literatura latina i - Universidade Castelo Branco

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VICE-REITORIA DE ENSINO DE GRADUAÇÃO E CORPO DISCENTE
COORDENAÇÃO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA
LITERATURA LATINA I
Rio de Janeiro / 2008
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Literatura Latina I / Universidade Castelo Branco. – Rio de Janeiro: UCB,
2008. - 52 p.: il.
ISBN
1. Ensino a Distância. 2. Título.
CDD – 371.39
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Responsáveis Pela Produção do Material Instrucional
Coordenadora de Educação a Distância
Prof.ª Ziléa Baptista Nespoli
Coordenador do Curso de Graduação
Denilson P. Matos - Letras
Conteudista
Zeandra Oliveira
Supervisor do Centro Editorial – CEDI
Joselmo Botelho
Apresentação
Prezado(a) Aluno(a):
É com grande satisfação que o(a) recebemos como integrante do corpo discente de nossos cursos de graduação, na certeza de estarmos contribuindo para sua formação acadêmica e, conseqüentemente, propiciando
oportunidade para melhoria de seu desempenho profissional. Nossos funcionários e nosso corpo docente esperam retribuir a sua escolha, reafirmando o compromisso desta Instituição com a qualidade, por meio de uma
estrutura aberta e criativa, centrada nos princípios de melhoria contínua.
Esperamos que este instrucional seja-lhe de grande ajuda e contribua para ampliar o horizonte do seu conhecimento teórico e para o aperfeiçoamento da sua prática pedagógica.
Seja bem-vindo(a)!
Paulo Alcantara Gomes
Reitor
Orientações para o Auto-Estudo
O presente instrucional está dividido em três unidades programáticas, cada uma com objetivos definidos e
conteúdos selecionados criteriosamente pelos Professores Conteudistas para que os referidos objetivos sejam
atingidos com êxito.
Os conteúdos programáticos das unidades são apresentados sob a forma de leituras, tarefas e atividades complementares.
As Unidades 1 e 2 correspondem aos conteúdos que serão avaliados em A1.
Na A2 poderão ser objeto de avaliação os conteúdos das três unidades.
Havendo a necessidade de uma avaliação extra (A3 ou A4), esta obrigatoriamente será composta por todo o
conteúdo de todas as Unidades Programáticas.
A carga horária do material instrucional para o auto-estudo que você está recebendo agora, juntamente com
os horários destinados aos encontros com o Professor Orientador da disciplina, equivale a 30 horas-aula, que
você administrará de acordo com a sua disponibilidade, respeitando-se, naturalmente, as datas dos encontros
presenciais programados pelo Professor Orientador e as datas das avaliações do seu curso.
Bons Estudos!
Dicas para o Auto-Estudo
1 - Você terá total autonomia para escolher a melhor hora para estudar. Porém, seja disciplinado. Procure reservar sempre os mesmos horários para o estudo.
2 - Organize seu ambiente de estudo. Reserve todo o material necessário. Evite interrupções.
3 - Não deixe para estudar na última hora.
4 - Não acumule dúvidas. Anote-as e entre em contato com seu monitor.
5 - Não pule etapas.
6 - Faça todas as tarefas propostas.
7 - Não falte aos encontros presenciais. Eles são importantes para o melhor aproveitamento
da disciplina.
8 - Não relegue a um segundo plano as atividades complementares e a auto-avaliação.
9 - Não hesite em começar de novo.
SUMÁRIO
Quadro-síntese do conteúdo programático ..................................................................................................
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Contextualização da disciplina ....................................................................................................................
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UNIDADE I
INTRODUÇÃO À LITERATURA LATINA
1.1 - Aspectos históricos ..............................................................................................................................
1.2 - O século de Augusto (de 44 ou 43 a. C. a 17 d. C.) . ...........................................................................
1.3 - Epopéia Grega .....................................................................................................................................
1.4 - A epopéia em Roma . ...........................................................................................................................
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UNIDADE II
O LIRISMO
2.1 - O Surgimento da poesia lírica na Grécia .............................................................................................
2.2 - Momento histórico ..............................................................................................................................
2.3 - O Lirismo em Roma ............................................................................................................................
2.4 - Virgílio e as Bucólicas .........................................................................................................................
2.5 - Ovídio ..................................................................................................................................................
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UNIDADE III
DRAMÁTICO (TEATRO - TRAGÉDIA)
3.1 - A palavra tragédia ................................................................................................................................
3.2 - Teatro e cerimônia religiosa ................................................................................................................
3.3 - Teatro e tragédia em Roma ..................................................................................................................
3.4 - Roma, a civilização do espetáculo . .....................................................................................................
3.5 - Ator: glória e infâmia . .........................................................................................................................
3.6 - A máscara . ...........................................................................................................................................
3.7 - Breve história do teatro latino .............................................................................................................
3.8 - As tragédias de Sêneca ........................................................................................................................
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Glossário ......................................................................................................................................................
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Gabarito .......................................................................................................................................................
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Referências bibliográficas . ..........................................................................................................................
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Quadro-síntese do conteúdo
programático
UNIDADES DO PROGRAMA
OBJETIVOS
I - INTRODUÇÃO À LITERATURA LATINA
1.1 - Aspectos históricos
1.2 - O século de Augusto (de 44 ou 43 a. C. a 17 d. C.)
1.3 - Epopéia Grega
1.4 - A epopéia em Roma
• Caracterizar a poesia épica em obras da Literatura Latina;
• Identificar as características da cultura helenística
e a respectiva influência na Literatura Latina.
II - O LIRISMO
2.1 - O Surgimento da poesia lírica na Grécia
2.2 - Momento histórico
2.3 - O Lirismo em Roma
2.4 - Virgílio e as Bucólicas
2.5 - Ovídio
• Caracterizar a poesia lírica em obras da Literatura
Latina quanto à época e natureza dos textos.
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II - DRAMÁTICO (TEATRO - TRAGÉDIA)
3.1 - A palavra tragédia
3.2 - Teatro e cerimônia religiosa
3.3 - Teatro e tragédia em Roma
3.4 - Roma, a civilização do espetáculo
3.5 - Ator: glória e infâmia
3.6 - A máscara
3.7 - Breve história do teatro latino
3.8 - As tragédias de Sêneca
• Caracterizar a tragédia e a comédia em obras da
Literatura Latina.
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Contextualização da Disciplina
GÊNEROS LITERÁRIOS
Breve Visão de Conjunto Sobre os Gêneros Literários
O primeiro a elaborar uma poética sobre os gêneros literários foi Aristóteles, em sua Poética. Considera a arte como mimese. Tal mimese realiza-se, em primeiro lugar, de acordo com os meios em que se
realiza. Por exemplo, a poesia utiliza o ritmo, a melodia, o verso, mas a poesia ditirâmbica utiliza todos
esses elementos, ao passo que a tragédia e a comédia utilizam-na separadamente. Em segundo lugar, de
acordo com os objetos diversos da mimese, ou seja, se o objeto for as pessoas, sendo estas nobres ou
ignóbeis, melhores ou piores do que a média humana, as composições serão diversas conforme o objeto
imitado. Diante disto, a tragédia representa personagens melhores do que os homens o são, ao passo que
a comédia, piores. Em terceiro lugar, de acordo com os diversos modos da mimese. Desta forma, Aristóteles considera dois modos de mimese poética: o modo narrativo e o modo dramático, ou seja, o modo
épico e o modo dramático.
Horácio (Epistola ad Pisones) concebe o gênero literário como correspondendo a uma tradição formal e sendo caracterizado por um determinado tom ou metro. Ou seja, para Horácio, o gênero se caracteriza pelo metro,
o qual é usado de acordo com o conteúdo específico. Desta forma, por exemplo, a poesia iâmbica estava mais
próxima da linguagem coloquial, por isso mais adequada à ação dramática. Segundo ele, portanto, os gêneros
não se misturavam, visto que seguiam tons adequados a cada movimento psicológico.
No Renascimento, através da releitura de ambos e através da constatação das obras literárias escritas até então, chega-se à inclusão de um terceiro gênero, já anunciado por Horácio: o lírico.
No século XVII, admite-se a subdivisão dos três gêneros em gêneros menores (espécies), severamente distintos e regidos por regras intransigentes e imutáveis que comandavam a criação e orientavam poetas e críticos.
Tais cânones baseavam-se na crença de que os gêneros eram essências fixas ou formas exigidas pela natureza.
Como acreditavam que os antigos realizaram os gêneros em plenitude, estes serviram de modelo. Tal idéia
negava o princípio do desenvolvimento e da alterabilidade dos gêneros no seu processo histórico.
O Barroco vem negar esse tipo de atitude, pregando uma espécie de liberdade criadora, visto que cultiva o
hibridismo dos gêneros (como a criação da tragicomédia).
No século XVIII (iluminismo francês), ocorre a contestação da tirania da norma com a criação do drama
burguês e do romance.
No Romantismo, séc. XIX, acredita-se que a força inovadora do gênio prevalece sobre a norma; liberdade
de criação.
Tendência moderna: rebeldia contra o estabelecimento de barreiras limitadoras; deve prevalecer a originalidade. A divisão tripartida (lírico, épico, dramático) não comporta a multiplicidade da produção literária
atual. Ex.: Há contos com os procedimentos do puro diálogo, característico do gênero dramático. Há dramas
sem diálogos, com um personagem só (monólogo). Há obras líricas de cunho narrativo, onde a emoção se
sobrepõe à narração.
Emil Staiger, em Conceitos fundamentais da Poética, apresenta uma solução para a questão dos gêneros;
estabelece a diferença básica entre a conceituação substantiva e a adjetiva.
Os substantivos Lírica, Épica e Drama constituem os ramos em que se classificam as obras, de acordo com
determinadas características formais:
Lírica: poemas de breve extensão que expressam estados de alma.
Épica: relato ou apresentação de uma ação.
Drama: representação da ação movida por um dinamismo de tensão.
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Os adjetivos lírico, épico e dramático definem a essência caracterizadora da obra; tal essência manifesta-se
por determinados fenômenos estilísticos.
Deste modo uma obra pertence a um ramo genérico onde a essência lírica tem caráter prioritário; tal obra
participa, contudo, da essência ou de traços particulares de outros gêneros.
Ex.: Uma peça teatral é dramática quanto ao ramo porque nela prevalece a essência dramática (representação,
tensão), mas pode participar da essência lírica nos momentos em que tiver desdobramentos afetivos. Um romance pertence ao ramo épico porque nele prevalece a essência épica (relato/apresentação de uma ação), mas pode
também participar da essência dramática (nos diálogos) e da essência lírica (efusão de sentimentos).
Segundo Staiger, nenhuma obra pode ser classificada exclusivamente num só gênero: sempre vai partilhar da
essência dos demais. Com isso abrem-se os limites para o entrosamento entre os gêneros.
A partir da divisão tripartida dos gêneros, podemos estabelecer divisões em espécies (formas ou classes):
- Espécies da Lírica: soneto, ode, elegia, balada, rondó etc.
- Espécies da Épica: epopéia, romance, conto, novela.
- Espécies do Drama: tragédia, comédia, tragicomédia, farsa etc.
Sobre a Essência de Cada Gênero
O gênero lírico
A essência lírica se manifesta nos fenômenos estilísticos.
Será lírico o poema de extensão menor que não possuir personagens nítidos e no qual uma voz central (um
eu-lírico) exprime seu estado de alma. Da expressão do Eu lírico advém o subjetivismo (o eu-lírico não pode
ser confundido com um eu-autobiográfico). O clima lírico é provido de afetividade e emotividade, ligadas ao
íntimo e ao sentimento. O eu-lírico, ao exprimir seus estados d’alma, envolve-se no que diz. Isto torna fluida
e inconsistente a relação entre o sujeito e o objeto (entre o eu e o mundo). Emoção e sentimento impedem a
configuração mais nítida das coisas e dos seres. O eu e o mundo se aproximam, fundem-se e confundem-se.
Esta aproximação atinge vários graus: quando há descrições, diálogos, análises e reflexões, por exemplo, há um
maior distanciamento entre o eu e o mundo, desvanece-se o clima lírico, visto que são incluídos elementos épicos ou dramáticos. A atitude lírica consiste na fusão entre o eu e o mundo. Isto só se dá por um estado de alma
que envolve tudo, exterior e interior, passado, presente e futuro. Staiger chama a essência lírica de recordação
(i. e., re + cor, cordis = de novo no coração) > o um-no-outro, o eu nas coisas e as coisas no eu.
O gênero épico
A essência épica:
A essência épica revela-se através de traços estilísticos específicos.
Ao contrário da lírica, a épica se realiza através de um distanciamento entre o sujeito (narrador) e o objeto
(mundo narrado). O narrador não se envolve no que diz, confronta-se com o que narra. O mundo narrado é o
ob-jeto (posto diante de).
Epopéia vem do grego épos = canto, recitação, isto é, alguém narra um fato a um grupo de ouvintes; distanciando-se, portanto, o narrador em relação ao acontecimento passado, numa posição de confronto. O relato é
a atitude épica na qual o narrador se coloca diante do objeto, segundo determinado ponto de observação, para
ver, registrar, mostrar, enfim, apresentar. Por isso Staiger considera a apresentação a essência épica.
A epopéia enquadra-se no gênero épico (também chamado de narrativo, por causa da apresentação) porque
apresenta os elementos específicos da narração: narrador, espaço, acontecimento, personagens etc. A epopéia,
contudo, não se confunde com a narrativa de ficção pelos seguintes motivos: 1. Integra a expressão formal na
estrutura narrativa, isto é, a epopéia tem como unidade o verso, divide-se em estrofes e cantos, explora recursos
rítmicos e sonoros. 2. Tem a presença de uma consciência lírica, necessária para integrar a expressão formal,
aliada ao fio narrativo. Nesse sentido, fazer uma epopéia é um privilégio do poeta, condição para ser autor
épico. 3. Estrutura a realidade através de uma proposição da realidade histórica resultante da fusão do real e do
mito. A narrativa de ficção estrutura uma proposição de realidade ficcional (do verbo fingere), uma elaboração
em nível de imaginário, de relação existencial do homem com o mundo; matéria romanesca, real imaginário
criado literariamente. A matéria épica baseia-se na estruturação de uma proposição da realidade histórico-maravilhosa como resultado da realização literária da fusão do real histórico com o mítico.
A natureza da matéria épica: Chamamos de matéria épica a fusão do real histórico com o mítico processada
ao nível da realidade objetiva. A matéria épica constitui-se de uma dimensão real, projetada no acontecimento
histórico, e de uma dimensão mítica sustentada na aderência mítica desrealizadora desse mesmo acontecimento
histórico (ver in Anazildo V. da Silva, Formação épica da Lit. Bras.). O fato histórico, quando ocorre, é só realidade e o seu relato puro e simples é História. Se esse fato é grandioso e fantástico a ponto de romper o limite
do real (ver mais adiante o conceito de mito), capaz de ultrapassar a capacidade de compreensão do homem na
época de sua ocorrência, começa a receber uma aderência mítica desrealizadora que a ele se funde com o passar
do tempo, convertendo-o em matéria épica.
A epopéia é, pois, uma realização literária específica de uma matéria épica. É por isso que a epopéia estrutura-se em dois planos, o histórico (dimensão do real da matéria épica) e o maravilhoso (dimensão mítica da
matéria épica). Observe que este conceito é fundamental para entendermos e caracterizarmos o herói épico
e o relato, visto que a interação desses dois planos é uma exigência épica. O herói épico, para ser sujeito
da ação épica, precisa agenciar as duas dimensões: a real e a mítica. Sua condição humana agencia o real
histórico, sua condição mítica, o real maravilhoso. Sendo o personagem épico um ser histórico, a condição
humana é um atributo natural para agenciar o real histórico, mas isto, por si só, não é suficiente para o elevar
à categoria de herói (como ser histórico é um homem, um mortal, sujeito à consumação). Para ser herói,
deve adentrar o solo do maravilhoso, ganhando, com a condição mítica, a imortalidade que o resgata da consumação do tempo histórico e lhe confere a heroicidade. Com a interação entre os dois planos, ou as duas
realidades, ocorre a transfiguração histórica do relato e do herói. Essa interação ocorre sempre, ainda que o
personagem seja um herói por natureza, isto é, quando já traz em si, geneticamente, as condições humana e
mítica (Ex.: Enéias, filho de Anquises (humano) e de Vênus (deusa), tem em si, por uma situação original, a
dupla condição que unge o herói épico).
O que chamamos de modelo épico clássico é uma manifestação do discurso épico (epopéia) na antigüidade. Este primeiro modelo (clássico) foi devidamente formulado por Aristóteles. Seu discípulo Staiger
sistematizou teoricamente os elementos estruturadores do discurso épico (também o lírico e o dramático,
inter-relacionando-os).
Staiger tem como objetivo determinar a essência épica, que denomina apresentação e justifica em função
do distanciamento entre o EU e o MUNDO, isto é, entre o narrador e a matéria narrada. Esse distanciamento
coloca o narrador diante da matéria narrada em situação de confronto (não de fusão), resultando daí os demais
elementos ou fenômenos estilísticos que compõem essa essência:
O passado.
A memória.
O uso da 3ª pessoa.
A grandiloqüência.
A narrativa e a ação.
A inalterabilidade de ânimo.
A uniformidade métrica.
O desenrolar progressivo.
Eis algumas obras épicas:
Grécia - Ilíada, Odisséia - epopéias homéricas.
Roma - Eneida, de Vergílio e Farsalia, de Lucano.
Itália - A Divina Comédia - de Dante Alighieri; Jerusalém Libertada - de Torquato Tasso.
Portugal - Os Lusíadas - de Luís de Camões.
Brasil - O Uraguai - de Basílio da Gama e Caramuru - de Frei José de Santa Rita Durão.
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O gênero dramático
Na épica, o narrador apresenta a ação progressivamente, através de análises e descrições, estendendo-se longamente. Na obra dramática, ao contrário, há uma economia de meios, devido ao fator tempo (que é limitado).
A ação épica se estende no tempo e no espaço, deslocando-se de um lugar para outro, do passado para o futuro.
A ação dramática tem como espaço o palco, no momento da representação, coagida a uma seleção de lances
num ritmo acelerado. Na épica, o narrador se demora em cada parte, importante em si mesma, pois seu objetivo
não é o final. No drama não há essa visão setorial (por partes), mas há uma visão globalizante, que se volta
para o que vai acontecer e instiga a ação para o final, para o desfecho. Esta preocupação faz com que todas as
partes se relacionem entre si e com o todo, interdependentes. Este conjunto que se volta para o que vai ocorrer
é o que Staiger chama de tensão.
Fenômenos estilísticos do gênero dramático
A maneira dramática: na obra lírica a relação entre o autor e o mundo é de envolvimento, na épica, de confronto, de distanciamento, visto que o narrador é o mediador do relato. Na obra dramática o autor desaparece
atrás do mundo criado, visto que os acontecimentos se desenrolam autonomamente, sem interferência do narrador. A ação é desenvolvida por meio de personagens num palco, como representação do mundo.
A maneira dramática consiste, pois, no modo de realização das ações, que faz as personagens aparecerem e
agirem diante de nós. A ação se desenrola através de acontecimentos que revelam as personagens, situadas num
determinado lugar e numa determinada época. Ausente o narrador, as personagens são responsáveis para dar
conta das ações, através da representação [Drama = ação].
A tensão dramática, dinamizada pelo alvo a alcançar, impulsiona a ação e suprime todo o excesso. Daí decorre a concentração ou densidade.
Convém restringir o tempo, economizar espaço e escolher um momento expressivo da longa história, um momento pouco antes do final, e daí desse ponto reduzir a extensão a uma unidade sensivelmente palpável, para
que, ao invés de partes, grupos coesos ao invés de passagens isoladas, o sentido global fique claro, a fim de que
nada do que o espectador deva fixar se perca.
A obrigação da concentração e do sentido global mobilizado em função de desfecho se conexiona com a unidade de ação. Tal unidade condensa num todo coeso a ação principal e as acessórias. A ela se junta a unidade de
lugar, pela concentração da encenação às vezes num só cenário, e a unidade de tempo, que é sempre restrito.
