VICE-REITORIA DE ENSINO DE GRADUAÇÃO E CORPO DISCENTE COORDENAÇÃO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA LITERATURA LATINA I Rio de Janeiro / 2008 Todos os direitos reservados à Universidade Castelo Branco UNIVERSIDADE CASTELO BRANCO Todos os direitos reservados à Universidade Castelo Branco - UCB Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, armazenada ou transmitida de qualquer forma ou por quaisquer meios - eletrônico, mecânico, fotocópia ou gravação, sem autorização da Universidade Castelo Branco - UCB. Un3l Universidade Castelo Branco Literatura Latina I / Universidade Castelo Branco. – Rio de Janeiro: UCB, 2008. - 52 p.: il. ISBN 1. Ensino a Distância. 2. Título. CDD – 371.39 Universidade Castelo Branco - UCB Avenida Santa Cruz, 1.631 Rio de Janeiro - RJ 21710-250 Tel. (21) 3216-7700 Fax (21) 2401-9696 www.castelobranco.br Responsáveis Pela Produção do Material Instrucional Coordenadora de Educação a Distância Prof.ª Ziléa Baptista Nespoli Coordenador do Curso de Graduação Denilson P. Matos - Letras Conteudista Zeandra Oliveira Supervisor do Centro Editorial – CEDI Joselmo Botelho Apresentação Prezado(a) Aluno(a): É com grande satisfação que o(a) recebemos como integrante do corpo discente de nossos cursos de graduação, na certeza de estarmos contribuindo para sua formação acadêmica e, conseqüentemente, propiciando oportunidade para melhoria de seu desempenho profissional. Nossos funcionários e nosso corpo docente esperam retribuir a sua escolha, reafirmando o compromisso desta Instituição com a qualidade, por meio de uma estrutura aberta e criativa, centrada nos princípios de melhoria contínua. Esperamos que este instrucional seja-lhe de grande ajuda e contribua para ampliar o horizonte do seu conhecimento teórico e para o aperfeiçoamento da sua prática pedagógica. Seja bem-vindo(a)! Paulo Alcantara Gomes Reitor Orientações para o Auto-Estudo O presente instrucional está dividido em três unidades programáticas, cada uma com objetivos definidos e conteúdos selecionados criteriosamente pelos Professores Conteudistas para que os referidos objetivos sejam atingidos com êxito. Os conteúdos programáticos das unidades são apresentados sob a forma de leituras, tarefas e atividades complementares. As Unidades 1 e 2 correspondem aos conteúdos que serão avaliados em A1. Na A2 poderão ser objeto de avaliação os conteúdos das três unidades. Havendo a necessidade de uma avaliação extra (A3 ou A4), esta obrigatoriamente será composta por todo o conteúdo de todas as Unidades Programáticas. A carga horária do material instrucional para o auto-estudo que você está recebendo agora, juntamente com os horários destinados aos encontros com o Professor Orientador da disciplina, equivale a 30 horas-aula, que você administrará de acordo com a sua disponibilidade, respeitando-se, naturalmente, as datas dos encontros presenciais programados pelo Professor Orientador e as datas das avaliações do seu curso. Bons Estudos! Dicas para o Auto-Estudo 1 - Você terá total autonomia para escolher a melhor hora para estudar. Porém, seja disciplinado. Procure reservar sempre os mesmos horários para o estudo. 2 - Organize seu ambiente de estudo. Reserve todo o material necessário. Evite interrupções. 3 - Não deixe para estudar na última hora. 4 - Não acumule dúvidas. Anote-as e entre em contato com seu monitor. 5 - Não pule etapas. 6 - Faça todas as tarefas propostas. 7 - Não falte aos encontros presenciais. Eles são importantes para o melhor aproveitamento da disciplina. 8 - Não relegue a um segundo plano as atividades complementares e a auto-avaliação. 9 - Não hesite em começar de novo. SUMÁRIO Quadro-síntese do conteúdo programático .................................................................................................. 11 Contextualização da disciplina .................................................................................................................... 13 UNIDADE I INTRODUÇÃO À LITERATURA LATINA 1.1 - Aspectos históricos .............................................................................................................................. 1.2 - O século de Augusto (de 44 ou 43 a. C. a 17 d. C.) . ........................................................................... 1.3 - Epopéia Grega ..................................................................................................................................... 1.4 - A epopéia em Roma . ........................................................................................................................... 17 18 18 23 UNIDADE II O LIRISMO 2.1 - O Surgimento da poesia lírica na Grécia ............................................................................................. 2.2 - Momento histórico .............................................................................................................................. 2.3 - O Lirismo em Roma ............................................................................................................................ 2.4 - Virgílio e as Bucólicas ......................................................................................................................... 2.5 - Ovídio .................................................................................................................................................. 29 29 30 31 32 UNIDADE III DRAMÁTICO (TEATRO - TRAGÉDIA) 3.1 - A palavra tragédia ................................................................................................................................ 3.2 - Teatro e cerimônia religiosa ................................................................................................................ 3.3 - Teatro e tragédia em Roma .................................................................................................................. 3.4 - Roma, a civilização do espetáculo . ..................................................................................................... 3.5 - Ator: glória e infâmia . ......................................................................................................................... 