ARTES VISUAIS E ICONOGRAFIA - ZC

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
ARTES VISUAIS E ICONOGRAFIA
Zoroastro Ramos Cardoso
Trabalho final para à disciplina
Imaginária Maneirista ministrada em 2002.2 na UFMG pela
profa. Dra. Adalgisa Arantes.
BELO HORIZONTE
Fevereiro 2003
INTRODUÇÃO
As artes são, ao mesmo tempo, expressão da personalidade do artista e do seu
mundo como também meio de influenciar a sociedade. Alguns gêneros como o teatro e
a literatura parecem exercer maior influência, a exemplo das obras de Shakespeare ou
de Bertold Brecht, que continuam sendo encenadas principalmente no mundo ocidental.
Teatrólogos em todos os tempos serviram aos interesses do poder instituído ( Estado,
Igreja ) como se opuseram a ele, denunciando injustiças em defesa dos direitos naturais
do homem. As artes plásticas ou visuais ( pintura, escultura )expressam na obra de arte
sentimentos, cultura, visão de mundo, mesmo que esta pareça inerte, passiva. Quem
ficaria passivo diante de “Guernica” de Pablo Picasso? Porque algumas obras das artes
visuais provocaram reações violentas nas autoridades governamentais?
Com força semelhante às artes cênicas e literárias, as artes visuais continuam
sendo poderoso meio de influenciar indivíduos e sociedades, assim como são expressão
da cultura de determinado tempo e lugar. Imagens do passado veiculada pela indústria
cultural continuam com força semelhante às imagens do presente. No Brasil a
divulgação de imagens de Maria, mãe de Jesus,refletidas numa janela de vidro tiveram
ampla divulgação em face da recepção dos telespectadores católicos, provocando
concentração de populares e emoção coletiva pelo aparente milagre da aparição. No
México o culto à Virgem de Guadalupe continua sendo um fenômeno de massa que
nada mudou em cinco séculos desde sua primeira aparição a um índio no século XVI. A
imagem desta santa católica tornou-se o arquétipo de diferentes etnias da sociedade
mexicana, transcendendo as barreiras culturais, sociais e raciais. A imagem da virgem
se converteu em arquétipo de identidade cultural ligando mexicanos do presente aos do
passado colonial porque o culto remonta a uma tradição ancestral pré- hispânica na
colina do Tapeyac onde se faziam oferendas e sacrifícios. Tudo indica que a imagem
primitiva venerada pelos índios mexicanos não era a mesma que se tem em nossos dias.
A Igreja promovia o culto da Virgem, mesmo sabendo da tradição ancestral indígena
anterior à colonização espanhola.1
1
As imagens da Virgem de Guadalupe veiculadas na tv mexicana continuam exercendo impressionante
fascínio sobre os devotos. Desde os tempos coloniais os espanhóis reforçam o culto à esta santa pelos,
milagres a ela atribuídos. A Igreja procurou trazer para seu controle a tradição do culto ancestral indígena,
ao oficializar o nome da Virgem de Guadalupe. Gruzinski, 1999, pp.104-5.
ARTES VISUAIS E ICONOGRAFIA
As artes visuais são instrumentos poderosos para divulgar e impor crenças,
valores, representações simbólicas e sociais. Artistas são agente sociais de conservação
ou resistência, não somente influenciando tradicionais consumidores ou usuários das
obras de arte, mas exercendo função política e social extensiva a toda a sociedade.
Quando a Igreja Católica no século XVII empreende uma verdadeira luta contrareformista para reafirmar o catolicismo, recorre sobretudo às artes visuais utilizadas
como propaganda de sua doutrina. A Igreja de Roma mantém rigoroso controle sobre os
artistas, embora permitindo articulação das fontes hebraico-cristãs com a cultura grecolatina para atingir as massas iletradas. “ Os letrados apreciavam os poetas, o povo
gostava dos santos”.2 Assim, a Igreja Católica utilizou o culto às imagens dos santos
para manter os fiéis sob seu controle, mesmo recorrendo ao paganismo. Heróis
lendários da mitologia são habilmente substituídos por santos do povo. Em sentido
contrário a Reforma rompe com a doutrina católica, destacando as fontes hebraicocristãs como fundamentais para temas da arte em todos os gêneros, de acordo com o
movimento iconoclasta. Naturezas mortas, cenas do cotidiano burguês na Alemanha,
Holanda e Inglaterra, ou do Antigo Novo Testamento,excluída a tradição católica, passa
a ser temas das obras de arte entre cristãos reformados. Esses também utilizam a arte
para fazer propaganda de sua doutrina, pois sabem da força da imagem sobre os homens
mesmo estes sendo iconoclastas. Lutero e Calvino combatiam a idolatria, a maioria dos
sacramentos e dogmas católicos. Artistas protestantes expressam agora temas em idéias
iconoclastas. Antigos templos católicos são transformados em templos protestantes
semelhantes a mesquitas ou sinagogas sem estátua ou ícones de santos.
