R esenhas

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Com pequena introdução de
Mario Vegetti, a editora Bur brinda os
leitores de Platão com o cuidadoso
livro de Franco Ferrari sobre assunto
de muita dificuldade: os mitos usados
por Platão em seus diálogos. Muitos
estudiosos abandonam estes relatos
como se fossem simples metáforas,
sem ligação direta com a reflexão
platônica, como “meros” símbolos, no
sentido que dão aos mitos em geral,
tão racionalizados pela modernidade.
Claro está que há uma discussão a ser
feita, ainda hoje e merecida, entre o
famoso par fixado pela tradição interpretativa mýthos e lógos.
Nossa época, felizmente, tem
desconfiado das cristalizações, de
modo que o trabalho de Platão
quanto ao uso de mitos na dialética
é, nas últimas décadas, uma porta
aberta para os menos dogmáticos, e
Franco Ferrari trata de man ter essa
porta aberta. Sua postura cuidadosa
diante dos mitos mais complexos de
Platão – Fédon, Banquete, Fedro,
República, Górgias, Político –, para
citar parte deles, apresenta um viés
novo, apesar de não exaustivo, a meu
ver, pois nem se trata de desocultar
os símbolos dos mitos numa espécie
de quase “psicanálise”, como fazem
alguns intérpretes, nem de “salvar” ou
“condenar” o mito diante da filosofia,
o que parece ingênuo em se tratando
de Platão e do século IV aC.
Esta me parece ser a grande virtude
de Ferrari: buscar compreender o mito
dentro do diálogo, de modo a lançar
luzes sobre o próprio diálogo, sendo
secundária a “decifração” do mito
nele mesmo. Afinal, o uso do mito
em Platão, além de ser uma espécie
de paidêutica ao discípulo que segue
suas reflexões, é, mais que isso, um
recolhimento imagético de abstrações
difíceis de se adaptarem ao lógos argumentativo.
Nesse ponto, Ferrari avança ao
afirmar o papel profundamente ético
dos mitos platônicos, que auxiliam o
propriamente ontológico. Um exemplo: para ele, o mito do Górgias não
deixa de apresentar certo otimismo
quanto ao fato de os homens desejarem a virtude, pois esperam novas e
novas encarnações purificatórias para
alcançá-la; já no Mito de Er tal não
ocorre, pois nele Platão parece recorrer à idéia de que ou se age segundo
a justiça ou se perde a alma para sempre quando de seu julgamento. A base
para tal explanação está no próprio
movimento dos dois diálogos.
A postura de Franco Ferrari tem
semelhanças com as de Julias Annas e
G. Casertano quanto ao mito em Platão, dois entre alguns outros intérpre-
HYPNOS, São Paulo, número 22, 1º semestre 2009, p. 141-142
Resenhas
Ferrari, Franco. I miti di Platone (introdução de Mario Vegetti), Milano, ed. Bur,
2006, 358 páginas.
Resenha
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tes, como ele mesmo atesta1. Apesar
de não ser uma obra que aprofunde o
tema do mito em Platão, o fato de vir
acompanhada da tradução dos mitos,
com notas introdutórias e bibliografia específica, ajuda o estudioso. Do
mito do Górgias, ao Anel de Giges,
passando pela “geografia” do Fédon,
Pelo Mito de Er, pela Atlântida, pelo
eikôn lógos do Timeu, Ferrari tenta
compreender, também, passagens
que, por vezes, são mais alegorias que
mitos (Alegoria da Caverna na República, das Marionetes e da prioridade
da Alma, nas Leis...), sempre com a
mesma metodologia: buscar o entendimento dos mitos e das alegorias “de
dentro” dos diálogos.
Sem dúvida, uma obra a ser considerada entre os investigadores platônicos, ao menos para aqueles que
mantêm o horizonte expandido em
suas análises.
Rachel Gazolla
Prof. Dra. PUC-SP
[email protected]
ANNAS, J. Plato’s Myths of Judgement, p. 129; CASERTANO, G. Dal mito al logo al mito, p.
108; BRISSON, L. Plato the Myth Maker, p. 141.
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HYPNOS, São Paulo, número 22, 1º semestre 2009, p. 141-142
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