante de suas forças e impondo uma relação de docilidade-utilidade. Podemos perceber que a Ginástica corretiva, neste caso, não estaria preocupada no autoconhecimento de seus alunos. Estaria, na realidade, interessada na correção de seus “defeitos” posturais, muito embora essa forma de “correção” talvez não seja a mais adequada, já que a própria avaliação dos “desvios posturais” também pode implicar aspectos subjetivos. 27 Cf. ibidem, p. 39. Cf. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 23. ed. Tradução de Raquel Ramalhete. Petropólis: Vozes, 2000, p. 117. 29 Ibidem, p. 118. 28 13 Parece que os principais objetivos desse tipo de “Ginástica corretiva”, que já figuraram por algum tempo em programas de Educação Física, se propõem muito mais a uma docilização dos corpos do que qualquer outra coisa. A mudança postural se dá pelo hábito, de forma inconsciente, como se fosse alguma coisa ruim, a qual o indivíduo tem de engolir a força, um desvio de conduta, de postura. Talvez, venha daí a forma com que a palavra postura é muitas vezes usada: como uma atitude que deveria ser controlada para um melhor aproveitamento e rendimento dos corpos na sociedade. Nesse caso, a escola serviria apenas como uma forma de controle social e adequação dos corpos aos interesses sociais vigentes. Podemos perceber em outra autora, KUCERA, a forte influência social por trás da “Ginástica Médica”, a qual apresenta em seus fundamentos seus principais objetivos: coluna vertebral e articulações do tronco eficientes, musculatura e ligamentos eficientes, distribuição econômica da atividade etc.30 Assim, parece que, se usados, numa aula de Educação Física tais pressupostos, pautados no argumento da manutenção da saúde, estariam, na realidade, desenvolvendo um tipo de Educação capaz de preparar o indivíduo para ter uma posição eficiente e competitiva numa sociedade igualmente competitiva e exigente, ainda que essa formação possa ser totalmente acrítica. Não se trata de ser contra a eficiência e a economia da atividade ou do uso das principais partes do corpo. Mas, o que se deve ter em mente, é que a eficiência e economia podem ser reflexos de uma sociedade em que apenas os “eficientes” têm lugar e a “economia” deve ser valorizada, excluindo-se os menos aptos, os quais deveriam, a todo custo, se conscientizar de seus “defeitos” e procurar corrigi-los. Agindo dessa forma, o que se espera da Educação Física é um controle e uma adequação das pessoas para exercerem suas atividades profissionais o mais eficientemente possível. Essa adequação física, ou melhor, essa Educação Física, tem sido amplamente criticada por alguns, como é o caso do COLETIVO DE AUTORES, responsáveis pelo livro “Metodologia de ensino da Educação Física”. De acordo eles, essa Educação Física que visa a aptidão física do homem tem contribuído historicamente para os interesses da classe 30 KUCERA, Maria. Exercícios de Ginástica Médica. 3. ed. Tradução de Margot Petry Malnic. São Paulo: Manole, 1983, p. 1. 14 no poder, procurando adaptar o homem à sociedade, “alienando-o da sua condição de sujeito histórico, capaz de interferir na transformação da mesma”.31 Tal perspectiva apóiase na pedagogia tradicional e na tendência biologista para adestrá-lo. Essa forma de Educação Física, que visa adaptar seus educandos a uma realidade social, sem se preocupar com a leitura dessa mesma realidade, é perigosa e inadequada para a formação de um indivíduo crítico e consciente, cujo objetivo deveria vincular-se àqueles propostos pela Educação Física escolar. Para DANIELS & WORTHINGHAN, o objetivo geral do programa de exercícios terapêuticos é usar os princípios cinesiológicos para a correção de um mau alinhamento do corpo que afete seu funcionamento ou possa provocar uma debilidade. Os objetivos específicos são: desenvolver o senso cinestésico do bom alinhamento, relaxar a musculatura que não for necessária para uma movimentação leve, coordenada e eficiente, aumentar a força muscular para alcançar o bom funcionamento e função e atingir a flexibilidade normal.32 Os autores parecem bastante preocupados com o alinhamento vertical do corpo. Esse melhor realinhamento é feito através de exercícios que privilegiam uma maior amplitude articular, alcançando, dessa forma, um melhor funcionamento muscular. Provenientes da fisioterapia, DANIELS & WORTHINGHAN apresentam uma evolução na metodologia de trabalho em relação à ressaltada anteriormente. Assim, recomendam que o profissional esteja atento a possíveis distúrbios emocionais que possam estar afetando o paciente e sugerem, nesse caso, um tratamento interdisciplinar.33 No entanto, abordam de forma bastante superficial a questão emocional, que deveria ser a mais importante já que não estão lidando apenas com músculos, ossos e ligamentos, mas com um indivíduo complexo e único. No caso da Educação Física o conhecimento sobre postura deve ser desenvolvido da forma mais interdisciplinar possível. Também não se deve negligenciar os períodos pelos quais a Educação Física passou, em que eram notórias as influências da medicina, ginástica 31 COLETIVO DE AUTORES. op. cit., p. 36. Cf. DANIELS, Lucille & WORHINGHAM, Catherine. Exercícios terapêuticos: para alinhamento e função corporal. 2. ed. Tradução de Angela G. Marx. São Paulo: Manole, 1983, p.37. 33 Cf. ibidem, p. 39. 32 15 médica, corretiva etc. É importante ressaltar que o trato com a postura não ocorreu sempre da mesma forma, mas alterou-se no tempo, de acordo com os avanços científicos e metodológicos. No âmbito da Educação Física, outra forma de trato com a postura pode ocorrer por meio das práticas corporais alternativas. Dentre elas, ressaltaremos a Antiginástica e o Rolfing, por conceberem o ser humano de forma mais completa, e tratar da postura de forma holística, levando em conta a dimensão emocional do homem, como será demonstrado. 16 CAPÍTULO II “ALTERNATIVAS” NO TRABALHO COM A POSTURA 1. A Antiginástica de Thérèse Bertherat Para além da forma de trabalho com a postura apresentada anteriormente, existem outras que integram aquilo que se denomina práticas corporais alternativas. Assim, nos deteremos à Antiginástica e ao Rolfing pois as duas práticas corporais alternativas consideram estreita a relação entre o psíquico e o somático do indivíduo, ressaltando as influências emocionais sobre a postura. As práticas corporais alternativas procuram “por meio de um discurso atrativo, retomar o contato do indivíduo consigo mesmo, com seu corpo”, 34 sendo que essas práticas têm sido valorizadas em alguns cursos de Educação Física. A Antiginástica, é um exemplo significativo do que representam essas práticas e o que procuram, apresentando-se como uma alternativa no trabalho com a postura. A Antiginástica apresenta-se como uma alternativa de trabalho corporal no âmbito da ginástica médica e da Educação Física, se postulando contrária aos princípios fundantes de ambas. Essa prática também é exemplo da forma como alguns trabalhos de abordagem corporal se apropriam da teoria de REICH e enfatizam que a intervenção sobre o somático do indivíduo seria capaz de atingir seu psíquico. O principal objetivo da Antiginástica é 34 MATTHIESEN, Sara Quenzer. Limites entre o psíquico e o somático: Wilhelm Reich e Thérèse Bertherat. Revista reichiana, São Paulo, n. 7, p. 30-40, 1998. 17 tornar conscientes as dores musculares profundas, e por vezes, antigas que estão situadas forçosamente na parte posterior do corpo, na cadeia contínua de músculos que vai da planta dos pés até o crânio, que são a causa de toda deformação corporal, excetuando as mutilações e deformações congênitas.35 Segundo BERTHERAT, a única causa de todas as deformações, dentre elas as de postura, é o encurtamento da musculatura posterior, descrito como efeito dos movimentos cotidianos do corpo.36 É inevitável, portanto, que o corpo se “deforme”, sendo a lordose, a escoliose e a cifose, entre outros, causados pelo excesso de força da musculatura posterior.37 Esse encurtamento da musculatura posterior é causado por alguns fatores anatômicos que demonstram que os músculos posteriores são mais numerosos e têm mais inserções sobre os ossos do que os anteriores. Além disso, a maior parte dos músculos posteriores são longos e constituem uma cadeia contínua do alto do crânio até a ponta dos pés, sendo que essa cadeia muscular posterior está organizada de tal forma que se comporta como um músculo único. Assim, toda ação localizada, de qualquer parte dessa cadeia, provoca o encurtamento dela toda.38 Segundo BERTHERAT & BERNSTEIN, a “estrutura corporal determina o comportamento”, ou seja, a forma do corpo determina seu funcionamento. A forma, como esclarecem as autoras, é modificável, sendo, portanto, possível desfazer as tensões e restabelecer o equilíbrio. 