Protestantes se escandalizavam com a prática da idolatria católica enquanto os
católicos, igualmente, com a destruição de imagens cultuadas. O protestantismo
desenvolve uma vida ascética que penetra em todas as esferas da vida social, embora
direcione a fé cristã para uma vida interior. As boas obras não garantem a salvação
porque a visibilidade social delas pode não corresponder à vida interior. O homem pode
praticar boas obras para obter reconhecimento social, mas não por amor a Deus. Há por
esta razão no protestantismo uma ênfase na vida interior. Ao contrário, no catolicismo
incentiva-se a prática exterior de boas obras, evidência social das virtudes cristãs. Mas
2
Francastel, 1973, p. 28
dessas virtudes, o amor sobressai como elemento primordial. Weisbach3 coloca Sta.
Teresa d’Ávila como modelo desta vida ascética ( fé, sentimento místico ) e também
erótico ( união amorosa com Deus no êxtase ) nessa grande mística.
A história registra continuidades e sobreposições nas artes visuais com estéticas
diferentes numa obra. Há obras de arte em escultura, pintura e arquitetura com estéticas
renascentistas e barrocas sobrepostas. A visão e a consciência do artista não percebe
certas coisas da realidade interpretada por uma certa visão de mundo. Nem sempre
motivos e significados subjacentes ao artista, à obra e seu mundo conseguem ser
conhecidos, pois razões políticas, sociais ou de outra natureza dificultam a expressão e a
recepção. Há significados camuflados que ficam opacos. Essas dificuldades constituem
desafios para pesquisadores das mais variadas áreas do conhecimento. Entre esses há
aqueles que utilizam métodos de análise e /ou seu mundo. Vejamos quais são esses
caminhos mais utilizados pelos estudiosos das artes visuais.
A obra de arte adquire uma dimensão que ultrapassa o tempo em que foi
produzida. Mesmo sem perder sua forma e conteúdo, a obra de arte tem recepção
diferenciada para outras épocas e culturas. Tradições culturais influenciam a percepção
posterior porque as condições históricas são outras. Os indivíduos desenvolvem certa
sensibilidade de acordo com a identidade cultural com esta ou aquela obra e arte. As
imagens expressas em formas artísticas veiculam conteúdos éticos morais ou religiosos
representativos do mundo material ( natureza ) ou do mundo simbólico ( conceitos,
representações ). Essas imagens identificadas como alegorias ou retrato da realidade (
material ou simbólica ) são portadoras de formas e conteúdos interpretados com
significados diversos, de acordo com a visão de mundo do observador.
Quem olha a obra de arte, não como observador empírico, mas com olhar de
pesquisador que busca descrever e classificar formas e conteúdos, faz análise
iconográfica. Através do método iconográfico o pesquisador ou estudioso das artes
visuais observa detalhes que escapam do observador comum, coleta dados e fora
dela,descreve e classifica imagens. O resultado desse trabalho fornece dados necessários
para se proceder à interpretação por meios da síntese, utilizando método de
interpretação das imagens, estórias e alegorias conhecido como iconologia. A distinção
fundamental entre iconografia e iconologia seria quanto ao uso do método de análise
por uma e de síntese por outra. Além da análise e síntese das imagens, existe uma fase
3
Weisbach. El barroco arte de la contrarreforma. 1948. p. 69.
precedente nesse longo caminho metodológico, que é descrição pré-iconográfica.
Material das formas visuais e motivos do autor da obra de arte são objetos dessa
pesquisa introdutória ( pré-iconográfica ). Embora a experiência prática do indivíduo
que observa seja importante e indispensável, ela não garante certeza ou exatidão. Faz-se
necessário relacionar a interpretação dos motivos com o estilo e os significados
culturais. Para um observador interpretar uma obra de arte, precisa ir também além dela
buscando compreendê-la através do contexto cultural em que foi produzida. Idéias ,
valores, significados, visão de mundo são representação e expressão cultural de uma
época em determinado lugar.
