VI Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 20 a 24 de setembro de 2010 Natureza humana e teoria do conhecimento em Tomás de Aquino: o corpo como determinante para a realização do processo intelectivo André de Deus Berger UFSCar/ Programa de pós-graduação em Filosofia, mestrado. Capes/ CNPQ Resumo: A questão 75 da primeira parte da Suma de Teologia de Tomás de Aquino abre o tratado do autor sobre a natureza humana, e apresenta os elementos principais que serão alvo de sua análise até a questão 89 da primeira parte da Suma, que fecha este tratado. Relacionaremos aqui os dois primeiros artigos da questão 75, que tratam da essência da alma em si mesma. Segundo Tomás, a alma deve ser entendida como o primeiro princípio da vida, o motor incorpóreo do corpo, seu ato, que no caso do homem também pode ser chamada intelecto. Este primeiro princípio é considerado subsistente por ser parte de um composto (no caso do homem, de corpo e alma), portanto por ser algo, e por realizar uma operação por si só, a intelecção, que lhe permite conhecer a natureza dos corpos. Esta operação necessita dos corpos por conta de seu objeto, que são as representações imaginárias destes corpos. O corpo pode ser considerado determinante para o processo intelectivo por fornecer ao intelecto seu objeto, e por se unir a ele no composto humano, o que lhe permite realizar seu ato como primeiro princípio de vida. Palavras-chave: Filosofia Medieval, Tomás de Aquino, alma, corpo, intelecção. Nosso objetivo é apresentarmos uma análise dos dois primeiros artigos da questão 75 da primeira parte da Suma de Teologia de Tomás de Aquino (doravante ST) com o intuito de evidenciarmos que estes apresentam o pano de fundo sobre os quais o autor erigirá suas teses sobre o conhecimento humano no tratado sobre o homem. O tratado sobre o homem, se estende de ST Iª, 75 até 89. Tomás indica no prólogo deste conjunto de questões que é preciso considerar a natureza do homem, composto de substância corporal e espiritual, a partir da consideração sobre a alma: primeiro, no que se refere à essência da alma, depois o que se refere a sua potência e por fim o que se refere à sua operação. “Com repeito ao primeiro, ocorre uma dupla consideração: uma sobre a alma em si mesma e outra sobre a união da alma com o corpo”299. É sobre a alma considerada em si mesma que a análise tomasiana será iniciada. Aluno regularmente matrículado no programa de pós-graduação em Filosofia da UFSCar em nível mestrado sob orientação do Profº. Drº. Carlos Eduardo de Oliveira. E-mail: [email protected]. 299 ST, Iª, 75, Prólogo, (TOMÁS, 2001-2006, vol. II, p. 355). ISSN 2177-0417 - 342 - PPG-Fil - UFSCar VI Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 20 a 24 de setembro de 2010 Como já anunciado no início, nos deteremos sobre os dois primeiros artigos de ST, Iª, 75, que correspondem, respectivamente, às respostas para as seguintes perguntas: “1 – a alma é corpo? 2 – a alma humana é algo subsistente?”300. A resposta ao primeiro questionamento será inicialmente positiva: “Parece que a alma é corpo”301, e três serão os argumentos elencados para corroborar esta afirmação: O primeiro argumento se apoiará na relação de movimento entre motor e movido, afirmando que a alma é um motor que causa um movimento finito e não uniforme, características dos motores movidos. “[…] Portanto, a alma é motor movido. […] todo motor movido é corpo. Logo a alma é corpo.”302. O segundo argumento afirmará que a alma conhece os corpos por uma relação de semelhança no processo de conhecimento, e concluirá que “[…], não pode haver semelhança entre o o corpo e uma coisa incorpórea. […] se a alma não fosse corpo, não poderia conhecer uma coisa corpórea.”303. O terceiro argumento retomará