3.6 - A máscara . ........................................................................................................................................... 3.7 - Breve história do teatro latino ............................................................................................................. 3.8 - As tragédias de Sêneca ........................................................................................................................ 34 34 34 35 36 37 37 39 Glossário ...................................................................................................................................................... 47 Gabarito ....................................................................................................................................................... 48 Referências bibliográficas . .......................................................................................................................... 49 Quadro-síntese do conteúdo programático UNIDADES DO PROGRAMA OBJETIVOS I - INTRODUÇÃO À LITERATURA LATINA 1.1 - Aspectos históricos 1.2 - O século de Augusto (de 44 ou 43 a. C. a 17 d. C.) 1.3 - Epopéia Grega 1.4 - A epopéia em Roma • Caracterizar a poesia épica em obras da Literatura Latina; • Identificar as características da cultura helenística e a respectiva influência na Literatura Latina. II - O LIRISMO 2.1 - O Surgimento da poesia lírica na Grécia 2.2 - Momento histórico 2.3 - O Lirismo em Roma 2.4 - Virgílio e as Bucólicas 2.5 - Ovídio • Caracterizar a poesia lírica em obras da Literatura Latina quanto à época e natureza dos textos. I���������������������������������� II - DRAMÁTICO (TEATRO - TRAGÉDIA) 3.1 - A palavra tragédia 3.2 - Teatro e cerimônia religiosa 3.3 - Teatro e tragédia em Roma 3.4 - Roma, a civilização do espetáculo 3.5 - Ator: glória e infâmia 3.6 - A máscara 3.7 - Breve história do teatro latino 3.8 - As tragédias de Sêneca • Caracterizar a tragédia e a comédia em obras da Literatura Latina. 11 Contextualização da Disciplina GÊNEROS LITERÁRIOS Breve Visão de Conjunto Sobre os Gêneros Literários O primeiro a elaborar uma poética sobre os gêneros literários foi Aristóteles, em sua Poética. Considera a arte como mimese. Tal mimese realiza-se, em primeiro lugar, de acordo com os meios em que se realiza. Por exemplo, a poesia utiliza o ritmo, a melodia, o verso, mas a poesia ditirâmbica utiliza todos esses elementos, ao passo que a tragédia e a comédia utilizam-na separadamente. Em segundo lugar, de acordo com os objetos diversos da mimese, ou seja, se o objeto for as pessoas, sendo estas nobres ou ignóbeis, melhores ou piores do que a média humana, as composições serão diversas conforme o objeto imitado. Diante disto, a tragédia representa personagens melhores do que os homens o são, ao passo que a comédia, piores. Em terceiro lugar, de acordo com os diversos modos da mimese. Desta forma, Aristóteles considera dois modos de mimese poética: o modo narrativo e o modo dramático, ou seja, o modo épico e o modo dramático. Horácio (Epistola ad Pisones) concebe o gênero literário como correspondendo a uma tradição formal e sendo caracterizado por um determinado tom ou metro. Ou seja, para Horácio, o gênero se caracteriza pelo metro, o qual é usado de acordo com o conteúdo específico. Desta forma, por exemplo, a poesia iâmbica estava mais próxima da linguagem coloquial, por isso mais adequada à ação dramática. Segundo ele, portanto, os gêneros não se misturavam, visto que seguiam tons adequados a cada movimento psicológico. No Renascimento, através da releitura de ambos e através da constatação das obras literárias escritas até então, chega-se à inclusão de um terceiro gênero, já anunciado por Horácio: o lírico. No século XVII, admite-se a subdivisão dos três gêneros em gêneros menores (espécies), severamente distintos e regidos por regras intransigentes e imutáveis que comandavam a criação e orientavam poetas e críticos. Tais cânones baseavam-se na crença de que os gêneros eram essências fixas ou formas exigidas pela natureza. Como acreditavam que os antigos realizaram os gêneros em plenitude, estes serviram de modelo. Tal idéia negava o princípio do desenvolvimento e da alterabilidade dos gêneros no seu processo histórico. O Barroco vem negar esse tipo de atitude, pregando uma espécie de liberdade criadora, visto que cultiva o hibridismo dos gêneros (como a criação da tragicomédia). No século XVIII (iluminismo francês), ocorre a contestação da tirania da norma com a criação do drama burguês e do romance. No Romantismo, séc. XIX, acredita-se que a força inovadora do gênio prevalece sobre a norma; liberdade de criação. Tendência moderna: rebeldia contra o estabelecimento de barreiras limitadoras; deve prevalecer a originalidade. A divisão tripartida (lírico, épico, dramático) não comporta a multiplicidade da produção literária atual. Ex.: Há contos com os procedimentos do puro diálogo, característico do gênero dramático. Há dramas sem diálogos, com um personagem só (monólogo). Há obras líricas de cunho narrativo, onde a emoção se sobrepõe à narração. Emil Staiger, em Conceitos fundamentais da Poética, apresenta uma solução para a questão dos gêneros; estabelece a diferença básica entre a conceituação substantiva e a adjetiva. Os substantivos Lírica, Épica e Drama constituem os ramos em que se classificam as obras, de acordo com determinadas características formais: Lírica: poemas de breve extensão que expressam estados de alma. Épica: relato ou apresentação de uma ação. Drama: representação da ação movida por um dinamismo de tensão. 