O diálogo é a forma natural de as personagens, emancipadas do narrador, desenvolverem a ação. A respeito
dele, Anatol Rosenfeld afirma:
O que se chama, em sentido restrito, de “dramático”, refere-se particularmente ao entrechoque de vontades
e à tensão criada por um diálogo através do qual se externam concepções e objetivos contrários produzindo
o conflito (ROSENFELD, 1996).
A ação, provinda do choque de interesses opostos, antes de chegar ao desfecho, passa por momentos chamados nó (conjunto de interesses que destrói a situação inicial para encetar a ação), reconhecimento (passagem
da ignorância ao conhecimento de uma dada situação), peripécia (mudança da ação ao contrário do que se
esperava) e clímax (ponto culminante do conflito, depois do qual a trama deve terminar).
UNIDADE I
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INTRODUÇÃO À LITERATURA LATINA
1.1 - Aspectos Históricos
Como Foi Transmitida a Literatura Clássica?
Quem lê uma história da literatura latina encontrase diante de uma narrativa contínua, uma narrativa
complexa na qual se encontram personagens diversos
– os escritores – que produzem suas obras. Ao ler assim, tudo em seqüência, não se dá conta de quanto
trabalho, no tempo, foi necessário aos estudiosos para
reconstruir um quadro dos fatos e dos acontecimentos
literários tal que se possa, hoje, no estado atual do
conhecimento, defini-lo como completo.
O fato é que, de todos os textos da literatura clássica, alguns se conservaram mais ou menos íntegros,
outros nos chegaram mutilados mais ou menos gravemente, de outros permaneceram somente algum
pequeno fragmento, outros ainda desapareceram por
completo e sabemos só (por testemunhas indiretas)
que existiram um dia. O mesmo texto que lemos estampado em edições não é senão o ponto de chegada
de uma história acidentada, no curso da qual sofreu
deformações e prejuízos de vários tipos que o tornaram cá e lá defeituoso ou talvez incorreto. O trabalho
dos filólogos providencia com perícia e paciência a
restituição da originária correção dos textos. Em resumo, tanto a história da literatura grega ou latina
como os textos das obras que as acompanham, se
não tivessem sido integrados pelo trabalho dos estudiosos, resultariam muito mais lacunosos e incertos
do que hoje o são.
Uma enorme quantidade de textos da literatura latina já tinha sido perdida no fim da Idade Antiga;
muitos outros se perderam durante a Idade Média.
As razões desse desaparecimento são múltiplas e
diversas: não só mudança de gosto e transformações culturais fizeram “descartar” certas obras, mas
advém também que obras particularmente longas,
como as Historiae de Tito Lívio, fossem abreviadas
e simplificadas até que os compêndios fizeram desaparecer os originais; outras desapareceram pelos incêndios ou saques ou destruições de bibliotecas. Se
o trabalho dos historiadores literários e dos filólogos
não tivesse procurado pesquisar e reconstruir o que
existia, muitos autores importantes hoje não teriam
sequer mencionados os nomes.
Os textos foram conservados e chegaram até nós
graças a papiros e a manuscritos em pergaminhos ou
em papel [ditos ainda códices, do nome codex (tabuinha de escrever), que tinha a tabuinha de madeira usada na idade imperial como capa das folhas de
pergaminhos encadernados como livro]; importante
é ainda a documentação que se reuniu através das
epígrafes (inscrições em prosa ou em versos incisas
no mármore, na pedra, no bronze ou sobre os vasos).
Em alguns casos temos numerosíssimos exemplares
para examinar, como certas obras de Ovídio; mas há
também casos em que o manuscrito é um só, como
acontece com os seis primeiros livros dos “Anais”
de Tácito. Na maioria das vezes se trata de manuscritos medievais (a maior parte dos séculos IX ao
XIII); mais raramente o texto é transmitido por manuscritos tardo-antigos ou, ao contrário, só por cópia
da idade humanística.
Por quanto vária e complexa possa ser a transmissão
da cada um e dos diversos autores, quando a obra de
um autor é conservada em códices manuscritos (copiados durante a I. M. pelos monges ou mais tarde
pelos Humanistas), o editor reconstrói o texto trabalhando sobre testemunhas que são representadas por
uma cópia ou por uma fieira de cópias. O resultado
que alcança é chamado de edição crítica, uma edição
que de costume contém, além do texto crítico reconstruído pelo editor moderno, também um aparato crítico, onde estão assinaladas as variantes por ele refutadas (neste aparato de notas, estampado na maioria
das vezes ao pé da página, se registram precisamente
as variantes, isto é, as diferenças entre os vários manuscritos). De tal modo resultam logo evidentes os
critérios de reconstrução do texto que o editor adotou preferindo uma lição a outra (preferindo um determinado modo que o copista do manuscrito “leu”
e transcreveu um passo). A disciplina que examina a
tradição manuscrita de um texto (ou seja, o conjunto dos documentos escritos que o transmitiram), que
tem por objetivo reconstruir a forma originária e que
procura saneá-lo dos gastos ocorridos com o tempo, é
chamada de crítica textual.
Nesse caso, qualquer que seja a particular situação
da tradição manuscrita de um autor, a nossa relação
com os textos pode ser definida como direta, no sentido que esses foram reproduzidos por si sós (embora
com possíveis gastos, cochilos do copista, omissões,
infidelidades, acréscimos e ajustes). Diz-se então que
esses textos chegaram até nós por tradição direta.
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Das obras de alguns autores (por exemplo, Vergílio,
mas também Cícero, Horácio, Pérsio) possuímos seja
a tradição direta, sejam testemunhas de tradições indiretas (por exemplo em obras de comentadores antigos: Sérvio para Vergílio, Porfírio para Horácio etc.).
Mas, como se falou, a rede de obras conservadas
se entrecorta continuamente com uma rede de obras
perdidas, da qual é conservada notícia graças ao testemunho de outros autores e de outros textos. Autores
cruciais para o desenvolvimento da cultura romana
(como Névio, Ênio, Lucílio) nos são conhecidos desta maneira, porque partes dos seus textos são citadas
por outros autores (como as Origines e o Hortensius
de Cícero). Neste caso possuímos textos que nos são
legados de “segunda mão”: trata-se de pequenos trechos, de fragmentos recordados habitualmente por
razões lingüísticas ou gramaticais. Diz-se então que
os textos nos chegaram por tradição indireta.
Os gramáticos latinos nos conservaram uma preciosa coleção de fragmentos de textos para nós perdidos: eram atraídos por uma palavra inusual, por uma
construção estranha, por um arcaísmo, por um neologismo, em geral pela experimentação lingüística, e
por isso referiam palavras de autor (trechos inteiros,
frases ou uma expressão) no interior de um discurso
deles. Mas acontece também que Cícero (por ex. no
Brutus) cita com admiração (e assim se os conserva) alguns versos dos Annales de Ênio. A literatura
clássica seria para nós muito menos substanciosa se
também esta rede fragmentária e semi-submersa não
tivesse sido percorrida e explorada por pacientes e espessos geniais estudiosos.
1.2 - O Século de Augusto (de 44 ou 43 a. C. a 17 d. C.)
Foi a época de ouro da literatura latina. Floresceram
os mais variados gêneros literários: a historiografia, com
Tito Lívio e Salústio, a poesia épica, com Vergílio (Enei-
da), o lirismo, com Horácio, Vergílio, Ovídio, Tibulo e
Propércio. A vida cultural desenvolvia-se em torno dos
círculos como os de Messala, Polião e Mecenas.
1.3 - Epopéia Grega
Leitura
Os helenos são oriundos da planície do Danúbio,
tendo penetrado na bacia mediterrânea oriental por
meio de invasões sucessivas a partir do séc. XV a.C.
Encontraram nas ilhas do mar Egeu populações que
tinham se tornado civilizações brilhantes (civilização
cretense/egéia ou minóica).
A colonização, do séc. VII ao V, expandiu a língua
e a cultura por quase todo o mediterrâneo. As conquistas de Alexandre (IV) levaram-no até o coração
da Ásia. A conquista romana (II a.C.) introduziu-a em
Roma. No I séc. a. C., em todo o mundo antigo, falava-se ou lia-se o grego e todos tornaram-se tributários
da cultura helênica.
Dárdano, filho de Zeus, fundou a Dardânia, um distrito a noroeste de Tróia, e casou-se com a filha de
Teucro, rei do lugar. Seus descendentes foram Tros
(de quem o distrito de Tróia e os troianos tiraram o
nome) e Ilos, fundador da cidade de Tróia, conhecida
conseqüentemente como Ílion.
Segundo Junito Brandão, “um fato parece definitivo: uma realidade histórica está subjacente ao mito na
epopéia homérica, se bem que, glorificada e transfor-
Alguns consideram que Homero tenha nascido no
século XII a.C., situando os episódios narrados pela
Ilíada e pela Odisséia como ocorridos por volta do
séc. XIII ou XII a.C. Outros situam seu nascimento
no séc. IX e até mesmo no séc. VII a.C. Modernamente, prefere-se situá-lo no séc. IX, na Ásia Menor.
O ponto de partida das narrativas é a Guerra de
Tróia, que teria ocorrido entre os séculos XIII e XII
a.C. Segundo escavações recentes, Tróia seria uma
fortaleza de forma aproximadamente circular, não
medindo mais do que 183m transversalmente. As
muralhas tinham aproximadamente 4,50m de largura
e 6m de altura, com portas e torres quadradas para sua
defesa. O terreno dentro da fortaleza elevava-se em
terraços até o palácio situado em seu centro. Eis uma
história reduzidíssima da fundação de Tróia:
mada por vários séculos de tradição puramente oral
que precederam à composição definitiva elaborada
por Homero (séc. IX - VIII a.C.) e a fixação por escrito dos dois poemas (séc. VI a.C.).
A dificuldade maior no estudo da epopéia Homérica
está em isolar o que realmente é micênico do que pertence a épocas posteriores, como a Idade do Ferro, a Idade
do Caos e ao ambiente histórico em que viveu o próprio
poeta. Sem dúvida, também sob o ângulo político, social
e religioso, os poemas homéricos são uma colcha de retalhos com rótulos de civilizações diferentes no tempo e
no espaço. Não obstante todas essas dificuldades, alguns
elementos micênicos podem, com boa margem de segurança, ser detectados no meio dos dois grandes poemas.
Consoante Homero, o que parece autêntico, o mundo
micênico era um entrelaçamento de reinos pequenos
e grandes, mais ou menos independentes, centralizados em grandes palácios, como Esparta, Atenas, Pilos,
Micenas, Tebas..., mas devendo fidelidade, ou talvez
vassalagem, não se sabe muito bem por que, ao reino
de Agamêmnon, com sede em Micenas. Além deste
aspecto político, há outros a considerar. M. Helena da
Rocha Pereira alinha alguns elementos aqueus presentes na epopéia homérica. “Ora, os Poemas Homéricos
descrevem, fundamentalmente, a civilização micênica, embora ignorem a sua forte burocratização e a
abundância de escravatura, reveladas pelas tabuinhas
de Pilos. Mas, entre os principais elementos micênicos, podemos apresentar: as figuras e seus epítetos;
a riqueza de Micenas (era rica em ouro); a raridade
do ferro; a noção de que anáks (o senhor, o príncipe, rei com poderes religiosos e militares) é mais do
que basileus (rei com poderes políticos); o fausto dos
funerais de Pátroclo; a arquitetura dos palácios, nomeadamente a presença do mégaron; objetos como o
elmo de presas de javali, a taça de Nestor e a espada
de Heitor, com um aro de ouro”.
Mas se comprovadamente existem elementos micênicos, de fundo e de forma, nos poemas homé-
A Ilíada
Primórdios da Guerra de Tróia
A Ilíada trata de apenas uma pequena parte da Guerra de Tróia. De fato, só abarca alguns meses durante o
décimo ano dessa guerra. Os gregos antigos, porém,
estavam familiarizados com todos os acontecimentos
que tinham conduzido a esse décimo ano e, no decurso da Ilíada, Homero faz muitas referências a diversos fatos passados.
A lenda começa há séculos, com a construção da
cidade de Tróia. Esta estava sob a proteção dos filhos de Zeus, o pai dos deuses. O rei da cidade era
Laomedonte, que, por ela prosperar rapidamente, decidiu fazer uma enorme muralha para sua proteção.
Esta é evidentemente a muralha que os gregos não
conseguiram penetrar durante nove anos – o ponto
em que começa a Ilíada. Para uma construção tão
magnífica era necessário evocar o auxílio divino, e o
deus dos mares e dos oceanos, Posídon, ofereceu-se
para ajudar, mas disse que teria de ser compensado
pelos seus esforços.
ricos, como pode o bardo máximo da Hélade ter
conhecimento, por vezes tão preciso, de um mundo
que ele cantou cerca de quatro ou cinco séculos depois? A escrita já existia, é verdade, e cinco séculos
também antes do poeta, mas aquela, a Linear B, era
usada, sobretudo em documentos administrativos
e comerciais e não em textos de caráter literário.
Parece que os poderosos senhores do mundo aqueu
julgavam indigno ou desnecessário que suas façanhas fossem gravadas em tabuinhas de argila. E
realmente não era necessário, pela própria técnica
poética da época. A poesia épica missênica é oral
e tradicional, uma poesia não escrita e transmitida
de geração a geração. Uma poesia áulica, cheia de
fórmulas de caráter religioso e militar e cuja sobrevivência se deveu aos aedos (cantavam ao som
da cítara, improvisando, inspirados pelos deuses)
e rapsodos (poetas que costuravam os versos sem
cantar, apenas recitando-os).
(....) Os poemas homéricos resultam, pois, de um longo, mas progressivo desenvolvimento da poesia oral, em
que trabalharam muitas gerações. Usando significantes
do fim do séc. IX e meados do séc. VIII a.C., épocas em
que foram, ao que parece, ‘compostas’, na Ásia Menor
grega, respectivamente a Ilíada e a Odisséia, o poeta nos
transmite significados do séc. XIII ao séc. VIII a.C. O
mérito extraordinário de Homero foi saber genialmente
reunir esse acervo imenso em dois insuperáveis poemas
que, até hoje, se constituem no arquétipo da épica ocidental” (Brandão, Junito de Souza. Mitologia grega.
Petrópolis, Ática, 1996. v. III).
No fim dos trabalhos, os troianos pensaram que
a muralha era tão impenetrável que se recusaram a
compensar Posídon. Este retirou então a sua proteção
e, assim, a cidade ficou sem a proteção divina e vulnerável ao ataque.
Na altura da Guerra de Tróia, a cidade era governada
pelo rei Príamo, casado com Hécuba, a qual, segundo
a lenda, deu-lhe 49 filhos, incluindo o nobre Heitor,
a profetisa Cassandra, Páris e muitos outros. Quando
Hécuba estava grávida de Páris, teve o sonho de que
esse filho seria a causa da destruição de Tróia. Um oráculo e um adivinho confirmaram que ele seria efetivamente a causa da destruição total da nobre cidade de
Tróia; portanto, para o bem da cidade, Hécuba concordou em abandonar o recém-nascido à morte, expondoo no monte Ida, mas ele foi salvo por pastores e cresceu
como pastor, ignorante do seu nascimento real.
Pouco antes do início da Guerra de Tróia, Zeus preparou o casamento de Tétis (uma deusa) com Peleu
(um mortal); serão a mãe e o pai do nobre Aquiles. No
casamento, todos os deuses e deusas compareceram e
estavam a divertir-se, quando Éris, a deusa da discór-
19
20
dia, que, por razões óbvias, não foi convidada, joga
uma maçã de ouro no meio deles, com as palavras
“PARA A MAIS BELA” nela inscritas.
Hera, Atená e Afrodite reclamam a maçã e pedem
a Zeus que julgue entre elas, mas este recusa-se sabiamente, preferindo nomear o pastor Páris (o qual
tomava conta dos rebanhos nas proximidades) para
decidir o pleito. As deusas vão todas a ter com Páris,
e cada uma delas procura suborná-lo, oferecendo-lhe
a sua especialidade. Hera oferece-lhe um rico reino e
poder. Atená oferece-lhe sabedoria e êxitos militares.
Afrodite oferece-lhe amor, o amor da mais bela mulher do mundo, a espetacular Helena. Conseqüentemente, Páris escolhe Afrodite, tornando assim Hera
e Atená suas implacáveis inimigas, jurando ambas
destruir Páris e a cidade de Tróia.
Ao saber que possuirá Helena, Páris vai primeiro a
Tróia e estabelece-se como verdadeiro príncipe, filho
legítimo de Príamo e Hécuba. Depois embarca para
Esparta, para a corte do rei Menelau, o qual estava
ausente, onde seduz e logo rapta Helena, levando-a
para Tróia.
A Guerra de Tróia
Quando Menelau volta a Esparta e sabe da partida
da esposa, convoca grande número de generais gregos para o acompanharem na conquista de Tróia e
na recuperação de Helena. Em tempos, todos esses
generais tinham cortejado Helena, chegando depois
a um acordo: comprometiam-se a auxiliar aquele que
conseguisse o amor de Helena e a vingar qualquer
desonra a que o futuro marido ficasse sujeito por causa dela. Assim, Páris precipitou a Guerra de Tróia,
cumprindo o sonho profético que sua mãe tivera de
dar à luz um filho que seria a causa da destruição da
cidade de Tróia.
Alguns dos chefes gregos estavam ansiosos por saquear Tróia, mas dois, Ulisses e Aquiles, tinham sido
avisados por oráculos do destino que teriam se participassem da expedição. Ulisses foi avisado de que estaria ausente durante vinte anos, pelo que se fingiu de
louco, mas a sua astúcia foi rapidamente descoberta
e acabou por concordar em partir. Os gregos sabiam
que nunca poderiam capturar Tróia sem a ajuda de
Aquiles, que era o maior guerreiro do mundo. Este
era praticamente invulnerável como combatente porque, ao nascer, a mãe o mergulhara no rio Estige, tornando-o imortal em todo o corpo exceto no calcanhar,
por onde o segurara (mais tarde, Páris descobrirá esta
vulnerabilidade e disparará uma seta envenenada para
o calcanhar de Aquiles – é por esta razão que utilizamos a expressão “calcanhar de Aquiles” para nos
referimos à vulnerabilidade de alguém). Aquiles foi
avisado de que, se fosse para a guerra, obteria grande
glória, mas morreria jovem. Então a mãe disfarçou-o
com roupas femininas. Porém, o astuto Ulisses descobriu a artimanha e Aquiles acabou por concordar com
a sua participação.
O irmão de Menelau, Agamêmnon, foi eleito chefe
do exército. Quando estavam reunidos mil navios, os
ventos acalmaram e, após consulta dos oráculos, descobriu-se que Agamêmnon matara um veado consagrado à Ártemis, a deusa da caça. Nada a poderia pacificar a não ser o sacrifício da filha de Agamêmnon,
Ifigênia. Após considerável angústia, Agamêmnon
mandou chamar a filha, sob pretexto de que ela iria
casar com Aquiles. Uma vez lá, todavia, fê-la sacrificar, e os ventos começaram imediatamente a soprar.
A expedição partiu.
O primeiro desembarque foi num local errado, mas
os gregos (chamados de aqueus, na Ilíada) acabaram
por chegar a Tróia e sitiar a cidade, colocando Aquiles numa das extremidades e o famoso Ajax na outra.
Durante nove anos tentaram, sem êxito, penetrar a
invulnerável muralha troiana. Contudo, conquistaram
e pilharam muitas terras pequenas e, no fim do nono
ano, capturaram duas belas mulheres, Criseide, que
foi entregue a Agamêmnon, e Briseide, que coube a
Aquiles. Aqui começa a Ilíada, que terminará com o
funeral de Heitor.
A Queda de Tróia
Depois do funeral de Heitor, os troianos solicitaram
a ajuda de forças exteriores e os gregos perderam
muitos combatentes valorosos. Numa batalha, Aquiles defrontou-se com Páris, o qual lançou uma seta
que, guiada por Apolo, atingiu Aquiles no calcanhar
direito, o único ponto em que ele era vulnerável. Só
com grande dificuldade é que Ajax e Ulisses conseguiram recuperar o corpo de Aquiles, e logo surgiu
uma disputa sobre quem deveria receber sua esplêndida armadura. Quando esta foi atribuída a Ulisses,
Ajax ficou tão furioso que ameaçou matar alguns dos
chefes gregos, mas, ao aperceberem-se do erro do seu
comportamento, acabou por se suicidar.
