UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA ARTES VISUAIS E ICONOGRAFIA Zoroastro Ramos Cardoso Trabalho final para à disciplina Imaginária Maneirista ministrada em 2002.2 na UFMG pela profa. Dra. Adalgisa Arantes. BELO HORIZONTE Fevereiro 2003 INTRODUÇÃO As artes são, ao mesmo tempo, expressão da personalidade do artista e do seu mundo como também meio de influenciar a sociedade. Alguns gêneros como o teatro e a literatura parecem exercer maior influência, a exemplo das obras de Shakespeare ou de Bertold Brecht, que continuam sendo encenadas principalmente no mundo ocidental. Teatrólogos em todos os tempos serviram aos interesses do poder instituído ( Estado, Igreja ) como se opuseram a ele, denunciando injustiças em defesa dos direitos naturais do homem. As artes plásticas ou visuais ( pintura, escultura )expressam na obra de arte sentimentos, cultura, visão de mundo, mesmo que esta pareça inerte, passiva. Quem ficaria passivo diante de “Guernica” de Pablo Picasso? Porque algumas obras das artes visuais provocaram reações violentas nas autoridades governamentais? Com força semelhante às artes cênicas e literárias, as artes visuais continuam sendo poderoso meio de influenciar indivíduos e sociedades, assim como são expressão da cultura de determinado tempo e lugar. Imagens do passado veiculada pela indústria cultural continuam com força semelhante às imagens do presente. No Brasil a divulgação de imagens de Maria, mãe de Jesus,refletidas numa janela de vidro tiveram ampla divulgação em face da recepção dos telespectadores católicos, provocando concentração de populares e emoção coletiva pelo aparente milagre da aparição. No México o culto à Virgem de Guadalupe continua sendo um fenômeno de massa que nada mudou em cinco séculos desde sua primeira aparição a um índio no século XVI. A imagem desta santa católica tornou-se o arquétipo de diferentes etnias da sociedade mexicana, transcendendo as barreiras culturais, sociais e raciais. A imagem da virgem se converteu em arquétipo de identidade cultural ligando mexicanos do presente aos do passado colonial porque o culto remonta a uma tradição ancestral pré- hispânica na colina do Tapeyac onde se faziam oferendas e sacrifícios. Tudo indica que a imagem primitiva venerada pelos índios mexicanos não era a mesma que se tem em nossos dias. A Igreja promovia o culto da Virgem, mesmo sabendo da tradição ancestral indígena anterior à colonização espanhola.1 1 As imagens da Virgem de Guadalupe veiculadas na tv mexicana continuam exercendo impressionante fascínio sobre os devotos. Desde os tempos coloniais os espanhóis reforçam o culto à esta santa pelos, milagres a ela atribuídos. A Igreja procurou trazer para seu controle a tradição do culto ancestral indígena, ao oficializar o nome da Virgem de Guadalupe. Gruzinski, 1999, pp.104-5. ARTES VISUAIS E ICONOGRAFIA As artes visuais são instrumentos poderosos para divulgar e impor crenças, valores, representações simbólicas e sociais. Artistas são agente sociais de conservação ou resistência, não somente influenciando tradicionais consumidores ou usuários das obras de arte, mas exercendo função política e social extensiva a toda a sociedade. Quando a Igreja Católica no século XVII empreende uma verdadeira luta contrareformista para reafirmar o catolicismo, recorre sobretudo às artes visuais utilizadas como propaganda de sua doutrina. A Igreja de Roma mantém rigoroso controle sobre os artistas, embora permitindo articulação das fontes hebraico-cristãs com a cultura grecolatina para atingir as massas iletradas. “ Os letrados apreciavam os poetas, o povo gostava dos santos”.2 Assim, a Igreja Católica utilizou o culto às imagens dos santos para manter os fiéis sob seu controle, mesmo recorrendo ao paganismo. Heróis lendários da mitologia são habilmente substituídos por santos do povo. Em sentido contrário a Reforma rompe com a doutrina católica, destacando as fontes hebraicocristãs como fundamentais para temas da arte em todos os gêneros, de acordo com o movimento iconoclasta. Naturezas mortas, cenas do cotidiano burguês na Alemanha, Holanda e Inglaterra, ou do Antigo Novo Testamento,excluída a tradição católica, passa a ser temas das obras de arte entre cristãos reformados. Esses também utilizam a arte para fazer propaganda