13 Os adjetivos lírico, épico e dramático definem a essência caracterizadora da obra; tal essência manifesta-se por determinados fenômenos estilísticos. Deste modo uma obra pertence a um ramo genérico onde a essência lírica tem caráter prioritário; tal obra participa, contudo, da essência ou de traços particulares de outros gêneros. Ex.: Uma peça teatral é dramática quanto ao ramo porque nela prevalece a essência dramática (representação, tensão), mas pode participar da essência lírica nos momentos em que tiver desdobramentos afetivos. Um romance pertence ao ramo épico porque nele prevalece a essência épica (relato/apresentação de uma ação), mas pode também participar da essência dramática (nos diálogos) e da essência lírica (efusão de sentimentos). Segundo Staiger, nenhuma obra pode ser classificada exclusivamente num só gênero: sempre vai partilhar da essência dos demais. Com isso abrem-se os limites para o entrosamento entre os gêneros. A partir da divisão tripartida dos gêneros, podemos estabelecer divisões em espécies (formas ou classes): - Espécies da Lírica: soneto, ode, elegia, balada, rondó etc. - Espécies da Épica: epopéia, romance, conto, novela. - Espécies do Drama: tragédia, comédia, tragicomédia, farsa etc. Sobre a Essência de Cada Gênero O gênero lírico A essência lírica se manifesta nos fenômenos estilísticos. Será lírico o poema de extensão menor que não possuir personagens nítidos e no qual uma voz central (um eu-lírico) exprime seu estado de alma. Da expressão do Eu lírico advém o subjetivismo (o eu-lírico não pode ser confundido com um eu-autobiográfico). O clima lírico é provido de afetividade e emotividade, ligadas ao íntimo e ao sentimento. O eu-lírico, ao exprimir seus estados d’alma, envolve-se no que diz. Isto torna fluida e inconsistente a relação entre o sujeito e o objeto (entre o eu e o mundo). Emoção e sentimento impedem a configuração mais nítida das coisas e dos seres. O eu e o mundo se aproximam, fundem-se e confundem-se. Esta aproximação atinge vários graus: quando há descrições, diálogos, análises e reflexões, por exemplo, há um maior distanciamento entre o eu e o mundo, desvanece-se o clima lírico, visto que são incluídos elementos épicos ou dramáticos. A atitude lírica consiste na fusão entre o eu e o mundo. Isto só se dá por um estado de alma que envolve tudo, exterior e interior, passado, presente e futuro. Staiger chama a essência lírica de recordação (i. e., re + cor, cordis = de novo no coração) > o um-no-outro, o eu nas coisas e as coisas no eu. O gênero épico A essência épica: A essência épica revela-se através de traços estilísticos específicos. Ao contrário da lírica, a épica se realiza através de um distanciamento entre o sujeito (narrador) e o objeto (mundo narrado). O narrador não se envolve no que diz, confronta-se com o que narra. O mundo narrado é o ob-jeto (posto diante de). Epopéia vem do grego épos = canto, recitação, isto é, alguém narra um fato a um grupo de ouvintes; distanciando-se, portanto, o narrador em relação ao acontecimento passado, numa posição de confronto. O relato é a atitude épica na qual o narrador se coloca diante do objeto, segundo determinado ponto de observação, para ver, registrar, mostrar, enfim, apresentar. Por isso Staiger considera a apresentação a essência épica. A epopéia enquadra-se no gênero épico (também chamado de narrativo, por causa da apresentação) porque apresenta os elementos específicos da narração: narrador, espaço, acontecimento, personagens etc. A epopéia, contudo, não se confunde com a narrativa de ficção pelos seguintes motivos: 1. Integra a expressão formal na estrutura narrativa, isto é, a epopéia tem como unidade o verso, divide-se em estrofes e cantos, explora recursos rítmicos e sonoros. 2. Tem a presença de uma consciência lírica, necessária para integrar a expressão formal, aliada ao fio narrativo. Nesse sentido, fazer uma epopéia é um privilégio do poeta, condição para ser autor épico. 3. Estrutura a realidade através de uma proposição da realidade histórica resultante da fusão do real e do mito. A narrativa de ficção estrutura uma proposição de realidade ficcional (do verbo fingere), uma elaboração em nível de imaginário, de relação existencial do homem com o mundo; matéria romanesca, real imaginário criado literariamente. A matéria épica baseia-se na estruturação de uma proposição da realidade histórico-maravilhosa como resultado da realização literária da fusão do real histórico com o mítico. A natureza da matéria épica: Chamamos de matéria épica a fusão do real histórico com o mítico processada ao nível da realidade objetiva. A matéria épica constitui-se de uma dimensão real, projetada no acontecimento histórico, e de uma dimensão mítica sustentada na aderência mítica desrealizadora desse mesmo acontecimento histórico (ver in Anazildo V. da Silva, Formação épica da Lit. Bras.). O fato histórico, quando ocorre, é só realidade e o seu relato puro e simples é História. Se esse fato é grandioso e fantástico a ponto de romper o limite do real (ver mais adiante o conceito de mito), capaz de ultrapassar a capacidade de compreensão do homem na época de sua ocorrência, começa a receber uma aderência mítica desrealizadora que a ele se funde com o passar do tempo, convertendo-o em matéria épica. A epopéia é, pois, uma realização literária específica de uma matéria épica. É por isso que a epopéia estrutura-se em dois planos, o histórico (dimensão do real da matéria épica) e o maravilhoso (dimensão mítica da matéria épica). Observe que este conceito é fundamental para entendermos e caracterizarmos o herói épico e o relato, visto que a interação desses dois planos é uma exigência épica. O herói épico, para ser sujeito da ação épica, precisa agenciar as duas dimensões: a real e a mítica. Sua condição humana agencia o real histórico, sua condição mítica, o real maravilhoso. Sendo o personagem épico um ser histórico, a condição humana é um atributo natural para agenciar o real histórico, mas isto, por si só, não é suficiente para o elevar à categoria de herói (como ser histórico é um homem, um mortal, sujeito à consumação). Para ser herói, deve adentrar o solo do maravilhoso, ganhando, com a condição mítica, a imortalidade que o resgata da consumação do tempo histórico e lhe confere a heroicidade. Com a interação entre os dois planos, ou as duas realidades, ocorre a transfiguração histórica do relato e do herói. Essa interação ocorre sempre, ainda que o personagem seja um herói por natureza, isto é, quando já traz em si, geneticamente, as