Com a morte dos dois maiores guerreiros, Ajax e
Aquiles, os gregos começaram a duvidar de que algum
dia conseguiriam conquistar Tróia. Consultando diversos adivinhos e oráculos, são informados de que se
devem apoderar do arco e flechas de Héracles, que se
encontravam nas mãos do príncipe Filocteto, um grego
anteriormente abandonado devido a uma terrível ferida
que não sarava. Ulisses e Diomedes são enviados e convencem Filocteto a regressar com o arco e as flechas.
No seu primeiro combate, este consegue matar Páris.
Esta morte, no entanto, não afeta o curso da guerra.
Aos gregos foi então apresentada uma série de coisas
que teriam de ser realizadas para alcançarem a vitória
como: 1. Levar os ossos de Pelops da Ásia de regresso à Grécia; 2. Fazer que o filho de Aquiles entrasse
na guerra; 3. Roubar a imagem sagrada de Atená do
santuário de Tróia. Estes fatos foram realizados, mas
nenhum deles alterou o curso da guerra. Então Ulisses
concebeu um plano através do qual os gregos poderiam penetrar as defesas de Tróia: foi construído um
grande cavalo de madeira, com o ventre oco, para conter muitos guerreiros. Na escuridão da noite, o cavalo
foi levado para as planícies de Tróia, e alguns combatentes gregos treparam para dentro dele. Os restantes
gregos queimaram os acampamentos e afastaram-se
para os barcos, simulando o abandono da guerra, mas
ficaram à espera para além de uma ilha próxima.
Na manhã seguinte, os troianos descobriram que os
gregos tinham ido embora e encontraram o enorme cavalo misterioso postado em frente de sua cidade. Também depararam com um grego chamado Sínone com
histórias plausíveis acerca da partida dos gregos, do cavalo de pau e da sua própria presença ali. Sínone contou
a Príamo e aos outros que Atená abandonara os gregos
devido ao roubo da sua imagem do templo. Sem a ajuda
dela, sentiram-se perdidos e, por isso, partiram. Porém,
para chegarem em segurança às suas terras, tinham de
proceder a um sacrifício humano. Sínone era o escolhido, mas fugira e escondera-se. O cavalo fora deixado
para aplacar a ira da deusa, e os gregos tinham a esperança de que os troianos o profanassem, atraindo o ódio
de Atená. Estas mentiras convenceram Príamo e muitos
outros troianos, que então arrastaram o cavalo gigantesco para dentro das muralhas, a fim de honrarem Atená.
Nessa noite, os soldados saíram sub-repticiamente do
cavalo, mataram as sentinelas e abriram as portas da cidade para permitirem a entrada do exército grego. Este
acendeu focos de incêndio por todo o lado, começou a
massacrar os habitantes e procedeu à pilhagem. A resistência troiana de nada serviu. O rei Príamo foi morto, e,
ao amanhecer, quase todos os troianos tinham tido o mesmo destino. Só escaparam Enéias, com o seu pai e o seu
filho criança, e um pequeno grupo de troianos. O filhinho
pequeno de Heitor foi atirado do alto da muralha da cidade. As mulheres que ficaram foram entregues aos chefes
gregos como troféus de guerra para serem usadas como
escravas ou concubinas. Tróia foi devastada. Hera e Atená
tiveram sua vingança sobre Páris e a sua cidade.
Resumos e Comentários
Canto I
A peste - A ira de Aquiles
A Ilíada começa, como todos os poemas épicos,
com a invocação do poeta à musa (deusa) da poesia.
Nesta invocação, Homero apresenta seu tema, a ira
ou a fúria de Aquiles e seus efeitos, e pede a ajuda da
musa para conseguir contar adequadamente a história.
O leitor é então levado ao ponto onde o problema teve
sua origem. É aí que a história da Ilíada começa.
Durante uma das muitas expedições do exército aqueu
(grego) nas proximidades de Tróia, duas jovens troianas muito belas, Criseide e Briseide, foram capturadas
e levadas ante o chefe do exército Agamêmnon e ante a
Aquiles. Criseide, troféu de Agamêmnon, é filha de Crises, sacerdote de Apolo, e não tarda muito para que Crises venha ao acampamento aqueu, esperando resgatála. Agamêmnon se recusa a cedê-la e ordena rudemente
ao velho que abandone o acampamento. Desesperado,
Crises implora o auxílio de Apolo. Este responde à prece do sacerdote e uma peste mortífera espalha-se entre
os aqueus, matando centenas de combatentes.
No décimo dia da peste, Aquiles recusa-se a aguardar
mais tempo uma ação do rei Agamêmnon para pôr fim à
praga. Usurpando a autoridade de Agamêmnon, Aquiles
convoca uma assembléia do exército e sugere que seja
chamado um adivinho para determinar a causa da peste.
Calcante, um adivinho aqueu, explica a causa, após suplicar a Aquiles absoluta proteção. Quando o adivinho
revela que a causa é resultante da recusa de Agamêmnon em devolver Criseide ao pai, o próprio Agamêmnon fica furioso por ser publicamente nomeado como
responsável pela praga. Insiste em que, se for obrigado a
devolver Criseide, sua recompensa de direito, então tem
de ser compensado com a recompensa de Aquiles, Briseide. Tal exigência enfurece Aquiles, que, ofendido na
sua timé e areté, considera até mesmo a hipótese de apunhalar Agamêmnon, mas é acalmado pela deusa Atená,
ao tomar da espada. Finalmente Nestor (o mais velho
e sensato de todos os guerreiros aqueus) ergue-se para
falar e consegue pacificar os dois homens irados.
Aquiles, contudo, permanece encolerizado pela afronta pública de Agamêmnon ao exigir Briseide, e recusase a aceitar a indignidade que sente ter-lhe sido imposta
na presença de todos os soldados. Conseqüentemente
anuncia que retira todas as suas tropas da luta. Nem
ele, nem nenhum dos seus homens voltarão a lutar com
os aqueus contra os troianos. Justifica a decisão afirmando que nem ele nem qualquer dos que o seguem
tinham qualquer questão pessoal com os troianos. Ele
só tinha ido ajudar Agamêmnon e Menelau na tentativa
de recuperação da esposa deste, Helena, e considera
extremamente injusto que lhe retirem a recompensa,
Briseide. Aquiles está firme na decisão de não voltar
a lutar: não o fará e, além disso, ele e seus homens regressarão o mais breve possível à sua própria terra.
No entanto, Agamêmnon decide aplacar Apolo: devolverá Criseide, a sua recompensa. Envia-a em segurança a bordo de um navio, que a levará até sua
terra, e depois manda os seus arautos irem buscar Bri-
21
22
seide. Surpreendentemente, Aquiles entrega a jovem
sem qualquer dificuldade.
A seguir, porém, num sofrimento profundo, Aquiles
vagueia sozinho pela praia e chora. Foi publicamente
envergonhado pelo rei Agamêmnon e tratado como um
escravo. A sua mãe Tétis, uma ninfa do mar, aparece ao
ver o filho em tal estado. Este confessa-lhe seus problemas e pede-lhe que utilize sua influência junto de Zeus
para assegurar que os exércitos troianos derrotem os
seus camaradas de aramas aqueus. Aquiles pensa que,
quando os aqueus compreenderem que estão perdendo
a guerra em razão de sua ausência, entenderão qual o
verdadeiro valor que Aquiles tinha para eles. Em resultado disso, remediarão o insulto de Agamêmnon.
Tétis visita Zeus no Olimpo, e o rei dos deuses concorda em ajudar os troianos, embora exprima o temor
de que a esposa, Hera, fique aborrecida, pois ela tem
ciúmes de Tétis, odeia os troianos e não suporta a idéia
de os ver ganhar a guerra. Descobrimos de fato que
Hera odeia os troianos, mas teme ainda mais a ira de
Zeus, pelo que cala os seus problemas. O canto I termina com um banquete dos deuses no palácio de Zeus.
Odisséia
Sinopse da Odisséia
Ulisses, rei de Ítaca, participa da grande expedição dos
aqueus, comandada por Agamêmnon, contra a cidade
de Tróia, com o fim de resgatar Helena para Menelau.
Após 10 anos, Tróia é saqueada e os heróis aqueus regressam a casa. Quando a Odisséia começa, já se passou mais de uma década desde a queda de Tróia.
Ulisses ainda não regressou. Todos os outros chefes
já tinham regressado às suas pátrias ou já tinham morrido. Não havia, porém, qualquer notícia do rei de Ítaca. Na sua ausência, os nobres de Ítaca e das cidades
vizinhas convergiram para o palácio, esperando obter
a mão de Penélope, mulher de Ulisses. Esta, sempre
fiel à memória do marido, não quer voltar a casar e,
enquanto permanecem no palácio tentando que ela
mude de idéia, os pretendentes esbanjam a fortuna de
Ulisses para seu próprio prazer e corrompem muitos
dos seus criados. Quando Telêmaco, o filho de Ulisses, cresceu, visitou vários senhores aqueus na esperança de saber se o pai ainda estava vivo.
Durante esses dez anos, Ulisses vagueou pelo mundo, passando por uma série inacreditável de aventuras
e sofrendo tormentos inimagináveis, causados pela
maldade de Possêidon. Perdeu todos os seus barcos
e é o único sobrevivente do valoroso exército que
partiu de Tróia. Finalmente, com a ajuda do rei dos
feaces, Ulisses regressa a Ítaca. Auxiliado pela deusa
Atená, de quem é o favorito, Ulisses castiga os pre-
tendentes e restitui-se como rei. Reencontra a mulher,
o filho e o pai, e uma possível guerra civil é evitada
pela intercessão dos deuses.
A Odisséia começa com a invocação de Homero à
musa da poesia, na qual enuncia o tema do poema
épico e lhe pede que o oriente para que possa contar
a história de modo adequado. É, diz ele, a história de
um homem solitário que vagueou pelo mundo durante muitos anos e sofreu muitos tormentos antes de a
sua tentativa de regressar à pátria ser bem sucedida.
No início da história, todos os sobreviventes da
guerra de Tróia, com a exceção de Ulisses, já regressaram a casa. Ele se encontra retido pela ninfa Calipso, que tem esperanças de o fazer seu marido e,
enquanto a maior parte dos deuses lhe vota simpatia,
Posídon, deus do mar, tem-lhe rancor e fá-lo sofrer
muitas provações.
Na ausência de Posídon, Zeus, o rei dos deuses,
convoca um conselho divino no Olimpo. Depois do
discurso de abertura sobre o castigo de Egisto, o assassino de Agamêmnon, Atená interrompe o pai. Recorda-lhe o pobre Ulisses, separados da família e dos
seres amados numa ilha distante e exige que os deuses
retomem a sua anterior amizade para com ele. Salienta
que embora Posídon lhe tenha rancor porque Ulisses
cegou um dos seus filhos, ele pode ser obrigado a submeter-se ao desejo conjunto dos outros deuses. Sugere
que Hermes seja enviado a Calipso, ordenando-lhe
que liberte Ulisses, enquanto ela se disfarçará e irá
visitar Telêmaco, o filho de Ulisses. Zeus e os outros
deuses concordam com a sugestão de Atená.
Atená veste-se de guerreiro e vai imediatamente a Ítaca,
o país de Ulisses. Ali, encontra a casa do herói ocupada
por um bando de príncipes menores e jovens nobres que
aparentemente fazem a corte à mulher de Ulisses, mas
que, ao mesmo tempo, passam os dias em banquetes e
festins nos quais esbanjam toda a fortuna de Ulisses.
Atená, identificando-se como Mentes, chefe dos Táfios e velho amigo de Ulisses, é bem recebida por Telêmaco. Sentados ao jantar, Telêmaco pede desculpa
pelo comportamento grosseiro dos pretendentes. Pergunta a Atená se tem notícias do pai. Atená tranqüiliza Telêmaco, dizendo que Ulisses está vivo em algum
lugar e que acabará por regressar a casa e castigará os
pretendentes. Telêmaco descreve os problemas causados pela ausência do pai e explica como Penélope,
a mãe, se recusa a casar-se novamente. Atená recomenda a Telêmaco que convoque uma reunião na ágora, durante a qual ordenará aos pretendentes que saiam
da casa e, ao mesmo tempo, anunciará a sua intenção
de procurar saber notícias do Ulisses. Então, a deusa
aconselha, deve partir para Pilo e Esparta para saber o
que for possível, por intermédio de Nestor e Menelau.
Além disso, salienta Atená, se Ulisses tiver morrido,
então é hora de Telêmaco enfrentar as suas responsabilidades, reclamando a sua herança, fazendo que a mãe
escolha um novo marido e castigando os pretendentes.
A deusa parte e ambos separam-se como amigos.
Entretanto, no festim dos pretendentes, um aedo
canta sobre as aventuras dos aqueus de Tróia. Penélope aparece e fica perturbada por esta lembrança de
Ulisses, ausente há tanto tempo, mas Telêmaco orde-
na-lhe que saia da sala, onde o divertimento é, afinal, destinada a homens e não a mulheres sensíveis.
Os pretendentes tentam interrogar o jovem sobre o
seu recente visitante. Ele anuncia a convocação da
assembléia para a manhã seguinte, bem como a sua
projetada viagem em busca de informações e o castigo que tenciona aplicar a todos eles. Ficam surpresos
com esta súbita afirmação de virilidade, mas prosseguem o festim esbanjador. Telêmaco vai-se deitar e
sonha com a sua próxima viagem.
1.4 - A Epopéia em Roma
Publius Vergilius Maro, às vezes chamado
de Vergílio (Andes, 15
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Sua obra mais conhecida é a Eneida. Foi considerado ainda em vida como o grande poeta romano e
expoente da literatura latina. Seu trabalho foi uma
vigorosa expressão das tradições de uma nação que
urgia pela afirmação histórica, saída de um período
turbulento de cerca de dez anos, durante os quais as
revoluções prevaleceram.
Considerado o maior poeta latino, era natural da região
de Mântua (70-19 a.C.) e filho de uma família de camponeses. Alcançou pelo casamento uma situação estável,
podendo então ouvir, em Milão e Roma, as lições de filósofos epicuristas. Amigo de Horácio, como ele protegido
por Mecenas, entrou em contato com o imperador, de
quem recebeu o incentivo para escrever a Eneida.
Admirador da cultura helênica, empreendeu uma
viagem à Grécia, berço e viveiro da cultura, sonho
que há muito acalentava: o destino concedeu-lhe a realização desse anseio, mas morreu no regresso, junto
de Brindisi. O seu túmulo encontra-se em Nápoles.
A obra de Virgílio compreende, além de poemas
menores, compostos na juventude, as Bucólicas ou
Éclogas, em número de dez, em que reflete a influência do gênero pastoril criado por Teócrito.
As Geórgicas, dedicadas ao seu protetor Mecenas,
constam de quatro livros, tratando da agricultura.
Trata-se de uma obra de implicações políticas indiretas, embora bem definidas: ao fazer a apologia da
vida do campo, o poeta serve o ideal político-social
da dignificação da classe rural. Reflete a influência de
Hesíodo e Lucrécio.
Literariamente, as Geórgicas são consideradas a sua
obra mais perfeita. E, finalmente, a Eneida, que o poeta
considerou inacabada, a ponto de pedir, no leito de morte, que fosse queimada, constitui a epopéia nacional.
Eneida
resumo e comentários
A tempestade: Enéias em Cartago
Arma virumque cano... Início da Eneida, verso célebre
na antigüidade. Foi usado por poetas como Propércio,
Ovídio, Pérsio e Marcial, como referência à obra vergiliana. Sobre paredes de Pompéia, foram encontrados diversos grafites reproduzindo-os ou parodiando-os, como:
Fullones ululamque cano, no Arma virumque.
(Eu canto os pisantes e a coruja, não as guerras e
o varão.)
Nos sete primeiros versos está resumida toda a ação
da Eneida. O primeiro verso
Arma virumque cano, Troiae qui primus ab oris
evoca Enéias – sem o nomear – e Tróia, sua pátria;
o último dos sete
Albanique patres atque altae moenia Romae
termina sobre o nome de Roma, ou seja, de Tróia
até o Lácio, malgrado a ira de Juno. Ao mesmo tempo estão presentes os dois personagens principais do
poema: Enéias, o troiano fugitivo que os destinos
chamam para fundar uma cidade sobre as margens do
Tibre, e Roma, cuja grande imagem estará sempre no
pensamento do leitor.
Arma (= instrumentos bélicos de defesa e ataque)
quer dizer guerra, luta; ao passo que virum (homem,
varão, em oposição a homo < humus) refere-se ao herói, isto é, a um ser cujo epíteto é uma garantia de
nobreza; é o ser dotado da areté e da timé; é aquele
que tem de superar um a um os obstáculos para mostrar que é herói, isto é, que está acima do comum dos
homens – um semideus; mas é também aquele que vai
se sujeitar ao Destino e à vontade dos deuses (Fato
profugus). A isto o poeta diz cano, isto é, canto, do
verbo cantar. Cantar é mais do que dizer, narrar: é
falar grande, é ser grandiloqüente.
23
24
Depois deste preâmbulo, o poeta invoca a Musa:
Musa, mihi causas memora... (A musa da poesia
épica, a filha mais velha de Mnemosine, era Calíope,
uma das sete musas protetoras das artes e da literatura). A invocação da Musa é uma tradição homérica.
Esta invocação termina com uma pergunta do poeta:
Tentaene animis coelestibus irae?. Tal questionamento mostra que o poeta, assim como todos os romanos, não admite que os deuses possam ser acessíveis
às mesmas paixões que rasgam os humanos. Como
se explica isso? Vergílio assinala desde o início do
poema: diante dos sofrimentos infligidos ao herói
– alma religiosa! – por uma divindade rancorosa, ele,
o herói, se assombra e sua piedade emudece. O poeta
explica que Juno teme por Cartago, sua cidade predileta, que seja aniquilada por um povo oriundo da
raça troiana. Além disso, a deusa ainda guarda em seu
coração o julgamento de Páris, em que fora preterida.
Deste modo, Juno aparece como uma deusa vingativa; os infelizes mortais são, então, os joguetes das
paixões divinas. Em Homero este conceito era aceito
normalmente, sem objeções; mas, entre os romanos,
era inconcebível que os deuses agissem assim. Vergílio atualiza o dado com o verso Tantae molis erat
Romanam condere gentem! (Tantos esforços eram
para fundar a nação romana). É a resposta à pergunta
que acaba a invocação. Ou seja, as divindades têm
suas iras, mas as perseguições servem para dizer que
os fins justificam a injustiça: eram necessárias as tribulações de Enéias para que Roma pudesse nascer.
Quer dizer, Roma não nasce sem sacrifícios, sem dor;
é também o preço de tanto poder e de tanta glória.
Enéias será o herói desses sacrifícios necessários e
Juno, deusa que é, o instrumento de um Destino que
ela crê combater (também os deuses estavam sujeitos
ao Fado). Começa então a apresentação dos feitos em
que o herói se envolve. A narrativa se inicia in medias
res, isto é, no meio dos acontecimentos. O primeiro
deles se dá no mar: os navios já estão se aproximando
do destino final da viagem, os marinheiros estão felizes, quando desaba uma terrível tempestade, que Juno
fez desencadear, e afasta os troianos para as costas da
África. O poema não se inicia com os fatos conforme
a ordem de ocorrência: a destruição de Tróia, depois
a fuga, depois a viagem, depois a chegada. Começa
no meio (esta forma de iniciar está em Homero, na
Odisséia, quando Ulisses, depois de ter deixado a ilha
de Calipso num navio, está para chegar ao país dos
feaces. Vem uma tempestade que o leva para longe,
entre os etíopes).