de sua doutrina, pois sabem da força da imagem sobre os homens mesmo estes sendo iconoclastas. Lutero e Calvino combatiam a idolatria, a maioria dos sacramentos e dogmas católicos. Artistas protestantes expressam agora temas em idéias iconoclastas. Antigos templos católicos são transformados em templos protestantes semelhantes a mesquitas ou sinagogas sem estátua ou ícones de santos. Protestantes se escandalizavam com a prática da idolatria católica enquanto os católicos, igualmente, com a destruição de imagens cultuadas. O protestantismo desenvolve uma vida ascética que penetra em todas as esferas da vida social, embora direcione a fé cristã para uma vida interior. As boas obras não garantem a salvação porque a visibilidade social delas pode não corresponder à vida interior. O homem pode praticar boas obras para obter reconhecimento social, mas não por amor a Deus. Há por esta razão no protestantismo uma ênfase na vida interior. Ao contrário, no catolicismo incentiva-se a prática exterior de boas obras, evidência social das virtudes cristãs. Mas 2 Francastel, 1973, p. 28 dessas virtudes, o amor sobressai como elemento primordial. Weisbach3 coloca Sta. Teresa d’Ávila como modelo desta vida ascética ( fé, sentimento místico ) e também erótico ( união amorosa com Deus no êxtase ) nessa grande mística. A história registra continuidades e sobreposições nas artes visuais com estéticas diferentes numa obra. Há obras de arte em escultura, pintura e arquitetura com estéticas renascentistas e barrocas sobrepostas. A visão e a consciência do artista não percebe certas coisas da realidade interpretada por uma certa visão de mundo. Nem sempre motivos e significados subjacentes ao artista, à obra e seu mundo conseguem ser conhecidos, pois razões políticas, sociais ou de outra natureza dificultam a expressão e a recepção. Há significados camuflados que ficam opacos. Essas dificuldades constituem desafios para pesquisadores das mais variadas áreas do conhecimento. Entre esses há aqueles que utilizam métodos de análise e /ou seu mundo. Vejamos quais são esses caminhos mais utilizados pelos estudiosos das artes visuais. A obra de arte adquire uma dimensão que ultrapassa o tempo em que foi produzida. Mesmo sem perder sua forma e conteúdo, a obra de arte tem recepção diferenciada para outras épocas e culturas. Tradições culturais influenciam a percepção posterior porque as condições históricas são outras. Os indivíduos desenvolvem certa sensibilidade de acordo com a identidade cultural com esta ou aquela obra e arte. As imagens expressas em formas artísticas veiculam conteúdos éticos morais ou religiosos representativos do mundo material ( natureza ) ou do mundo simbólico ( conceitos, representações ). Essas imagens identificadas como alegorias ou retrato da realidade ( material ou simbólica ) são portadoras de formas e conteúdos interpretados com significados diversos, de acordo com a visão de mundo do observador. Quem olha a obra de arte, não como observador empírico, mas com olhar de pesquisador que busca descrever e classificar formas e conteúdos, faz análise iconográfica. Através do método iconográfico o pesquisador ou estudioso das artes visuais observa detalhes que escapam do observador comum, coleta dados e fora dela,descreve e classifica imagens. O resultado desse trabalho fornece dados necessários para se proceder à interpretação por meios da síntese, utilizando método de interpretação das imagens, estórias e alegorias conhecido como iconologia. A distinção fundamental entre iconografia e iconologia seria quanto ao uso do método de análise por uma e de síntese por outra. Além da análise e síntese das imagens, existe uma fase 3 Weisbach. El barroco arte de la contrarreforma. 