Panofsky4 se deparou com o problema das obras de arte e os testemunhos
figurativos como fonte histórica sui generis por considerar insuficientes os dados
iconográficos e estilísticos. Para ele a descrição ( método pré- iconográfico ) pressupõe
a interpretação ( método iconográfico ), assim como estão inseparáveis numa pintura a
forma e o conteúdo. Mas os dois métodos ficariam incompletos sem captar o sentido
essencial que esteve presente nos momentos de emanação ou produção da obra de arte (
método iconológico ). Os três métodos complementam-se, como vimos antes, para que
se possa fazer a análise e a síntese da personalidade do artista, da obra de arte e do
mundo em que foi produzida. Através desses métodos torna-se possível compreender a
vocação naturalista dos pintores holandeses do século XVII.
4
PANOFSKY, 1979. Ver também BAZIN, Germain, 1989, cap. 8 .
ICONOGRAFIA HOLANDESA
Para alguns historiadores da arte, a pintura holandesa do século XVII retrata de
tal modo o mundo que mais parece descrição e imitação da natureza. O artista expressa
na obra o que seus olhos observam, reproduzindo a realidade visível. “ Para o bem ou
para o mal, era como uma descrição da Holanda que os autores de artes do século XX
viam e julgavam a arte holandesa do século XVII”.5
A questão da distinção entre a arte como tal e a realidade natural representada
sem alteração depende do conceito e da tradição artística. Um modo pictórico descritivo
pode caracterizar pinturas holandesas de paisagens ou de natureza morta, podendo ser
considerada obra de baixo valor artístico e desprovida de significado. Uma crítica da
arte holandesa atribuída a Michelangelo assegura que a pintura flamenga “ é feita sem
razão, nem arte”, enquanto destaca a pintura italiana como a verdadeira pintura. Isto
mostra como os artistas italianos se sentiam superiores. Artistas italianos do
Renascimento representam o corpo humano em modelo clássico apolíneo, enquanto os
holandeses o fazem com a natureza. Em resposta a esta questão, Svetlana Alpers
demonstra “ que o realismo holandês é apenas aparente”; as imagens da realidade “ são
abstrações materializadas que pregam lições de moral”.6
A diferença entre a arte do Norte europeu e a arte do Sul da Europa remonta a
período anterior à Reforma. Mesmo tendo os nórdicos participado do movimento
humanista e renascentista, estiveram mais voltados para o tema ou conteúdo do que a
forma clássica. Havia pouco interesse do artista nórdico pelas formas estéticas do
Renascimento italiano, cuja influência se espalhou pela Europa. No Norte há visível
interesse pelo conteúdo da obra, por detalhes históricos, arqueológicos. “ Desde o
começo da Renascença, toda representação italiana de um original clássico, boa, má ou
indiferente, apresenta uma relação estética direta com seu modelo, e sua intenção
primordial é fazer justiça à sua aparência formal. A xilogravura nórdica, ao contrário,
tenta ser, não tanto a reprodução de uma obra de arte clássica, como o registro de um
exemplar arqueológico”7. Eis aqui uma diferença básica entre artistas italianos e
nórdicos, entre idealismo classicista e realismo nórdico.
5
Svetlana Alpers, 1999, p. 23. Esta autora demonstra como a arte holandesa do século XVII deve ser
vista com uma nova maneira de olhar dentro da tradição do Norte europeu diferenciado da tradição
italiana albertiana.
6
Svetlana Alpers, 1999, p. 36.
7
Panofsky,op. Cit. p. 353.
Albert Durer, ao introduzir na arte nórdica gosto e sentimento pela beleza
clássica, diminuiu essa diferença no século XVI, sem perder a identidade típica do
artista nórdico, pintar paisagens genuínas. Modelos estéticos da beleza clássica
retomados pelos artistas do Renascimento inicialmente na Itália difundiram-se também
pelo Norte europeu. Obras produzidas pelo alemão Albrecht Dürer evidenciaram o
início do estilo renascentista no Norte da Europa. Figuras mitológicas do paganismo são
representadas ou convertidas em temas bíblicos. Dürer converteu o deus-sol apolíneo
em Adão no paraíso e em Cristo como Sol da justiça. Cristo aparece no centro da
pintura sentado sobre um leão com uma espada numa mão e a balança da justiça na
outra. Essas imagens do “Sol da justiça” de Dürer misturam astrologia babilônica (
signo de leão no planeta Sol ), mitologia greco-romana ( deus-sol do culto mitra ) e
profecia bíblica ( sol da justiça ).8
O movimento humanista do Renascimento encontrou apoio da Igreja Romana.
Painéis com figuras humanas nuas, como na Capela Sistina, foram pintados por artistas
do Renascimento sob o patrocínio de mecenas católicos ou da própria Cúria romana.