condições humana e mítica (Ex.: Enéias, filho de Anquises (humano) e de Vênus (deusa), tem em si, por uma situação original, a dupla condição que unge o herói épico). O que chamamos de modelo épico clássico é uma manifestação do discurso épico (epopéia) na antigüidade. Este primeiro modelo (clássico) foi devidamente formulado por Aristóteles. Seu discípulo Staiger sistematizou teoricamente os elementos estruturadores do discurso épico (também o lírico e o dramático, inter-relacionando-os). Staiger tem como objetivo determinar a essência épica, que denomina apresentação e justifica em função do distanciamento entre o EU e o MUNDO, isto é, entre o narrador e a matéria narrada. Esse distanciamento coloca o narrador diante da matéria narrada em situação de confronto (não de fusão), resultando daí os demais elementos ou fenômenos estilísticos que compõem essa essência: O passado. A memória. O uso da 3ª pessoa. A grandiloqüência. A narrativa e a ação. A inalterabilidade de ânimo. A uniformidade métrica. O desenrolar progressivo. Eis algumas obras épicas: Grécia - Ilíada, Odisséia - epopéias homéricas. Roma - Eneida, de Vergílio e Farsalia, de Lucano. Itália - A Divina Comédia - de Dante Alighieri; Jerusalém Libertada - de Torquato Tasso. Portugal - Os Lusíadas - de Luís de Camões. Brasil - O Uraguai - de Basílio da Gama e Caramuru - de Frei José de Santa Rita Durão. 15 16 O gênero dramático Na épica, o narrador apresenta a ação progressivamente, através de análises e descrições, estendendo-se longamente. Na obra dramática, ao contrário, há uma economia de meios, devido ao fator tempo (que é limitado). A ação épica se estende no tempo e no espaço, deslocando-se de um lugar para outro, do passado para o futuro. A ação dramática tem como espaço o palco, no momento da representação, coagida a uma seleção de lances num ritmo acelerado. Na épica, o narrador se demora em cada parte, importante em si mesma, pois seu objetivo não é o final. No drama não há essa visão setorial (por partes), mas há uma visão globalizante, que se volta para o que vai acontecer e instiga a ação para o final, para o desfecho. Esta preocupação faz com que todas as partes se relacionem entre si e com o todo, interdependentes. Este conjunto que se volta para o que vai ocorrer é o que Staiger chama de tensão. Fenômenos estilísticos do gênero dramático A maneira dramática: na obra lírica a relação entre o autor e o mundo é de envolvimento, na épica, de confronto, de distanciamento, visto que o narrador é o mediador do relato. Na obra dramática o autor desaparece atrás do mundo criado, visto que os acontecimentos se desenrolam autonomamente, sem interferência do narrador. A ação é desenvolvida por meio de personagens num palco, como representação do mundo. A maneira dramática consiste, pois, no modo de realização das ações, que faz as personagens aparecerem e agirem diante de nós. A ação se desenrola através de acontecimentos que revelam as personagens, situadas num determinado lugar e numa determinada época. Ausente o narrador, as personagens são responsáveis para dar conta das ações, através da representação [Drama = ação]. A tensão dramática, dinamizada pelo alvo a alcançar, impulsiona a ação e suprime todo o excesso. Daí decorre a concentração ou densidade. Convém restringir o tempo, economizar espaço e escolher um momento expressivo da longa história, um momento pouco antes do final, e daí desse ponto reduzir a extensão a uma unidade sensivelmente palpável, para que, ao invés de partes, grupos coesos ao invés de passagens isoladas, o sentido global fique claro, a fim de que nada do que o espectador deva fixar se perca. A obrigação da concentração e do sentido global mobilizado em função de desfecho se conexiona com a unidade de ação. Tal unidade condensa num todo coeso a ação principal e as acessórias. A ela se junta a unidade de lugar, pela concentração da encenação às vezes num só cenário, e a unidade de tempo, que é sempre restrito. O diálogo é a forma natural de as personagens, emancipadas do narrador, desenvolverem a ação. A respeito dele, Anatol Rosenfeld afirma: O que se chama, em sentido restrito, de “dramático”, refere-se particularmente ao entrechoque de vontades e à tensão criada por um diálogo através do qual se externam concepções e objetivos contrários produzindo o conflito (ROSENFELD, 1996). A ação, provinda do choque de interesses opostos, antes de chegar ao desfecho, passa por momentos chamados nó (conjunto de interesses que destrói a situação inicial para encetar a ação), reconhecimento (passagem da ignorância ao conhecimento de uma dada situação), peripécia (mudança da ação ao contrário do que se esperava) e clímax (ponto culminante do conflito, depois do qual a trama deve terminar). UNIDADE I 17 INTRODUÇÃO À LITERATURA LATINA 1.1 - Aspectos Históricos Como Foi Transmitida a Literatura Clássica? Quem lê uma história da literatura latina encontrase diante de uma narrativa contínua, uma narrativa complexa na qual se encontram personagens diversos – os escritores – que produzem suas obras. Ao ler assim, tudo em seqüência, não se dá conta de quanto trabalho, no tempo, foi necessário aos estudiosos para reconstruir um quadro dos fatos e dos acontecimentos literários tal que se possa, hoje, no estado atual do conhecimento, defini-lo como completo. O fato é que, de todos os textos da literatura clássica, alguns se conservaram mais ou menos íntegros, outros nos chegaram mutilados mais ou menos gravemente, de outros permaneceram somente algum pequeno fragmento, outros ainda desapareceram por completo e sabemos só (por testemunhas indiretas) que existiram um dia. O mesmo texto que lemos estampado em edições não é senão o ponto de chegada de uma história acidentada, no curso da qual sofreu deformações e prejuízos de vários tipos que o tornaram cá e lá defeituoso ou talvez incorreto. O trabalho dos filólogos providencia com perícia e paciência a restituição da originária correção dos textos. Em resumo, tanto a história da literatura grega ou latina como os textos das obras que as acompanham, se não tivessem sido