1948. p. 69. precedente nesse longo caminho metodológico, que é descrição pré-iconográfica. Material das formas visuais e motivos do autor da obra de arte são objetos dessa pesquisa introdutória ( pré-iconográfica ). Embora a experiência prática do indivíduo que observa seja importante e indispensável, ela não garante certeza ou exatidão. Faz-se necessário relacionar a interpretação dos motivos com o estilo e os significados culturais. Para um observador interpretar uma obra de arte, precisa ir também além dela buscando compreendê-la através do contexto cultural em que foi produzida. Idéias , valores, significados, visão de mundo são representação e expressão cultural de uma época em determinado lugar. Panofsky4 se deparou com o problema das obras de arte e os testemunhos figurativos como fonte histórica sui generis por considerar insuficientes os dados iconográficos e estilísticos. Para ele a descrição ( método pré- iconográfico ) pressupõe a interpretação ( método iconográfico ), assim como estão inseparáveis numa pintura a forma e o conteúdo. Mas os dois métodos ficariam incompletos sem captar o sentido essencial que esteve presente nos momentos de emanação ou produção da obra de arte ( método iconológico ). Os três métodos complementam-se, como vimos antes, para que se possa fazer a análise e a síntese da personalidade do artista, da obra de arte e do mundo em que foi produzida. Através desses métodos torna-se possível compreender a vocação naturalista dos pintores holandeses do século XVII. 4 PANOFSKY, 1979. Ver também BAZIN, Germain, 1989, cap. 8 . ICONOGRAFIA HOLANDESA Para alguns historiadores da arte, a pintura holandesa do século XVII retrata de tal modo o mundo que mais parece descrição e imitação da natureza. O artista expressa na obra o que seus olhos observam, reproduzindo a realidade visível. “ Para o bem ou para o mal, era como uma descrição da Holanda que os autores de artes do século XX viam e julgavam a arte holandesa do século XVII”.5 A questão da distinção entre a arte como tal e a realidade natural representada sem alteração depende do conceito e da tradição artística. Um modo pictórico descritivo pode caracterizar pinturas holandesas de paisagens ou de natureza morta, podendo ser considerada obra de baixo valor artístico e desprovida de significado. Uma crítica da arte holandesa atribuída a Michelangelo assegura que a pintura flamenga “ é feita sem razão, nem arte”, enquanto destaca a pintura italiana como a verdadeira pintura. Isto mostra como os artistas italianos se sentiam superiores. Artistas italianos do Renascimento representam o corpo humano em modelo clássico apolíneo, enquanto os holandeses o fazem com a natureza. Em resposta a esta questão, Svetlana Alpers demonstra “ que o realismo holandês é apenas aparente”; as imagens da realidade “ são abstrações materializadas que pregam lições de moral”.6 A diferença entre a arte do Norte europeu e a arte do Sul da Europa remonta a período anterior à Reforma. Mesmo tendo os nórdicos participado do movimento humanista e renascentista, estiveram mais voltados para o tema ou conteúdo do que a forma clássica. Havia pouco interesse do artista nórdico pelas formas estéticas do Renascimento italiano, cuja influência se espalhou pela Europa. No Norte há visível interesse pelo conteúdo da obra, por detalhes históricos, arqueológicos. “ Desde o começo da Renascença, toda representação italiana de um original clássico, boa, má ou indiferente, apresenta uma relação estética direta com seu modelo, e sua intenção primordial é fazer justiça à sua aparência formal. A xilogravura nórdica, ao contrário, tenta ser, não tanto a reprodução de uma obra de arte clássica, como o registro de um exemplar arqueológico”7. Eis aqui uma diferença básica entre artistas italianos e nórdicos, entre idealismo classicista e realismo nórdico. 5 Svetlana Alpers, 1999, p. 23. Esta autora demonstra como a arte holandesa do século XVII deve ser vista com uma nova maneira de olhar dentro da tradição do Norte europeu diferenciado da tradição italiana albertiana. 6 Svetlana Alpers, 1999, p. 36. 7 Panofsky,op. Cit. p. 353. Albert Durer, ao introduzir na arte nórdica gosto e sentimento pela beleza clássica, diminuiu essa diferença no século XVI, sem perder a identidade típica do artista nórdico, pintar paisagens genuínas. Modelos estéticos da beleza clássica retomados pelos artistas do Renascimento inicialmente na Itália difundiram-se também pelo Norte europeu. Obras produzidas pelo alemão Albrecht Dürer evidenciaram o início do estilo renascentista no Norte da Europa. Figuras mitológicas do paganismo são representadas ou convertidas em temas bíblicos. Dürer converteu o deus-sol apolíneo em Adão no paraíso e em Cristo como Sol da justiça. Cristo aparece no centro da pintura sentado sobre um leão com uma espada numa mão e a balança da justiça