Juno, para desencadear a tempestade, dirige-se a
Éolo, o deus dos ventos, que lhe deve obrigações
(através dela ele se tornou rei dos ventos); a deusa
oferece-lhe em matrimônio Deiopéia, a mais bela de
suas ninfas, como recompensa, a qual lhe dará belos
filhos. Juno é a deusa dos bons casamentos. Vergílio,
com isso, quer valorizar o prazer da dignidade do ca-
samento e a legitimidade das alegrias familiares. Faz
parte do plano augústeo de renovação dos costumes:
a volta aos antigos costumes.
É, pois, no meio do turbilhão dos ventos que aparece
pela primeira vez o herói Enéias. Surge voltado para os
céus, em plangente queixa. É a figura do pius Aeneas,
cujo pensamento se volta sem cessar para o céu. Embora suas palavras não sejam uma oração, e sim um
pranto, caracterizam o herói como o sobrevivente de
uma “troupe” de outros tantos heróis como Diomedes,
Aquiles, Heitor... A descrição das cenas que envolvem
a tempestade são um belo exemplo da grandiloqüência
épica. A tempestade representa um obstáculo mortal ao
qual o herói deverá suplantar. Visto que estas forças da
natureza são grandes demais para um homem, Netuno
intervém majestosamente, opondo-se a Juno e a Éolo,
e ajuda Enéias. Mas esta ajuda se justifica, visto que
Juno e Éolo se intrometem num domínio que não lhes
pertencia. No mais, a tempestade é a desordem dos elementos em convulsão; Netuno é igual a Augusto que
vem restabelecer a ordem na cidade.
E os troianos ganham as costas da Líbia. A liderança
do herói se ressalta pelas cenas de reconhecimento
do lugar, pela procura dos companheiros dispersos,
pela provisão dos alimentos, pelo encorajamento aos
companheiros através do discurso eficaz.
Vênus vai ter com Júpiter, buscando satisfações
para o que acontece. Através das palavras de Júpiter, Vergílio projeta a história e o futuro de Roma. E
mostra o entendimento que deve dar à obra: será uma
epopéia nacional e será um poema dinástico (Augusto
é o continuador de Enéias). As guerras heróicas de
Enéias no Lácio, as guerras que formaram o poderio
romano dão início ao império de Augusto, o fundador
da pax romana. Júpiter manda Mercúrio a Cartago a
fim de preparar Dido para a chegada de Enéias.
Segue-se o encontro de Enéias com sua mãe-protetora Vênus, que vem ajudá-lo, pondo-lhe a par do
lugar em que está e das pessoas com quem há de lidar. Segue-se a narração do encontro de Enéias com
a fenícia Dido ou Elissa, rainha da nascente Cartago.
[Cartago teria sido fundada por volta de 814-813 a.C.
por colonos Tírios, sob o reinado de Tir Pigmalião,
por obra da irmã deste, Deido. Visto que as condições
da fundação de Cartago eram desconhecidas, Vergílio
as explica de forma legendária. Vergílio também cria
a lenda da paixão de Dido por Enéias, afastando-se da
história que, segundo Varrão, narra que Enéias teria
tido uma aventura amorosa na África, mas não com
Dido e sim com Ana, que seria a verdadeira fundadora
da capital tíria (como se vê, a história é polêmica)].
Se Vergílio introduziu Enéias no palácio de Dido
para que ele vivesse ali uma aventura amorosa, tinha
suas razões. L. A. Constans enumera três delas: a primeira, de ordem literária ou estética, pretende que Enéias,
da mesma forma que Ulisses, fique retido pelo amor de
uma mulher – é o lado romanesco da epopéia; a segunda
é de ordem histórica ou nacionalista, visto que a Eneida
evocaria no espírito romano toda a história de Roma – alguma coisa anterior devia relacionar-se às guerras púnicas, fato que domina a história da fase republicana: Dido
ao ser abandonada por Enéias lança-lhe imprecações antes do suicídio, ou seja, as guerras púnicas encontram uma
explicação legendária e sobrenatural, pois elas são o cumprimento das imprecações de Dido; por fim, a terceira razão está relacionada com as circunstâncias da atualidade:
a cidade que Enéias vê em construção não era uma cidade
fenícia do século oitavo a.C., mas uma cidade nos moldes
romanos, ou seja: no ano 44 a.C. César havia decidido
ressuscitar Cartago, enviando veteranos para a colonia
Iulia Carthago. Esta cidade seria a cidade em construção
que Vergílio alusivamente descreve.
A Eneida Após Vergílio
Enéias vê-se em Cartago onde o detém um vasto
templo que está sendo construído em homenagem a
Juno, em meio a um bosque sagrado. Afrescos decorativos representam episódios da guerra de Tróia.
O herói os contempla, comove-se ao extremo, vai às
lágrimas e geme, em suspiros profundos arrancados
do peito. Mais de uma vez o herói chora na Eneida.
É a interpretação vergiliana do caráter do herói, do
seu fundo psicológico, que, num momento de pausa e reflexão, mergulha no imo da alma humana para
se compadecer. Há um elo sentimental entre Tróia,
Enéias e Cartago. Mas esse mergulho é interrompido
pelo que se pode então, de súbito, ver. Dido lhe aparece deslumbrante de beleza. Traz não só a majestade
da rainha mas também um não sei o quê que a torna
bem digna do filho de uma deusa. Mostra-se a construtora de uma cidade no momento em que ele sonha
em fixar os penates num novo país.
Não se pode pensar, por outro lado, que todas as
opiniões só foram favoráveis à Eneida. Houve alguns
autores e críticos que resistiram a ela nos primeiros
tempos. É o caso de Carvilius Pictor que escreveu
Aenneosmastix para fustigá-la. Herennius revela
seus erros, enquanto que Perellius Faustus e Otavius Avitus denunciam seus plágios. O grande crítico Asconius Pedianus, do primeiro século da nossa
era, consagrou uma obra para combater os detratores
de Vergílio (Contra obtrectatores Virgilii). Calígula
pretendeu banir das bibliotecas públicas as obras e
as imagens de Vergílio, porque, segundo ele, era uma
obra de “nenhum gênio e de magro saber” (Suetônio,
Calígula, 34). Outros gramáticos como Valério Probo
e Anneus Cornutus comentaram largamente a Eneida. Posteriormente, o estudo de Vergílio tornou-se
um dos meios indispensáveis para a educação liberal,
mas mantinha ainda alguma polêmica.
Vênus, por sua vez, no intuito de ajudar o filho angustiado, transforma-lhe a fatigada e a pálida face
desfigurada pelo naufrágio na vislumbrante figura que
lembra a estátua de um deus. À vista daquela beleza
sobrenatural, a rainha Dido se comove e seu coração
feminino se enternece de piedade só de pensar nos
sofrimentos do herói.
Através das escolas, a Eneida ganhava outros locais
além dos muros de Roma. Difundiu-se nos círculos
mundanos e nos meios populares. Também passou a
servir de motivo de esnobismo: na alta sociedade dos
tempos de Nero era de bom tom falar sobre o conhecimento da Eneida. Juvenal (Sátira, VI) nos fala de
uma mulher tocada pela literatura que senta à “mesa,
louva Vergílio, justifica Dido pronta para morrer, põe
os poetas em paralelo, compara-os, suspendendo na
balança Vergílio de um lado e Homero de outro”.
Políbio, alforriado por Cláudio, havia empreendido a
tradução de Homero para o latim e de Vergílio para o
grego, no que fora elogiado por Sêneca.
Obstipuit primo aspectu Sidonia Dido
Casu deinde viri tanto... (I, 613-614)
(A sidônia Dido ficou estupefata à primeira vista;
depois pela tão grande desgraça de um varão...)
Ele é belo, mas infeliz. Ela está pronta a amá-lo. Vênus põe Cupido em ação, que toma os traços de Ascânio, o qual serve para os aproximar. Desenrola-se
o banquete e Dido já “bebia o amor em prolongados
goles”. A pedido da rainha, Enéias toma a palavra e
fará o relato que ocupará os livros II e III.
A glória de Vergílio já dura vinte séculos. Já na Antigüidade, as escolas esboçavam a imagem de um
Vergílio sábio universal e filósofo místico, cuja obra
encerraria, sob os vôos da alegoria e do símbolo, todos os segredos do universo. Até mesmo os cristãos
viram no autor da IV égloga (Bucólicas) um anunciador do nascimento de Cristo. Traçaremos, a seguir,
alguns esboços sobre a Eneida, desde sua publicação
até nossos dias.
A Eneida mal começou a ser escrita e já se tornara
célebre. Os poetas da época de Augusto, Ovídio, Propércio, Horácio, até mesmo o historiador Tito Lívio,
foram influenciados pela Eneida. No primeiro século
da nossa era, Sílio Itálico e Estácio esforçam-se por enriquecer a epopéia latina seguindo os traços do mestre.
Os gramáticos e os retóricos comentam seus versos.
A Eneida também difundiu-se entre o povo. Os desocupados escreviam seus versos sobre as paredes das
casas e sobre os monumentos públicos (pichações).
A pantomima se amparava em seus heróis: Nero, no
dia de sua morte, prometera imitar, dançando, um tre-
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cho de Turno, de Vergílio, se ele escapasse de seus
inimigos. O poema também era declamado em lugares públicos: Petrônio, no Festim de Trimalcião, nos
mostra um convidado de seu jantar ridículo fazendo
seu escravo recitar o livro V da Eneida.
Na época dos Antoninos, o arcaizante crítico Fronto
dizia preferir Ênio a Vergílio; o imperador Adriano
achava o mesmo. Nessa época, a Eneida começa a
se colorir de idéias supersticiosas: tiram-se dela,
principalmente do livro VI, predições e avisos sobrenaturais. Para isto, abria-se o livro ao acaso e interpretava-se o primeiro verso que se oferecia. Adriano,
malgrado suas prevenções literárias, foi o primeiro
imperador a consultar as sortes vergilianae, cujo uso
se perpetuaria durante a Idade Média.
Esta tendência de fazer da Eneida um livro sagrado
no qual se procuravam revelações de toda ordem, se
traduziu nas escolas pela exegese alegórica. A partir
desse procedimento, descobriu-se uma chave de um
enriquecimento ilimitado: fazer significar no texto de
Vergílio idéias filosóficas, religiosas e morais; abriamse ao ensino perspectivas que não tinham outros limites senão o da engenhosidade do mestre. O comentário de Servius, no final do século IV, nos mostra que
desde então exercitava-se em fazer o poeta dizer o
que ele não havia dito, e que sua obra estava para se
tornar o que de fato foi, na alta Idade Média, uma vertente inexaurível de ensino filosófico e místico.
Eis um exemplo que Servius nos dá acerca do ramo
de ouro que a Sibila mandou Enéias colher para realizar sua viagem ao Hades: sabe-se que Pitágoras via
a vida humana à imagem da letra Y: o tronco figura a
primeira idade; a bifurcação, o momento da juventude,
em que o homem tem de escolher entre o vício, que é
representado pelo galho esquerdo, e a virtude, que simboliza o galho direito. O ramo de ouro tinha a forma de
um Y, para significar que era preciso seguir o caminho
da virtude; se Vergílio diz que ele estava escondido
numa floresta, é porque de fato a virtude se dissimula
no meio da confusão da vida e entre uma multidão de
vícios. O mito das duas portas do Sono, uma de chifre
e outra de marfim, é explicada por Sérvio da seguinte
maneira: “a porta de chifres significa os olhos, porque
eles têm a cor do chifre e são mais resistentes que as
outras partes do corpo: visto que não sentem o frio,
como diz Cícero em De natura deorum; a porta de marfim significa a boca, por causa dos dentes”.
Na época em que apareceram os comentários de
Servius, o Império, agonizante de melhores espíritos,
fazia um supremo desejo de fé para manter o que eles
acreditavam imortal: Roma, seu poder e sua cultura.
E o momento em que Ausônio, um claudiano, tenta
demonstrar pelos exemplos que a técnica vergiliana
é sempre capaz de produzir belos poemas; é quando
Rutílio Namatiamo diz em seus versos de forma clássica seu amor à cidade eterna. Vergílio, o poeta clássico por excelência e o cantor da grandeza romana, não
podia deixar de ocupar um lugar de honra nesse renascimento. Na obra de Macróbio, quase a metade de
suas Saturnales é dedicada a Vergílio. Ele insiste sobre
a universalidade de seus conhecimentos: distingue-se
nitidamente, nos diálogos macrobianos, os primeiros
traços do Vergílio onisciente da Idade Média.
A familiaridade que havia com a obra de Vergílio
favoreceu os jogos literários dos centões (poesias
constituídas por versos ou parte de versos de diversos autores), que teriam bela sorte na Idade Média.
O Cento Nuptialis de Ausônio é um dos melhores espécimens do gênero: 131 versos de Vergílio, tirados
especialmente da Eneida, são escolhidos e reunidos
de tal forma que constituem um canto nupcial. Antes
dele, um tal de Hosidius Geta compusera toda a tragédia de Medéia com a ajuda dos versos da Eneida.
Esta renovação cultural havida entre os séculos IV
e V da nossa era provocou uma série de reedições da
Eneida, conforme nos atestam os manuscritos dessa
época chegados até nós.
A veneração que o autor da Eneida experimentava
no final da Idade Antiga encontra-se também entre
os autores cristãos. Não foi sem luta e remorsos que
Santo Agostinho, bispo de Hipona, dizia: “Quem
mais digno de piedade do que um infeliz que não tinha piedade por si próprio, e que chorava a morte de
Dido, sobrevinda porque ela amava Enéias, mas que
não chorava a sua própria morte, sobrevinda pela
falta de te amar, ó Deus, luz do meu coração...”. No
mesmo instante em que ele o acusa, freme ainda à
lembrança de tudo o que fez bater seu coração de estudante: “Eu pecava, pois, quando, menino, preferia
coisas vãs a coisas mais úteis, ou, dizendo melhor,
quando eu detestava umas e amava as outras. Sim,
‘um e um fazem dois, dois e dois fazem quatro’ era
para mim um refrão odioso, e eu experimentava as
mais vivas delícias a este espetáculo de vaidade: um
cavalo de madeira, cheio de soldados armados, incendeia Tróia, e a sombra da própria Creúsa”.
São Jerônimo é ainda mais dramático. Conhecemos o
sonho que teve em Antioquia: ele comparece diante de
um juiz no tribunal que lhe diz: “Tu és Ciceroniano, e não
cristão. Lá onde está teu tesouro, lá está teu coração”. E
lá de cima um anjo lhe batia com varas. Ele fez então a
promessa de não abrir mais nenhum livro profano.
A leitura alegórica permitiu aos cristãos ler Vergílio sem nenhum remorso. Fulgêncio, no século VI,
escreveu De continentia Vergiliana (Sobre o conteúdo de Vergílio), fornecendo um modelo de tal leitura.
Escreve que o espectro de Vergílio lhe aparecera e lhe
revelara que, ao escrever a Eneida, tivera como objetivo fazer um espelho da vida humana. O início do
poema lhe forneceu a ocasião de mostrar de uma só
vez a vertiginosa e inquietante profundidade do seu
simbolismo: arma, virum, primus, essas três palavras
correspondem a ter, governar, ornar, isto é, significam a natureza, a ciência e a felicidade. A tempestade
do primeiro livro é a imagem das tempestades da vida
e o naufrágio de Enéias era o nascimento do homem,
que entra chorando nas praias da existência. Os livros
II e III correspondem à infância, ávida de narrativas
fabulosas; este período termina com a morte de Anquises, a qual simboliza que o homem se liberta da tutela paterna. Então ele se dedica aos prazeres da caça
e ao amor (Dido). Depois ele retorna, dá-se conta dos
ensinamentos de seu pai, dedica-se aos nobres exercícios (jogos fúnebres do canto V) e, com a inteligência
triunfante, queima os instrumentos do erro (incêndio
dos navios), libera-se das alucinações (Palinuro) e da
vaidade (Misenas). A descida aos infernos é a viagem
do espírito humano em busca da verdade filosófica.
É inútil dizer se tudo é símbolo no país das sombras:
o velho Caronte é o templo que nos ajuda a passar a
vida sobre as águas agitadas e tumultuosas da juventude (Aqueronte); Cérbero, o cão ladrador, são as querelas que dividem os homens a quem somente o mel
da sabedoria acalma. A etimologia – a mais fantasista
– tem naturalmente sua tarefa nesta enlouquecedora
exegese. A Itália, Ausônia, à qual Enéias aspira, é o
símbolo dos progressos da virtude: ele não atingirá
a virtude perfeita senão através de dores e provações
e é isto que significa o nome Lavínia (Lavínia, id est
laborum viam = Lavínia, isto é, vida de trabalhos);
ele terá necessidade da aliança do homem de bem,
Evandro; Turno, a quem precisa vencer, é a violência
insensata (Turnus enin graece dicitur quase, furibundus sensus); seu cocheiro Metisca é a embriaguez;
sua inspiradora Juturna (diuturna) é a má obstinação.
Tais elucubrações de Fulgêncio tiveram sucesso
durante a Idade Média. Jean de Salisbury, no século XII, em Polycraticus, completa-as, acrescentando
eu ennaios, quer dizer, “habitante”: assim, Enéias é o
símbolo da alma que habita o corpo.
Vergílio é para Dante o artista incomparável que
lhe ensinou “o belo estilo”: ele é o bom conselheiro, o amigo que protege e consola como uma mãe;
ele é, enfim, o romano que representa, aos olhos de
um cidadão da “Itália escrava”, a idéia da pátria e o
grande sonho imperial. Todo mundo conhece o sonho que deu origem à Divina Comédia. Numa manhã
de sexta-feira santa do ano de 1300, o poeta se viu
numa floresta escura, tendo perdido o caminho, e encontrando sucessivamente, ao longo de uma encosta
cheia de angústia, uma pantera, um leão, uma loba
e três fulvos símbolos que lhe barravam o acesso à
sabedoria e à virtude que ele, em vão, esforçava-se
por alcançar. Aparece-lhe então, no deserto em que
se debatia sua alma, a grande sombra do mantuano
(Vergílio), que Beatrice tinha enviado para ajudá-lo.
Vergílio assume a missão de guiá-lo, com a mais alta
autoridade e a mais terna solicitude, através do Inferno e do Purgatório. É visível o modelo do livro
VI da Eneida para a concepção da Divina Comédia,
não somente na descrição do Inferno, mas também
do Purgatório e até mesmo do Paraíso. Dante, num
imenso esforço de criação, concilia o mundo pagão,
necessário à epopéia, com o mundo cristão, um imperativo de sua época.
Surgiram várias histórias medievais envolvendo o
personagem Enéias, tanto na França como na Inglaterra. Na França, no século XII, surgiu o mais célebre
dos romances contando a história de Enéias e Dido:
Roman de la rose.
O Renascimento italiano se interessou muito por Vergílio. Petrarca foi um admirador do mantuano. Interpretava a Eneida ainda alegoricamente, fazendo dele,
segundo a tradição de Fulgêncio, uma representação
da vida humana. O italiano, no entanto, não acreditava, como os homens de seu século, numa Eneida mágica; nem concebia que a IV Égloga anunciava Cristo;
também insurgiu-se contra os que acreditavam que a
fábula dos amores de Enéias e Dido fosse uma verdade
histórica. Escreveu África, inspirado pela luta de Cipião e de Aníbal, rivalizando com o autor da Eneida.
No século XV, surgiram muitos comentadores e imitadores da Eneida. Cristóforo Landino interpretou-a
sob as idéias de Platão. Cândido Decembrio continua a Eneida, criando um XIII canto. No século XVI
multiplicaram-se as edições e os comentários acerca
da Eneida, quando se fizeram também as primeiras
traduções para as línguas românticas. Ainda mais: os
poetas da época sentiram-se tentados, à maneira de
Vergílio, de constituir, para seus países, uma epopéia.
Surge assim Orlando Furioso, de Ariosto e Jerusalém
Libertada, de Torquato Tasso, na Itália. Em Portugal,
Luís de Camões escreve o belo poema Os Lusíadas.
No século XVII, Milton, na Inglaterra, escreve O Paraíso Perdido. No século XVIII, na França, Voltaire
escreve a Henriade, que se parece com a Eneida (há
uma tempestade, uma Gabrielle abandonada como
Dido, uma descida aos Infernos, os Campos Elísios,
onde também coloca os bons e os maus da pátria. Não
podemos esquecer de que, no século XVIII, no Brasil, surgiram duas epopéias: O Uraguai, de Basílio da
Gama, e o Caramuru, de Santa Rita Durão.