integrados pelo trabalho dos estudiosos, resultariam muito mais lacunosos e incertos do que hoje o são. Uma enorme quantidade de textos da literatura latina já tinha sido perdida no fim da Idade Antiga; muitos outros se perderam durante a Idade Média. As razões desse desaparecimento são múltiplas e diversas: não só mudança de gosto e transformações culturais fizeram “descartar” certas obras, mas advém também que obras particularmente longas, como as Historiae de Tito Lívio, fossem abreviadas e simplificadas até que os compêndios fizeram desaparecer os originais; outras desapareceram pelos incêndios ou saques ou destruições de bibliotecas. Se o trabalho dos historiadores literários e dos filólogos não tivesse procurado pesquisar e reconstruir o que existia, muitos autores importantes hoje não teriam sequer mencionados os nomes. Os textos foram conservados e chegaram até nós graças a papiros e a manuscritos em pergaminhos ou em papel [ditos ainda códices, do nome codex (tabuinha de escrever), que tinha a tabuinha de madeira usada na idade imperial como capa das folhas de pergaminhos encadernados como livro]; importante é ainda a documentação que se reuniu através das epígrafes (inscrições em prosa ou em versos incisas no mármore, na pedra, no bronze ou sobre os vasos). Em alguns casos temos numerosíssimos exemplares para examinar, como certas obras de Ovídio; mas há também casos em que o manuscrito é um só, como acontece com os seis primeiros livros dos “Anais” de Tácito. Na maioria das vezes se trata de manuscritos medievais (a maior parte dos séculos IX ao XIII); mais raramente o texto é transmitido por manuscritos tardo-antigos ou, ao contrário, só por cópia da idade humanística. Por quanto vária e complexa possa ser a transmissão da cada um e dos diversos autores, quando a obra de um autor é conservada em códices manuscritos (copiados durante a I. M. pelos monges ou mais tarde pelos Humanistas), o editor reconstrói o texto trabalhando sobre testemunhas que são representadas por uma cópia ou por uma fieira de cópias. O resultado que alcança é chamado de edição crítica, uma edição que de costume contém, além do texto crítico reconstruído pelo editor moderno, também um aparato crítico, onde estão assinaladas as variantes por ele refutadas (neste aparato de notas, estampado na maioria das vezes ao pé da página, se registram precisamente as variantes, isto é, as diferenças entre os vários manuscritos). De tal modo resultam logo evidentes os critérios de reconstrução do texto que o editor adotou preferindo uma lição a outra (preferindo um determinado modo que o copista do manuscrito “leu” e transcreveu um passo). A disciplina que examina a tradição manuscrita de um texto (ou seja, o conjunto dos documentos escritos que o transmitiram), que tem por objetivo reconstruir a forma originária e que procura saneá-lo dos gastos ocorridos com o tempo, é chamada de crítica textual. Nesse caso, qualquer que seja a particular situação da tradição manuscrita de um autor, a nossa relação com os textos pode ser definida como direta, no sentido que esses foram reproduzidos por si sós (embora com possíveis gastos, cochilos do copista, omissões, infidelidades, acréscimos e ajustes). Diz-se então que esses textos chegaram até nós por tradição direta. 18 Das obras de alguns autores (por exemplo, Vergílio, mas também Cícero, Horácio, Pérsio) possuímos seja a tradição direta, sejam testemunhas de tradições indiretas (por exemplo em obras de comentadores antigos: Sérvio para Vergílio, Porfírio para Horácio etc.). Mas, como se falou, a rede de obras conservadas se entrecorta continuamente com uma rede de obras perdidas, da qual é conservada notícia graças ao testemunho de outros autores e de outros textos. Autores cruciais para o desenvolvimento da cultura romana (como Névio, Ênio, Lucílio) nos são conhecidos desta maneira, porque partes dos seus textos são citadas por outros autores (como as Origines e o Hortensius de Cícero). Neste caso possuímos textos que nos são legados de “segunda mão”: trata-se de pequenos trechos, de fragmentos recordados habitualmente por razões lingüísticas ou gramaticais. Diz-se então que os textos nos chegaram por tradição indireta. Os gramáticos latinos nos conservaram uma preciosa coleção de fragmentos de textos para nós perdidos: eram atraídos por uma palavra inusual, por uma construção estranha, por um arcaísmo, por um neologismo, em geral pela experimentação lingüística, e por isso referiam palavras de autor (trechos inteiros, frases ou uma expressão) no interior de um discurso deles. Mas acontece também que Cícero (por ex. no Brutus) cita com admiração (e assim se os conserva) alguns versos dos Annales de Ênio. A literatura clássica seria para nós muito menos substanciosa se também esta rede fragmentária e semi-submersa não tivesse sido percorrida e explorada por pacientes e espessos geniais estudiosos. 1.2 - O Século de Augusto (de 44 ou 43 a. C. a 17 d. C.) Foi a época de ouro da literatura latina. Floresceram os mais variados gêneros literários: a historiografia, com Tito Lívio e Salústio, a poesia épica, com Vergílio (Enei- da), o lirismo, com Horácio, Vergílio, Ovídio, Tibulo e Propércio. A vida cultural desenvolvia-se em torno dos círculos como os de Messala, Polião e Mecenas. 