a relação entre motor e movido: “[…], é necessário haver algum contato entre o motor e o que é movido. […], não há contato senão entre os corpos. […], como a alma move o corpo, parece que ela também é um corpo.”304. Em sentido contrário, Tomás tomará a palavra de Agostinho: “[…], 'a alma é simples em comparação com o corpo, porque sua massa não se estende no espaço local'.”305. A resposta de nosso autor é iniciada com a consideração da necessidade de se partir do pressuposto de que a alma é o primeiro princípio de vida dos seres vivos, que por isso são chamados animados em oposição aos que não tem vida, chamados inanimados. Os seres que tem vida podem manifestar o conhecimento e o movimento, e a consideração tomasiana é a de que “Os filósofos antigos, […], afirmavam que o princípio dessas ações era algum corpo. Diziam que somente os corpos eram coisas, e que nada existia que não fosse corpo. Por isso diziam que a alma é um corpo.”306. 300 Id., Prólogo, (Ibid., p. 355). 301 Id., 1, (Ibid., p. 355). 302 Id., Arg. Ini. 1, (Ibid., pp. 355-356). 303 Id., Arg. Ini. 2, (Ibid., p. 356). 304 Id., Arg. Ini. 3, (Ibid., p. 356). 305 Id., Sed contra, (Ibid., p. 356). 306 Id., Respondeo, (Ibid., p. 356). ISSN 2177-0417 - 343 - PPG-Fil - UFSCar VI Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 20 a 24 de setembro de 2010 Tomás formula o argumento porém de que a alma não é um princípio vital qualquer, e sim o primeiro princípio da vida. Um corpo como o coração, pode ser um princípio de vida, mas não pode ser o primeiro princípio da vida, uma vez que “[…] ser princípio de vida, ou ser vivo, não convém ao corpo enquanto é corpo, do contrário, todo corpo seria vivo ou princípio de vida.”307. A afirmação tomasiana é a de é necessário um ato como primeiro princípio para que um corpo seja princípio da vida, o que possibilita a afirmação de que “ […] a alma que é o primeiro princípio da vida não é corpo, mas ato do corpo, assim como o calor, que é princípio do aquecimento, não é corpo, mas um ato do corpo.”308. Segundo Pasnau, o movimento do argumento tomasiano é o de uma implícita volta sobre si: se o ato identificado como primeiro princípio do corpo, é em si um corpo, se deve, em seguida, voltar ao início do argumento e por ele passar mais uma vez. Encontraremos mais uma vez alguma realidade mais básica subjacente, e se este também é um corpo, se repete, em seguida, o argumento uma terceira vez. A estratégia de leitura é de afirmar uma atualidade sempre anterior a qualquer corpo, por mais profunda que vá a investigação. Assim, se assume que há um primeiro princípio – o que Tomás fez desde o início – e este deve ser um ato, não um corpo309. Tendo negado a resposta inicial de que a alma seria um corpo, Tomás passa então a responder os argumentos iniciais: Ao primeiro argumento em favor da alma ser um corpo, apoiado sobre a relação entre o motor e o movido, é afirmado que esta relação não pode ser levada ao infinito, tendo-se de admitir que nem tudo o que move é movido. A explicação para esta admissão está na consideração de que ser movido é passar de potência ao ato, quando o que move transmite ao movido o que tem. O autor considera então três tipos de motores: um motor totalmente imóvel, que não se move nem por si nem acidentalmente, e que transmite ao movido um movimento uniforme. Outro motor que não é movido por si, como a alma, mas é movido por acidente, o que faz com que este motor não transmita ao movido um movimento uniforme. Por fim há um motor que se move por si, e este é o corpo. A afirmação de que a alma é corpo advém dos antigos filósofos, que 307 Id., (Ibid., p. 356 grifo do autor). 308 Id., (Ibid., p. 357 grifo do autor). 