Temas e formas da arte clássica passaram a ser largamente utilizados até que os
reformadores protestassem contra o paganismo e a idolatria veiculados na arte religiosa.
Em reação a esses protestos da Reforma, a Igreja católica primeiro assumiu uma atitude
defensiva, justificando as atividades artísticas. Depois iniciou um movimento ofensivo
através da Contra Reforma, a partir das decisões tomadas no Concílio de Trento. A
Inquisição se encarregou de censurar e punir artistas que não se ajustassem aos cânones
católicos. Nem o “Juízo Final” de Miguel Ângelo escapou da censura. Muitas figuras
humanas forma cobertas notadamente a genitália. Toda obra de arte religiosa devia se
manter-se fiel à moral da Contra Reforma. Os temas religiosos deveriam ater-se aos
textos aprovados pela Igreja. Em Roma toda obra destinada a fins religiosos não podia
ter elementos profanos, indecorosos, pagãos. No pontificado de Sixto V um pintor foi
açoitado por ter representado figuras humanas nuas.9 Estava proibida a genitália
desnuda em obras de arte expostas ao público.
A Reforma religiosa iniciada na Alemanha provoca alterações profundas nas
artes visuais, levando o artista a adequar temas e formas às doutrinas dos reformadores
protestantes. Estes condenavam o culto aos santos, por ser considerado idolatria. As
idéias reformistas entraram nos Países Baixos ainda sob domínio espanhol. Pieter
8
9
Erwin Panofsky. Significado das artes visuais. SP: Perspectiva, 1979, p. 340.
Weisbach, 1948, p. 65.
Brueghel viveu os primeiros tempos dos conflitos entre católicos e protestantes, viu
iconoclastas depredarem a estatuária religiosa. Por sua vez, católicos espanhóis ou
flamengos espanholizados perseguiram, prenderam, torturaram, mataram cristãos
reformados. De um modo ou de outro, católicos e protestantes se nivelaram na
intolerância, na violência, tudo em nome de Deus.
Assim como Dürer influenciou com a arte renascentista artistas nórdicos da
Alemanha,Breughel à alma de artistas flamengos o gosto pela natureza ( água, terra,
vegetação, animais, solo e ar ). Viajou á Itália, provavelmente a pé, detendo-se para
desenhar ou pintar cenas do campo com certa intimidade. “ brueghel descobriu a
intimidade da paisagem para a qual, desde Pol de Limburgo, orientavam-se os pintores
de Flandres”.10 Dentre suas obras, destaca-se o quadro “ Os jogos infantis” onde
expressa seu amor pelas crianças pobres brincando num logradouro urbano.
O movimento iconoclasta11 acreditava inicialmente que podia orientar a arte para
fins culturais diferentes da religião. Sem estátuas e afrescos nas igrejas reformadas, o
artista protestante passaria a pintar muito mais a natureza e cenas do cotidiano burguês.
Contudo, não havia como impedir a expressão da visão religiosa, quer seja protestante,
quer seja católica. Rembrandt fez isto sem ter ligação com alguma igreja oficial,
certamente mais levado pelo sentimento religioso.
“ Em nenhum lugar, ( ... ), os teólogos e os doutores exerceram uma ação tão
grande sobre os pintores quanto na Alemanha”.12 Os reformadores fizeram tenaz
resistência ao movimento renascentista que havia despertado no imaginário europeu
ligações profundas com arquétipos milenares da mitologia pagã. Mas a reforma na
Alemanha, de João Huss a Lutero, consegue ajustar a arte figurativa aos princípios
teológicos e doutrinários dosa reformadores, em parte a mentalidade nórdica valoriza
muito mais a natureza. “todos os artistas alemães do início do século XVI anunciam
Lutero”13, ou seja, a Reforma.
A quebra da unidade católica pela Reforma provocou conflitos em todas as
esferas da sociedade e na mentalidade da população do Norte da Europa. As guerras
entre príncipes católicos e protestantes tumultuaram a vida de servos, burgueses,
aristocratas e nobres apesar de sucessivos tratados de paz. Um mesmo príncipe nasceu
10
Elie Faure. A arte renascentista. SP: Martins Fontes, s.d., p. 224.
Na Holanda ( 1566 )mobilizações icinoclastas rapidamente se espalharam pelos Países Baixos
saqueando e destruindo centenas de igrejas católicas. MALE, Emile. L’art religieux du XVII siècle, 1984,
p. 42.
12
Elie Faure. A arte renascentista. p. 272.
13
Idem, p. 292.