Além de inspirar epopéias, a Eneida inspirou inúmeras peças de teatro durante o nascimento do teatro
clássico-renascentista: Dido se sacrificando, de Jodelle, De partu Virginis, de Sannazaro, Dido, de Hardy, Enéias travestido, de G. B. Lalli, e Vergílio tra-
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vestido, de Scarron (1633); duas comédias; em ópera:
Dido abandonada, de Metastásio, no século XVIII.
A Eneida não exerceu uma ação considerável só no
domínio da literatura universal; foi também para muitos
outros artistas uma fonte de inspiração. Alguns monumentos da antigüidade atestam sua influência nessa arte.
Exercícios de Auto-avaliação
1- Como foi transmitida a literatura clássica?
2- Qual foi a época de ouro da Literatura Latina?
3- Defina uma epopéia.
4- Como começa A Ilíada?
5- Como começa A Odisséia?
Há, no entanto, alguns quadros inspirados pela Eneida,
encontrados em Pompéia e Herculano. O maior número
de quadros inspirados pela Eneida foram produzidos a
partir do Renascimento. Encontram-se nos museus de
Paris, no Louvre, no National Gallery, de Londres, no
Palácio Máximo, em Roma, no Palácio Ducal em Mântua, em Viena, em Dresde e em Bruxelas.
UNIDADE II
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O LIRISMO
2.1 - O Surgimento da Poesia Lírica na Grécia
A poesia lírica, na antiga Grécia, ritmava a dicção dos
textos subjetivos, a partir do instrumento que a acompanhava – a lira. Esse acompanhamento musical já
deixava de ser executado na passagem da poesia grega
para a romana, mas veio definitivamente divorciado a
partir do chamado Doce Estilo Novo, movimento poético italiano nascido na Baixa Idade Média. Com o desaparecimento da melodia, determinados traços musicais foram acrescidos ao verso: ritmo, rima, aliteração
e outros aspectos que acentuam a sonoridade.
Segundo a professora Nely M. Pessanha, a poesia
dita lírica, na Grécia Antiga, “nem sempre é expressão da entrega, do abandono ao fluxo e refluxo dos
mais variados sentimentos; nem sempre é manifestação do estado anterior à distinção sujeito-objeto, de
onde resulta o ‘um no outro’, de que fala Emil Staiger.
Pode ela ‘recordar’, pode trazer de novo ao coração
as ressonâncias de um estado sincrético entre o ‘eu’
e o ‘outro’”. Isto se explica historicamente.
Se lírica se refere ao instrumento, o sintagma “poesia lírica” alcança dimensões maiores, visto que a
significação se amplia e a expressão passa a designar
todo o poema cantado, acompanhado de um instrumento musical de cordas: lyra, phórminx, kítharis,
bárbitos – ou de sopro – o aulós.
Iniciando-se no século VII a.C., passando melodiosamente pelo século VI e ainda ressoando no século
V, ressurge renovada nos séculos III e II a.C. Há, pois,
dois momentos distintos na história da lírica grega: a
lírica arcaica e a lírica alexandrina. A lírica arcaica
constitui a Idade Lírica. Sobre ela faremos considerações mais prolongadas.
A lírica alexandrina floresceu numa época de anseios de erudição, nos séculos III e II a.C. Caracteriza-se sobretudo pelo culto da forma, pela busca da
expressão rara, pelo distanciamento da linguagem coloquial. Os poetas dessa época são, por assim dizer,
os longínquos precursores do Parnasianismo: tinham
o lema da Arte pela Arte. Os alexandrinos deixaram
de cultivar muitas das modalidades da lírica arcaica
ou transformaram-nas profundamente. Cultivavam a
elegia, de conteúdo amoroso e mitológico. O idílio e
a poesia bucólica foram as criações (formas novas)
desse período.
2.2 - Momento Histórico
O surgimento e expansão da lírica na Grécia está
no bojo de grandes transformações políticas, sociais,
econômicas e culturais, decorrentes das ações de colonização e de ampliação de uma economia voltada
para o comércio e as navegações.
No século VII a.C., as cidades gregas viviam sob o
governo das oligarquias, que substituíram os governos monárquicos. O poder era, então, aristocrático,
fundado na ancestralidade, reconhecida como divina, e na riqueza, ligada à propriedade rural. Naquele
século, a expansão do mundo grego, através da emigração, se fazia indispensável, visto que a população
aumentara e o solo era pobre. Fundaram-se colônias
às margens do mar Egeu e do mar Jônio, onde havia
terras propícias à agricultura. Assim, nasceram novas
cidades e a Grécia Continental e Asiática.
O comércio e a navegação levaram os gregos a negociar (cereais, matérias-primas, metais preciosos,
lãs, vinho, azeite, produtos manufaturados, como a
cerâmica) para além do mundo grego, chegando, por
exemplo, à Síria e ao Egito.
As oligarquias, que tinham um poder absoluto, começam a sofrer pressões de uma emergente classe
média, de uma “burguesia” (oriunda do comércio)
que reivindica participação no governo. A introdução
da moeda e as transações comerciais mudou o conceito de riqueza, até então assentada na posse de grandes
quantidades de terra. Os pequenos agricultores são
obrigados a contrair dívidas na tentativa de superar os
efeitos de uma má colheita. Não conseguindo pagálas, perdem as terras e são reduzidos à condição de
simples trabalhadores e de escravos.
Tal fato impele os camponeses para o outro lado do
mar. Inicia-se, ao mesmo tempo, o movimento reivindicatório de novas leis, como: anistia das dívidas, divisão das terras (reforma agrária) e a publicação de
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leis escritas, isto é, a díke ou nómos que substitui a
thémis (casuística) (Thémis = forma de lei vigente até
então, tida como justiça de caráter divino. Consistia
no poder do rei ou do eupátrida de julgar em nome
de deus...). Surgem então os legisladores, dos quais se
destaca a figura de Sólon. As leis produzidas por eles,
no entanto, não causam grande efeito e a crise social
continua. Tal fato determinou a substituição da forma
de poder, que saiu das mãos dos eupátridas, passando
para as dos tiranos (= líderes provenientes da aristocracia que se uniam ao povo e à classe média para
protegê-los contra os nobres. A conotação pejorativa
veio mais tarde). Os tiranos trataram de realizar obras
de utilidade pública (templos, festas religiosas, jogos
etc.) conseguindo prestígio junto ao dêmos. O regime
tirânico durou só até o fim do século VI.
Características
A lírica arcaica grega não pode ser caracterizada
por aquilo que entendemos como estilo lírico hoje em
dia. Primitivamente, o lírico está coesamente ligado
ao canto e ao som dos instrumentos de corda. Há outros dois elementos fundamentais ligados à estrutura
formal: o metro e o dialeto utilizados.
O metro variava segundo a palavra e a melodia.
Há variedades métricas ligadas às epopéias homéricas que usavam o hexâmetro datílico, combinan-
do-o com o pentâmetro – caso da elegia. Outras, por
sua vez, operam com metros que imitam o ritmo da
língua falada, como os versos iâmbicos. Tendo em
vista a variedade de metros, a harmonia entre sons e
palavras, aliada à busca da musicalidade, podemos
dizer que a lírica moderna conserva traços da lírica
dos tempos dos gregos.
Outra característica da lírica arcaica é a subordinação
a um tipo de dialeto grego, o que se explica pelo fato de
ela ter surgido em diversas cidades e regiões gregas.
Voltado para o presente, o lírico grego deixa
fluir seus sentimentos e emoções. Também reflete a vida de sua pólis, exortando, recordando preceitos morais, louvando os que demonstram sua
areté (excelência de qualidades físicas, morais,
intelectuais). Cada um desses climas líricos eram
expressos através de estruturas métricas próprias e
diferenciadas. Assim é que havia a Elegia, a Ode,
o Peã, o Epinício etc.
As Formas Líricas
No período arcaico, havia basicamente quatro modalidades líricas distintas: a elegia, o iambo, a mélica
monódica e a mélica coral.
2.3 - O Lirismo em Roma
A Época de César (78-44 a.C.)
A poesia neotérica e Catulo
Poetae novi (neòteroi, à grega) é a expressão usada
por Cícero para indicar as tendências inovadoras, o
moderno gosto poético de uma corrente que se desenvolve e se afirma no primeiro século a.C., demarcando uma decisiva curva na história da literatura latina.
O processo de renovação do gosto literário promovido pelos poetae novi não é senão um aspecto do
fomento geral de helenização dos costumes, de transformação dos modos de vida conseqüentes das grandes conquistas do II séc. a.C. que abriram ao poderio
romano o cenário da área oriental do Mediterrâneo,
e posto em contato a arcaica sociedade dos camponeses-soldados com populações habituadas a formas
de vida mais refinadas. Este enorme e complexo fenômeno de civilização – que encontra em Roma a tenaz hostilidade dos cultores da tradição, do “partido
catoniano” – manifesta sua influência, como é óbvio,
também no campo especificamente literário, no qual
se assiste a um lento mas progressivo enfraquecimento dos valores e das formas da tradição (de gêneros
literários política e moralmente “empenhados”, como
a épica e, sobretudo, o teatro), e ao emergir de exigências novas, ditadas pelo refinamento do gosto e
da sensibilidade. O que esses poetas têm de verdadeiramente novo, no que diz respeito às escolhas dos
antecessores, é não tanto a predileção pela literatura
grega mais recente (também os autores arcaicos trabalharam com técnica já alexandrina), mas, sim, a
decisiva imitação dos aspectos eruditos e preciosos
que caracterizavam exatamente aquela literatura. Os
neóteroi tomam dos poetas helenísticos o gosto pela
contaminação entre os gêneros, o interesse pela experimentação métrica, a pesquisa de um léxico e
de um estilo sofisticados, enfim, o caráter decisivamente descompromissado da sua poesia.
Não obstante os elementos de continuidade entre
a poesia nugatória (poesia de versos ligeiros, de
entretenimento, futilidades, vaidades, erotismo) e a
propriamente neotérica, bem maior é comumente a
sabedoria que esta última possui e, mais nitidamente, o descarte que ela introduz no que diz respeito
à tradição literária latina. A elegância freqüentemente maneirada, o artificioso experimentalismo
praticado sobre os modelos gregos pelos literatos
do círculo de Lutácio Cátulo, deixam lugar a um
tipo de poesia que não concede senão um espaço
limitado ao otium e aos seus prazeres (recortados
às margens do sistema, como concessão ocasional
de uma conduta de vida centrada ainda nos deveres
do civis), mas os coloca no centro da existência, tornando-os os valores absolutos, as razões exclusivas,
como acontece em Catulo. A poesia neotérica assinala o auge, sob o plano literário, de uma tendência
sensível na literatura latina: de um lado, o crescente
desinteresse pela vida ativa gasta a serviço do estado, pelos valores venerados pela tradição, pelo
papel, em suma, do civis romano; de outro lado, o
contemporâneo afirmar-se do gosto pelo otium, pelo
tempo livre, dedicado às letras e aos prazeres, à satisfação das necessidades individuais e privadas.
A revolução do gosto literário é acompanhada por
uma geral revolta do caráter ético que a substancia e
mostra a crise dos valores do mos maiorum. A refutação da vida empenhada ao serviço da comunidade,
do modelo do cidadão-soldado, se reflete no difundirse do epicurismo, uma filosofia que prega a renúncia
aos negotia político-militares em favor de uma vida
à parte e tranqüila, em íntima comunhão dos amigos.
A convergência entre os princípios do epicurismo e
as tendências dos poetas neotéricos é evidente, mas
nota-se também uma diferença importante: para os
epicuristas, cuja finalidade é a ataraxia, o prazer sem
perturbações, o éros é uma doença insidiosa, da qual
devemos fugir pois é fonte de angústia e de dor (basta
pensar no livro De rerum natura, de Lucrécio), enquanto que para os neòteroi – sobretudo para Catulo
– o amor é o sentimento central da vida, aquele que
constitui o fulcro e a razão essencial.
Isso torna também, por conseguinte, o tema privilegiado de sua poesia e concorre para dar forma
a um novo estilo de vida, inspirado justamente no
culto do éros e das paixões e da dedicação à poesia
que os alimenta.
O trabalho da forma, o escrupuloso cuidado pela
composição, o paciente lavor de lima são, enfim, o
tratamento distintivo primário da nova poética vinda
de Calímaco. Como Calímaco havia asperamente polemizado contra os seguidores do épos homérico, ridicularizando o desmazelo e o proselitismo do poema
longo, e havia propugnado um novo estilo poético,
inspirado pela brevitas e pela ars (o meticuloso trabalho do cinzel), assim Catulo e os neòteroi ridicularizam os estanques imitadores de Ênio, os pomposos
cultores da épica tradicional (Volúsio, Sufeno, Hortênsio), celebrativa das glórias nacionais, já estranhas
ao gosto atual, quer pelo cuidado formal quer pelos
conteúdos antiquados. Serão, em vez, outros os gêneros privilegiados pela poética calimácea e apropriados para o acurado lavor do cinzel, ao labor limae: os
poemas breves, como o epigrama, ou ainda como o
epílio, o poema mitológico em miniatura, possibilitam ao poeta a ostentação da própria preciosa erudição (trata-se de antigos mitos de assunto erótico,
próximos, talvez, da sensibilidade moderna), e de pôr
em prática refinadas estratégias de composição (narrativas de encaixe, narrações tramadas juntas as quais
se refletem mutuamente).
2.4 - Virgílio e as Bucólicas
As Bucólicas ou Églogas são uma coletânea de
poemas inspirados nos idílios do alexandrino Teócrito de Siracusa (III a.C.). Codificam o gênero
bucólico. Há églogas díspares, i. é, dialógicas, e
as églogas pares, narração com uma só voz. São
apresentados, sobre o fundo a campanha padana
personagens pastoris que cantam suas experiências
e seus sentimentos.
A égloga I contém um diálogo entre dois pastores, dos quais um, Melibeu, é obrigado a deixar
seus campos confiscados, ao passo que o segundo,
Títiro, pode permanecer graças à ajuda de um poderoso que reside em Roma. Na II égloga, Córidão
lamenta seu amor não correspondido pelo jovem
Aléxis. A III consiste numa disputa poética entre
os pastores Dâmeta e Menalca. A IV celebra a renovação do mundo ligado ao nascimento de um
menino que abrirá uma nova época de paz. A V
evoca, através do canto de dois pastores, a morte e a divinação de Dáfnis. A VI contém o canto
de Sileno, inspirado em Lucrécio, que descreve a
criação do universo. A VII é uma disputa de canto entre dois pastores árcades. A VIII apresenta
o lamento de um pastor pela infidelidade da mulher amada e a descrição dos encantamentos com
que a moça procura reconquistar seu amado. A IX
tem por protagonista dois pastores, dos quais o
primeiro (Mérides) vê seus campos confiscados e
o segundo (Licidas) recorda que Menalca tentou
inutilmente conservar a propriedade com a poesia.
A X canta o amor de Galo pela bela Licóride.
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2.5 - Ovídio
Nasceu em Sulmona (hoje Abruzzo) em 43 a.C.
Freqüentou as melhores escolas de retórica de Roma,
tendo em vista a carreira política e forense. Após uma
visita à Grécia entrou para o círculo de Messala, onde
se relacionou com os maiores poetas romanos. Devido à sua poesia foi declarado oficialmente imoral
e punido por Augusto com o exílio no Mar Negro,
o Ponto, em Tomes, hoje Costança. Questiona-se a
verdadeira causa do exílio; segundo alguns, a causa
verdadeira seria o seu envolvimento num escândalo
de adultério com a sobrinha de Augusto. Morreu em
Tomes em 17 ou 18 d. C.
Sua primeira obra foi Amores (49 elegias, 2460 versos), em dísticos elegíacos. Heroides, Ars amatoria
(três livros, 2300 v.), Remedia amoris (814 v.), Medicamina faciei feminae (=Os cosméticos das mulheres), Metamorphóseon libri (15 livros, 12.000 v.),
Fasti (seis livros, 5000 v.), Tristia (cinco livros, 3500
v.). Escreveu ainda quatro livros de Epistulae ex Ponto, em dísticos elegíacos.
As Heroides
Se o éros é o tema da poesia do Ovídio juvenil, a outra grande fonte da sua poesia é o mito. As Heroides,
bem como as Metamorfoses, alimenta-se desse tema.
Trata-se de uma coleção de cartas poéticas. A primeira
série, de 1-15, é escrita por mulheres famosas, heroínas do mito grego (também a Dido, de Vergílio, e sobretudo a personagem histórica Safo) aos seus amantes ou maridos distantes (Penélope a Ulisses, Fílides a
Demofonte, Briseida a Aquiles, Fedra a Hipólito, Eno
a Páris, Dido a Enéias, Hipsípile a Jasão, Érmião a
Orestes, Djanira a Hércules, Ariana a Teseu, Medéia a
Jasão, Safo a Fáon etc.). A segunda série, de 16 a 21,
é constituída pelas cartas de três enamorados acompanhadas pelas respostas das respectivas mulheres: Páris
e Helena, Ero e Leandro, Acôncio e Cídipe.
A originalidade dessa obra, com a qual cria uma
nova espécie literária, Ovídio se diz orgulhoso. Com
efeito, não temos notícias de obras semelhantes antes
dele, ou seja, de coletânea de cartas poéticas de assunto amoroso. Se personagens e situações pertencem
ao grande patrimônio do mito, muitos elementos são
mudados pela tradição elegíaca latina, onde são freqüentes os motivos como o sofrimento pela distância
da pessoa amada, recriminações, lamentos, súplicas,
suspeitas de infidelidade, acusações de traições etc.
Um exemplo disso é a epístola de Fedra a Hipólito,
cuja heroína de Eurípedes perde os seus traços de nobre dignidade trágica para assemelhar-se a uma dama
despreocupada da sociedade galante, empenhada em
seduzir o enteado com os afagos de um fácil furti-
vus amor e desenvolta assertiva de uma nova moral
sexual, zombeteiramente intolerante com as antigas
tradições.
Recodificando em termos elegíacos histórias de heroínas da épica e da tragédia, não nascidas “dentro” e
“para” o código elegíaco, Ovídio introduz o leitor num
novo universo literário, não é antigo, nem moderno,
não é épico, nem trágico ou mítico, nem é elegíaco.
As Heroides são propriamente poesias de lamento,
são a expressão da condição infeliz da mulher, deixada só pelo esposo amante distante. Ovídio põe nas
palavras de Safo uma ligação entre o verso elegíaco e
a condição da heroína infelizmente enamorada:
flendus meus est: elegi quoque flebile carmen
devo chorar sobre o meu amor; e a elegia é um canto
lacrimoso.
Os Amores
A falta de uma figura unificante
Ovídio não tinha ainda vinte anos quando publicou
Amores, uma coletânea de elegias de assunto amoroso. Mostra influências de Tibulo e principalmente
Propércio. Também Ovídio é uma voz em primeira
pessoa a cantar temas tradicionais da elegia: poesia
de ocasião (como o epicédio de Tibulo), ou de pura
estampa alexandrina (como a elegia pela morte do
papagaio da amada), sobretudo aventuras de amor,
encontros fugazes, serenatas noturnas, brigas com a
amada, cenas de ciúme, protestos contra a sua venalidade ou seus caprichos e as traições etc.
Ovídio e a tradição elegíaca
Antes de tudo – e é talvez a novidade mais saliente
– falta uma figura feminina em torno da qual se reúnam as várias experiências amorosas que constitua o
centro unificante da obra e junto da vida do poeta. Os
poetas de amor precedentes, Catulo e Propércio, construíram a própria atividade poética em torno de uma
única mulher, de um só grande amor que constitui o
sentido daquela atividade. Com Ovídio não é assim:
Corina, a mulher evocada aqui e acolá com pseudônimo grego, é uma figura tênue, de presença intermitente e limitada, que se suspeita não tivesse nem sequer
uma existência real. Não somente o poeta declara mais
vezes de não saber contentar-se com um único amor,
de preferir duas mulheres (2,10) ou definitivamente de
sofrer o fascínio de qualquer mulher bonita.