309 PASNAU, 2002a, p. 223. ISSN 2177-0417 - 344 - PPG-Fil - UFSCar VI Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 20 a 24 de setembro de 2010 “[…] não admitiam senão a existência dos corpos, [e] afirmaram que todo motor é movido e que a alma se move por si e é corpo.”310. Ao segundo argumento em favor da alma ser um corpo, apoiado na necessidade de semelhança entre o que conhece e o conhecido, é afirmado que não é necessário que a semelhança da coisa conhecida esteja em ato na natureza do que conhece, mas em potência. Isto exclui a necessidade da semelhança em ato entre as coisas corpóreas e a natureza da alma, mas afirma a necessidade de que a alma esteja em potência para tais semelhanças311. A resposta ao terceiro argumento em favor da alma ser corpo afirma a possibilidade de ocorrência de um duplo modalidade de contato: “[…] de quantidade e de virtude. No contato de quantidade o corpo não é tocado senão por um corpo. No contato de virtude, o corpo pode ser tocado por uma coisa incorpórea que move o corpo.”312. Ao recapitularmos o trajeto apresentado por Tomás, concluímos que sua consideração é de que a alma não é corpo, sendo portanto um incorpóreo. A alma é ato do corpo, ela é o primeiro princípio de vida do corpo e age como seu motor através de um contato de virtude, que possibilita que algo incorpóreo toque e mova um corpo. Segundo Pasnau, o objetivo de Tomás é afirmar a alma como primeiro princípio em termos de ser, aquilo que é primariamente responsável pela existência de um ser vivo e também o primeiro a definir propósito de um ser vivo. Trata-se daquilo que é primariamente responsável por toda a vida, apresentada por Tomás a partir de duas funções: intelecção e movimento; falar de alma, como o primeiro princípio da vida é dizer que ele é o principal responsável pela intelecção e pelo movimento313. De acordo com o comentador, é para conseguir tal objetivo que Tomás inicia argumentando contra a identificação da alma com o corpo (que equivaleria a um erro), uma vez que esta identificação leva a investigação sobre o primeiro princípio da vida ao lugar errado, se detendo sobre os corpos, quando deveriam investigar os princípios de causalidade de um tipo fundamentalmente diferente; que a alma é, na verdade, a atualidade de um corpo vivo, e, como tal, deve ser incorpórea. O apontamento de 310 ST, Iª, 75, Ad 1m, (TOMÁS, 2001-2006, vol. II, p. 357). 311 Id., Ad 2m, (Ibid., p. 357). 312 Id., Ad 3m, (Ibid., p. 357). 313 PASNAU, 2002b, pp. 28-29, grifos do autor. ISSN 2177-0417 - 345 - PPG-Fil - UFSCar VI Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 20 a 24 de setembro de 2010 Pasnau é o de que o final do corpo da resposta de ST, Iª, 75, 1 apresenta um argumento utilizado para derivar uma teoria incorpórea da alma que poderia igualmente ser usado para derivar uma teoria incorpórea de calor. Para o comentador, Tomás apresenta a força de sua teoria ao extrapolar a discussão sobre tipos de alma, e apresentar uma tese metafísica geral, que se estende por todos os fenômenos naturais, vivos ou não-vivos. Assim como a alma não é um corpo, assim também o calor não é um corpo. Ambos são atualidades314. Tendo estabelecido este ponto, Tomás pergunta, em ST, Iª, 75, 2, se a alma humana é algo subsistente, e sua resposta inicial, que será apoiada em três argumentos, é a de que “Parece que a alma humana não é algo subsistente.”315. O primeiro argumento em favor da resposta inicial será o de que “[…] o que é subsistente é designado como alguma coisa. […] a alma não é alguma coisa, mas sim o composto de alma e corpo. Logo, ela não é algo subsistente.”316. O segundo argumento questionará a capacidade operacional da da alma: “[…], tudo o que é subsistente pode operar. Ora, não se diz que a alma opera, […] 'Dizer que a alma sente ou tem intelecção é como se dissesse que ela tece ou edifica.'