39 FRANÇOISE MÉZIÈRES, autora a quem BERTHERAT faz suas principais referências, explica que o esforço para ficar em equilíbrio e os movimentos de média e grande amplitude executados pelos braços e pernas seriam a causa de encurtamentos musculares.40 De acordo com ela, toda vez que se levantam os braços acima dos ombros ou 35 BERTHERAT, Thérèse & BERNSTEIN, Carol. O correio do corpo: novas vias da Antiginástica. Tradução de Estela dos Santos Abreu. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1982, p. 64. 36 Cf. BERTHERAT, Thérèse & BERNSTEIN, Carol. O corpo tem suas razões: Antiginástica e consciência de si. Tradução de Estela dos Santos Abreu. 18. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 121. 37 Cf. BERTHERAT, Thérèse & BERNSTEIN, Carol. O correio..., op. cit., p. 9. 38 Cf. ibidem, p. 9. 39 Cf. ibidem, p. 10- 11. 40 Cf. BERTHERAT, Thérèse & BERNSTEIN, Carol. O corpo..., op. cit., p. 120. 18 que se afastam as pernas num ângulo superior a 45 graus, os músculos das costas se encolhem. Segundo MÉZIÈRES, a retração dos músculos posteriores são sempre acompanhados pela rotação interna dos membros e pelo bloqueio do diafragma. Portanto, essa retração deveria ser combatida, não se realizando exercícios de fortalecimento posterior, pois estes só agravariam o problema. MÉZIÈRES também concebe que há um corpo “normal” ou “perfeito”, proporcional entre as partes, cujo exemplo característico é o corpo representado pela arte grega do período clássico. O artista grego procuraria exprimir a unidade corporal e moral, como expressão dessa unidade e perfeita saúde física do sujeito, pois, segundo a autora, para os gregos, a beleza não existiria sem a saúde e esta não existiria sem a “beleza das justas proporções”. Não devemos nos esquecer que este conceito exclui as “deformações” congênitas e, talvez por isso, boa parte dos desvios posturais. BERTHERAT & BERNSTEIN descrevem o “corpo ideal”, sendo que qualquer desvio em relação a essa descrição indica deformação corporal, decorrente do excesso de força da musculatura posterior.41 Para elas, o corpo normal seria assim descrito: de frente, clavículas, ombros, mamas e espaços entre os braços e a costela devem ser simétricos e estar no mesmo nível. Já, de costas, a nuca deve estar longa e “cheia”, as omoplatas devem ser simétricas, assim como os ombros e quadris. Na posição de flexão do tronco, a coluna deve estar em convexidade total e regular, os joelhos não devem recuar para trás e estes não devem apontar para dentro. Não se deve também sentir dificuldades em ficar de pé, sendo que os pés devem estar encostados desde o calcanhar até a ponta do primeiro dedo e o alto das coxas, o interior dos joelhos, a barriga das pernas e ossos internos dos tornozelos devem se encostar. O pé deve se alargar do calcanhar até a ponta dos dedos, e estes devem afastar-se, esticar-se no chão, enquanto as bordas laterais dos pés devem ser retilíneas. Qualquer desvio dessa descrição, segundo as autoras, indicaria uma deformação corporal. 42 Acreditamos que este 41 42 Cf. ibidem, p. 128. Cf. ibidem, p. 127- 128. 19 modo de tratar a postura, a partir de um modelo perfeito, é sujeito a críticas, pois ignora as diferenças individuais de estrutura muscular e óssea, que diferem de indivíduo para indivíduo. No caso do que as autoras chamaram de “barriga flácida” e que parece ser um “desvio postural” próximo da lordose, verificamos que a causa é a forte tensão dos músculos das costas. Portanto, nesse caso, a solução estaria em relaxar os músculos posteriores e com isso aumentar seu comprimento muscular, promovendo um maior equilíbrio entre a musculatura posterior e anterior, o que melhoraria o equilíbrio e a postura. Sendo assim, o encurtamento da musculatura dorsal seria a causa de uma barriga saliente.43 Esse ponto de vista a respeito da lordose atribui ao encurtamento posterior a responsabilidade exclusiva por esse problema, sem levar em conta questões emocionais, como demonstrou REICH. Segundo BERTHERAT & BERNSTEIN, existe uma energia, denominada por vezes energia orgone, corrente vegetativa ou yin yang, que “confere ao corpo a unidade e, ao mesmo tempo, anima todos os órgãos que também têm movimento”.44 Essa energia, seria contida quando existissem “zonas mortas” no corpo, partes que o indivíduo não sente, refletindo uma percepção corporal fragmentada. Essa existência de “zonas mortas” bloquearia o livre fluxo de energia que é necessário para o bem-estar do indivíduo.45 A origem de um desequilíbrio energético pode estar na família, em alguns acontecimentos traumatizantes ou em necessidades emocionais insatisfeitas, que se encontram na origem do desequilíbrio psíquico que acompanha o desequilíbrio físico. Os “transtornos esquecidos, reprimidos, também foram vividos por nosso corpo; estavam presentes no momento de nosso desarranjo mecânico que é a expressão concreta de nosso desacerto indizível”.46 Segundo BERTHERAT & BERNSTEIN, nos deformamos para mostrar aos outros e a nós mesmos que estamos sofrendo, isto é, de forma geral, nos deformamos para nos proteger. 43 Cf. ibidem, p. 77. Ibidem, p. 145. 45 Cf. ibidem, p. 80. 46 BERTHERAT, T. & BERNSTEIN, C. O correio..., op. cit., p. 20. 44 20 As autoras atribuem a falta de percepção da totalidade do corpo, causada pelas deformações, à educação recebida e aos entraves para poupar sensações de dor e prazer que nos impomos desde cedo.47 Para desenvolver a percepção, diz ela, deveria ser valorizada a atividade, o movimento, mas não de qualquer tipo. A atividade mecânica e repetitiva, segundo elas, serviria apenas para exercitar a teimosia e nos embrutecer. O movimento deveria ser uma revelação de nós mesmos de forma que deveríamos tomar consciência do modo como ele é realizado.48 Podemos perceber que atividades como a Antiginástica valorizam a sensibilização e a consciência corporal, levando o indivíduo a se conhecer melhor, sentindo seu corpo e sua postura. No entanto, não se deve perder de vista que esse tipo de atividade não é perfeita, nem a solução para todos os males, como algumas vezes é apresentada. Vários problemas individuais, incluindo doenças ou “deformidades corporais” resultam de problemas sociais e emocionais, não devendo ser analisados fora desse contexto. Não é possível a “beleza das justas proporções”, como defendem as autoras, em um país com problemas tão sérios quanto o Brasil, que se depara com problemas tão graves causados pela desigualdade social, muitas vezes até de natureza nutricional. Pessoas nessas condições talvez não tenham problemas posturais causados por um excesso de força da musculatura posterior, mas sim problemas relacionados à situação social em que vivem e que repercutem em problemas, inclusive, posturais. É preciso que um trabalho como a Antiginástica, se realizado na escola, seja seguido de uma crítica social, para que não fique desvinculado do todo maior, de um desenvolvimento do senso crítico perante a sociedade. Talvez, uma postura “cifótica” reflita, na realidade uma postura de desânimo perante a vida numa sociedade extremamente desigual como é o caso do Brasil. Não devemos nos esquecer que a Antiginástica surgiu na França, país que tem uma realidade social bastante diferente da do Brasil. Como tal, não se deve acreditar que as determinantes da postura sejam iguais nos dois países. Isso significaria ignorar as influências sociais sobre a postura. 47 48 Cf. ibidem, p. 90- 91. Cf. ibidem, p. 86- 87. 21 Por fim diríamos que é importante que a Educação Física seja capaz de levar os alunos a desenvolverem um senso crítico e a refletirem sobre a cultura corporal, vinculada ao seu próprio universo, já que o reconhecimento sobre a própria postura poderá valorizar seu autoconhecimento e sua expressão corporal. 