11
luterano, tornou-se nominalmente católico e depois calvinista, obrigando seus súditos a
adotar a sua igreja oficial. Este é o caso do herói da independência holandesa, o príncipe
de Orange ( 1533-1584 ), Guilherme de Nassau. Mas antes de ser assassinado
transformou os Países Baixos em lugar de refúgio para diversas confissões religiosas,
inclusive judaica.14
Não havia mais certeza de nada. As controvérsias teológicas não se davam
apenas entre católicos e protestantes, mas também entre luteranos e calvinistas. Para que
se possa tentar compreender a situação de incerteza, estranheza e alienação do homem
pós-renascentista, vamos estabelecer conexão entre essas controvérsias e atitude
maneirista do homem rebelado pela Reforma religiosa.
A controvérsia religiosa na Igreja reformada entre calvinistas gomorrostas e
calvinistas arminianos nos Países Baixos ficou famosa. A doutrina da predestinação
incondicional assegura que a salvação é destinada apenas aos eleitos por Deus, antes
mesmo do indivíduo nascer, e que a Igreja tem todo direito de auto-governa-se, embora
sob a manutenção e proteção do Estado. Os arminianos defendiam também a
predestinação, mas para aqueles que fossem alcançados pela salvadora de Cristo,
libertando o homem decaído e conduzindo-o à salvação por meio também da sua fé e do
seu comportamento; competia ao Estado cristão fazer leis e nomear ministros
eclesiásticos, como também supervisionar a igreja. Isto reacendia a questão do livre
arbítrio do homem diante de Deus e do Estado, uma questão que envolvera Lutero e
Erasmo.
Como a Igreja Cristã reformada estava subordinada ao Estado na Holanda, seus
pastores eram mantidos por ele e somente seus membros poderiam ocupar cargos
públicos. Os arminianos encontram apoio no fundador da Companhia das Índias
Orientais ( 1602 ) e no jurista Hugo Grotius ( 1583- 1645 ), que eram republicanos e
defendiam a tolerância religiosa. Mas seus adversários tiveram a seu lado nada menos
so que o stadholder, filho sucessor de guilherme de Orange, que deu um golpe de
Estado ( 1618 ) nas principais cidades da Holanda. As lideranças adeptas da doutrina
arminiana forma perseguidas, executadas, presas ou exiladas. O sínodo de Dort ( 16181619 ) com delegados também da Inglaterra, Escócia e Suíça condenou os arminianos.
O calvinismo da Confissão Belga e do Catecismo de Heilderlberg tornou-se a base
Bratt, John H. “ O calvinismo holandês na América”. In: W. Stanford Reid ( ed )... Calvino e sua
influência no mundo ocidental. SP: Casa Ed. Presbiteriana, 1990. p. 335-377.
14
doutrinária da igreja reformada holandesa.15 Muitos flamengos, ingleses, franceses,
alemães insatisfeitos ou perseguidos por motivos religiosos mudaram-se para o Brasil
holandês, onde houve relativa tolerância religiosa sobretudo no tempo do governo de
João Maurício de Nassau ( 1637-1644 ) a serviço da Companhia das Índias Ocidentais.
Nesse ambiente a arte se integra à visão religiosa do homem imerso em
incertezas que se expressam no Maneirismo que se opõe ao mesmo tempo ao
Classicismo renascentista e ao Barroco da Contra Reforma. O homem moderno vai
sendo formado primeiro tendo como padrão o modelo apolíneo do Renascimento,
depois com o modelo dionisíaco do Maneirismo e, no mesmo tempo histórico, pela
síntese destes modelos no Barroco. Na primeira fase ( Renascimento ) o homem sentiase seguro como o herói apolíneo harmonizado com a natureza cósmica; na fase do
Maneirismo o homem se sente estranho a essa natureza e apela para o modelo
dionisíaco, irracional, vivendo conflitos interiores num mundo de incertezas; e na
terceira fase ( Barroco ) o homem moderno tenta fazer síntese, resgatando a natureza,
mas de modo a submetê-la ao seu poder, ao mesmo tempo em que mergulha dentro de
si, no seu mundo subjetivo. “ Os conflitos maneiristas são superados e procura-se uma
síntese que resolva as várias oposições numa unidade indivisível dinâmica e aberta. O
resultado é uma arte persuasiva, teatral, sistemática e sintética que convida à
participação e integração do homem no sistema”.16
No século XVII, o homem do Norte da Europa ainda convive com intolerância e
controvérsias religiosas que lhe tiram qualquer segurança e certeza. A iconografia se
depara com essas questões. Como situar a arte holandesa considerada representação do
que o olho vê com a subjetividade do homem maneirista? Existe relação entre a
natureza representada pelo artista holandês com a atmosfera maneirista?