. Logo, ela não é algo subsistente.”317. O terceiro argumento em favor da resposta inicial incidirá novamente sobre a capacidade operacional da alma: “[…], se a alma fosse algo subsistente, teria alguma operação sem corpo. Ora, nenhuma operação sua é sem corpo, nem a própria intelecção, porque não pode haver intelecção sem as representações imaginárias, as quais não existem sem corpo. Logo, a alma humana não é algo subsistente”318. Na resposta em sentido contrário, Tomás tomará novamente a palavra de Agostinho, para afirmar que a alma é uma substância incorpórea, e portanto subsistente: […], diz Agostinho: 'Quem compreende que a natureza da mente é ser substância e não ser corpo, compreende que se equivocam aqueles que 314 Ibid., pp 29-30. 315 ST, Iª, 75, 2, (Ibid., p. 358). 316 Id., Arg. Ini. 1, (Ibid., p. 358). 317 Id., Arg. Ini. 2, (Ibid., p. 358). 318 Id., Arg. Ini. 3, (Ibid., p. 358). ISSN 2177-0417 - 346 - PPG-Fil - UFSCar VI Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 20 a 24 de setembro de 2010 opinam ser ela corpo, porque acrescentam a ela as fantasias dos corpos, sem as quais não se pode pensar em uma natureza'. Logo, a natureza da alma humana não só é incorpórea, mas também é uma substância isto é, algo subsistente319. O corpo da resposta é iniciado afirmando que o princípio de operação da alma humana é incorpóreo e subsistente, e que alma humana é o intelecto, pelo qual é permitido ao homem conhecer a natureza de todos os corpos. Este princípio não poderia conhecer os corpos se tivesse em si a natureza de algum corpo ou se fosse outro órgão corpóreo, pois a natureza própria deste órgão ou a inerência de alguma natureza lhe impediria de conhecer outras coisas, como “[…] a língua de um enfermo, biliosa e amarga, não pode perceber algo doce, pois tudo lhe parece amargo. […]. Cada corpo tem uma natureza determinada, sendo, […], impossível que o princípio intelectual seja corpo”320. Tomás afirma então que este princípio intelectual opera por si e pode ser chamado mente ou intelecto. Operar é algo possibilitado somente ao ente em ato, que opera por si quando também subsiste por si, uma vez que algo opera segundo o modo como é. “[…] Conclui-se, portanto, que a alma humana, que é chamada de mente ou de intelecto, é incorpórea e subsistente.”321. Para Pasnau, a afirmação de que o intelecto e alma humana podem ser ditos como a mesma coisa não está ainda completamente formulado, uma vez que, segundo este comentador, Tomás argumenta aqui em termos de princípio da operação intelectiva, e seu argumento repousa inteiramente sobre a natureza do intelecto. Sem afirmar ainda que o intelecto é uma parte da alma humana, a conclusão tomasiana se limitaria cuidadosamente ao princípio intelectual, que deve ser considerado incorpóreo e subsistente. Mesmo convidados a supor que tudo isto é a alma humana, o comentador afirma que, em termos estritos, ainda não estamos autorizados a essa suposição322. Vejamos então as respostas aos argumentos iniciais após a afirmação de que a alma é subsistente: Ao primeiro argumento em favor da alma não ser subsistente o autor responde que dois são os modos pelos quais se pode entender alguma coisa: primeiro de um modo 319 Id., Sed contra, (Ibid., p. 358). 320 Id., Respondeo, (Ibid., p. 358-359). 321 Id., Respondeo, (Ibid., p. 359). PASNAU, 2002a, pp. 225-226 grifos do autor. 