na outra. Essas imagens do “Sol da justiça” de Dürer misturam astrologia babilônica ( signo de leão no planeta Sol ), mitologia greco-romana ( deus-sol do culto mitra ) e profecia bíblica ( sol da justiça ).8 O movimento humanista do Renascimento encontrou apoio da Igreja Romana. Painéis com figuras humanas nuas, como na Capela Sistina, foram pintados por artistas do Renascimento sob o patrocínio de mecenas católicos ou da própria Cúria romana. Temas e formas da arte clássica passaram a ser largamente utilizados até que os reformadores protestassem contra o paganismo e a idolatria veiculados na arte religiosa. Em reação a esses protestos da Reforma, a Igreja católica primeiro assumiu uma atitude defensiva, justificando as atividades artísticas. Depois iniciou um movimento ofensivo através da Contra Reforma, a partir das decisões tomadas no Concílio de Trento. A Inquisição se encarregou de censurar e punir artistas que não se ajustassem aos cânones católicos. Nem o “Juízo Final” de Miguel Ângelo escapou da censura. Muitas figuras humanas forma cobertas notadamente a genitália. Toda obra de arte religiosa devia se manter-se fiel à moral da Contra Reforma. Os temas religiosos deveriam ater-se aos textos aprovados pela Igreja. Em Roma toda obra destinada a fins religiosos não podia ter elementos profanos, indecorosos, pagãos. No pontificado de Sixto V um pintor foi açoitado por ter representado figuras humanas nuas.9 Estava proibida a genitália desnuda em obras de arte expostas ao público. A Reforma religiosa iniciada na Alemanha provoca alterações profundas nas artes visuais, levando o artista a adequar temas e formas às doutrinas dos reformadores protestantes. Estes condenavam o culto aos santos, por ser considerado idolatria. As idéias reformistas entraram nos Países Baixos ainda sob domínio espanhol. Pieter 8 9 Erwin Panofsky. Significado das artes visuais. SP: Perspectiva, 1979, p. 340. Weisbach, 1948, p. 65. Brueghel viveu os primeiros tempos dos conflitos entre católicos e protestantes, viu iconoclastas depredarem a estatuária religiosa. Por sua vez, católicos espanhóis ou flamengos espanholizados perseguiram, prenderam, torturaram, mataram cristãos reformados. De um modo ou de outro, católicos e protestantes se nivelaram na intolerância, na violência, tudo em nome de Deus. Assim como Dürer influenciou com a arte renascentista artistas nórdicos da Alemanha,Breughel à alma de artistas flamengos o gosto pela natureza ( água, terra, vegetação, animais, solo e ar ). Viajou á Itália, provavelmente a pé, detendo-se para desenhar ou pintar cenas do campo com certa intimidade. “ brueghel descobriu a intimidade da paisagem para a qual, desde Pol de Limburgo, orientavam-se os pintores de Flandres”.10 Dentre suas obras, destaca-se o quadro “ Os jogos infantis” onde expressa seu amor pelas crianças pobres brincando num logradouro urbano. O movimento iconoclasta11 acreditava inicialmente que podia orientar a arte para fins culturais diferentes da religião. Sem estátuas e afrescos nas igrejas reformadas, o artista protestante passaria a pintar muito mais a natureza e cenas do cotidiano burguês. Contudo, não havia como impedir a expressão da visão religiosa, quer seja protestante, quer seja católica. Rembrandt fez isto sem ter ligação com alguma igreja oficial, certamente mais levado pelo sentimento religioso. “ Em nenhum lugar, ( ... ), os teólogos e os doutores exerceram uma ação tão grande sobre os pintores quanto na Alemanha”.12 Os reformadores fizeram tenaz resistência ao movimento renascentista que havia despertado no imaginário europeu ligações profundas com arquétipos milenares da mitologia pagã. Mas a reforma na Alemanha, de João Huss a Lutero, consegue ajustar a arte figurativa aos princípios teológicos e doutrinários dosa reformadores, em parte a mentalidade nórdica valoriza muito mais a natureza. “todos os artistas alemães do início do século XVI anunciam Lutero”13, ou seja, a Reforma. A quebra da unidade católica pela Reforma provocou conflitos em todas as esferas da sociedade e na mentalidade da população do Norte da Europa. As guerras entre príncipes católicos e protestantes tumultuaram a vida de servos, burgueses, aristocratas e nobres apesar de sucessivos tratados de paz. Um mesmo príncipe nasceu 10 Elie Faure. A arte renascentista. SP: Martins Fontes, s.d., p. 224. Na Holanda ( 1566 )mobilizações icinoclastas rapidamente se espalharam pelos Países Baixos saqueando e destruindo centenas de igrejas católicas. MALE, Emile. L’art religieux du XVII siècle, 1984, p. 42. 