2. O Rolfing de Ida P. Rolf 22 O Rolfing — também chamado de Integração Estrutural — foi criado por IDA P. ROLF e é um método de manipulação miofascial. O tratamento consiste em 10 sessões, ao final das quais se pretende mudar a organização espacial do corpo e obter um melhor alinhamento em relação à gravidade. Para o Rolfing, os corpos humanos seriam um meio plástico e poderiam mudar para uma estrutura mais ordenada e energéticamente mais econômica.49 ROLF explica que a fáscia — um dos vários grupos do tecido conjuntivo — envolve o músculo, sendo o próprio músculo várias vezes confundido com a fáscia. A intervenção do Rolfing seria, portanto, sobre a fáscia, e o objetivo final dessa intervenção seria conseguir um alinhamento vertical de cinco pontos que seriam incontestavelmente importantes para o bom alinhamento. Esses pontos seriam os pontos médios das orelhas, a articulação do ombro, a articulação do quadril, o joelho e o tornozelo. Segundo a autora, esse melhor alinhamento conduz a uma melhor verticalidade do corpo, e em relação à gravidade — que influência incontestavelmente todos os corpos — a estrutura vertical seria a que apresenta menos tensão e, portanto, a mais adequada.50 Segundo ROLF, a resposta emocional é um comportamento, uma função. Para ela, a estrutura determinaria a função e, portanto, um corpo mais organizado levaria a um homem emocionalmente mais equilibrado.51 A personalidade física não seria, para a autora, algo separado ou diferente da personalidade psicológica, e sim, parte de algo a que ela chamou de “entidade psicofísica variante”. Dessa forma, as mudanças estruturais do corpo trariam mudanças psicológicas.52 É interessante notar que algumas idéias de Rolf se aproximam das teorias de WILHELM REICH. Para ROLF, “os corpos trazem marcas de traumas físicos e emocionais da vida, dos acontecimentos da existência do homem”,53 idéia que parece bem próxima das de couraça muscular, como irá ser demonstrado. 49 ROLF, Ida P. Rolfing: a integração das estruturas humanas. Tradução de Marylene Pinto Michael. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 16. 50 Cf. ibidem, p. 18- 20. 51 Cf. ibidem, p. 3- 9. 23 A autora trata cada parte do corpo separadamente. Uma pelve “reorganizada”, para ROLF, seria essencial para o bem-estar do indivíduo, embora seu funcionamento dinâmico ótimo requereria uma integridade estrutural de todo o corpo.54 A chave não seria portanto uma função ótima, e sim a integração apropriada de todos os sistemas. Ou seja, a competência vital ou psíquica de um homem é determinada pelo funcionamento de todos os sistemas e suas inter-relações no indivíduo. Isso seria possível como o alinhamento do indivíduo, da sua postura e melhor adaptação à gravidade.55 Nessa apresentação, procurou-se expor alguns princípios básicos do Rolfing. No entanto, as referências trazem informações minuciosas sobre as várias partes do corpo e detalhes sobre a anatomia muscular do ser humano. A solução para uma melhor organização, ou melhor postura, assim como a causa de desvios posturais acentuados se dariam, à margem da biomecânica e da cinesiologia. Assim, por exemplo, uma lordose refletiria um músculo Ilíaco e Psoas maior fracos, deslocados e ineficientes, e a solução seria o trabalho sobre este músculo.56 ROLF acreditava que a ordem ou ausência de ordem começa no inconsciente. No entanto, será que as mudanças advindas de intervenções corporais, trariam à consciência do indivíduo as razões que o levaram a assumir determinada postura? Talvez, um trabalho de consciência corporal aliado à intervenção do Rolfing seja indispensável para uma melhor postura. Por outro lado, é importante notar que sua teoria de alinhamento vertical e melhor adaptação à força da gravidade, consequentemente com menos tensão na estrutura, parece biomecanicamente bastante convincente. Para ROLF, esse melhor alinhamento traria uma conseqüente melhora psicológica, já que para a autora, a forma determina a função (psicológica). Isso equivale a dizer que a forma corporal determina o psicológico, já que este é visto, pela autora, como função. É difícil dizer o que determina o que, pois talvez nem 52 Cf. ibidem, p. 23. Ibidem, p. 64. 54 Cf. ibidem, p. 154- 157 55 Cf. ibidem, p. 183. 53 24 exista tal separação. De qualquer maneira, forma e função, corpo e mente, psíquico e somático, se relacionam de uma forma bastante estreita, de modo que o determinismo de um sobre o outro não se justifica. Não podemos esquecer de considerar as influências sociais sobre a postura. A Educação recebida em casa, a Educação Física, as atividades que pratica, a vida sexual, entre outras múltiplas influências que não podem ser descartadas, devem ser consideradas como fatores que podem interferir na postura do indivíduo. É válido que se aborde teorias como a de ROLF, pois esta levaria os alunos a questionarem a própria postura e a estabelecerem relações de entendimento maior de seus próprios corpos. No entanto, deve-se ressaltar que o homem sofre várias influências no seu dia a dia, e é impossível medir todas elas. Embora ROLF faça algumas referências a idéias concebidas originalmente por WILHELM REICH, suas idéias diferem bastante das desse autor. REICH acreditava que o ser humano não apresenta divisões entre as funções psíquicas e somáticas, e considera fundamental analisar influências sociais e educacionais para compreender o indivíduo, como veremos a seguir. 56 Cf. Ibidem, p. 179. 25 CAPÍTULO III AS IDÉIA DE WILHELM REICH: CONTRIBUIÇÕES PARA A DISCUSSÃO ENTRE O PSÍQUICO E O SOMÁTICO WILHELM REICH nasceu em 24 de Março de 1897 em Dobrzynica, aldeia da Galícia que nessa época fazia parte do império austro-húngaro. Algum tempo depois, sua família mudou-se para Jujintz, província da Bukovina onde adquiriu uma grande propriedade rural. O pai era originário de uma família judaica, mas pouco transmitiu a Reich e ao irmão Robert sobre educação religiosa. A língua materna e de instrução dos filhos era o alemão sendo que a cultura alemã era especialmente valorizada.57 Ingressou na faculdade de Medicina em 1918 na Universidade de Viena, se interessando, ainda na faculdade, por temas referentes à sexualidade, participando daquilo que ficou conhecido como “Seminário de Sexologia”. Sua trajetória oficial na psicanálise começou formalmente em outubro de 1920, quando apresentou a comunicação “O conflito da libido e a ilusão de Peer Gynt” e foi aceito como membro da Sociedade Psicanalítica de Viena na seção seguinte. Em 1922, REICH se formou em Medicina, tendo estudado neuropsiquiatria por mais dois anos no Instituto Neuropsiquiátrico de Viena, trabalhando um ano em neuropsiquiatria sob a orientação de Paul Schilder. Entre 1922 e 1930 trabalhou na Clínica Psicanalítica de Viena, o que em muito enriqueceu sua experiência profissional. Em 1924, passou a presidir os trabalhos do Seminário de Técnica Psicanalítica, publicando em 1925 seu primeiro livro chamado “o caráter impulsivo”. Tendo, desde o 57 Alguns aspectos relevantes da vida de Wilhelm Reich e, talvez, a maior parte das referências sobre sua infância e adolescência se encontram em sua autobiografia: REICH, Wilhelm. Paixão de juventude: uma autobiografia. Tradução de Cláudia Sant’ana Martins e Sâmia Rios. São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 11- 60. 