322 ISSN 2177-0417 - 347 - PPG-Fil - UFSCar VI Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 20 a 24 de setembro de 2010 mais geral, significando qualquer subsistência; segundo, de maneira mais particular, significando uma subsistência completa numa natureza específica. O primeiro modo, mais geral, exclui os acidentes e as formas materiais; o segundo modo, mais específico, permite também a exclusão da imperfeição da parte. “[…] como a alma humana é uma parte da espécie humana, ela pode ser dita alguma coisa no primeiro modo, pois desse modo o composto de alma e corpo se diz alguma coisa.”323. O segundo argumento em favor da alma não ser subsistente é afirmado por Tomás como sendo a opinião dos que diziam que conhecer é ser movido. O autor argumenta que agir por si é próprio daquele que existe por si, e que existir por si pode significar algo que não é inerente nem como forma material nem como acidente, mesmo que seja parte. Subsistir por si se diz daquilo que não é inerente segundo o modo citado mas também não é parte. “[…]. Por isso também as operações das partes são atribuídas ao todo pelas partes. […]. Pode-se, por isso, dizer que a alma conhece como os olhos veem, porém é mais próprio dizer que o homem conhece pela alma”324. Por fim, a resposta ao terceiro argumento inicial em favor da alma não ser subsistente afirma que o intelecto não deixa de ser subsistente por necessitar do corpo, pois esta necessidade ocorre em razão do objeto, “[…], pois as representações imaginárias estão para o intelecto como a cor para a vista. Pelo fato de necessitar do corpo, o intelecto não deixa de ser subsistente, do contrário, o animal não seria algo subsistente, pois necessita de objetos exteriores sensíveis para sentir.”325. Na recapitulação do trajeto apresentado por Tomás em ST, Iª, 75, 2, concluímos que sua consideração é de que o princípio da alma humana é subsistente e opera por si, e que este princípio é intelectual, e por isso a alma também pode ser chamada de mente ou intelecto. Este princípio não pode conter em si a natureza de todos os corpos, pois assim seria impossibilitada de realizar sua operação que é conhecer. A realização desta operação necessita do corpo em função do objeto desta operação, que são as representações imaginárias que estão para o intelecto como a cor para a vista. De acordo com Pasnau, em ST Iª, 75, 2, Tomás confirma a caracterização dos seres humanos anunciada desde o prólogo do Tratado, de que estes seriam compostos de substância espiritual e corporal: a alma humana é uma coisa, o corpo humano, outra. 323 ST, Iª, 75, 2, Ad 1m, (TOMÁS, 2001-2006, vol. II, p. 359). 324 Id., Ad 2m, (Ibid., p. 359-360). 325 Id., Ad 3m, (Ibid., p. 360). ISSN 2177-0417 - 348 - PPG-Fil - UFSCar VI Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 20 a 24 de setembro de 2010 Esta leitura parece encontrar confirmação neste artigo, quando Tomás afirma que a alma humana subsiste por si só. Segundo o comentador, a admissão, na resposta ao primeiro argumento inicial deste artigo, de que a alma seria uma parte da espécie humana, é um vislumbre da posição tomasiana sobre o tema326: dois sentidos para subsistência são apresentadas nesta resposta; um sentido fraco, no qual uma subsistência é parte de algo maior, que é a própria subsistência; e um sentido forte, no qual uma subsistência é parte de algo que participa de algo maior que é a própria subsistência e tem a natureza completa de alguma espécie. Pasnau afirma que, com esta adição, Tomás exclui a possibilidade de algo que possa subsistir no sentido fraco e ainda ser uma parte de uma substância completa. Em se tratando da natureza humana, a alma humana, por si só, é parte de um homem, pois um membro completo da espécie humana deve ter corpo e alma327. Obtemos também em ST I ª, 75, 2, uma caracterização do intelecto: Pasnau afirma que Tomás oferece duas variações sobre um mesmo argumento para mostrar que (a) o intelecto não é um corpo e (b) a sua operação não se dá por um órgão do corpo. Cada variação repousa sobre a premissa inicial do corpo da resposta, em