12 Elie Faure. A arte renascentista. p. 272. 13 Idem, p. 292. 11 luterano, tornou-se nominalmente católico e depois calvinista, obrigando seus súditos a adotar a sua igreja oficial. Este é o caso do herói da independência holandesa, o príncipe de Orange ( 1533-1584 ), Guilherme de Nassau. Mas antes de ser assassinado transformou os Países Baixos em lugar de refúgio para diversas confissões religiosas, inclusive judaica.14 Não havia mais certeza de nada. As controvérsias teológicas não se davam apenas entre católicos e protestantes, mas também entre luteranos e calvinistas. Para que se possa tentar compreender a situação de incerteza, estranheza e alienação do homem pós-renascentista, vamos estabelecer conexão entre essas controvérsias e atitude maneirista do homem rebelado pela Reforma religiosa. A controvérsia religiosa na Igreja reformada entre calvinistas gomorrostas e calvinistas arminianos nos Países Baixos ficou famosa. A doutrina da predestinação incondicional assegura que a salvação é destinada apenas aos eleitos por Deus, antes mesmo do indivíduo nascer, e que a Igreja tem todo direito de auto-governa-se, embora sob a manutenção e proteção do Estado. Os arminianos defendiam também a predestinação, mas para aqueles que fossem alcançados pela salvadora de Cristo, libertando o homem decaído e conduzindo-o à salvação por meio também da sua fé e do seu comportamento; competia ao Estado cristão fazer leis e nomear ministros eclesiásticos, como também supervisionar a igreja. Isto reacendia a questão do livre arbítrio do homem diante de Deus e do Estado, uma questão que envolvera Lutero e Erasmo. Como a Igreja Cristã reformada estava subordinada ao Estado na Holanda, seus pastores eram mantidos por ele e somente seus membros poderiam ocupar cargos públicos. Os arminianos encontram apoio no fundador da Companhia das Índias Orientais ( 1602 ) e no jurista Hugo Grotius ( 1583- 1645 ), que eram republicanos e defendiam a tolerância religiosa. Mas seus adversários tiveram a seu lado nada menos so que o stadholder, filho sucessor de guilherme de Orange, que deu um golpe de Estado ( 1618 ) nas principais cidades da Holanda. As lideranças adeptas da doutrina arminiana forma perseguidas, executadas, presas ou exiladas. O sínodo de Dort ( 16181619 ) com delegados também da Inglaterra, Escócia e Suíça condenou os arminianos. O calvinismo da Confissão Belga e do Catecismo de Heilderlberg tornou-se a base Bratt, John H. “ O calvinismo holandês na América”. In: W. Stanford Reid ( ed )... Calvino e sua influência no mundo ocidental. SP: Casa Ed. Presbiteriana, 1990. p. 335-377. 14 doutrinária da igreja reformada holandesa.15 Muitos flamengos, ingleses, franceses, alemães insatisfeitos ou perseguidos por motivos religiosos mudaram-se para o Brasil holandês, onde houve relativa tolerância religiosa sobretudo no tempo do governo de João Maurício de Nassau ( 1637-1644 ) a serviço da Companhia das Índias Ocidentais. Nesse ambiente a arte se integra à visão religiosa do homem imerso em incertezas que se expressam no Maneirismo que se opõe ao mesmo tempo ao Classicismo renascentista e ao Barroco da Contra Reforma. O homem moderno vai sendo formado primeiro tendo como padrão o modelo apolíneo do Renascimento, depois com o modelo dionisíaco do Maneirismo e, no mesmo tempo histórico, pela síntese destes modelos no Barroco. Na primeira fase ( Renascimento ) o homem sentiase seguro como o herói apolíneo harmonizado com a natureza cósmica; na fase do Maneirismo o homem se sente estranho a essa natureza e apela para o modelo dionisíaco, irracional, vivendo conflitos interiores num mundo de incertezas; e na terceira fase ( Barroco ) o homem moderno tenta fazer síntese, resgatando a natureza, mas de modo a submetê-la ao seu poder, ao mesmo tempo em que mergulha dentro de si, no seu mundo subjetivo. “ Os conflitos maneiristas são superados e procura-se uma síntese que resolva as várias oposições numa unidade indivisível dinâmica e aberta. O resultado é uma arte persuasiva, teatral, sistemática