26 começo de seus estudos em Psicanálise, se interessado por questões referentes à técnica, em 1927 WILHELM REICH publicou “Sobre a técnica de interpretação e análise das resistências”.58 Este texto se encontra no livro “Análise do caráter”, que contém, por sua vez, textos de outras épocas da vida de REICH, fazendo-se, portanto, necessário que se trate cada texto individualmente, já que o autor tem fases bem diversas com idéias diferentes umas das outras. Outro texto presente neste livro é chamado “Sobre a técnica de análise do caráter”, exposto pela primeira vez no X Congresso Psicanalítico Internacional em Innsbruck, em Setembro de 1927. Nesse texto, REICH afirma que uma parte importante do processo terapêutico consistia na análise do caráter, já que este era considerado como “parte da neurose”.59 À totalidade dos traços de caráter neurótico que se manifestam na análise como mecanismos de defesa contra os esforços terapêuticos, deu-se o nome de couraça do caráter. Esta tem a função de proteger o indivíduo de estímulos externos, por um lado, e é também uma forma de controle e repressão sobre a libido (energia sexual). Portanto, a couraça do caráter tem uma função econômica, estabelecendo um equilíbrio no organismo do indivíduo, embora este seja um equilíbrio neurótico, objeto de intervenção na análise terapêutica.60 REICH acreditava que além de sonhos, associações e outras comunicações, deveria ser analisado a forma como os pacientes contam os sonhos, cometem lapsos entre outras coisas que compõem seu comportamento. Assim, a resistência do caráter se expressaria não em conteúdo, mas na forma de seu comportamento típico, no modo de falar, de andar, gesticular, etc., ou seja, no modo como o indivíduo fala e age.61 Na vida cotidiana, o caráter teria um papel de defesa psíquica. Podemos perceber, portanto, que aqui o próprio movimento, o modo de falar e a postura assumem o papel de defesas do caráter. Como modificar, então, a partir de exercícios uma postura que vista dessa forma assume um papel de defesa? Desse ponto de vista a análise terapêutica, talvez fosse o mais indicado. 58 Cf. ALBERTINI, Paulo. Reich: história das idéias e formulações para a educação. São Paulo: Ágora, 1994, p. 25- 42. 59 Cf. REICH, Wilhelm. Análise do caráter. Tradução de Ricardo Amaral do Rego. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 60 Cf. ibidem, p. 56- 57 61 Cf. ibidem, p. 59. 27 Em 1927, com a publicação de “A função do orgasmo”, Reich expõe idéias que o distanciam definitivamente de Sigmund Freud. Contudo, sua crescente militância política , que esteve inclusive vinculada ao Partido Comunista Austríaco, é um fator apontado por alguns autores como a causa real da separação entre ambos. 62 Este livro teve a tradução para a língua portuguesa sob o nome de “Psicopatologia e sociologia da vida sexual”, sendo os trechos que se seguem, partes integrantes desse livro. Para REICH, a prevenção das neuroses visava a busca por indivíduos potentes orgasticamente. O autor define potência orgástica como a capacidade do ser humano de atingir uma satisfação de acordo com a estase63 libidinal momentânea e, de forma freqüente, permanecendo pouco sujeito às perturbações da genitalidade que em geral afetam o orgasmo mesmo num indivíduo relativamente saudável. A potência orgástica existiria, de acordo com REICH, sob certas condições que são encontradas apenas no indivíduo capaz de satisfação. Já no indivíduo neurótico, estas condições estariam total ou parcialmente ausentes.64 Já, por impotência orgástica, REICH entende “a inaptidão interna do indivíduo para atingir de forma duradoura uma satisfação correspondente às reivindicações sexuais e à estase libidinal do momento, mesmo quando se encontra nas condições externas mais favoráveis”.65 Do ponto de vista da economia sexual, ou seja, da relação entre a energia que o organismo é capaz de descarregar e a que ele de fato descarrega durante o orgasmo, pouco importa que uma mulher tenha maior ou menor sensibilidade sexual ou que um homem seja capaz ou incapaz de ereção, sendo que a única coisa que importa é se o orgasmo se encontra ou não perturbado.66 REICH, portanto, começou a relacionar os conflitos neuróticos a uma disfunção da vida sexual, mais especificamente, à impotência orgástica e teorizou que estes problemas 62 Cf. ALBERTINI, op. cit., p. 40 e Cf. CUKIERT, Michele. Uma contribuição à questão do corpo em Psicanálise: Freud, Reich e Lacan. 2000. 223 f. Dissertação (mestrado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, 2000, p. 59. 63 Reich define estase como uma inibição da “expansão vegetativa e um bloqueio da atividade e motilidade dos órgãos vegetativos centrais. A descarga de excitação é bloqueada: a energia biológica fica presa”. Cf. REICH, W. A função..., op. cit., p. 288. 64 Cf. REICH, Wilhelm. Psicopatologia e sociologia da vida sexual. Tradução M. S. P. São Paulo: Global, [19--], p. 41. 65 Ibidem, p. 59. 28 estão estruturalmente presentes na musculatura do indivíduo, através de tensões crônicas, chamadas por ele de couraças. REICH explica que o “paciente neurótico desenvolve uma ‘rigidez’ na periferia do corpo, conservando embora um cerne interior vivo. Sente-se ‘constrangido dentro de sua própria pele’, ‘inibido’, incapaz de ‘compreender a si mesmo’, como se ‘estivesse emparedado’, ‘sem contato’ e ‘tenso a ponto de romper-se’. Esforça por todos os meios disponíveis, ‘em direção ao mundo’, mas é como se estivesse amarrado”.67 Segundo ele, há uma energia biopsíquica, posteriormente definida como orgone, que é a própria energia sexual ou excitação biológica que faz pressão para fora ou em direção a outras pessoas, ao mundo, enquanto que a couraça é responsável pela frustração desse impulso. Segundo REICH, esse impulso para expandir-se corresponde à direção de dentro para fora, sendo que a parede externa da couraça frustra este impulso. A couraça não só impede o rompimento, mas exerce pressão de fora para dentro, sendo a rigidificação do organismo o resultado final.68 A couraça muscular, pode ser entendida como uma alteração no tônus muscular do indivíduo, que resulta em alterações estruturais e fisiológicas. A principal função da couraça é conter emoções, sentimentos e desejos, principalmente os de caráter sexual ou que provocam sensações de angústia ou prazer, através da inibição dos fluidos corporais. A couraça muscular está funcionalmente ligada à couraça do caráter, sendo que basicamente as atitudes musculares e do caráter não podem se separar, sendo funcionalmente idênticas.69 De acordo com REICH, “concebemos o caráter como um fator determinado essencialmente de modo dinâmico e que se manifesta no comportamento característico de uma pessoa: o andar, a expressão facial, a postura, a maneira de falar e outros modos de comportamento”.70 Podemos perceber, de acordo com a colocação acima, que o caráter é concebido como algo global, que se manifesta em todas as formas de expressão do indivíduo, inclusive em sua postura. REICH assinala que boa parte das pessoas já passaram por situações na infância em que, através de certos comportamentos, agiam sobre o sistema vegetativo, de modo a por 66 REICH, Wilhelm. Psicopatologia..., op. cit., p. 38. REICH, W. A função do... op. cit., p. 223. 68 Cf. ibidem, p. 222-223. 69 Cf. ibidem, p. 231. 67 29 exemplo: prender a respiração ou aumentar a pressão dos músculos abdominais, para anular os seus impulsos de ódio, angústia ou amor. Até então, na visão do autor, a psicologia analítica teria apenas se dedicado ao que a criança anula e aos motivos que a levaram a aprender a controlar suas emoções, não tendo tentado descobrir o modo como as crianças habitualmente lutam contra os impulsos. REICH estava interessado no que ele chamou de “processo fisiológico de repressão”, ou seja, o modo como os impulsos são anulados. Nesse processo, aponta que a dissolução de um espasmo muscular libera, além de energia vegetativa, a lembrança da situação na qual ocorreu a repressão do instinto. Portanto, “toda rigidez muscular contém a história e o significado de sua origem”.71 REICH considera o espasmo muscular como sendo o lado somático do processo de repressão e base para sua contínua preservação. Grupos isolados de músculos nunca espasmam, mas sim grupos de músculos que pertencem a uma unidade funcional vegetativa. REICH exemplifica mostrando que em um impulso de chorar reprimido, não é apenas o lábio inferior que se torna tenso, mas sim, toda a musculatura da boca, queixo e correspondente na garganta, ou seja, todos os órgãos que entram em ação como uma unidade funcional no ato de gritar.72 REICH enfatiza que o papel da musculatura é essencial para a contenção da energia da vida sexual, pois, através de tensões, a musculatura pode reduzir o movimento dos fluidos do corpo.73 Em linhas gerais diríamos que a energia da vida sexual pode ser contida por tensões musculares crônicas. Assim, torna-se claro que a musculatura é parte essencial na repressão de certas emoções, e que a neurose não é a expressão de uma perturbação do equilíbrio psíquico, sendo, na realidade, a expressão de uma perturbação crônica do equilíbrio vegetativo e da motilidade natural.74 Com base nas idéias expostas acima, REICH passou a descrever algumas características do organismo neurótico, como, por exemplo: a dor de cabeça, localizada muito freqüentemente acima do pescoço, sobre os olhos ou na testa, que era comum em muitos pacientes. Essa começa na região bem acima da tensão muscular quando se tenta 70 Ibidem, p. 167. Ibidem, p. 255. 