versões intimamente relacionadas a uma segunda premissa: o que pode ter intelecção de certa coisas não deve ter nada dessa coisa em sua própria natureza, pois mesmo a natureza determinada de um órgão do corpo humano impediria a cognição de todos os corpos. A partir dessas premissas, Tomás conclui pela a impossibilidade de o princípio intelectual ser um corpo e, consequentemente, ser impossível inteligir através de um órgão do corpo humano. Neste sentido, a comparação entre o intelecto e o sentido é instrutiva; a visão, como os outros sentidos, é especializado, projetado para detectar apenas uma parte do mundo físico: as cores. Os órgão responsáveis pela visão refletem essa especialização: a parte interna do olho não tem cor, porque uma cor interfere na capacidade do olho de perceber todas as cores. O intelecto, porém, não é especializada como os sentidos, pois se detém sobre as impressões recebidas através de todos os sentidos corporais. Cada um dos sentidos tem sua especialidade de aplicação, mas o intelecto é capaz de refletir sobre o mundo dos sentidos em todas as suas modalidades328. 326 PASNAU, 2002b, pp. 45-46, grifos do autor. 327 Ibid., p. 49. 328 Ibid., pp. 52-54, grifos do autor. ISSN 2177-0417 - 349 - PPG-Fil - UFSCar VI Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 20 a 24 de setembro de 2010 Organizemos agora as conclusões de ST, Iª, 75, 1 e ST, Iª, 75, 2, para finalizarmos: Os argumentos iniciais de ST, Iª, 75, 1, apresentam as considerações que serão interpretadas e analisadas por Tomás, e que darão o sentido a toda a argumentação subsequente: A alma é apresentada como um motor movido (primeiro argumento inicial), que pode conhecer o corpóreo (segundo argumento inicial) e que está em contato com o corpo movido (terceiro argumento inicial). Em ST, Iª, 75, 2, a preocupação de Tomás é a de afirmar a subsistência da alma humana, e para isso ele terá de considerar que ela é algo (primeiro argumento inicial), que ela tem uma operação (segundo argumento inicial) e que esta operação ocorre sem o corpo (terceiro argumento inicial). Agostinho será elencado em ambos os artigos, para afirmar, contra as respostas iniciais, que a alma não é um corpo329 e que a alma é algo subsistente330. No corpo da resposta de ST, Iª, 75, 1, Tomás afirma que a alma não é qualquer princípio de vida, mas o primeiro princípio vital, o ato incorpóreo do corpo, e que duas são as manifestações da vida: o movimento e o conhecimento. É na consideração sobre o conhecimento que está o apoio da tese tomasiana sobre a natureza humana, como podemos observar pela argumentação do corpo da resposta de ST, Iª, 75, 2, que afirma que o primeiro princípio da alma humana, incorpóreo e subsistente, é dotado de uma operação que é o conhecimento dos corpóreos, e que por isso a alma humana pode ser chamada também intelecto. Este princípio é afirmado como um operador por si, que é a característica daquilo que é subsistente. Na resposta ao primeiro argumento inicial de ST, Iª, 75, 1, em favor da alma ser um corpo, apoiado sobre a relação entre o motor e o movido, Tomás afirma que esta relação não pode ser levada ao infinito, e admite que nem tudo o que move é movido. O autor considera que ser movido é passar de potência ao ato, quando o que move transmite ao movido o que tem. Ao afirmar três tipos de motores (um totalmente imóvel, que não se move nem por si nem acidentalmente, mas transmite ao movido um movimento uniforme; outro que não é movido por si, mas sim por acidente, o que faz com não transmita ao movido um movimento uniforme; por fim, aquele motor que se 329 ST, Iª, 75, 1, Sed contra, (TOMÁS, 2001-2006, vol. II, p. 356). 