1.3 - Epopéia Grega Leitura Os helenos são oriundos da planície do Danúbio, tendo penetrado na bacia mediterrânea oriental por meio de invasões sucessivas a partir do séc. XV a.C. Encontraram nas ilhas do mar Egeu populações que tinham se tornado civilizações brilhantes (civilização cretense/egéia ou minóica). A colonização, do séc. VII ao V, expandiu a língua e a cultura por quase todo o mediterrâneo. As conquistas de Alexandre (IV) levaram-no até o coração da Ásia. A conquista romana (II a.C.) introduziu-a em Roma. No I séc. a. C., em todo o mundo antigo, falava-se ou lia-se o grego e todos tornaram-se tributários da cultura helênica. Dárdano, filho de Zeus, fundou a Dardânia, um distrito a noroeste de Tróia, e casou-se com a filha de Teucro, rei do lugar. Seus descendentes foram Tros (de quem o distrito de Tróia e os troianos tiraram o nome) e Ilos, fundador da cidade de Tróia, conhecida conseqüentemente como Ílion. Segundo Junito Brandão, “um fato parece definitivo: uma realidade histórica está subjacente ao mito na epopéia homérica, se bem que, glorificada e transfor- Alguns consideram que Homero tenha nascido no século XII a.C., situando os episódios narrados pela Ilíada e pela Odisséia como ocorridos por volta do séc. XIII ou XII a.C. Outros situam seu nascimento no séc. IX e até mesmo no séc. VII a.C. Modernamente, prefere-se situá-lo no séc. IX, na Ásia Menor. O ponto de partida das narrativas é a Guerra de Tróia, que teria ocorrido entre os séculos XIII e XII a.C. Segundo escavações recentes, Tróia seria uma fortaleza de forma aproximadamente circular, não medindo mais do que 183m transversalmente. As muralhas tinham aproximadamente 4,50m de largura e 6m de altura, com portas e torres quadradas para sua defesa. O terreno dentro da fortaleza elevava-se em terraços até o palácio situado em seu centro. Eis uma história reduzidíssima da fundação de Tróia: mada por vários séculos de tradição puramente oral que precederam à composição definitiva elaborada por Homero (séc. IX - VIII a.C.) e a fixação por escrito dos dois poemas (séc. VI a.C.). A dificuldade maior no estudo da epopéia Homérica está em isolar o que realmente é micênico do que pertence a épocas posteriores, como a Idade do Ferro, a Idade do Caos e ao ambiente histórico em que viveu o próprio poeta. Sem dúvida, também sob o ângulo político, social e religioso, os poemas homéricos são uma colcha de retalhos com rótulos de civilizações diferentes no tempo e no espaço. Não obstante todas essas dificuldades, alguns elementos micênicos podem, com boa margem de segurança, ser detectados no meio dos dois grandes poemas. Consoante Homero, o que parece autêntico, o mundo micênico era um entrelaçamento de reinos pequenos e grandes, mais ou menos independentes, centralizados em grandes palácios, como Esparta, Atenas, Pilos, Micenas, Tebas..., mas devendo fidelidade, ou talvez vassalagem, não se sabe muito bem por que, ao reino de Agamêmnon, com sede em Micenas. Além deste aspecto político, há outros a considerar. M. Helena da Rocha Pereira alinha alguns elementos aqueus presentes na epopéia homérica. “Ora, os Poemas Homéricos descrevem, fundamentalmente, a civilização micênica, embora ignorem a sua forte burocratização e a abundância de escravatura, reveladas pelas tabuinhas de Pilos. Mas, entre os principais elementos micênicos, podemos apresentar: as figuras e seus epítetos; a riqueza de Micenas (era rica em ouro); a raridade do ferro; a noção de que anáks (o senhor, o príncipe, rei com poderes religiosos e militares) é mais do que basileus (rei com poderes políticos); o fausto dos funerais de Pátroclo; a arquitetura dos palácios, nomeadamente a presença do mégaron; objetos como o elmo de presas de javali, a taça de Nestor e a espada de Heitor, com um aro de ouro”. Mas se comprovadamente existem elementos micênicos, de fundo e de forma, nos poemas homé- A Ilíada Primórdios da Guerra de Tróia A Ilíada trata de apenas uma pequena parte da Guerra de Tróia. De fato, só abarca alguns meses durante o décimo ano dessa guerra. Os gregos antigos, porém, estavam familiarizados com todos os acontecimentos que tinham conduzido a esse décimo ano e, no decurso da Ilíada, Homero faz muitas referências a diversos fatos passados. A lenda começa há séculos, com a construção da cidade de Tróia. Esta estava sob a proteção dos filhos de Zeus, o pai dos deuses. O rei da cidade era Laomedonte, que, por ela prosperar rapidamente, decidiu fazer uma enorme muralha para sua proteção. Esta é evidentemente a muralha que os gregos não conseguiram penetrar durante nove anos – o ponto em que começa a Ilíada. Para uma construção tão magnífica era necessário evocar o auxílio divino, e o deus dos mares e dos oceanos, Posídon, ofereceu-se para ajudar, mas disse que teria de ser compensado pelos seus esforços. ricos, como pode o bardo máximo da Hélade ter conhecimento, por vezes tão preciso, de um mundo que ele cantou cerca de quatro ou cinco séculos depois? A escrita já existia, é verdade, e cinco séculos também antes do poeta, mas aquela, a Linear B, era usada, sobretudo em documentos administrativos e comerciais e não em textos de caráter literário. Parece que os poderosos senhores do mundo aqueu julgavam indigno ou desnecessário que suas façanhas fossem gravadas em tabuinhas de argila. E realmente não era necessário, pela própria técnica poética da época. A poesia épica missênica é oral e tradicional, uma poesia não escrita e transmitida de geração a geração. Uma poesia áulica, cheia de fórmulas de caráter religioso e militar e cuja sobrevivência se deveu aos aedos (cantavam ao som da cítara, improvisando, inspirados pelos deuses) e rapsodos (poetas que costuravam os versos sem cantar, apenas recitando-os). (....) Os poemas homéricos resultam, pois, de um longo, mas progressivo desenvolvimento da poesia oral, em que trabalharam muitas gerações. Usando significantes do fim do séc. IX e meados do séc. VIII a.C., épocas em que foram, ao que parece, ‘compostas’, na Ásia Menor grega, respectivamente a Ilíada e a Odisséia, o poeta nos transmite significados do séc. XIII ao séc. VIII a.C. O mérito extraordinário de Homero foi saber genialmente reunir esse acervo imenso em dois insuperáveis poemas que, até hoje, se constituem no arquétipo da épica ocidental” (Brandão, Junito de Souza. Mitologia grega. Petrópolis, Ática, 1996. v. III). No fim dos trabalhos, os troianos pensaram que a muralha era tão impenetrável que se recusaram a compensar Posídon. Este retirou então a sua proteção e, assim, a cidade ficou sem a proteção divina e vulnerável ao ataque. Na altura da Guerra de Tróia, a cidade era governada pelo rei Príamo, casado com Hécuba, a qual, segundo a lenda, deu-lhe 49 filhos, incluindo o nobre Heitor, a profetisa Cassandra, Páris e muitos outros. Quando Hécuba estava grávida de Páris, teve o sonho de que esse filho seria a causa da destruição de Tróia. Um oráculo e um