e sintética que convida à participação e integração do homem no sistema”.16 No século XVII, o homem do Norte da Europa ainda convive com intolerância e controvérsias religiosas que lhe tiram qualquer segurança e certeza. A iconografia se depara com essas questões. Como situar a arte holandesa considerada representação do que o olho vê com a subjetividade do homem maneirista? Existe relação entre a natureza representada pelo artista holandês com a atmosfera maneirista? Em parte, o simbolismo da arte religiosa reformada ficou muito reduzido pela concepção de que as obras do homem não são meritórias. Para o protestante, no entanto, inexistem intermediários entre Deus e o homem. Pela prática de boas obras e atitude religiosa visível o homem católico busca a salvação. Enquanto o protestante se comunica diretamente com Deus sem recorrer a exterioridades ou apelos visuais. Ao passo que para o católico existe uma grande distância entre Deus e o Homem. A exterioridade caracterizava o catolicismo. Por esta razão as artes visuais com temas SIEPIERSKI, Paulo D. “ Calvinismo holandês e liberdade religiosa”. In: Seminário Internacional: Tempo dos flamengos e outros tempos: Brasil século XVII. CNPq; Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Ed. Massangana, 1999, pp. 147-175. 16 Brandão, Carlos Antônio Leite. A formação do homem moderno. BH: UFMG,1999,p. 191. 15 religiosos se tornam meios de suscitar nos fiéis a prática das virtudes cristãs e da obediência ao clero visto como intermediário entre Deus e os homens. Os artistas holandeses vivem com certa autonomia e liberdade de pensamento sem comparação com a situação de outros artistas europeus. No panorama da pintura holandesa do século XVII, Frans Hall ( 1581-1666 ) ocupa o primeiro plano como gênio naturalista que dá vida a grupos de pessoas ou indivíduos retratados. No quadro “ Banquete dos oficiais das armas de São George” ( 1616 ) expressam concentração, reflexão, preocupação certamente com a vida belicosa, como num banquete com mesa farta. Na “ Reunião dos oficias e sub-oficiais da Companhia de Santo Adriano” ( 1633 )Hals consegue revelar na expressividade do olhar e do rosto as preocupações de guerra rondando o espírito dos homens carregando o peso da responsabilidade patriótica. O gosto pela pintura de retratos predomina não somente em Hals, mas noutros pintores holandeses. A pintura de grupos de pessoas manifesta a tradição holandesa de festejar e homenagear as virtudes cívicas dos flamengos, retratando banquetes, paradas militares, cotidiano do trabalho no campo ou na cidade, conselhos administrativos. A vida das corporações e das malícias cívicas parecem ligadas às companhias militares dos tempos das guerras contra os espanhóis. Esses personagens que aparecem nos quadros holandeses são transformados em heróis de prestígio nacional. O espírito da arte holandesa se manifestou no retrato individual, coletivo e familiar. Há pintores que mesclam figuras humanas com a natureza. Mesmo com Frans Hall se destacando como extraordinário retratista, mesclando ironia e alegria típica do Norte da Europa, outros pintores holandeses utilizam temas da natureza com animais e tipos humanos. Em tudo a pintura holandesa, no Século de Ouro, expressa o amor à terra, à pátria, ao povo. A tradição italiana considera a arte holandesa limitada pelo movimento iconoclasta da Igreja Cristã Reformada nos Países Baixos. Mas com Rembrandt ( 16061669 ) a arte holandesa transita entre o mundo visível e as profundezas da alma humana. “ Ao afastar-se da técnica de representação, Rembrandt também se afasta da certeza e do conhecimento atribuídos pela cultura holandesa e sua arte ao mundo visto e a própria visão”.17 Torna-se também um mestre do encantamento, disfarçando Saskia ( esposa ) ou a si mesmo num mundo de expressão da própria vida, um mundo para ver e 17 Svetlana, Alpers, 1999, p. 405. imaginar. Na obra “ Ronda Noturna” o capitão, a moça e outros personagens expressam gestos e olhares cheios de movimentos em todas as direções. Do mesmo modo no “ Festim do Rei Baltazar” ( 1635 ) se observa essa expressividade de movimentos. Baltazar profana em banquete real vasos do templo de Jerusalém que Nabucodonosor saqueara. Em pleno banquete o rei vê a mão de Deus escrever numa abobada de luminosidade