72 Cf. ibidem, 256. 73 Cf. ibidem, p. 230. 71 30 forçar a musculatura da cabeça. A dor na parte superior da cabeça pode ser reduzida a uma tensão excessiva nos músculos do pescoço sendo que essa atitude expressa uma angústia contínua de algo perigoso que possa sobrevir por trás. A dor de cabeça supra-orbital é causada por uma elevação crônica das sobrancelhas, o que causa uma tensão contínua nos músculos da testa e na musculatura toda do crânio. Essa atitude expressa uma contínua e ansiosa expectativa em relação aos olhos, que arregalados de medo correspondem à extrema expressão dessa atitude.75 Esses dois sintomas que se expressam nas atitudes da cabeça estão sempre juntos, sendo que no medo súbito, os olhos se arregalam e a musculatura do crânio se torna tensa. Alguns pacientes tem uma expressão facial que poderia ser descrita como arrogante. Em outros pacientes nota-se uma testa lisa, chata ou inexpressiva, sendo que o medo de ser golpeado na cabeça é a razão desta expressão. Muitas pessoas têm uma expressão facial como uma máscara. O queixo é forçado para a frente e parece mais largo, enquanto o pescoço, logo abaixo do queixo, tem uma aparência sem vida. Os dois músculos do pescoço, que correm para baixo em direção ao esterno, sobressaem-se como duas cordas grossas, a parte inferior da boca é tensa e o paciente comumente tem náuseas. Essa atitude pode ser observada quando aparece o impulso de chorar: os músculos do assoalho da boca se tornam muito tensos, a musculatura inteira da cabeça fica em estado de tensão contínua, o queixo é forçado para a frente e a boca se aperta.76 As crianças adquirem essas condições ainda muito novas, quando são obrigadas a reprimir violentos impulsos de chorar. REICH enfatiza, que a maneira de falar teria também grande importância para a região da cabeça e face, podendo ser reduzida a 74 Cf. ibidem, p. 255. Cf. ibidem, p.257. 76 Cf. ibidem, p. 258. 75 31 espasmos dos músculos do maxilar e da garganta. A expressão total da face deveria receber maior atenção, independentemente de partes isoladas.77 De acordo com REICH, não há nenhuma pessoa neurótica que não apresente tensão abdominal. As perturbações respiratórias nas neuroses são os sintomas que resultam das tensões abdominais.78 No medo, descreve REICH, inspira-se profundamente e isso causa contração do diafragma que exerce pressão sobre o plexo solar, de cima para baixo. A função dessa ação muscular, bastante presente como mecanismo de neurose, é compreensível quando se entende os mecanismos de defesa de caráter da primeira infância, pois, prendendo a respiração, as crianças lutam contra os estados de angústia contínuos e torturantes provenientes do alto do abdômen e das sensações agradáveis provenientes do abdômen e genitais, mas que causam medo. A inibição respiratória juntamente com a fixação do diafragma, seria um “dos primeiros e mais importantes atos na supressão das sensações de prazer no abdômen e na redução da angústia abdominal”.79 REICH, portanto, entendeu que a repressão dos afetos era basicamente realizada através da inibição respiratória, sendo este, de forma geral, o mecanismo básico da neurose.80 Assim, REICH considera que o meio mais importante de libertação do reflexo do orgasmo é uma técnica de respiração que se desenvolveu no decorrer do seu trabalho, onde a pessoa neurótica era incapaz de expirar profunda e uniformemente.81 A expiração profunda, conforme descreve o autor, produz a atitude de rendição sexual. Nessa atitude de entrega (rendição), a cabeça desliza para trás, os ombros movem-se para frente e para cima, o meio do abdômen se encolhe, a pélvis move-se para a frente e as pernas separam-se espontaneamente.82 Muitos pacientes conservam as costas arqueadas, a pelve empurrada para trás e o alto abdômen para a frente,83 numa posição próxima de uma hiperlordose. De acordo com REICH, a falta de sensações nos genitais e a correspondente sensação de vazio e fraqueza é 77 Cf. ibidem, p. 258- 259. Cf. ibidem, p. 259. 79 Ibidem, p. 260. 80 Cf. ibidem, p.260. 81 Cf. ibidem, p. 277. 82 Cf. ibidem, p. 278-279. 83 Cf. ibidem, p. 279. 78 32 proporcionalmente mais intensa de acordo com a perda de mobilidade da pelve. Referindose à pelve e a relação de sua mobilidade com a capacidade de sentir prazer, REICH descreve: o “assoalho da pelve é puxado para cima. Essa posição contraída do assoalho pélvico, embaixo, junto com a fixação do diafragma para baixo, em cima, e a tensão da parede abdominal, na frente, bloqueia o movimento da corrente vegetativa do abdômen”.84 REICH explica que, em geral, é fácil colocar a mão entre as costas do paciente e o divã, evidenciando, portanto, a presença de um desvio postural. Segundo REICH, essa atitude da pelve é proveniente da infância, quando a criança recebe punições severas por molhar a cama ou, ainda mais importante, quando começa a combater as excitações sexuais intensas que incitam à masturbação. De acordo com o autor, toda sensação de prazer genital pode ser destruída pela contração crônica da musculatura pélvica. 85 No processo de restabelecimento da motilidade da pelve, diz REICH, é inútil obrigar o paciente a fazer exercícios pélvicos, mecanicamente, como o fariam alguns “instrutores de ginástica”. É necessário eliminar as ações e atitudes musculares dissimuladas e defensivas, ou o movimento natural da pelve não se desenvolve. A contração da pelve teria a mesma função da contração do abdômen: impedir as sensações, principalmente de prazer e angústia. Para o restabelecimento da mobilidade da pelve, é necessário tornar o paciente consciente de sua atitude pélvica e se trabalhar sobre a inibição do movimento pélvico: quanto mais intensamente se trabalha sobre ele, “tanto mais completamente a pelve participa da onda de excitação”.86 REICH considerava que certos fatores contribuiriam para dificultar e impedir o reflexo do orgasmo. Acreditava que quando o curso do prazer é inibido, tem por característica se transformar em desprazer. Reich explica que quando há uma forte excitação sexual e a pessoa não é capaz de experimentar uma satisfação final, desenvolve 84 Ibidem, p. 283. Cf. ibidem, p. 283. 86 Ibidem, p. 284. 85 33 um medo do orgasmo e da excitação que o precede. Dessa forma, o “próprio processo de excitação agradável torna-se uma fonte de desprazer”.87 Tais afirmações integram o livro “A função do orgasmo” de 1942. Esse livro, segundo o próprio REICH explica na introdução, compreende seu trabalho médico e científico nos últimos 20 anos, ou seja, nos vinte anos anteriores à sua publicação. Dele fazem parte idéias riquíssimas, muitas das quais tem relação direta com esse trabalho, conforme procuramos apresentar anteriormente. Podemos perceber que a postura, objeto de análise desse trabalho é, para REICH, um dos elementos constituintes do caráter do indivíduo, manifestando-se muitas vezes, como conseqüência de inibições ancoradas sob a forma de couraças musculares. REICH concebeu que uma atitude tipicamente lordótica, que torna possível a colocação da mão entre as costas do paciente e o divã, não seria causada por um encurtamento de alguns músculos e alongamento de outros, mas poderia ser, na realidade, uma conseqüência do encouraçamento pélvico. REICH considerava uma atitude lordótica como algo mais amplo, fruto de uma couraça, que não é nem apenas “física” nem “psicológica”. Na realidade, REICH considerava o organismo humano como uma totalidade, sendo importante destacar que, para ele, uma atitude muscular tinha uma correspondente expressão emocional. No caso de uma contenção do movimento da pelve relacionada a repressões sexuais causadas, basicamente, pela Educação, poderíamos identificar, por exemplo, a presença de uma hiperlordose. No entanto, REICH não assinala isso como um “problema postural”, nem procura mostrar outros desvios como problemas posturais em si mesmos. Para ele, a postura se relaciona muito mais com uma atitude expressiva, que não devia ser desvinculada do indivíduo que a assume. Além disso, as atitudes posturais são criadas e recriadas pela Educação, sendo que REICH procura entender as atitudes musculares criadas pelos indivíduos, muitas vezes, como conseqüência de uma Educação repressora da sexualidade natural. 