adivinho confirmaram que ele seria efetivamente a causa da destruição total da nobre cidade de Tróia; portanto, para o bem da cidade, Hécuba concordou em abandonar o recém-nascido à morte, expondoo no monte Ida, mas ele foi salvo por pastores e cresceu como pastor, ignorante do seu nascimento real. Pouco antes do início da Guerra de Tróia, Zeus preparou o casamento de Tétis (uma deusa) com Peleu (um mortal); serão a mãe e o pai do nobre Aquiles. No casamento, todos os deuses e deusas compareceram e estavam a divertir-se, quando Éris, a deusa da discór- 19 20 dia, que, por razões óbvias, não foi convidada, joga uma maçã de ouro no meio deles, com as palavras “PARA A MAIS BELA” nela inscritas. Hera, Atená e Afrodite reclamam a maçã e pedem a Zeus que julgue entre elas, mas este recusa-se sabiamente, preferindo nomear o pastor Páris (o qual tomava conta dos rebanhos nas proximidades) para decidir o pleito. As deusas vão todas a ter com Páris, e cada uma delas procura suborná-lo, oferecendo-lhe a sua especialidade. Hera oferece-lhe um rico reino e poder. Atená oferece-lhe sabedoria e êxitos militares. Afrodite oferece-lhe amor, o amor da mais bela mulher do mundo, a espetacular Helena. Conseqüentemente, Páris escolhe Afrodite, tornando assim Hera e Atená suas implacáveis inimigas, jurando ambas destruir Páris e a cidade de Tróia. Ao saber que possuirá Helena, Páris vai primeiro a Tróia e estabelece-se como verdadeiro príncipe, filho legítimo de Príamo e Hécuba. Depois embarca para Esparta, para a corte do rei Menelau, o qual estava ausente, onde seduz e logo rapta Helena, levando-a para Tróia. A Guerra de Tróia Quando Menelau volta a Esparta e sabe da partida da esposa, convoca grande número de generais gregos para o acompanharem na conquista de Tróia e na recuperação de Helena. Em tempos, todos esses generais tinham cortejado Helena, chegando depois a um acordo: comprometiam-se a auxiliar aquele que conseguisse o amor de Helena e a vingar qualquer desonra a que o futuro marido ficasse sujeito por causa dela. Assim, Páris precipitou a Guerra de Tróia, cumprindo o sonho profético que sua mãe tivera de dar à luz um filho que seria a causa da destruição da cidade de Tróia. Alguns dos chefes gregos estavam ansiosos por saquear Tróia, mas dois, Ulisses e Aquiles, tinham sido avisados por oráculos do destino que teriam se participassem da expedição. Ulisses foi avisado de que estaria ausente durante vinte anos, pelo que se fingiu de louco, mas a sua astúcia foi rapidamente descoberta e acabou por concordar em partir. Os gregos sabiam que nunca poderiam capturar Tróia sem a ajuda de Aquiles, que era o maior guerreiro do mundo. Este era praticamente invulnerável como combatente porque, ao nascer, a mãe o mergulhara no rio Estige, tornando-o imortal em todo o corpo exceto no calcanhar, por onde o segurara (mais tarde, Páris descobrirá esta vulnerabilidade e disparará uma seta envenenada para o calcanhar de Aquiles – é por esta razão que utilizamos a expressão “calcanhar de Aquiles” para nos referimos à vulnerabilidade de alguém). Aquiles foi avisado de que, se fosse para a guerra, obteria grande glória, mas morreria jovem. Então a mãe disfarçou-o com roupas femininas. Porém, o astuto Ulisses descobriu a artimanha e Aquiles acabou por concordar com a sua participação. O irmão de Menelau, Agamêmnon, foi eleito chefe do exército. Quando estavam reunidos mil navios, os ventos acalmaram e, após consulta dos oráculos, descobriu-se que Agamêmnon matara um veado consagrado à Ártemis, a deusa da caça. Nada a poderia pacificar a não ser o sacrifício da filha de Agamêmnon, Ifigênia. Após considerável angústia, Agamêmnon mandou chamar a filha, sob pretexto de que ela iria casar com Aquiles. Uma vez lá, todavia, fê-la sacrificar, e os ventos começaram imediatamente a soprar. A expedição partiu. O primeiro desembarque foi num local errado, mas os gregos (chamados de aqueus, na Ilíada) acabaram por chegar a Tróia e sitiar a cidade, colocando Aquiles numa das extremidades e o famoso Ajax na outra. Durante nove anos tentaram, sem êxito, penetrar a invulnerável muralha troiana. Contudo, conquistaram e pilharam muitas terras pequenas e, no fim do nono ano, capturaram duas belas mulheres, Criseide, que foi entregue a Agamêmnon, e Briseide, que coube a Aquiles. Aqui começa a Ilíada, que terminará com o funeral de Heitor. A Queda de Tróia Depois do funeral de Heitor, os troianos solicitaram a ajuda de forças exteriores e os gregos perderam muitos combatentes valorosos. Numa batalha, Aquiles defrontou-se com Páris, o qual lançou uma seta que, guiada por Apolo, atingiu Aquiles no calcanhar direito, o único ponto em que ele era vulnerável. Só com grande dificuldade é que Ajax e Ulisses conseguiram recuperar o corpo de Aquiles, e logo surgiu uma disputa sobre quem deveria receber sua esplêndida armadura. Quando esta foi atribuída a Ulisses, Ajax ficou tão furioso que ameaçou matar alguns dos chefes gregos, mas, ao aperceberem-se do erro do seu comportamento, acabou por se suicidar. Com a morte dos dois maiores guerreiros, Ajax e Aquiles, os gregos começaram a duvidar de que algum dia conseguiriam conquistar Tróia. Consultando diversos adivinhos e oráculos, são informados de que se devem apoderar do arco e flechas de Héracles, que se encontravam nas mãos do príncipe Filocteto, um grego anteriormente abandonado devido a uma terrível ferida que não sarava. Ulisses e Diomedes são enviados e convencem Filocteto a regressar com o arco e as flechas. No seu primeiro combate, este consegue matar Páris. Esta morte, no entanto, não afeta o curso da guerra. Aos gregos foi então apresentada uma série de coisas que teriam de ser realizadas para alcançarem a vitória como: 1. Levar os ossos de Pelops da Ásia de regresso à Grécia; 2. Fazer que o filho de Aquiles entrasse na guerra; 3. Roubar a imagem sagrada de Atená do santuário de Tróia. Estes fatos foram realizados, mas nenhum deles alterou o curso da guerra. Então Ulisses concebeu um plano através do qual os gregos poderiam penetrar as defesas de Tróia: foi construído um grande cavalo de madeira, com