Como a figura da mulher inspiradora, que não tem os
contornos nítidos de uma protagonista e tende a parecer
um resíduo, uma função convencional do gênero elegí-
aco, também o páthos que tinha caracterizado as vozes
da grande poesia de amor latina com Ovídio se dilui e
banaliza. O drama de Catulo, de Propércio, a sua intensa
aventura existencial, torna-se em Ovídio pouco mais que
um lusus (= passatempo), e a experiência do éros é analisada pelo poeta com um filtro de ironia e de destaque
intelectual. Não menos significativa é a escassa presença
nos Amores de um motivo centralíssimo na poesia elegíaca precedente, ou seja, o servitium amoris, a profissão
de total dedicação do amante à amada, aos seus desejos
e aos seus caprichos. Em Ovídio, dizia-se, este motivo
tem uma função bastante limitada, ao passo que é notável
que, numa autêntica elegia, sua posição de realce seja dedicada à profissão de servitium nos confrontos amorosos.
Não só: ganha peso, com respeito à poesia precedente,
a) a consciência literária do poeta, que se manifesta na
insistência sobre a poesia como instrumento de imortalidade, como nos conclusivos versos (1, 15):
por isso também quando o rogo fúnebre tiver consumido
meu corpo,
continuarei a existir e grande parte de mim sobreviverá.
b) como autônoma criação do poeta, desvinculada da obrigação de retratar o real, como nos versos
(3, 12, 41...):
A fértil fantasia dos poetas se desprende sem limites,
e não vincula as próprias palavras à fidelidade à história.
A elegia ovidiana não mais se apresenta como subordinada à vida, seu fiel reflexo, mas reivindica o seu
primado, a sua centralidade na existência do poeta.
As Metamorfoses
Se Vergílio, na Eneida, seguiu a tradição épica,
Ovídio abordou o épos de outra maneira: não optou pelo poema de grandes dimensões, mas seguiu
o modelo épico inspirado em Hesíodo (Teogonia),
aquele de um “poema coletivo”, que reagrupa uma
série de histórias independentes que têm em comum um mesmo tema. Segue, pois, um modelo
inspirado entre os alexandrinos, principalmente
em Calímaco.
O poema narra, em forma épica, em 15 livros,
a criação do universo a partir do caos e sobre a
criação do homem. Depois vem o dilúvio universal e a regeneração do gênero humano graças a
Deucalião e Pirra. A seguir vem o tempo do mito,
dos deuses e semideuses, das suas paixões e caprichos: de Apolo e Dafne (a transformação desta em
loureiro), de Júpiter e Io, de Faetonte, de Narciso
e Eco etc. Passa também pela história de Príamo,
pela de Perseu que salva Andrômaca do monstro
marinho, pela do rapto de Prosérpina, pela de Minerva e Aracne, de Medéia, de Ícaro e Dédalo, de
Peleu e Tétis etc.
O amor nas Metamorfoses constitui o tema unificante da obra. Não se trata mais de um amor ambientado na vida quotidiana de Roma, da sociedade mundana, mas no universo do mito, no mundo
dos deuses e dos semideuses, como já ocorrera
antes nas Heroides.
Exercícios de Auto-avaliação
1- �����������������������������������
Qual foi a primeira obra de Ovídio?
2- Aponte diferenças entre Vergílio e Ovidio existentes nas Metamorfoses.
3- De que trata Os Amores, de Ovídio?
4- Aponte algumas características da lírica.
5- O que é o epicurismo?
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UNIDADE III
DRAMÁTICO (TEATRO - TRAGÉDIA)
3.1 - A Palavra Tragédia
Este primeiro conjunto de explicações sobre a origem
da tragédia se funde em parte sobre o substantivo “tragédia” (tragôidia) cujo sentido não é claro. A tragôidia
designa a atividade do tragôidios, que é um membro
de um coro trágico. É um termo composto de dois elementos: tragos = bode e ôidia, ôidios (ligado a aeidô,
cantar). Pode designar, então: “canto do bode”, “canto
por um bode” ou “canto em honra de um bode”.
Todavia, a presença desse bode intriga. Refere-se
a um bode representando a recompensa oferecida
ao melhor dramaturgo, como o deixa entrever uma
inscrição em mármore, em Páros? Refere-se simplesmente a um disfarce dos atores em bode, que se relacionavam aos sátiros associados a Dioniso, em honra
do qual eram representados esses espetáculos? Ou o
bode era uma vítima oferecida em sacrifício durante
uma cerimônia ritual de purificação à qual eram destinadas as primeiras formas de tragédia? Esta última
interpretação, que não é muito mais convincente do
que as anteriores, oferece o mérito de relacionar o alcance religioso das manifestações trágicas.
3.2 - Teatro e Cerimônia Religiosa
A tragédia aparece como um elemento de uma cerimônia religiosa e não somente na sua origem. Ainda
na época clássica (séculos V - IV), o aspecto religioso deste espetáculo teatral permanece sensível.
As representações têm lugar no quadro do culto de
Dioniso, durante as festas desse deus. Elas se desenrolam no teatro de Dioniso, o qual comporta uma
cadeira para o sacerdote e o altar de Dioniso fica
no centro da orquestra. Ainda que nada nas obras
possam lembrar o culto desse deus do vinho e da
fecundidade, a ligação com seu culto permanece
forte e é, pois, verossímil que a tragédia resulta do
alargamento de um rito nas cerimônias em honra de
Dioniso. Aristóteles (Poética) afirma que a tragédia
saiu de improvisações a partir do ditirambo, que é
uma obra coral representada em honra de Dioniso.
Aristóteles, todavia, não vê uma filiação continuada:
a tragédia não se encontra senão em potencial no ditirambo e deve ter sido representada por poetas para
ser verdadeiramente tragédia.
3.3 - Teatro e Tragédia em Roma
A Originalidade do Teatro Latino
O teatro latino existe por ele mesmo, mas tal existência ainda hoje é ignorada ou mal conhecida. Conhecese o teatro grego porque, por longo tempo, nossa cultura se reconhece nele. Mas o teatro latino não permite
a mesma ilusão. Ele nos é bastante estranho, bastante
diferente da marmórea imagem que se faz geralmente
da Antigüidade clássica. Ele é não só ignorado, mas
também visto como uma má imitação do teatro grego.
O teatro latino: um evento
A primeira característica do teatro latino é a de não
ser literário. Em Roma, os textos dramáticos eram
escritos unicamente para serem representados, e,
mais freqüentemente, uma só vez. A meta do empreendedor do espetáculo era de suscitar um evento, de
marcar a memória do público. Para isto, ele montava
um espetáculo total onde a música e o canto, a dança,
a maquinaria e os atores-vedetes separavam para si
a parte do leão. O texto fornece somente o pretexto
para a representação; raramente ele era conservado.
O essencial em Roma era a festa dentro da qual se
inseria o espetáculo teatral: os jogos. É esta festa que
se insere na memória coletiva, não o texto.
Hoje, nós estamos acostumados a dar prioridade ao
texto. Ele é conservado e de novo interpretado em
outra ocasião. Para nós, ele constitui um monumento
da memória. Estamos, pois, acostumados ao teatromonumento, ao passo que os romanos preferiam o
teatro-acontecimento.
O calendário teatral
Os romanos iam muito freqüentemente ao teatro,
mas somente na primavera e no verão. O calendário
teatral era o dos jogos. O número de dias consagrados
aos jogos não parou de aumentar durante toda a história de Roma. No início da República havia dois dias de
jogos, mas já no ano 77 a.C. havia 55 dias para o teatro
dentro de um calendário que possuía 175 dias de jogos;
durante o Império o número de dias de teatro aumentou
para 101, sem contar os dias dos jogos públicos e oficiais. Além desses, havia os jogos privados, oferecidos
por famílias nobres por ocasião de um triunfo ou de um
funeral. Em cada festa são apresentadas uma ou várias
peças teatrais novas, cada qual uma só vez. As reapresentações eram raras e assistemáticas.
O costume romano era bem diferente do nosso e
mesmo dos costumes gregos. Na Grécia, somente alguns dias por ano eram consagrados ao teatro. Em
Roma, a estação dos jogos coincidia necessariamente
com a estação militar: deste modo o teatro começava
em março e parava em outubro, com raras exceções
em novembro, por ocasião dos jogos Plebeus.
Um teatro tocado pela vida política
Em Atenas, o teatro era uma atividade cívica. Em
Roma, o espetáculo teatral é alheio à vida política.
Os atores eram grandemente tomados de infâmia;
qualquer alusão, sobre o palco, a um homem político
era proibida; os poetas dramáticos escreviam apenas
para ganhar suas vidas, normalmente voltados para
as camadas inferiores da população, descartadas da
vida política. O público dos teatros comparecia para
se divertir e não para refletir sobre problemas do Estado ou sobre as graves questões morais. A plebe que
comparecia sobre os degraus, barulhenta e sedenta por
diversões, não constituía uma assembléia de cidadãos.
Todas as pessoas iam ao teatro, inclusive crianças, mulheres e escravos. As apresentações não estavam, como
em Atenas, submetidas ao julgamento de um júri civil.
O poeta recebia apenas um salário, jamais a glória.
Com efeito, o espetáculo não se endereça ao julgamento de público, mas à sua sensibilidade musical. Para os
romanos, a inteligência, os sentidos político e moral são
apanágios dos homens adultos pertencentes às camadas
superiores da sociedade: senadores, cavaleiros, ricos
plebeus. Se o povo não emite julgamentos, no entanto
o sentimento musical é um fator comum a todos. O público não parece uma assembléia política: fica sentado,
pacífico, disponível ao prazer dos sentidos.
A música, não a mimese
As teorias gregas sobre o teatro, especialmente as de
Aristóteles, não se aplicam inteiramente ao teatro latino, pois elas se fundam no fator mimese (imitação);
será melhor entendê-la como apresentação. A concepção de Aristóteles era a seguinte: o poeta dramático,
como o pintor e o escultor ou ainda os outros poetas, é
um imitador por duas razões: ele imita a realidade que
lhe fornece os assuntos e imita as obras-primas dos
seus antecessores, tirando-lhes a técnica. Segundo tal
teoria, uma tragédia ou uma comédia é a representação dos sentimentos humanos, transformados pela
arte. O teatro é um espelho mais ou menos deformante
da sociedade humana. Toda a obra artística seria uma
imagem da realidade, não existindo senão em razão
do objeto que ela representa. Este teatro de representação não se aplica inteiramente ao teatro latino, pois
este não representa, mas apresenta algo sobre o palco
para o prazer e o esquecimento dos espectadores.
O que regula os gestos das personagens e dita suas
palavras não é uma verdade, mas a música. Eles dançam e cantam; seus cantos, sentido e som confundidos, são organizados pelo ritmo e pelo prazer de brincar com as palavras.
Um espetáculo lúdico
O teatro em Roma, sob todos esses aspectos, para
nós insólitos, é um teatro diferente porque ele se inscreve no seio de uma prática ritual própria da civilização romana: os jogos (ludi); é por isso que os romanos não falavam em teatro, mas em jogos cênicos
(ludi scaenici).
A característica fundamental do teatro romano era a
de ser um espetáculo lúdico. Por isso ele faz parte dos
jogos, inseridos no calendário dos lazeres dos romanos. É, pois, estudando os jogos romanos que podemos reconstituir o teatro latino, quer como espetáculo
cênico, quer como texto escrito. Ele deve ser visto
dentro desse contexto da civilização romana.
3.4 - Roma, a Civilização do Espetáculo
Havia em Roma quatro tipos de espetáculos cívicos:
1º) O espetáculo do poder:
O poder político era encarnado pelos magistrados
(censores, cônsules, pretores e edis). Formava o governo: seus memboros tinham função de generais, de
presidente da república, de prefeito da cidade ou de
ministros. Nas províncias havia os governadores. Seu
poder se dava através do aparato que os cercava. Sua
roupa, que era aquela dos antigos reis, a toga bordada
de vermelho (a toga pretexta), a cadeira de marfim e
os 12 litores que os acompanham são a materialização
desse poder. Suscitam nos espectadores obediência e
respeito espontâneos.
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O triunfo é por excelência a “mise en scène” do poder dos magistrados. O cônsul vitorioso sentia-se autorizado, de maneira especial, a atravessar a cidade à
frente de suas tropas, exibindo os espólios tomados e
trazendo os reis vencidos amarrados na ponta de uma
corrente. O triunfador, com um manto de púrpura e
as bochechas pintadas de vermelho, como as estátuas dos deuses, conduzia o carro de Júpiter e subia ao
capitólio ao som das trombetas. Toda Roma fazia o
percurso em ovações.
O Senado, a alta assembléia, formada por antigos
magistrados, é também um espetáculo. Esses homens
graves em toga pretexta, numa pose digna e compassada, demonstravam uma autoridade tão evidente que
um embaixador estrangeiro dizia ter visto neles “uma
assembléia de reis”.
O aparato do poder em Roma é fundamental; ele é a
verdade e manifesta uma legitimidade sagrada.
2º) Os espetáculos da família:
As grandes famílias romanas usavam o mesmo tipo
de espetáculo para assegurar prestígio e afirmar sua
nobreza. O espetáculo por excelência do poderio aristocrático eram os funerais de um magistrado. O morto
era levado em procissão através da cidade, depois de
uma parada no Fórum. Era precedido por um longo
cortejo de ancestrais já falecidos sobre um carro de
honra, representados por máscaras fúnebres, moldadas em cera, cujos atores ficavam vestidos com roupas
de magistrados. Após esse desfile ao som das flautas,
os atores que vestiam as máscaras se instalavam no
Fórum, onde faziam seu próprio elogio. Depois sepultavam o morto fora da cidade. O espetáculo desses
fantasmas com todo o aparato de sua glória passada
e a lembrança de todos seus altos feitos políticos e
militares serviam para gravar na mente de todos os
romanos a lembrança de seus homens ilustres e lhes
davam o gosto da virtude e da glória. Era o espetáculo da memória, a celebração das virtudes cívicas que
levam às mais altas funções.
As famílias mais ricas e poderosas incluíam, nas solenidades, combates de gladiadores, que ocorriam no
Fórum. Denominavam-se “deveres” (munera). Não
eram simulações e havia derramamento de sangue.
Tais combatentes eram admirados por sua coragem;
eram uma lição de virtude.
As famílias nobres exibiam-se em lugares públicos.
Um homem público não se deslocava na cidade se
não estivesse acompanhado de um grupo de “clientes”. Quanto mais numeroso era o grupo, mais importante era o homem.
3º) Os espetáculos da religião:
O ato essencial da religião romana era o sacrifício: a
exposição da morte de um animal doméstico sobre um
altar iluminado e a posterior repartição de suas carnes
entre os principais sacrificadores. Sacrifício doméstico
ou sacrifício público era sempre um ato coletivo que
compreendia atores e espectadores. Ambos faziam
parte do sacrifício. Ou se obtinha uma parte do animal
e se a comia, ou se assistia à cerimônia. Olhar já era
participar, e não apenas uma prova de passividade.
4º) Os espetáculos da palavra
A vida política em Roma era aquela da república: a
força que agita era o exercício da palavra. Os magistrados eram eleitos, as leis eram votadas. Governar
era convencer. Daí se entende a força da eloqüência.
No senado, diante do povo, os políticos falavam.
Uma parte do auditório votaria, a outra não. A prática
do voto não era igualitária, mas os espectadores eram
sempre ativos.
Outro espetáculo da palavra era proporcionado pelos advogados no Fórum. Era por lá que todo o político iniciava, dava-se a conhecer, defendendo seus
amigos e atacando seus inimigos. Apresentavam as
provas diante de um público, que todas as manhãs se
apresentava ante o tribunal. Sua presença era tão importante que Cícero dizia que não havia causa para
defender se não houvesse público.
Na civilização romana, a vida pública era constituída em grande parte de espetáculos. Seus atores eram
os da vida política. Os espectadores eram os cidadãos,
cuja presença indicava uma legitimação dos atos da
vida pública. Roma afirmava a legitimidade dos poderes do espetáculo, a verdade das aparências às quais
não se opõe nenhuma interioridade.
3.5 - Ator: Glória e Infâmia
O ator romano era chamado de ludius. Era um dançarino e um mímico. O cantor e o tocador de flauta
eram colaboradores, feitos de glória e de infâmia.
- O ator nos espetáculos:
O espetáculo latino dá ao ator o primeiro lugar nos
espetáculos cênicos. É ele que tem a tarefa mais importante, não o poeta ou o compositor da música. Era
ele a quem o público aclamava, a quem os simpatizantes acompanhavam em grupo até sua casa. Ele
desencadeava paixões, inclusive paixões amorosas,
entre os homens da nobreza. O grande ator Roscius
foi sucessivamente o favorito de Lutácio Catulo e de
Sila, dois dos mais poderosos e dos mais nobres personagens da sua época. Tal glória decorria da sedução
proporcionada pelas suas virtudes físicas, pela sua
dança e seus cantos. Eles eram o prazer dos jogos.
- O ator cômico – um corpo:
O ator cômico era o preferido do público porque ele
executava a dança. Uma comédia era quase a metade
composta de cenas de balé – cantica – nas quais ele
dançava seu papel; o texto era cantado com acompanhamento de flauta e de um tamborete de madeira
– scabellum. Cada ator cômico se especializava num
papel, masculino ou feminino, treinando quotidianamente. Devia ser esbelto e ter muito fôlego. Os papéis
de escravos exigiam agilidade e talento de piadista; os
de cortesã, graça e leveza feminina.
Não era suficiente ser bom dançarino e acrobata; nas
passagens faladas, era preciso encher com sua voz os
imensos teatros de Roma. O ator cômico era o modelo do ator de mimo, da atelana e da pantomima, para
quem o corpo era mais importante que a voz. Eles
eram também capazes de representar nas tragédias.
- O ator trágico – uma voz:
O ator trágico devia exercitar sobretudo a voz.
Na tragédia, as partes declamadas tinham um lugar de destaque. Sem acompanhamento musical,
o ator devia impor-se a públicos de 10 a 20 mil
pessoas. Sua dicção era sofisticada, bastante próxima
do recitativo, quase no limite do canto. Vestido com
roupa de rei, na cabeça um diadema de ouro, calçando
uma espécie de coturno que o aumentava de tamanho,
ele devia distinguir-se em papéis difíceis ou de terror,
deva representar Medéia infanticida, Fedra amorosa,
Agamêmnon embevecido pela vitória sobre Tróia.
A representação do ator trágico devia supor que a voz
era uma extensão do seu corpo, pois a expressão corporal
na tragédia era essencial: ela exprimia, segundo um código gestual determinado, sentimentos simples como dor,
cólera, desespero, jubilação, furor, que eram, de princípio,
esquemas coreográficos. Nenhum gesto era improvisado.
3.6 - A Máscara
Não se sabe até que época as máscaras foram usadas
no teatro romano. Eram mais comuns na comédia.
Devem ter sido importantes, pois até hoje elas constituem o símbolo do teatro, enfeitando monumentos
consagrados aos espetáculos. Eram maquilagens que
tornavam as fisionomias irreais e despersonalizadas.
Faziam parte de um estatuto cultural. Usavam máscaras os atores não tocados de infâmia, que representavam nas atelanas. Teria, segundo alguns, desaparecido durante o império.
3.7 - Breve História do Teatro Latino
O Teatro Romano Tem uma História?
Os jogos cênicos latinos começam com a importação
das pantomimas etruscas, no IV século a.C. e se concluem com as pantomimas de assuntos mitológicos que
sobrevivem, no Império do Ocidente, até o século V p.
C. São mais de mil anos de teatro. É fácil, pois, notar
alterações no teatro, em conseqüência da evolução cultural. O movimento relativo do teatro e da civilização
constitui a história do teatro romano. Basicamente ele
permanece o mesmo, mas se adapta às mutações do
mundo no qual está inserido, ou seja, numa Roma que
permanece uma civilização de espetáculos.