87 Ibidem, p. 294. 34 Prosseguindo no desenvolvimento do trabalho de WILHELM REICH, verificamos que em 1928 fundou a Associação Socialista para Consulta e Investigação Sexual, juntamente com mais quatro psicanalistas, três médicos obstetras e um advogado, abrindo, com o apoio do Partido Comunista austríaco, seis centros de higiene sexual destinado ao atendimento e ao fornecimento de informações sobre sexualidade para a população pobre de Viena. REICH procurou articular o materialismo dialético e a psicanálise fazendo a “crítica da estrutura familiar burguesa, tomada como responsável pela neurose, e considerando que sua superação provocaria o fim do complexo de Édipo e a definitiva dissolução da neurose”88 publicando em 1929 o texto “Materialismo dialético e psicanálise” em Moscou. Em Setembro de 1930, publica o livro “Maturidade sexual, Abstinência, Moral conjugal: uma crítica da reforma sexual burguesa”, onde considera a moral sexual vigente geradora de psicopatologia. Esse texto, mostra o conflito das idéias de REICH em relação à neurose. REICH, nessa época, acreditava que a neurose poderia ser eliminada através de mudanças sociais, enquanto Freud acreditava que a neurose seria condição inevitável da vida civilizada.89 No mesmo ano, REICH muda-se para Berlim onde procura intensificar e aprofundar suas pesquisas, tendo uma maior receptividade devido à base popular organizada pelo Partido Comunista alemão e da grande rede de associações destinadas à higiene sexual. No mesmo ano, realizou uma conferência no 3º Congresso da Liga Mundial para a Reforma Sexual, apresentando um trabalho desenvolvido nos Centros de Consulta Sexual de Viena. Baseado nessa conferência, REICH realizou um projeto de um programa normativo, o qual foi aprovado pela divisão cultural do Partido Comunista mas foi recusado pela direção da Liga com a alegação de ser muito comunista. De acordo com REICH, essa organização procurava manter uma posição apolítica. Em 1931, cria em conjunto com o Partido Comunista alemão, a Associação Alemã para uma Política Sexual Proletária ou SEXPOL. Oito organizações aderiram à SEXPOL mobilizando cerca de 20 mil membros. No outono de 1931 realizou-se em Düsseldorf o 88 89 Ibidem, p. 72. Cf. ALBERTINI, P., op. cit. p. 25- 42. 35 primeiro congresso da entidade, sendo que REICH proferiu o discurso principal. O movimento se expandiu em diversas cidades e em poucos meses a entidade já contava com cerca de 40 mil membros. No mesmo ano, REICH preparou manuscritos de um texto sobre a juventude contendo aspectos conceituais do movimento de política sexual, sendo o mesmo submetido aos representantes de diversos grupos de jovens que faziam parte do SEXPOL, incorporando os comentários e sugestões recebidos pelos jovens na versão final da obra. O trabalho foi chamado “O combate sexual da juventude” e foi editado pelo próprio Reich em virtude da resistência dessa organização em editá-lo, sendo caracterizado como um livro basicamente de educação sexual. Em 1932, REICH publica o livro “Irrupção da moral sexual repressiva”, texto de análise antropológica sobre os trobriandeses. Nesse texto, Reich procura explicar a tese de que a repressão sexual e a neurose tiveram sua origem na passagem do matriarcado primitivo para o patriarcado. Segundo ele, na sociedade trobriandesa não existia repressão sexual e a sexualidade era muito natural para os habitantes, sendo por isso uma sociedade livre de perversões sexuais, enfermidades mentais funcionais e psiconeuroses, entre outros problemas. No mesmo ano, REICH publica “O caráter masoquista”, onde levanta a hipótese de que a estrutura de caráter masoquista expressa um desejo de alívio orgástico e um medo do prazer, medo de morrer ou explodir, refutando outra tese da psicanálise que acreditava que o masoquismo estaria relacionado a uma pulsão de morte. Em fevereiro de 1933, por motivos políticos, REICH mudou-se para Viena, mas devido à pouca receptividade do movimento psicanalítico local, mudou-se em maio novamente para Copenhague. Foram publicadas duas obras do autor nesse ano: “Análise do 36 Caráter”, em março, e “Psicologia de massas do fascismo”, em agosto.90 Depois da publicação desse último livro, suas relações com o Partido Comunista alemão se tornaram insustentáveis, sendo que, na Dinamarca, REICH entrou em conflito com o Partido Comunista dinamarquês por este último prestar auxílio discriminatório aos refugiados da Alemanha, deixando de auxiliar indivíduos que não fossem indicados pelo Partido Comunista alemão. Assim, em 23 de Novembro de 1933, o Partido Comunista dinamarquês em conjunto com o Partido Comunista alemão publicaram um comunicado declarando a expulsão de REICH. Em Agosto de 1934, durante o 13º Congresso Internacional de Psicanálise, em Lucerna na Suíça, deu-se a expulsão de Reich da Associação Psicanalítica Internacional. Apesar da polêmica em torno dessa questão, poderíamos dizer que as razões para isso são provavelmente as grandes divergências teóricas entre REICH e a Psicanálise, que obrigaram-no a tomar um rumo independente.91 Entre outras publicações que sucederam, é importante destacar que em 1949, REICH publicou na edição ampliada da “Análise do caráter”, um texto intitulado “A linguagem expressiva da vida”. Neste texto, a princípio, REICH explica que a energia denominada por ele de orgone, é o principal elemento com que se lida na terapia. Para ele, a energia orgone estaria presente na mobilização das emoções. 92 Para REICH, emoção, significa movimento para fora ou expulsão. Assim, quando ocorre o reativamento das emoções no organismo, o que ocorre é uma mobilização da energia orgone. A linguagem, para o autor, deriva de percepções de movimentos internos e sensações dos órgãos, sendo que as palavras que descrevem os estados emocionais refletem diretamente o movimento expressivo correspondente. No entanto, o organismo vivo se expressa em movimentos, sendo que, apesar de refletir um estado emocional, as palavras não conseguem expressar a emoção, pois esta está além das palavras. O organismo vivo “possui uma linguagem expressiva própria, antes de, para além de, e independentemente de toda linguagem verbal”.93 90 Cf. ibidem, p. 43- 50. Cf. ibidem, p. 51- 55. 92 Cf. REICH, W. Análise..., p. 331. 93 Ibidem, p. 333. 91 37 Segundo REICH, a linguagem humana funciona muitas vezes como defesa. Assim, no começo da terapia os pacientes deveriam ser orientados para não falar, de modo que o terapeuta poderia perceber o traço de caráter mais saliente pela observação do paciente. A orgonoterapia, termo que compreende todas as técnicas médicas e pedagógicas que usam a energia orgone, teria como fim influenciar o organismo a se expressar “biologicamente” e não através da linguagem. O orgonoterapeuta procuraria influenciar a linguagem do organismo vivo, procurando chegar ao modo de expressão “puro”, “biologicamente genuíno”, já que a biopatia humana é a soma de todas as distorções dos modos de expressão naturais do organismo vivo, e se coloca fora da esfera da linguagem e das idéias.94 O que se procura é trabalhar num nível mais profundo de compreensão, abordandose a linguagem da expressão facial e corporal, sendo, para tanto, necessário que o terapeuta sinta a expressão do paciente. 