irradiante enigmática mensagem de destruição. Este tema bíblico parece se destinar às autoridades holandesas para que, em vez de decretarem festins e bebedeira, conclamassem a população flamenga à sobriedade, à penitência, jejum e oração. Mas isto não condizia com hábitos flamengos adquiridos em tempo de superabundância. “ Afinal, os banquetes faziam parte dos velhos costumes neerlandeses, e havia modos de evitar que se assemelhassem à punição contra Baltazar”.18 Apesar das limitações impostas pela Igreja Reformada, Rembrandt pinta “ Betsabé” ( 1654 )19 totalmente nua, pensativa, com a carta do rei Davi declarando seu amor à esposa do general Urias. Betsabé absorta em seus pensamentos, certamente imagina as conseqüências de vir a ser amante do rei. Outros pintores holandeses pintaram mulheres lendo ou escrevendo cartas, a exemplo de Jan Vermeer com “ Mulher Lendo uma Carta”. Podem ser amor, convites para encontros clandestinos, notícias de algum amante ou uma voga literária de escrever e ler cartas. Svetlana adverte: “ Ainda há muito o que aprender acerca das corcunstâncias literárias e sociais desse papel do amor na Holanda”.20 Vermer deu grande contribuição à tradição cartográfica holandesa com sua tela “ Arte de Pintar”, estabelecendo estreita relação entre técnica de desenhar mapas e a arte de pintar. Nesta obra imagens de pintura, desenho cartográfico e palavras fazem parte dela no mesmo espaço da tela. O pintor com seu cavalete e a moça-modelo debaixo de um lustre fazem parte do ateliê transformado em tela tendo ao fundo um grande mapa ocupando mais de 80% do espaço. Outros pintores holandeses produziram quadros que se aproximam deste, mas nenhum assim. No século XVI já havia uma profusão de obras cartográficas realizadas por astrônomos, geógrafos, engenheiros, capitães, pilotos e marinheiros holandeses. Sem dúvida, as condições geográficas dos Países Baixos contribuíram para formação desse 18 Simon Shama, O desconforto da riqueza. SP: Cia. Das Letras, 1992, p. 155. Tudo indica que o rosto dessa “ Betsabé” deve ser de Hendrickje Stoffels, governanta e amante de Rembrandt com quem teve a filha Cornélia. Mesmo censurada pela Igreja, viveu com o pintor até a morte deste. 20 Svetlana, Alpers, op. cit., p. 357. 19 espírito cartográfico. O mapa mundi “ Typus Orbis Terrarum” ( 1587 ) de Abraham Ortelius impressiona por cobrir o globo terrestre então conhecido. As vistas topográficas por vezes aparecem sobrepostas em desenhos cartográficos ou a pinturas. A “Vista de Amsterdã” pintada por Jan Micker, baseandose na xilogravura quientista de Cornelius Anthomisz mais parece uma fotografia aérea da cidade, sombreada por nuvens esparsas. Figuras alegóricas emblemáticas podem entrar na composição desses mapas como o “Atlas do Mundo” ( 1630 ) de Willem Jansz. “ A astronomia, a história do mundo, as vistas de cidades, os costumes, a flora e a fauna vieram aglomerar-se em imagens e palavras ao redor do centro oferecido pelo mapa”21 de Willem Jansz. No século XVII, com a conquista do Nordeste do Brasil pelos flamengos, a serviço da Companhia das Índias Ocidentais, surge diversificada cartografia sobre o Brasil. Seis mapas foram desenhados cobrindo vasta área desde o rio Ceará Mirim ( RN ) ao rio São Francisco ( AL ) com recifes, bancos de areia, cidades, povoações e aldeias. Todo esse conjunto é atribuído a Cornélio S. Golijath, único cartógrafo a serviço de Maurício de Nassau. Todos esses mapas seriam copiados por Johannes Vingboons ( 1639 ), notável cartógrafo. Parte desses mapas do Brasil holandês vieram a ser publicados no livro do historiador Barléus.22 Duas plantas da cidade do Recife holandês são de suma importância para a história e arqueologia de Pernambuco: o mapa manuscrito de Golijath ( 1648 ) depois gravado em metal no livro de Barléus; e o mapa ou planta da cidade incluída no Atlas de Vingboons ( existente no IAHGP, Recife ). O plano ou projeto urbano para construção da Cidade Maurícia materializa uma concepção de modernidade surgida no Renascimento. “ Muitas ruas do bairro de Santo Antônio, a velha Maurícia e do bairro de São José a Nova Maurícia, são ainda aquelas do período holandês”.23 Mapas, natureza, pinturas descrevem o mundo visto pelos holandeses com finalidades particulares desse povo. São memoráveis os registros em imagens que hoje são objeto da iconografia. Maravilhados com o exotismo nativo do Novo Mundo, na visão dos europeus nórdicos, a comitiva seleta de naturalistas e pintores do governador Maurício de Nassau fez registro pictográfico da flora, fauna, nativos brasileiros, vilas 21 Svetlana, op. cit., p. 265. Guedes, Max Justo. A cartografia holandesa do Brasil. In: Herkenhof, Paulo. O Brasil e os holandeses. Rio de Janeiro: Sextante Artes, 1999, pp. 64-85. 