Em parte, o simbolismo da arte religiosa reformada ficou muito reduzido pela
concepção de que as obras do homem não são meritórias. Para o protestante, no entanto,
inexistem intermediários entre Deus e o homem. Pela prática de boas obras e atitude
religiosa visível o homem católico busca a salvação. Enquanto o protestante se
comunica diretamente com Deus sem recorrer a exterioridades ou apelos visuais. Ao
passo que para o católico existe uma grande distância entre Deus e o Homem. A
exterioridade caracterizava o catolicismo. Por esta razão as artes visuais com temas
SIEPIERSKI, Paulo D. “ Calvinismo holandês e liberdade religiosa”. In: Seminário Internacional:
Tempo dos flamengos e outros tempos: Brasil século XVII. CNPq; Recife: Fundação Joaquim
Nabuco/Ed. Massangana, 1999, pp. 147-175.
16
Brandão, Carlos Antônio Leite. A formação do homem moderno. BH: UFMG,1999,p. 191.
15
religiosos se tornam meios de suscitar nos fiéis a prática das virtudes cristãs e da
obediência ao clero visto como intermediário entre Deus e os homens.
Os artistas holandeses vivem com certa autonomia e liberdade de pensamento
sem comparação com a situação de outros artistas europeus. No panorama da pintura
holandesa do século XVII, Frans Hall ( 1581-1666 ) ocupa o primeiro plano como gênio
naturalista que dá vida a grupos de pessoas ou indivíduos retratados. No quadro “
Banquete dos oficiais das armas de São George” ( 1616 ) expressam concentração,
reflexão, preocupação certamente com a vida belicosa, como num banquete com mesa
farta. Na “ Reunião dos oficias e sub-oficiais da Companhia de Santo Adriano” (
1633 )Hals consegue revelar na expressividade do olhar e do rosto as preocupações de
guerra rondando o espírito dos homens carregando o peso da responsabilidade
patriótica. O gosto pela pintura de retratos predomina não somente em Hals, mas
noutros pintores holandeses. A pintura de grupos de pessoas manifesta a tradição
holandesa de festejar e homenagear as virtudes cívicas dos flamengos, retratando
banquetes, paradas militares, cotidiano do trabalho no campo ou na cidade, conselhos
administrativos.
A vida das corporações e das malícias cívicas parecem ligadas às companhias
militares dos tempos das guerras contra os espanhóis. Esses personagens que aparecem
nos quadros holandeses são transformados em heróis de prestígio nacional. O espírito da
arte holandesa se manifestou no retrato individual, coletivo e familiar. Há pintores que
mesclam figuras humanas com a natureza.
Mesmo com Frans Hall se destacando como extraordinário retratista, mesclando
ironia e alegria típica do Norte da Europa, outros pintores holandeses utilizam temas da
natureza com animais e tipos humanos. Em tudo a pintura holandesa, no Século de
Ouro, expressa o amor à terra, à pátria, ao povo.
A tradição italiana considera a arte holandesa limitada pelo movimento
iconoclasta da Igreja Cristã Reformada nos Países Baixos. Mas com Rembrandt ( 16061669 ) a arte holandesa transita entre o mundo visível e as profundezas da alma humana.
“ Ao afastar-se da técnica de representação, Rembrandt também se afasta da certeza e
do conhecimento atribuídos pela cultura holandesa e sua arte ao mundo visto e a própria
visão”.17 Torna-se também um mestre do encantamento, disfarçando Saskia ( esposa )
ou a si mesmo num mundo de expressão da própria vida, um mundo para ver e
17
Svetlana, Alpers, 1999, p. 405.