95 Ao realizar uma análise mais detalhada do fenômeno de couraça muscular, REICH, nessa época, descobriu que esta está organizada em segmentos e funciona como um anel, envolvendo toda a região afetada circularmente. Um segmento de couraça compreende aqueles órgãos e grupos musculares que têm contato funcional entre si e que podem induzir-se mutuamente a participar no movimento expressivo emocional. Um segmento termina e outro começa quando um deixa de afetar o outro em suas ações emocionais.96 Os segmentos de couraça têm sempre uma estrutura horizontal, com exceção dos braços e das pernas, onde as couraças funcionam em conjunto com os segmentos adjacentes da couraça, ou seja, os ombros e a pelve. As couraças tem uma estrutura circular formando ângulos retos com a espinha dorsal. As correntes orgonóticas se fundem ao reflexo do orgasmo quando sua passagem, que se dá ao longo do corpo, não está obstruída por esses segmentos de couraça. Esses estão dispostos em segmentos transversais ao fluxo da corrente, impedindo o fluxo orgonótico até que sejam afrouxados os anéis de couraça. 94 Cf. ibidem, 334. Cf. Ibidem, p. 335. 96 Ibidem, p. 341- 342. 95 38 REICH, fazendo observações dos movimentos dos anelídeos, verificou que estes são governados por ondas de excitação que correm da extremidade da cauda ao longo do eixo do corpo, para a cabeça. Estas ondas seriam transmitidas continuamente, de segmento a segmento, até chegarem na outra extremidade. Ao atingirem a extremidade caudal, um movimento ondulatório segue o outro no processo de locomoção, sendo que os segmentos se alternariam de forma rítmica e regular entre contração e expansão. REICH concluiu que é a energia biológica que está sendo transmitida nesses movimentos de onda, pois, nos anelídeos e na lagarta, a função ondulatória está ligada a esse movimento ondulatório plasmático. Baseando-se nas observações anteriores, REICH concluiu que a energia orgone se movimenta de forma ondulatória e lenta, correspondendo em ritmo e expressão às excitações emocionais de prazer, que são sentidas de forma ondulatória, sendo transmitidos da mesma forma em organismos mais primitivos como o verme e a lagarta e no ser humano, quando os segmentos de couraça estão desobstruídos .97 E o que tem isso a ver com a postura? Bem, vimos que a energia orgone não pode fluir devido ao encouraçamento muscular. O encouraçamento, ou seja, a contração crônica de um grupo de músculos certamente leva à alterações de ordens posturais. De acordo com esse ponto de vista, as desordens posturais não devem ser pensadas como um desequilíbrio muscular, e sim, num sentido muito mais amplo, um desequilíbrio causado, na realidade, pelo encouraçamento de certos grupos musculares que impede o fluxo de energia orgone pelo corpo. Pensando nisso, de nada adiantaria a realização de exercícios apenas, ou alongamentos. A relaxação ou contração momentânea de um músculo não remontaria às reais causas dos problemas posturais. Estes estariam nas profundezas do organismo, nas formas de repressões e contenções, causadoras das couraças musculares, apenas acessíveis através de um processo terapêutico. Bem, vejamos as alterações posturais e outras conseqüências que, segundo REICH, seriam causadas pelas couraças. 97 Cf. ibidem, 344. 39 REICH afirma que a expressão total do organismo encouraçado é de retenção e descreve o aspecto morfológico desse organismo: ombros “puxados para trás, peito para fora, queixo rígido, respiração superficial e contida, acentuação da lordose lombar, pelve retraída e ‘imóvel’, pernas ‘sem expressão’ ou rigidamente esticadas constituem as atitudes e mecanismos essenciais da contenção total”. 98 Nessa passagem, percebe-se que o fenômeno descrito como encouraçamento provoca alterações posturais. Contudo, é importante ressaltar que o corpo encouraçado ou a atitude de encouraçamento, não são criadas conscientemente pelo indivíduo, mas surgem de forma autônoma e involuntária, sendo este incapaz de quebrar essa couraça ou de exprimir suas emoções biológicas elementares. Assim, se a principal função da couraça, é impedir o reflexo do orgasmo, a orgonoterapia tem o objetivo de restabelecê-lo. 99 Referindo-se aos segmentos de couraça, REICH ressalta que o primeiro segmento de couraça é o ocular que apresenta uma contração e imobilização de todos ou quase todos os músculos dos globos oculares, das pálpebras, testa, glândulas lacrimais etc. “Testa e pálpebras rígidas, olhos sem expressão e globos oculares protuberantes, expressão semelhante a uma máscara e imobilidade dos dois lados do nariz são características essenciais desse anel de couraça”. 100 Além dessas, outras características são relatadas, como a incapacidade do doente de abrir bem os olhos, a incapacidade de derramar lágrimas, a miopia, etc. O segundo segmento de couraça é o oral, que compreende toda a musculatura do queixo e da faringe e a musculatura occipital, inclusive os músculos da boca, os quais estão funcionalmente ligados uns aos outros.101 A couraça do terceiro segmento compreende a musculatura profunda do pescoço, os músculos plastima e esternocleidomastóideo, sendo que esse segmento está ligado a emoções reprimidas, como a raiva e com o impulso de chorar. 102 O quarto segmento é o segmento torácico cuja couraça manifesta-se pela “elevação 98 Cf. ibidem p. 336. Cf. Ibidem, p. 337-338. 100 Ibidem, p. 341-342. 101 Cf. ibidem, p. 342-343. 102 Cf. ibidem, p.345. 99 40 da estrutura óssea, por uma atitude crônica de inspiração, por respiração superficial e pela imobilidade do tórax”. 103 Esse segmento compreende os músculos intercostais, os peitorais, os deltóides e o grupo muscular sobre e entre as omoplatas. REICH explica que os movimentos dos braços e das mãos estariam ligados ao segmento do peito. Segundo ele, as “atitudes de ‘autocontrole’, de ‘ensimesamento’, de ‘reserva’, são as principais manifestações dessa couraça. Ombros puxados para trás expressam precisamente o que mostram — ‘contenção’!”104. Nessa passagem, torna-se claro novamente que Reich acreditava que a repressão das emoções e a formação de couraças, provocariam alterações posturais (atitude crônica de inalação, ombros puxados para trás). Segundo REICH, a “expansão crônica do tórax acompanha a tendência a hipertensão, palpitações e angústia; em casos graves há também a tendência para hipertrofia do coração”.105 O encouraçamento do tórax seria a parte essencial da couraça muscular em geral, de modo que sem sua dissolução seria impossível restabelecer a potência orgástica do indivíduo.106 Os ombros puxados para trás, a dor nos dois feixes de músculos dolorosos na região do músculo trapézio e uma sensibilidade exagerada a cócegas nos músculos intercostais são as principais características da couraça torácica na região posterior. Enquanto não forem liberadas as emoções de raiva, desejo e tristeza genuína, não é possível dissolver esta couraça e restabelecer a potência orgástica do indivíduo.107 O quinto segmento é o segmento do diafragma que “forma um anel de contração que se estende desde o epigástrio e a parte inferior do esterno, seguindo ao longo das costelas inferiores em direção às inserções posteriores do diafragma, isto é, às décima, décima primeira e décima segunda vértebras torácicas”.108 REICH enfatiza que esse segmento compreende “essencialmente o diafragma, o estômago, o plexo solar, o pâncreas, o fígado e dois feixes de músculos salientes que se estendem ao longo das vértebras 103 Ibidem, p.346. Ibidem, p. 347. 105 Ibidem, p. 347. 106 Cf. ibidem, p. 348. 107 Cf. ibidem, p. 349. 108 Ibidem, p. 350. 104 41 torácicas inferiores”. 109 De acordo com REICH, a manifestação mais evidente deste anel de couraça é a lordose acentuada ou a hiperlordose. Vemos aqui evidenciado, novamente, a relação das couraças com a postura. A atitude lordótica é vista mais uma vez como encouraçamento e não como um desequilíbrio muscular, resultado do alongamento de alguns músculos e encurtamento de outros. REICH aponta que o mecanismo central de bloqueio dessa região é o diafragma, pois o organismo se defende contra as sensações de prazer ou de angústia que são causadas pelo movimento do diafragma, deixando-o imobilizado. Se o paciente fosse orientado a respirar, sempre inspiraria, pois a expiração espontânea lhe é estranha, já que produz movimentos diafragmáticos de maior extensão, contra os quais se defende.110 Numa respiração livre de bloqueios, na qual o diafragma se move livremente, o tronco se esforça a cada expiração por se flexionar na região do abdômen superior, ou seja, a extremidade cefálica faz esforço para a frente em direção à extremidade pélvica, sendo esta a imagem do reflexo do orgasmo que se apresenta pela primeira vez ao terapeuta. Com a dissolução do bloqueio do diafragma ocorrem as primeiras convulsões do tronco que, posteriormente, se desenvolvem completamente no reflexo do orgasmo. Essas convulsões são acompanhadas por uma expiração profunda e uma onda de excitação que se propaga para cima em direção à cabeça e para baixo em direção aos órgãos genitais.111 O sexto anel de couraça é uma contração no meio do abdômen: o “espasmo do grande músculo abdominal (retos abdominais) é acompanhada por uma contração espástica dos dois músculos laterais (transversos abdominais), que vão das costelas inferiores até a margem superior da pelve” 112 . Estes músculos poderiam ser facilmente palpados como cordões musculares rígidos e dolorosos. Nas costas, esse segmento de couraça corresponde às porções inferiores do grande dorsal, eretor da espinha entre outros. Esse seria o segmento de mais fácil dissolução de todos. O sétimo segmento seria o da couraça pélvica que compreenderia quase todos os músculos da pelve, deixando-a retraída. O músculo abdominal acima da sínfise fica 109 Ibidem, p. 350. Cf. ibidem, p. 351. 