O teatro estava, de início, inserido no calendário dos
jogos. Os jogos constituíam um espaço temporário, à
parte da vida cívica, mas tinham características bem
romanas. Podiam acolher espetáculos estrangeiros,
mas sem destruir sua natureza exótica. Deste modo
os jogos serviam em Roma para receber espetáculos
estrangeiros que os romanos acolhiam por motivos
religiosos: oscos, etruscos, gregos. A cada nova importação, os jogos assimilavam o novo espetáculo,
transformando-o em espetáculo lúdico, em balé, introduzindo-o nos mimos e na pantomima.
Os Jogos Mudam de Estatuto com o Império
Na República, os jogos definiam um espaço fora das
normas cívicas. O povo dos jogos se opõe ao povo das
armadas e ao povo das assembléias. Com o Império, o
público romano perde sua dúplice definição política e
militar. A oposição cívica X lúdica se apaga. O teatro,
com o circo, torna-se o único pretexto para uma coletividade que quer se reunir e que não se define mais
como povo de espectadores. A licença lúdica torna-se
um modo de relação entre o povo, constituído pelo público, e o imperador, que é sempre o editor dos jogos.
O teatro em si não se modificou; permaneceu sempre
um lugar de festa e de lazer desenfreado, de exotismo.
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38
Há três datas marcantes na história do teatro latino:
- 364 a.C. : a criação dos jogos cênicos marca um
período de teatro sem texto;
- 240 a.C.: a criação dos jogos gregos marca um período de teatro com texto;
- 27 a.C.: criação da pantomima romana, o desaparecimento da comédia. A tragédia deu origem à pantomima (de novo um teatro sem texto).
Os Primeiros Jogos Cênicos
Em 364 a.C., uma peste se abateu sobre Roma. Para
os antigos, a peste não era epidemia, mas um castigo
divino que podia ser execrado através de ritos expiatórios. Depois de esgotados todos os ritos domésticos, os romanos apelaram para um ritual estrangeiro,
mandando vir da Etrúria atores para que eles fizessem
um espetáculo cênico. O ritual passou a ser celebrado
anualmente e integrado aos Grandes Jogos, no meio
da procissão e dos espetáculos de circo. Temos aí a
matriz do teatro romano, que existirá no futuro como:
- um teatro-espetáculo lúdico;
- um conteúdo de representações adaptado de espetáculos estrangeiros;
- a origem da profissão do ator, chamado de histrio
(do etrusco Hister ou Ister) para diferenciá-lo dos ludiones da procissão, pois era o histrio dotado de infâmia e excluído da vida cívica (os histriones reuniamse num colegiado particular);
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um teatro espetáculo de dança.
No Tempo dos Jogos Gregos
O período de 240 a 27 a.C. é o do teatro com texto.
Cultivam-se todas as espécies dramáticas conhecidas.
Duas tendências marcam esses dois séculos: a primeira é a multiplicação dos dias de jogos, graças à importação de divindades estrangeiras (como os jogos
da Grande Mãe, vinda do oriente), à celebração das
vitórias obtidas e aos funerais de ilustres cidadãos; a
segunda é a criação do teatro de texto, por imitação
dos gregos. Na Grécia, a tragédia e a comédia eram
consideradas como obras literárias que proporcionavam aos poetas muitas honras. O mesmo não ocorria
em Roma, de imediato. Aos poucos, a condição do
dramaturgo ganhou ímpeto. De início, eram chamados de scribae, depois, de poetae. Por fim a tragédia é
considerada uma espécie literária.
O tempo dos scribae vai de Lívio Andronico, passando por Névio, Plauto, Cecílio, até Ênio. O tempo
dos poetae começa com Ênio, passa por Pacúvio, Lúcio Lanúvio até Terêncio. Depois vem o tempo dos
oradores. Começa com Ácio e vai até o poeta Varius.
No Tempo dos Jogos Imperiais: a Confusão
dos Espaços
No final da República se instalam os teatros permanentes. Os jogos não constituem mais um parênteses na vida
dos cidadãos que se consagram à política e à guerra. Os
teatros ficavam no campo de Marte e o campo de Marte é integrado à cidade. Os jogos passaram a funcionar
como um intercâmbio entre o povo e o editor dos jogos.
Adquiriram um valor político. O campo de Marte, que
era o lugar das eleições e da Liberdade, torna-se o lugar
dos teatros e da licença. Mas o cidadão romano, definido como um homo spectator, percebe que o espetáculo
mudou. O ludismo eliminou o civismo e o civismo, inversamente, entra no teatro. Depois de Augusto, os imperadores introduziram uma série de regulamentações a
fim de dar um pouco de seriedade à festa e de tornar o
público uma sociedade hierarquizada.
O teatro passou a não se dissociar da vida cívica.
Cada vez menos se distinguiam os espetáculos lúdicos
dos espetáculos cívicos. O mundo imaginário do palco
se confundiu com a nova sociedade imperial. Os impossíveis heróis mitológicos da tragédia encarnaramse nos imperadores. Eles eram os novos Héracles e
Apolos. Os aristocratas não se preocupavam com a infâmia e subiram ao palco para se tornarem “heróis”.
O Teatro de Texto Deixa o Palco
Com o início do Império, a tensão entre o teatro monumento e o teatro acontecimento abriu uma ruptura.
Sob o reinado de Augusto praticaram-se as leituras
públicas – recitatio. Nas casas de cidadãos privados
organizaram-se leituras de textos de poemas dramáticos para os amigos. O texto era só declamado, como
um discurso. A meta não era suscitar um prazer teatral, mas propor ao julgamento dos ouvintes uma obra
que pretendia ser um monumento da cultura latina.
O autor dessas obras, geralmente o chefe da casa ou
um seu protegido, não procura o sucesso público dos
teatros. Segundo Horácio, ele escreve uma obra séria,
geralmente uma tragédia, e se deixa prender nas armadilhas da mimese. Ele dá um conteúdo alegórico
à peça, e o teatro-texto se torna um instrumento de
propaganda entre os espectadores. A poesia dramática
se torna um exercício puramente de retórica, como os
que praticam os declamadores.
A Pantomima
Paralelamente uma outra espécie de espetáculo é
criada: a pantomima. Dois libertos de Augusto, Pylades e Bathyles, fabricam, a partir da tragédia, peças
de teatro em que tudo é cantado e dançado. Um único
ator apresentava todos os papéis. Um cantor, acom-
panhado pelo coro, canta o texto, um livrinho escrito
por um poeta. O mais importante, no entanto, era a
dança. Assemelhava-se, de certa forma, aos primeiros
jogos cênicos latinos, conforme os modelos do ludis-
mo do IV século a.C. A única diferença era que os
assuntos eram tomados da mitologia grega. A pantomima tornou-se, até o final do Império, o espetáculo
por excelência representado em toda a Europa.
3.8 - As Tragédias de Sêneca
Os poetas dramáticos não desapareceram, mas tornaram-se amadores. Os profissionais partem para o que
lhes interessava: os livrinhos de textos para a pantomima. Entre os oradores engajados e os livristas interessados, encontram-se alguns dramaturgos na linha de Ênio
e de Ácio. Sêneca é um deles. É graças a ele que temos
acesso a textos completos de tragédias romanas.
Lucius Annaeus Seneca
Nasceu entre 2 a.C. e 2 d.C. em Córdova, Espanha. Seu
pai era um rico cavaleiro romano, que deixa a Espanha
quando seu filho era ainda bebê. Depois de uma agitada
juventude que acabou com seu exílio na Córsega, por
ordem do Imperador Cláudio, tornou-se o pedagogo de
Nero, juntamente com Burrus, e foi seu primeiro ministro. Estóico, é acusado de ter aconselhado Nero no assassinato da mãe do Imperador, Agripina. Foi posto de lado
por Nero, que se lança em sua loucura política. Envolvido na conjuração contra Nero, suicida-se em 64 p.C.
A leitura das tragédias de Sêneca revela obras cuja eficácia espetacular é evidente. Elas não são inteligíveis sem
a reconstituição do espetáculo em que elas poderiam ter
lugar. A estrutura se organiza não por uma lógica do discurso, mas pela encenação do ator. Essas tragédias foram
representadas? Nunca saberemos, mas o importante é que
elas foram escritas como se devessem ser representadas e
como obras de propaganda destinadas à leitura pública.
Elas são suscetíveis de uma interpretação filosófica?
Não se pode, salvo incríveis distorções intelectuais,
por não dizer de sofismas, chamá-las de obras estóicas. Talvez elas ofereçam uma filosofia pessimista do
poder absoluto e do heroísmo em geral, mas elas afirmam que o homem heróico não tem senão a escolha
entre a santidade e a monstruosidade, duas maneiras
de excluir a humanidade.
Suas obras dramáticas são: Agamêmnon, Hércules
Furioso, Hércules no Eta, As fenícias, As troianas,
Medéia, Édipo, Fedra e Thiestes.
A Atualidade do Teatro Latino
O tipo de teatro proposto pelo teatro latino corresponde à evolução contemporânea do palco. Esse
teatro, onde o musical ocupa o papel principal, que
não tem nada de intelectual visto que se endereça à
sensibilidade e não à reflexão, este teatro sem distanciamento e sem mensagem, que não visa a nada senão
a produzir um espetáculo total, é, por todas as razões,
redescoberto pelos grupos de vanguarda americanos
e japoneses. O teatro latino, do mesmo modo, exige
corpos e vozes para conseguir reter a expressão de
paixões elementares e dar livre curso ao rir.
É preciso ainda lembrar que a comédia e a tragédia latinas passaram além das fronteiras do tempo da
existência do Império Romano. Quando, no Renascimento, a Europa descobre o teatro antigo, é, de início,
através das tragédias de Sêneca. Admiraram-no e o
imitaram os poetas trágicos em toda a Europa, até à
época clássica, de Shakespeare a Corneille. Os poetas
barrocos não conheciam outro autor clássico vindo da
Antigüidade. Na época clássica, na França, no século
XVII, visto que a tragédia grega eclipsou a tragédia
latina, uma comédia de conteúdo psicológico se impôs. É dessa época que surge a desafeição pelo teatro
latino depois de muitos séculos. Somente alguns espíritos isolados, Antonin Artraud ou Robert Brasillach,
na primeira metade do século XX, releram Sêneca e
encontraram sua pujança trágica. A dimensão musical do teatro de Plauto e de Terêncio não foi, por seu
turno, verdadeiramente redescoberta. Finalmente, a
relação que cada época tem com o teatro latino é revelador de sua própria estética teatral. É preciso, para
ser capaz de redescobrir o teatro latino, saber fazer do
espetáculo uma festa.
Medéia
Texto I
Prólogo (v. 1-55)
O primeiro canto de Medéia, monólogo de abertura
da tragédia, é ao mesmo tempo um canto de dolor e
um anticanto do himeneu, dando espaço, na entrada, a
uma estrutura de inversão: a queixa da dolor se opõe
termo a termo ao feliz canto do himeneu constituído
pelo primeiro coro.
Este prólogo de Medéia deve ser lido do ponto de
vista do código e da estrutura. Do ponto de vista do
espetáculo, síntese dos dois precedentes, a cena torna imediatamente sensível a decadência de Medéia,
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depois sua progressiva transformação em criatura inquietante e detestável. O espetáculo é o da piedade,
depois do horror, o nascimento do monstro.
Medéia manipula o ritual das núpcias de Jasão e Creúsa,
onde o primeiro coro dirá o caráter perfeitamente normal
e normativo. O tempo de sua celebração coincide com
aquele da tragédia, e são eles que desvendam a dolor.
Formalmente, o canto imita a prece. Toda prece começa por palavras que devem assegurar a comunicação entre quem reza e os deuses destinatários. É por
isto que, para atualizar suas divindades, quem ora diz
seus nomes e suas características.
MEDÉIA INVOCA UMA SÉRIE DE DIVINDADES
Aquelas que foram associadas ao seu casamento
com Jasão, que, por conseguinte, são garantias e aliadas de Medéia em sua vingança. Elas são o casamento passado de Medéia.
MEDÉIA:
Deuses do himeneu!
E tu, Lucina, deusa do leito onde se engendra a raça!
E tu, deusa que ensinaste a Tífis a arte de guiar o
primeiro navio para conquistar os mares!
E tu, Sol, que distribuis sobre a terra a luz do dia!
E tu, ó tríplice Hécato, que dá às misteriosas cerimônias uma tríplice claridade!
Ó vós todas, divindades por quem Jasão me jurou
sua fidelidade!
Depois ela invoca as divindades infernais, que estão
em oposição aos deuses associados normalmente nos
cantos do himeneu e que vão servir para inverter as
núpcias presentes. Sua invocação realça a identidade
singular de Medéia, do seu passado de maga. Há, pois,
nessas duas listas de divindades invocadas, um dúplice
jogo sobre a memória: divindades do casamento passado, divindades do passado de Medéia como maga.
Vós todos, poderes que só Medéia tem o direito
de invocar!
caos da noite eterna,
reino de além-túmulo,
fantasmas selvagens,
soberanos do sombrio império
e tu, sua esposa, raptada por um mais fiel amante!
O fim da invocação relembra que esta invocação é
um canto de dolor. A expressão ambígua “a voz da
desgraça” quer dizer “expressão da desgraça” e “portadora de desgraça” marca a dúplice natureza da dolor: sofrimento e desejo de vingança.
Ó deuses, eu vos imploro,
escutai a voz da desgraça!
Depois Medéia invoca as divindades do furor, as Fúrias, que, na mitologia grega, são também as deusas da
Vingança. Assim a dolor incita um primeiro movimento
rumo ao furor. Ela chama as Fúrias para que as tochas
negras da vingança substituam as tochas nupciais e se
tornem tochas de luto. Esta substituição é uma das formas que proporcionam a inversão das núpcias de Creúsa em antinúpcias de Medéia. Vê-se como se articulam
estreitamente a ação e a estrutura, visto que as Fúrias
pertencem a uma e outra. O vetor deste duplo jogo é
constituído pelas tochas, que são o emblema das fúrias
e, ao mesmo tempo, são os objetos rituais das núpcias e
dos funerais. Dito de outro modo, são as tochas do himeneu que queimarão Creúsa e atearão fogo ao palácio:
Vinde vós, deusas vingadoras do crime,
vinde em meu socorro:
os cabelos desarrumados, entrelaçados de serpentes,
firme nas mãos sanguinolentas um negro archote,
descabeladas, sinistras, como viestes no dia das minhas núpcias!
MEDÉIA DÁ O CONTEÚDO DE SUA PRECE
Vinde neste dia
oferecer a morte à jovem nubente,
oferecer a morte a seu pai,
oferecer a morte à linhagem real!
O conteúdo desta prece é paradoxal: ela inverte os
votos habituais formulados por ocasião de um casamento. A morte é posta como o inverso das núpcias.
A unidade de tempo, o dia, é comentado pelo acontecimento, as núpcias. Medéia retomará exatamente
esta unidade de tempo para inserir a ação trágica: ela
fará dele o seu dia. Esta inversão toma uma forma
particular no que concerne a Jasão. Medéia quer que
sua vingança faça dele, por sua vez, uma Medéia de
hoje e um Jasão de outra época, visto que o argonauta
chegou para ela suplicante, do estrangeiro, aterrorizado com a tarefa que devia cumprir.
De agora em diante, ele não encontrará mais ninguém para o acolher e o ajudar. Ele se tornará errante
e odiável. É exatamente o trajeto que ele cumprirá
tornando-se uma furiosa vítima:
E a mim, dai um outro mal, mais terrível que a morte,
para que eu possa dá-lo ao meu esposo:
que ele viva, errando pobre por cidades desconhecidas,
desterrado, espantado, abominado, sem lar.
Que ele me deseje como esposa,
e encontre a porta fechada, hóspede já muito
conhecido.
E - não é possível pensar nada mais horrível - possa
ele gerar filhos
semelhantes ao pai, semelhantes à mãe.
DA DOLOR AO FUROR
A súplica pára. Medéia torna-se o assunto de suas
frases. A prece tem seu efeito, ela agiu sobre Medéia,
envolvendo-a no véu que a leva ao furor. Ela passa do
pranto à cólera, da dor à ação.
Minha vingança já está lá,
minha vingança já nasceu.
Eu tenho dois filhos.
Palavras.
Eu semeio lágrimas e palavras num deserto.
Vou passar ao ataque.
A própria Medéia transmuda o ritual das núpcias em
ritual fúnebre, fazendo do dia luminoso das núpcias
uma noite eterna para Creúsa e Corinto:
Eu colocarei os archotes nas mãos dos meus inimigos
estenderei o dia no céu.
Este poder, ela o tem de sua raça, pois é filha do Sol.
Mas sua ascendência não pode ajudá-la senão no crime.
Lá no alto, o sol nos olha, o ancestral da minha raça,
e nós aqui o vemos percorrer indiferente, cheio de
claridade, a rota celeste,
sem voltar ao nascente, sem parar o dia.
Esta ascendência não lhe dá diretamente poder sobre a
luz e o fogo. Mas ela tem por ancestral e modelo Faetonte, o filho do Sol. Aquele, guiando o carro do Sol sem saber conduzi-lo, transformou a boa e doce luz do dia num
fogo devastador que incendiou a terra. A palavra torna-se
uma prece, mas desta vez diretamente endereçada a um
ser de sua raça. Indiferente como deus, ele não se ocupa
dos homens, mas ouvirá seus ascendentes furiosos:
Ó Sol, concede-me uma graça!
Sol, ancestral de minha raça,
deixa-me voar pelo céu, confia-me as rédeas do
teu carro!
Eu conduzirei os cavalos de fogo com chicotes
flamejantes,
incendiarei Corinto, a cidade entre dois mares!
O istmo se fundirá nas chamas e as ondas se juntarão.
Medéia, queimando Corinto, repetirá o crime de
Faetonte e, inscrevendo-se assim na imortalidade
mitológica, dá às suas tochas nupciais transformadas
em tochas fúnebres a eficácia das tochas das Erínias,
tochas da vingança mitológica.
A FURIOSA
O tipo de palavra muda. Medéia agiu sobre si mesma, donde o uso do eu e do tu que remeterá um e outro
a ela mesma. Ela é a destinatária da própria palavra.
Medeia começa a procurar o crime que a vingará. Ela
é ainda, na estrutura geral, a necessidade de agir no
quadro das núpcias. Sua palavra torna-se, pois, metafórica. O crime será encontrado quando ela tiver descoberto o meio de realizar suas metáforas, aquilo que
está esboçado aqui, na estrutura da tragédia. Medéia
retoma, pois, os elementos do ritual nupcial, um a um:
Não me resta senão levar eu mesma a tocha nupcial
e degolar, depois das preces rituais, as vítimas sobre
o altar consagrado.
Tradicionalmente, a inspeção das entranhas dos animais sacrificados permitia predizer o futuro:
Coragem,
tu procurarás, tu mesma, nas entranhas, o caminho
da vingança,
se tu ainda estás viva,
se tu guardas alguma energia de outrora.
Aqui começa o duplo trabalho da memória. Medéia
se lembra de sua violência passada, violência mitológica, quando comenta os crimes cometidos para favorecer Jasão, crimes que lhe servirão de modelo:
Esquece que tu és uma mulher, um ser medroso,
reencontra tua alma de caucasiana,
reveste-te de violência.
Os horrores em que o Ponto e o Fásis foram ao teatro repetir-se-ão no istmo de Corinto:
Insensatos, incríveis, horríveis, espantosos para o
Céu e a Terra
são os desígnios que se agitam na âmago do meu
cérebro:
feridas, mortes, membros esparsos e jogados ao
relento.
Pela palavra, Medéia faz um trabalho de abstração e
de classificação sobre os objetos da memória. Assim,
seleciona tipos de crimes que servem para inventar
outros crimes.
Depois, Medéia descarta suas lembranças, pois elas
seriam insuficientes para curar hoje a infelicidade que
a atinge. Isto prova que o que foi um scelus nefas pode
tornar-se o calmante em outro contexto. O passado deve
ser transposto. Há uma escala virtuosa do horror. É preciso vencer os ancestrais, vencer-se a si mesma:
Não, eis aí lembranças muito inocentes.
Eu não era então senão uma menina.
A dor de uma mulher é exigente.
São-me necessários crimes superiores.
Hoje eu sou mãe.
Arma-te de cólera, prepara-te para uma luta de
morte, um combate de louca.