imaginar. Na obra “ Ronda Noturna” o capitão, a moça e outros personagens
expressam gestos e olhares cheios de movimentos em todas as direções. Do mesmo
modo no “ Festim do Rei Baltazar” ( 1635 ) se observa essa expressividade de
movimentos. Baltazar profana em banquete real vasos do templo de Jerusalém que
Nabucodonosor saqueara. Em pleno banquete o rei vê a mão de Deus escrever numa
abobada de luminosidade irradiante enigmática mensagem de destruição. Este tema
bíblico parece se destinar às autoridades holandesas para que, em vez de decretarem
festins e bebedeira, conclamassem a população flamenga à sobriedade, à penitência,
jejum e oração. Mas isto não condizia com hábitos flamengos adquiridos em tempo de
superabundância. “ Afinal, os banquetes faziam parte dos velhos costumes neerlandeses,
e havia modos de evitar que se assemelhassem à punição contra Baltazar”.18 Apesar das
limitações impostas pela Igreja Reformada, Rembrandt pinta “ Betsabé” ( 1654 )19
totalmente nua, pensativa, com a carta do rei Davi declarando seu amor à esposa do
general Urias. Betsabé absorta em seus pensamentos, certamente imagina as
conseqüências de vir a ser amante do rei. Outros pintores holandeses pintaram mulheres
lendo ou escrevendo cartas, a exemplo de Jan Vermeer com “ Mulher Lendo uma
Carta”. Podem ser amor, convites para encontros clandestinos, notícias de algum
amante ou uma voga literária de escrever e ler cartas. Svetlana adverte: “ Ainda há
muito o que aprender acerca das corcunstâncias literárias e sociais desse papel do amor
na Holanda”.20
Vermer deu grande contribuição à tradição cartográfica holandesa com sua tela “
Arte de Pintar”, estabelecendo estreita relação entre técnica de desenhar mapas e a arte
de pintar. Nesta obra imagens de pintura, desenho cartográfico e palavras fazem parte
dela no mesmo espaço da tela. O pintor com seu cavalete e a moça-modelo debaixo de
um lustre fazem parte do ateliê transformado em tela tendo ao fundo um grande mapa
ocupando mais de 80% do espaço. Outros pintores holandeses produziram quadros que
se aproximam deste, mas nenhum assim.
No século XVI já havia uma profusão de obras cartográficas realizadas por
astrônomos, geógrafos, engenheiros, capitães, pilotos e marinheiros holandeses. Sem
dúvida, as condições geográficas dos Países Baixos contribuíram para formação desse
18
Simon Shama, O desconforto da riqueza. SP: Cia. Das Letras, 1992, p. 155.
Tudo indica que o rosto dessa “ Betsabé” deve ser de Hendrickje Stoffels, governanta e amante de
Rembrandt com quem teve a filha Cornélia. Mesmo censurada pela Igreja, viveu com o pintor até a morte
deste.
20
Svetlana, Alpers, op. cit., p. 357.
19
espírito cartográfico. O mapa mundi “ Typus Orbis Terrarum” ( 1587 ) de Abraham
Ortelius impressiona por cobrir o globo terrestre então conhecido.
As vistas topográficas por vezes aparecem sobrepostas em desenhos
cartográficos ou a pinturas. A “Vista de Amsterdã” pintada por Jan Micker, baseandose na xilogravura quientista de Cornelius Anthomisz mais parece uma fotografia aérea
da cidade, sombreada por nuvens esparsas. Figuras alegóricas emblemáticas podem
entrar na composição desses mapas como o “Atlas do Mundo” ( 1630 ) de Willem
Jansz. “ A astronomia, a história do mundo, as vistas de cidades, os costumes, a flora e a
fauna vieram aglomerar-se em imagens e palavras ao redor do centro oferecido pelo
mapa”21 de Willem Jansz.
No século XVII, com a conquista do Nordeste do Brasil pelos flamengos, a
serviço da Companhia das Índias Ocidentais, surge diversificada cartografia sobre o
Brasil. Seis mapas foram desenhados cobrindo vasta área desde o rio Ceará Mirim ( RN
) ao rio São Francisco ( AL ) com recifes, bancos de areia, cidades, povoações e aldeias.
Todo esse conjunto é atribuído a Cornélio S. Golijath, único cartógrafo a serviço de
Maurício de Nassau. Todos esses mapas seriam copiados por Johannes Vingboons (
1639 ), notável cartógrafo. Parte desses mapas do Brasil holandês vieram a ser
publicados no livro do historiador Barléus.22
Duas plantas da cidade do Recife holandês são de suma importância para a
história e arqueologia de Pernambuco: o mapa manuscrito de Golijath ( 1648 ) depois
gravado em metal no livro de Barléus; e o mapa ou planta da cidade incluída no Atlas
de Vingboons ( existente no IAHGP, Recife ). O plano ou projeto urbano para
construção da Cidade Maurícia materializa uma concepção de modernidade surgida no
Renascimento. “ Muitas ruas do bairro de Santo Antônio, a velha Maurícia e do bairro
de São José a Nova Maurícia, são ainda aquelas do período holandês”.23
Mapas, natureza, pinturas descrevem o mundo visto pelos holandeses com
finalidades particulares desse povo. São memoráveis os registros em imagens que hoje
são objeto da iconografia. Maravilhados com o exotismo nativo do Novo Mundo, na
visão dos europeus nórdicos, a comitiva seleta de naturalistas e pintores do governador
Maurício de Nassau fez registro pictográfico da flora, fauna, nativos brasileiros, vilas
21
Svetlana, op. cit., p. 265.