111 Cf. ibidem, p. 359. 112 Ibidem, p. 358. 110 42 dolorido, acontecendo o mesmo com os adutores da coxa e o músculo do esfíncter anal, causando retraimento do ânus. De acordo com REICH, a pelve fica morta, sendo esta a expressão da assexualidade.113 Emocionalmente não se sente qualquer sensação ou excitação e os sintomas correspondentes a essa região são os mais variados, tais como: prisão de ventre, irritabilidade da bexiga e anestesia da vagina ou da superfície do pênis, entre outros sintomas. A couraça pélvica, assim como a couraça dos ombros conteriam sentimentos de raiva e de angústia. Na pelve, como em outras partes do corpo, o prazer que é inibido transforma-se em raiva e esta raiva, inibida, transforma-se em espasmos musculares. As sensações de prazer só aparecem quando a raiva tiver sido liberada dos músculos pélvicos.114 Podemos perceber pelo exposto, que a idéia de couraça muscular se relaciona intimamente com a postura do indivíduo. A couraça, distante de ser apenas uma mudança “física”, na realidade diz respeito a alterações emocionais que acompanham os processos somáticos ou corporais. Portanto, podemos verificar que alterações emocionais conduzem ou se refletem em alterações posturais. Com base nisso, diríamos que as idéias de WILHELM REICH poderiam ser exploradas nas escolas, através de atividades que valorizassem a expressão corporal do indivíduo, mostrando aos alunos que existe uma outra forma de expressão para além da verbal. REICH, também, poderia ser utilizado na ampliação da discussão de temas referentes à sexualidade, contribuindo para o esclarecimento dos alunos e educadores de forma geral. Baseando-nos nisso, diríamos que para além da forma biomecânica com que a postura vem sendo tratada na Educação Física, há uma outra visão que a entende como resultado de alterações que envolvem o psíquico e o somático do indivíduo, sem, no entanto, excluir as influências sociais e culturais a ela pertinentes. 113 114 Ibidem. Cf. ibidem, p. 359. 43 CONSIDERAÇÕES FINAIS Este trabalho procurou refletir sobre as influências emocionais sobre a postura. Descobriu-se, no decorrer do mesmo, que as questões de postura têm estado historicamente ligadas a questões de saúde, sendo que essa visão também tem sido predominante na Educação Física. Pôde-se evidenciar que algumas práticas e exercícios que visavam uma “correção postural”, poderiam estar ligados a uma docilização dos corpos com correspondente função de melhor adaptação e rendimento corporal. Por outro lado, abordou-se um outro ponto de vista que considera que a postura está intimamente ligada à expressividade do indivíduo. Com base na teoria de WILHELM REICH pudemos observar que o corpo traria as “marcas da vida”, repressões sofridas pelo indivíduo, mas tornadas inconscientes, através de couraças musculares que nada mais seriam do que um reflexo do psíquico do indivíduo no somático, sendo que a sua conscientização estaria acessível através de um processo terapêutico. Dessa forma, foi mostrado que aquilo que REICH chamou de couraças musculares, traria diversas conseqüências, dentre as quais, alterações posturais. A postura seria, portanto, a própria expressão do indivíduo dependendo de fatores diversos. Ou seja, não apenas vinculados ao físico (somático), mas, também ao psíquico, ao emocional do indivíduo. As duas formas apresentadas de práticas corporais alternativas, isto é, a Antiginástica de THÉRÈSE BERTHERAT e o Rolfing de IDA P. ROLF, procuram 44 modificar a postura como um meio de se chegar a uma saúde total, a uma melhor circulação de energia, entendendo a postura como um reflexo do psicológico no indivíduo, estreitando dessa forma, a relação entre o psíquico e o somático. Fazendo uso de intervenções manuais, IDA ROLF procura realinhar o corpo humano à linha da gravidade, apostando que esse alinhamento ou ajustamento do corpo ao campo gravitacional levaria a uma melhor personalidade psíquica. Para THÉRÈSE BERTHERAT e CAROL BERNSTEIN, os problemas da postura seriam provenientes do encurtamento da cadeia muscular posterior, causado pelos movimentos cotidianos do corpo. A solução para uma melhor saúde psicossomática seria, portanto, a relaxação da musculatura posterior que consequentemente implicaria em uma melhor postura, com reflexos no funcionamento psíquico do indivíduo. As práticas corporais alternativas procuram resgatar o contato do indivíduo com seu corpo, sendo uma via de autoconhecimento e alternativa à crescente onda de ginástica de academia e práticas similares que não levam em conta a questão da individualidade do movimento e do corpo de cada indivíduo. As práticas corporais alternativas são muito importantes, pois procuram despertar no praticante o contato mais íntimo com seu próprio corpo, procurando desenvolver a consciência corporal e do movimento. Portanto, essas práticas deveriam ser valorizadas nos cursos de Educação Física e nas escolas, sobretudo, ao se trabalhar questões sobre a postura. Deve-se ressaltar que os cursos de Educação Física no Brasil ainda dão pouca importância às práticas corporais alternativas. Da mesma forma, no trato com a postura, a questão emocional é ainda muitas vezes esquecida, o que implica em prejuízos para o trabalho e compreensão da postura. Nesse sentido, o trabalho de WILHELM REICH, em especial, naquilo que diz respeito às couraças musculares poderia contribuir com essa discussão. Cabe reforçar que essas práticas corporais alternativas tratam da questão postural de uma forma diferente daquelas predominantes na Educação Física. Ou seja, ressaltam que os fatores emocionais estão intimamente ligados à postura, razão pela qual deveriam ser melhor investigadas. Isso não quer dizer que deva se excluir as influências e considerações da biomecânica sobre a postura, pois estas também oferecem um melhor conhecimento 45 sobre o próprio corpo. A discussão sobre os “desvios posturais e suas possíveis conseqüências, como danos à coluna vertebral e outros problemas de saúde deve ser valorizada, mas sem perder de vista as relações da postura com os aspectos emocionais do indivíduo. Contudo, o conhecimento acerca das couraças não significa que qualquer profissional poderá intervir diretamente na questão emocional, mas sugere que a questão postural deva ter um tratamento interdisciplinar, sem perder de vista o todo com que se trabalha, ou seja, o indivíduo. 46 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALBERTINI, Paulo. Reich: história das idéias e formulações para a educação. São Paulo: Ágora, 1994. AMADIO, Alberto Carlos (Coord.) & DUARTE, Marcos (Coord.) Fundamentos biomecânicos para a análise do movimento. São Paulo: Laboratório de Biomecânica- EEFUSP, 1996. BANKOFF, Antonia Dalla Pria. Fatores biológicos da postura ereta: causas e conseqüências. In: BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Postura corporal: integração dos fatores Culturais e Sociais aos fatores biológicos. Brasília, DF, 1994. BARBANTI, Valdir J. Dicionário de Educação Física e do Esporte. São Paulo: Manole, 1994. BERTHERAT, Thérèse & BERNSTEIN, Carol. 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