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O prólogo termina com a afirmação repetida de que
a ação vai ser de antinúpcias e de anulação das núpcias passadas de Medéia e Jasão. O nó da ação é ao
mesmo tempo dado como a relação existente entre a
tragédia e as lendas mitológicas. O que é objeto de
narrativa são os crimes mitológicos, tornados crimes
trágicos. Não há tragédia, hoje, senão porque sobreveio à lembrança a vingança de Medéia, e essa vingança não foi digna de memória, visto que com ela
Medéia se abandona da condição humana por um crime mitológico, ou seja, trágico. Aqui, é o poeta quem
fala, dando, por assim dizer, a regrada escritura da
tragédia, que deve ser representada como um scelus
nefas para justificar sua razão de ser:
Medéia repudiada deve tornar-se legendária.
Narramos já a história das núpcias.
Como tu deixarás teu esposo?
Do mesmo modo que o seguiste!
Sufoca tuas frouxas perplexidades!
Esta casa, onde tu entraste por um crime,
por um crime deverás deixá-la.
Assim, o quadro da cura fantástica está dado ao púbico: será o das núpcias ao inverso.
O instrumento de Medéia é a língua; sua força, a da
retórica. A relação metafórica entre a pompa nupcial
e a pompa fúnebre é uma constante em Roma. Mas a
tragédia faz da metáfora uma metamorfose, da comparação, uma razão. O furioso tem o poder de fazer existir as palavras, de dar à retórica força de realidade.
Outras Obras de Sêneca
A) Catálogo dos crimes trágicos
Tieste
O scelus nefas é composto sucessivamente do sacrifício humano cumprido por Atreu e do banquete canibal que se seguiu. A passagem do sacrifício é narrada
no banquete sob a ótica de Atreu, que descreve Tieste
festejando sob seus olhos, antes de interpelá-lo e de
lhe oferecer como brinde um copo de vinho no qual
versara o sangue dos seus filhos, depois contempla-o
olhando a cabeça e as mãos dos filhos. Os dois sujeitos
dos nefas são os dois irmãos, em posição intercambiável de carrasco e de vítima, de furiosos e de dolorosos.
Atreu precedera Tieste e o havia feito pouco dele porque sua dor inicial ultrapassara a do irmão.
Atreu
Sei porque tu choras: Tu te angustias por eu ter tomado depressa
este crime que eu te roubei.
Não há amas canibais que te angustiem,
nem quem te corte a garganta.
É por não me teres feito comer,
esta foi sempre tua intenção,
uma refeição desta espécie,
e de servi-la a teu irmão sem que ele percebesse.
Tu irias te lançar sobre meus filhos,
mas uma coisa te reteve, uma só.
Tu suspeitavas que eles nasceram de ti.
O crime é a repetição agravada daquele de Tântalo.
É a partir daquele modelo que Atreu o inventou. Ele
permite aos dois irmãos de inscreverem-se na dinastia da mitologia dos reis de Micenas. Uma cena de
astúcia, a reconciliação dos dois irmãos, permitiu a
execução do nefas.
Fedra
O crime de Fedra na tragédia de Eurípedes, Hipólito
coroado, trata da história da esposa de Teseu que, na
ausência deste, apaixonou-se perdidamente por seu
enteado Hipólito. Repelida por este, filho do primeiro
casamento de Teseu, Fedra suicidou-se, enforcandose, mas deixou uma mensagem mentirosa ao marido,
acusando-lhe o filho de tentar violentá-la, o que irá
provocar a morte do inocente Hipólito.
Os personagens da peça são Fedra, Hipólito e Teseu, os
quais passam para o mito. Fedra renova os amores selvagens da sua mãe Pasífae (esposa do rei Minos, a qual
se apaixonara por um touro, dando à luz o minotauro),
em seguimento à mesma dolor de Djanira ou Medéia.
Fedra é uma mulher rejeitada, uma cretense exilada na
Ática, para onde seu pai a enviara como refém:
Phaedra
O magna vasti Creta dominatrix freti
cuius per omnes litus innumerae rates
tenuere pontum, quidquid Assyria tenus
tellure Nerea pervium rostris secas
cur me in penates obsidem invisos datam
hostique nuptam degere aetatem in malis
lacrimisque cogis? Pefugus en coniux abest
praestatque nuptae quam solet Thaeseus fidem.
...
FEDRA
Ó Creta, soberana do mar vasto, cujos barcos inúmeros na costa
cobrem as águas que Nereu franqueia às naus até
ao litoral da Assíria,
por que me deixas presa em mar odioso, esposa do
inimigo,
condenada por toda a vida a dor e ao pranto?
Prófugo, Teseu me é fiel como já foi às outras.
Com pretendente ousado, entrou nas trevas do ínvio
lago do qual ninguém regressa.
Vai, sócio da paixão, tirar Prosérpina à realeza infernal. Nem a vergonha nem o medo
o detém: o pai de Hipólito busca no imo Aqueronte
o amor ilícito.
Mas dor maior me aflige! O meu cuidado
resiste ao sono e à quietação da noite.
Gera-se o mal, cresce e me abrasa o seio como,
no Etna,
o vapor ferve e transborda.
das tragédias de Sêneca, era cantado por um cantor
enquanto um ator dançava. A cena. Tecnicamente essa
dança é uma pantomima, onde o ator imita sucessivamente as diferentes técnicas e os diferentes momentos
da caça. Hipólito dá ordens a seus companheiros caçadores antes de partir, de manhã. Manda-os percorrer
todo o território da Ática, depois, antes de se engajar
ele mesmo nessa expedição, envia uma prece a Diana,
deusa da caça, afim de que ela lhe seja favorável.
Esta dolor inicial vai estabelecer comunicação com
o furor da dinastia de Fedra, memória que lhe proporcionará a própria identidade. É lá que ela vai buscar
a origem do seu amor por Hipólito, sua invenção; o
moço repete o touro de Pasífae, visto que ele pertence
à selvageria, a uma circunstância selvagemente agravante, visto que socialmente ele é visto como filho de
Fedra, ou seja, os amores dos animais se caracterizam
precisamente não pelo incesto que é uma transgressão, mas pela indiferença à parentela. O amor monstruoso de Fedra ultrapassa ao de sua mãe.
O que é mesmo inquietante é o personagem que
representa Hipólito. Esse caçador não é um filho de
família, um esportista vindo da cidade. É um caçador
excessivo, que, ao menos em palavras, transforma
toda a Ática em território de caça, onde não vivem
senão pastores. As cidades, as terras cultivadas, toda
espécie de civilização sedentária desapareceu. Suas
primeiras palavras são ambíguas, são as de um chefe
que lança os companheiros ao ataque sem que se saiba se trata-se de uma expedição militar ou uma caça;
eles vão percorrer o país semeando terror:
Hipólito também reata com sua mãe, a Amazona,
por seus amores monstruosos, mesmo sendo ele um
agente involuntário. Optando deliberadamente pela
selvageria contra a civilização, justo antes da cena em
que Fedra renova seu desejo por ele, Hipólito passa
ao lado do nefas e se torna suscetível para entender
seus avós, inventa ele também o nefas. A seguir, mesmo ele recusando com horror o amor de Fedra, ele
será seu parceiro num diálogo amoroso, terá falado de
amor com uma mulher vestida de Amazona, que ele
chamou sua mãe e que prometeu de tomar junto dela
o lugar de seu pai. Esta mulher o apertou nos braços e
o cobriu de carinhos.
O nefas de Fedra e de Hipólito é o enfrentamento
de duas selvagerias mitológicas que não podem se
amar. Se a selvageria, no imaginário romano, dá às
mulheres um erotismo excitante, ao contrário, virilizando excessivamente os homens, transforma-se em
erotismo. As mulheres selvagens são lobas, quer dizer
prostitutas, os homens-lobos vivem em alcatéias de
caçadores celibatários. Hipólito tem horror às mulheres não por capricho particular, mas porque ele se vê
um selvagem habitante das florestas.
A selvageria de um e outro está presente sobre o palco e visível pelo disfarce da dança. Vimos que Fedra
encontrou a pacificação numa veste de Amazona caçadora. Hipólito também está travestido de caçador
mitológico. Tal é a função do prólogo de Fedra e de
sua natureza particular: instalar no espaço trágico o
furor selvagem de Hipólito. Com efeito Fedra se abre
com um monólogo que não é nem a dolor de um herói,
nem o furor de um deus ou de um fantasma vindo de
um outro mundo. A escritura em estrofes líricas prova
que esse prólogo, diferentemente dos outros prólogos
Ite umbrosas cingite silvas
summaque montis iuga, Cecoprii
Ide, cercai bosques umbrosos, rodeai com passo
errante e lépido,
o cume do monte de Cécrops.
A volta da caça mostra uma horda, celebrando um
triunfo pré-histórico, em torno de charretes rústicas
que rodam rangendo rumo às cabanas primitivas.
Diana, a quem ele invocara, não é uma divindade
dos homens civilizados; seu espaço são os confins do
universo habitado. Ela reina pela violência sobre povos selvagens e primitivos.
Assiste-nos, ó forte deusa, que reinas sobre as
terras virgens;
cujas flechas certeiras ferem as feras que se dessedentam no frio Araxes
ou que saltam no Istro gelado. A tua destra persegue os leões da Getúlia
e as corças de Creta. Agilmente alcanças os gamos
velozes.
A ti se imolam os pintados tigres, os peludos bisontes
e os búfalos de grandes cornos. Todo animal que no
deserto pasce,
à vista doss gramantes, ou se esconde na selva
a’rabica
e nos picos dos Pireneus, e ainda nas florestas da
Hircânia,
nos vastos campos da Sarmácia, teme as tuas aljavas,
Diana!
Para o imaginário romano, um caçador dos confins é
pior do que um bárbaro, é um homem selvagem, que
43
44
vive como animal no meio de animais, que não diferencia entre a caça e a guerra, pois não há diferença
entre um animal e um homem. Esse tipo de caçador se
situa num espaço de além, fora do espaço habitado. A
selvageria extrema e impossível dos confins dá, pois,
suas cores em Fedra a uma selvageria mitológica que
é a da Amazona, mãe de Hipólito, onde reencontra
Pasifae, mãe de Fedra.
A dança de Hipólito depois da prece a Diana é a de
um chefe selvagem, de um homem-lobo que, se ele
reina na Ática, a transformaria em deserto, em floresta
virgem. Mas esse valor ideológico do prólogo que deduzimos das palavras de Hipólito é o desenvolvimento
verbal de uma evidência espetacular. O público romano reconhecia imediatamente em Hipólito, desde que
o vê, um caçador selvagem dos confins. Desde que ele
já o viu alhures, essa dança do rei bárbaro que reina
sobre sujeitos como sobre um gibon, seja no circo nas
venationes, ou gladiadores reproduzindo grandes caças
mitológicas ou pseudo-históricas – caças de Hércules
ou de Alexandre – seja no teatro das pantomimas com
assuntos miológicos. Costumes bárbaros em vivas cores, músicas estranhas e, no circo, presença de animais
exóticos (leões, panteras etc.) inscreveram na memória
dos romanos imagens definitivas.
Ao corpo selvagem e dançante de Hipólito abrindo a
tragédia corresponde o quadro final de seu corpo mutilado, incompleto, hediondo, que o traz de volta à civilização. A dança de Hipólito é da mesma natureza trágica que as danças do furor; mas um furor que não foi
precedido pelo espetáculo da dolor, ou ainda da mesma
natureza que a dança de Tântalo. Ele realiza assim seu
corpo mitológico, como fazem Djanira e Medéia.
Esta primeira parte do nefas é possível, quer dizer, é
o reencontro entre as duas selvagerias, porque Diana
serve de intercessora. Ela encarna as duas façes da selvageria, a masculina e a feminina. Ela é a divindade
dos confins e da caça. É a divindade dos homens selvagens, mas é também, sob o nome de Hécato, a lua,
a deusa da magia amorosa, pois uma lenda narra que
a lua se tomou de amor por Endimião, um pastor, e
desceu à terra, seduzida. Depois, as magas a associam
aos lagos para que ela favoreça aos amores difíceis.
Hécato, astro noturno, é uma deusa de mulheres enamoradas. E por isso que a Ama lhe faz uma prece:
Rainha da floresta, ó única moradora e adorada na
montanha,
muda para melhor os meus presságios! Deusa magna
das florestas e dos bosques, astro do céu claro, glória
da noite,
tu que alternas com o dia a luz do mundo, tríplice
Hécato,
acode em nossa ajuda! Doma do triste Hipólito a
alma gélida:
aprenda a amar, partilhe os fogos mútuos e saiba ouvir.
O coração lhe amansa, enleia-lhe a razão! Hostil
e irado
retorne às leis de Vênus. Nisso empenha o teu poder.
..............................................
Custa-me executar o crime ordenado. Quem teme
os reis
proscreva o certo e o justo; expulse a honra do peito!
O pudor é mau cúmplice dos déspotas.
A dúpla natureza de Diana está já presente no fim do
prólogo dançado por Hipólito; quando ele terminou
sua oração à deusa, ele ouve os latidos dos cães; é
um sinal da presença de Hécato, a partir das preces
de magia erótica.
A tragédia passa-se, pois, em dois tempos correspondentes aos dois estágios corporais dos heróis: a
primeira parte é aquela dos corpos selvagens e belos;
a segunda, aquela dos corpos em luto e lesados.
Teseu sai dos Infernos, lúgubre e despojado como
um fantasma. Fedra toma sucessivamente duas posturas de luto: a primeira é a exibição socializada dos
efeitos de sua violação (pretendida), a segunda, para
chorar Hipólito. Hipólito é um cadáver mutilado,
completamente ferido.
A cena da confissão amorosa se repete na cena da
confissão criminal; essas cenas se juntam em três, com
o terceiro ausente. No início, o ausente é Teseu: no país
dos mortos, ele não é senão uma máscara posta sobre
os olhos de Hipólito; a seguir o ausente é Hipólito, que
não passa de um monte de carne desgraçada. Nas duas
cenas, Fedra repete o mesmo gesto da sedução que a
liga a Hipólito, mas na primeira vez o nefas fica incompleto, pois não foi posto em cena um ritual pervertido;
na segunda vez, utilizando o rito do luto, Fedra vai até
o fim de sua transformação em monstro e liga seu destino a Hipólito na memória da mitologia. Sua acusação
mentirosa contra Hipólito é tipicamente uma cena de
astúcia para preparar o scelus nefas.
Édipo
Édipo é uma das tragédias mais complexas de Sêneca. Salvo as aparências, esta tragédia obedece ao mesmo esquema das outras tragédias. A única diferença
está no que se refere ao nefas, que foi cometido antes
do início da ação cênica. Mas, como nada se sabe disso no início da peça, é como se o nefas não existisse ainda para aqueles que se tornarão seus sujeitos:
Édipo e Jocasta. A invenção do nefas vai coincidir
com a descoberta dos crimes cometidos por Édipo, o
parricídio e o incesto. Dizer o nefas ou cumpri-lo é a
mesma coisa, pois o crime, para tornar-se performativo, é preciso que seja ritualizado. Isto não é espantoso
numa civilização em que um prodígio, um monstrum,
não existe se não for reconhecido como tal pelas autoridades religiosas e políticas, no curso dos procedimendos da linguagem.
modo, sua raiva a seu filho, como Tântalo ou Tieste.
Ekle é o digno descendente dos monstros tebanos que
o precederam no trono.
Édipo, no prólogo doloroso, fala de seu medo de cometer seu scelus nefas anunciado pelo oráculo de Delfos.
Compreendendo que ele já o cometera, ele coincide com
ele mesmo, com seu ser mitológico e, para dar uma realidade a esta nova identidade enfim reencontrada, ele finge
não estar entendendo nada. No fim da tragédia, ele tem a
mesma fruição cumprida por Atreu ou Medéia.
O furor de Édipo lhe vem tarde na peça, depois
que ele apreendeu o nefas. Este furor lhe permite
reapropriar-se do crime, o que o leva a crivar-se
os olhos e a empurrar sua mãe ao suicídio. Jocasta
entra em furor ao mesmo tempo que Édipo. Ela
participou da revelação do nefas, sendo a primeira
a entender as verdadeiras circunstâncias do assassinato de Laio.
Bene habet, peractum est...
Iuvant tenebrae...
Vultus Oedipodam hic decet.
Está bem, tudo se cumpriu...
As trevas ajudam...
Édipo, tu tens agora teu verdadeiro rosto.
O nefas o integra na dinastia tebana como seu pai
lhe relembra, saindo dos Infernos, seu pai, que é a
figura de um fantasma furioso, comunicando, a seu
O espetáculo do nefas é aquele da sua revelação
e do posterior prolongamento. A revelação se realiza em duas cenas: a primeira é uma narração, a
consulta aos mortos; a outra é a consulta no palco,
das entranhas sacrifícais. A seguir, os efeitos da revelação dão lugar a uma narração, que conta como
Édipo se crivou os olhos; depois, sobre o palco,
Édipo reencontra Jocasta que se suicida diante do
público. Culpáveis, mas não responsáveis, ambos
entram para a lenda.
Exercícios de Auto-avaliação
1- Como se organiza a estrutura das tragédias de Sêneca?
2- Quais são as obras dramáticas de Sêneca?
3- Como era considerada a tragédia na Grécia?
4- Com quem começa o tempo dos poetae?
5- Quando se instalam os teatros permanentes?
6- Onde ficavam os teatros?
45
46
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1)
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participou dos encontros;
fez contato com seu tutor;
realizou as atividades previstas;
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avaliações.
Parabéns!
Glossário
Comédia- obra ou representação teatral em que predomina a graça.
Dioniso- deus grego dos ciclos vitais e da alegria e do vinho, chamado de Baco pelos romanos.
Ditirâmbico(a)- composição lírica que exprime entusiasmo ou delírio.
Iãmbico(a)- irônico, satírico, sarcástico.
Ignóbeis- que não tem nobreza.
Mimese- imitação, figura que consiste no uso do discurso direto e principalmente na imitação do gesto, voz e
palavras de outro.
Mito- narrativa dos tempos fabulosos ou heróicos.
Pantomimas- arte ou expressão por meio de gestos, mímica.
Tragicomédia- peça que participa da tragédia pelo assunto e personagens e da comédia pelos incidentes.
Tragédia- obra teatral em versos que se originou do ditirambo.
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Gabarito
Unidade I
1- �������������������������������������������������������������
Sugestão: a resposta pode ser formulada a partir do item 1.1.
2- ���������������������������������������������������
Foi a época de Augusto (de 44 ou 43 a.C. a 17 d.C).
3- ��������������������������������������������������������������������������������������������������������������������
Sugestão: a contextualização da disciplina, na parte em que fala sobre o gênero épico nos primeiros três parágrafos.
4- �����������������������������������������������������������������������
Começa como todo poema épico, com a invocação à musa (deusa) da poesia.
5- ����������������������������������������������������������������������������������������������������
Começa com a invocação de Homero à musa da poesia, na qual enuncia o tema do poema épico e lhe pede
que oriente para que possa contar a história de modo adequado.
Unidade II
1- A
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primeira obra de Ovídio foi Amores.
2- ���������������������������������������������������������������������������������������������������
Ovídio abordou o épos de outra maneira, não optou pelo poema de grandes dimensões, seguiu o modelo
épico inspirado em Hesíodo.
3- Você
�������������������������������������������
pode responder de acordo com o tópico Os Amores.
4- ���������������������
Resposta no item 2.3.
5- Filosofia
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que prega a renúncia aos negotia político-militares em favor de uma vida à parte e tranqüila, em
íntima comunhão dos amigos.
Unidade III
1- �����������������������������������������������������������
Não por uma lógica do discurso, mas pela encenação do ator.
2- Suas
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obras dramáticas são: Agamêmnon, Hércules, Furioso, Hércules no Eta, As Fenícias, As Troianas,
Medéia, Édipo, Fedra e Tristes.
3- �����������������������������������������������������������������������������������������������������
Na Grécia, a tragédia era considerada como obra literária que proporcionava aos poetas muitas honras.
4- ���������
Com Ênio.
5- ����������������������
No final da República.
6- Os teatros ficavam no campo de Marte e o campo de Marte é integrado à cidade.
Referências Bibliográficas
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