23 Meneses, José Luís Mota. A cidade do Recife. Urbanismo lusitano e holandês. In: Seminário Internacional: Tempos dos flamengos e outros tempos. Brasília: CNPq; Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 1999, p. 225. 22 povoados e aldeias. “Há na pintura holandesa um prazer haurido na descrição que se assemelha ao que encontramos no mundo dos mapas”.24 Frans Post ( 1612-1680 )ainda jovem procurou ser fiel à realidade observada para ilustrar a obra de Barléus e o trabalho dos naturalistas Piso e Marcgrave, de acordo com orientações de Maurício de Nassau. Post pinta “ Cidade Maurícia e recife” ( 163? ), onde dezenas de pessoas transitam como se fosse um dia de domingo ou sábado hebraico. O Rio Capibaribe corre para desembocar no porto de recife separando este da Cidade Maurícia ainda sem a ponte Maurícia. Essa obra reproduzida no livro de Barléus aparece com a ponte ligando a Cidade Maurícia ao Recife portuário. A ponte fora concluída quando Post ainda se encontrava no Brasil, embora haja dúvidas quanto à datação desta tela. Permanece essa questão para os pesquisadores da iconografia holandesa descobrirem as razões de Post não ter incluído essa ponte nessa pintura. Curiosamente na tela “ Mauriciópolis” com vista panorâmica de navios ancorados no porto do Recife e da Cidade Maurícia uma longa ponte liga um lugar ao outro. Fazia três anos que a ponte fora inaugurada, quanto o artista ainda se encontrava no Brasil. Somente a historiografia pode esclarecer essa questão. De volta para a Europa, Frans Post continuou pintando o Brasil com base em demanda pelo exotismo dos trópicos as América. Seu último quadro data de 1669, tendo ao todo pintado 160 telas.25 Concluindo essa trajetória pela iconografia holandesa, outro destaque que vem sendo reconhecido é o pintor Albert Eckhout. Retratando como Post cenas rurais e urbanas, nativos, mestiços e negros, flora e fauna brasileira, tenta expressar a idéia de unidade entre homem e natureza, arte e ciência, pois estas ainda se mantinham unidas no século XVII. Eckhout pintou negros, brancos e mestiços como se a idéia de branqueamento da raça permeasse sua produção. Em “Negra com criança” ( 1641 ) observa-se que a mãe é negra, mas o filho mulato. No mesmo ano ele pinta “Mulato” portando armas e ladeado por mamoeiros férteis e larga touceira de cana de açúcar, símbolo da riqueza produzida no Brasil. “Os mulatos, homens livres por sua porção de sangue europeu cristão, podiam portar arma para lutar ao lado dos holandeses, possibilidade negada aos escravos”.26 Concluímos reconhecendo o valor das artes visuais e da iconografia para se tentar compreender melhor a diversidade e complexidade do universo cultural de 24 Svetlana, op. cit., p. 309. Lago, Beatriz e Correia,Pedro do. Os quadros de Post pintados no Brasil. In: Herkenhof, op. cit. 26 Herkenhof, Paulo. Representação do negro nas índias Ocidentais. In: Herkenhof, Paulo. op. cit. p. 152. 25 determinado período da história. Mesmo havendo ambigüidade nos registros visuais, são de grande importância para os historiadores notadamente aqueles que se dedicam à história das artes visuais e aos que tentam produzir uma historiografia utilizando a iconografia para tentar penetrar em sentimentos, gestos e todas as demais expressões captadas ou imaginadas pelos artistas. Tem-se reconhecido que a linguagem verbal não tem sido suficiente, assim como também não o são as artes visuais para dar conta dese universo cultural. Os intercâmbios culturais, as visões de mundo e as múltiplas mediações não escritas utilizadas pelos homens e carregados de significados podem ser também acessíveis ao historiador da cultura, desde que este esteja atento para não cair nas armadilhas das imagens sedutoras, assim como o canto da sereia para Ulisses ou Odisseu, esse herói da mitologia clássica.