Guedes, Max Justo. A cartografia holandesa do Brasil. In: Herkenhof, Paulo. O Brasil e os holandeses.
Rio de Janeiro: Sextante Artes, 1999, pp. 64-85.
23
Meneses, José Luís Mota. A cidade do Recife. Urbanismo lusitano e holandês. In: Seminário
Internacional: Tempos dos flamengos e outros tempos. Brasília: CNPq; Recife: Fundação Joaquim
Nabuco, 1999, p. 225.
22
povoados e aldeias. “Há na pintura holandesa um prazer haurido na descrição que se
assemelha ao que encontramos no mundo dos mapas”.24
Frans Post ( 1612-1680 )ainda jovem procurou ser fiel à realidade observada
para ilustrar a obra de Barléus e o trabalho dos naturalistas Piso e Marcgrave, de acordo
com orientações de Maurício de Nassau. Post pinta “ Cidade Maurícia e recife” ( 163? ),
onde dezenas de pessoas transitam como se fosse um dia de domingo ou sábado
hebraico. O Rio Capibaribe corre para desembocar no porto de recife separando este da
Cidade Maurícia ainda sem a ponte Maurícia. Essa obra reproduzida no livro de Barléus
aparece com a ponte ligando a Cidade Maurícia ao Recife portuário. A ponte fora
concluída quando Post ainda se encontrava no Brasil, embora haja dúvidas quanto à
datação desta tela. Permanece essa questão para os pesquisadores da iconografia
holandesa descobrirem as razões de Post não ter incluído essa ponte nessa pintura.
Curiosamente na tela “ Mauriciópolis” com vista panorâmica de navios ancorados no
porto do Recife e da Cidade Maurícia uma longa ponte liga um lugar ao outro. Fazia
três anos que a ponte fora inaugurada, quanto o artista ainda se encontrava no Brasil.
Somente a historiografia pode esclarecer essa questão. De volta para a Europa, Frans
Post continuou pintando o Brasil com base em demanda pelo exotismo dos trópicos as
América. Seu último quadro data de 1669, tendo ao todo pintado 160 telas.25
Concluindo essa trajetória pela iconografia holandesa, outro destaque que vem
sendo reconhecido é o pintor Albert Eckhout. Retratando como Post cenas rurais e
urbanas, nativos, mestiços e negros, flora e fauna brasileira, tenta expressar a idéia de
unidade entre homem e natureza, arte e ciência, pois estas ainda se mantinham unidas
no século XVII. Eckhout pintou negros, brancos e mestiços como se a idéia de
branqueamento da raça permeasse sua produção. Em “Negra com criança” ( 1641 )
observa-se que a mãe é negra, mas o filho mulato. No mesmo ano ele pinta “Mulato”
portando armas e ladeado por mamoeiros férteis e larga touceira de cana de açúcar,
símbolo da riqueza produzida no Brasil. “Os mulatos, homens livres por sua porção de
sangue europeu cristão, podiam portar arma para lutar ao lado dos holandeses,
possibilidade negada aos escravos”.26
Concluímos reconhecendo o valor das artes visuais e da iconografia para se
tentar compreender melhor a diversidade e complexidade do universo cultural de
24
Svetlana, op. cit., p. 309.
Lago, Beatriz e Correia,Pedro do. Os quadros de Post pintados no Brasil. In: Herkenhof, op. cit.
26
Herkenhof, Paulo. Representação do negro nas índias Ocidentais. In: Herkenhof, Paulo. op. cit. p. 152.
25
determinado período da história. Mesmo havendo ambigüidade nos registros visuais,
são de grande importância para os historiadores notadamente aqueles que se dedicam à
história das artes visuais e aos que tentam produzir uma historiografia utilizando a
iconografia para tentar penetrar em sentimentos, gestos e todas as demais expressões
captadas ou imaginadas pelos artistas. Tem-se reconhecido que a linguagem verbal não
tem sido suficiente, assim como também não o são as artes visuais para dar conta dese
universo cultural. Os intercâmbios culturais, as visões de mundo e as múltiplas
mediações não escritas utilizadas pelos homens e carregados de significados podem ser
também acessíveis ao historiador da cultura, desde que este esteja atento para não cair
nas armadilhas das imagens sedutoras, assim como o canto da sereia para Ulisses ou
Odisseu, esse herói da mitologia clássica.
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