330 Id., 2, Sed contra, (Ibid., p. 358). ISSN 2177-0417 - 350 - PPG-Fil - UFSCar VI Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 20 a 24 de setembro de 2010 move por si) afirma que o corpo é movido por si331, mas como? A resposta ao terceiro argumento inicial deste artigo afirma a possibilidade de ocorrência de um contato de virtude, pela qual algo incorpóreo pode mover o corpóreo332, que garante a formulação apresentada no corpo da resposta, de que a alma é o primeiro princípio de vida do corpo333, que o toca por um contato de virtude, mas não explica porque o corpo pode ser considerado um motor que move a si mesmo. Para tal, devemos atentar para a resposta ao primeiro argumento de ST, Iª, 75, 2, no qual o autor afirma dois modos pelos quais se pode entender algo: de modo geral, que significa qualquer subsistência; ou modo particular, que significa uma subsistência completa numa natureza específica. A alma humana pode ser dita algo no primeiro modo, pois desse modo o composto de alma e corpo se diz algo334. Ora, por composto pode se entender o corpo humano vivo, uma vez que ele é o ente em ato que pode realizar a operação de conhecer, e pelo qual Tomás afirmou, no corpo da resposta deste artigo que a alma é algo subsistente, pois opera por si só335. É por esta chave de entendimento que o segundo argumento inicial deste artigo é respondido, pelo afirmação de que agir por si é próprio daquele que existe por si; existir por si pode significar algo que não é inerente, mas é parte, mas subsistir por si se diz daquilo que também não é parte, e por isso as operações das partes são atribuídas ao todo pelas partes336. A operação da alma é a operação do composto, e por isso se pode dizer que que este composto é um motor que move a si mesmo, pois opera por si. O corpo não pode ser entendido em separado pois deste modo não está unido a seu primeiro princípio, que lhe dá existência e propósito. Destacamos por fim a resposta ao segundo argumento inicial de ST, Iª, 75, 1, que afirma a não necessidade de ocorrência na alma da semelhança em ato da natureza dos corpóreos para que haja o conhecimento, e sim em potência337, que se conecta às respostas aos segundo e terceiro argumento inicial de ST, Iª, 75, 2, que afirmam, 331 Id., 1, Ad 1m, (Ibid., p. 357). 332 Id., Ad 3m, (Ibid., p. 357). 333 Id., Respondeo, (Ibid., p. 357 grifo do autor). 334 Id., 2, Ad 1m, (Ibid., p. 359 grifo nosso). 335 Id., Respondeo, (Ibid., p. 359). 336 Id., Ad 2m, (Ibid., p. 359-360). 337 Id., 1, Ad 2m. (Ibid., p. 357). ISSN 2177-0417 - 351 - PPG-Fil - UFSCar VI Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 20 a 24 de setembro de 2010 respectivamente, que a operação da alma humana é o conhecimento338, e que o objeto desta operação são as representações imaginárias dos corpos339. Estas teses serão desenvolvidas no decorrer do tratado sobre a natureza humana, tendo em vista a consideração apontada sobre o homem ser um composto de alma e corpo, além do papel do corpo como objeto da operação intelectual através de suas representações imaginárias. Bibliografia GILSON, E. Le Thomisme. Introduction a la Philosophie de Saint Thomas d’Aquin. 6ème éd. revue. Paris, Vrin, 1989. LIBERA, A de. A Filosofia Medieval. 2ª ed. Tradução D. D. Machado & N. Campanário. São Paulo: Loyola, 2004. NASCIMENTO, C. A. R. do.“As questões da primeira parte da Suma de Teologia de Tomás de Aquino sobre o conhecimento intelectual humano”. In: TOMÁS DE AQUINO. Suma de Teologia. [Primeira parte, Questões 84-89]. ed. bilíngüe. Tradução C. A. R. do Nascimento. Uberlândia: EDUFU, 2006 pp. 9-39. PASNAU, R. “Commentary”. In: AQUINAS, The treatise of human nature. Suma Teologiae 1ª, 75-89. Translated by R. Pasnau. Indianapolis: Hackett publishing company, Inc. 2002a. pp. 220-378. ______. 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