o ventre oco, para conter muitos guerreiros. Na escuridão da noite, o cavalo foi levado para as planícies de Tróia, e alguns combatentes gregos treparam para dentro dele. Os restantes gregos queimaram os acampamentos e afastaram-se para os barcos, simulando o abandono da guerra, mas ficaram à espera para além de uma ilha próxima. Na manhã seguinte, os troianos descobriram que os gregos tinham ido embora e encontraram o enorme cavalo misterioso postado em frente de sua cidade. Também depararam com um grego chamado Sínone com histórias plausíveis acerca da partida dos gregos, do cavalo de pau e da sua própria presença ali. Sínone contou a Príamo e aos outros que Atená abandonara os gregos devido ao roubo da sua imagem do templo. Sem a ajuda dela, sentiram-se perdidos e, por isso, partiram. Porém, para chegarem em segurança às suas terras, tinham de proceder a um sacrifício humano. Sínone era o escolhido, mas fugira e escondera-se. O cavalo fora deixado para aplacar a ira da deusa, e os gregos tinham a esperança de que os troianos o profanassem, atraindo o ódio de Atená. Estas mentiras convenceram Príamo e muitos outros troianos, que então arrastaram o cavalo gigantesco para dentro das muralhas, a fim de honrarem Atená. Nessa noite, os soldados saíram sub-repticiamente do cavalo, mataram as sentinelas e abriram as portas da cidade para permitirem a entrada do exército grego. Este acendeu focos de incêndio por todo o lado, começou a massacrar os habitantes e procedeu à pilhagem. A resistência troiana de nada serviu. O rei Príamo foi morto, e, ao amanhecer, quase todos os troianos tinham tido o mesmo destino. Só escaparam Enéias, com o seu pai e o seu filho criança, e um pequeno grupo de troianos. O filhinho pequeno de Heitor foi atirado do alto da muralha da cidade. As mulheres que ficaram foram entregues aos chefes gregos como troféus de guerra para serem usadas como escravas ou concubinas. Tróia foi devastada. Hera e Atená tiveram sua vingança sobre Páris e a sua cidade. Resumos e Comentários Canto I A peste - A ira de Aquiles A Ilíada começa, como todos os poemas épicos, com a invocação do poeta à musa (deusa) da poesia. Nesta invocação, Homero apresenta seu tema, a ira ou a fúria de Aquiles e seus efeitos, e pede a ajuda da musa para conseguir contar adequadamente a história. O leitor é então levado ao ponto onde o problema teve sua origem. É aí que a história da Ilíada começa. Durante uma das muitas expedições do exército aqueu (grego) nas proximidades de Tróia, duas jovens troianas muito belas, Criseide e Briseide, foram capturadas e levadas ante o chefe do exército Agamêmnon e ante a Aquiles. Criseide, troféu de Agamêmnon, é filha de Crises, sacerdote de Apolo, e não tarda muito para que Crises venha ao acampamento aqueu, esperando resgatála. Agamêmnon se recusa a cedê-la e ordena rudemente ao velho que abandone o acampamento. Desesperado, Crises implora o auxílio de Apolo. Este responde à prece do sacerdote e uma peste mortífera espalha-se entre os aqueus, matando centenas de combatentes. No décimo dia da peste, Aquiles recusa-se a aguardar mais tempo uma ação do rei Agamêmnon para pôr fim à praga. Usurpando a autoridade de Agamêmnon, Aquiles convoca uma assembléia do exército e sugere que seja chamado um adivinho para determinar a causa da peste. Calcante, um adivinho aqueu, explica a causa, após suplicar a Aquiles absoluta proteção. Quando o adivinho revela que a causa é resultante da recusa de Agamêmnon em devolver Criseide ao pai, o próprio Agamêmnon fica furioso por ser publicamente nomeado como responsável pela praga. Insiste em que, se for obrigado a devolver Criseide, sua recompensa de direito, então tem de ser compensado com a recompensa de Aquiles, Briseide. Tal exigência enfurece Aquiles, que, ofendido na sua timé e areté, considera até mesmo a hipótese de apunhalar Agamêmnon, mas é acalmado pela deusa Atená, ao tomar da espada. Finalmente Nestor (o mais velho e sensato de todos os guerreiros aqueus) ergue-se para falar e consegue pacificar os dois homens irados. Aquiles, contudo, permanece encolerizado pela afronta pública de Agamêmnon ao exigir Briseide, e recusase a aceitar a indignidade que sente ter-lhe sido imposta na presença de todos os soldados. Conseqüentemente anuncia que retira todas as suas tropas da luta. Nem ele, nem nenhum dos seus homens voltarão a lutar com os aqueus contra os troianos. Justifica a decisão afirmando que nem ele nem qualquer dos que o seguem tinham qualquer questão pessoal com os troianos. Ele só tinha ido ajudar Agamêmnon e Menelau na tentativa de recuperação da esposa deste, Helena, e considera extremamente injusto que lhe retirem a recompensa, Briseide. Aquiles está firme na decisão de não voltar a lutar: não o fará e, além disso, ele e seus homens regressarão o mais breve possível à sua própria terra. No entanto, Agamêmnon decide aplacar Apolo: devolverá Criseide, a sua recompensa. Envia-a em segurança a bordo de um navio, que a levará até sua terra, e depois manda os seus arautos irem buscar Bri- 21 22 seide. Surpreendentemente, Aquiles entrega a jovem sem qualquer dificuldade. A seguir, porém, num sofrimento profundo, Aquiles vagueia sozinho pela praia e chora. Foi publicamente envergonhado pelo rei Agamêmnon e tratado como um escravo. A sua mãe Tétis, uma ninfa do mar, aparece ao ver o filho em tal estado. Este confessa-lhe seus problemas e pede-lhe que utilize sua influência junto de Zeus para assegurar que os exércitos troianos derrotem os seus camaradas de aramas aqueus. Aquiles pensa que, quando os aqueus compreenderem que estão perdendo a guerra em razão de sua ausência, entenderão qual o verdadeiro valor que Aquiles tinha para eles. Em resultado disso, remediarão o insulto de Agamêmnon. Tétis visita Zeus no Olimpo, e o rei dos deuses concorda em ajudar os troianos, embora exprima o temor de que a esposa, Hera, fique aborrecida, pois ela tem ciúmes de Tétis, odeia os troianos e não suporta a idéia de os ver ganhar a guerra. Descobrimos de fato que Hera odeia os troianos, mas teme ainda mais a ira de Zeus, pelo que cala os seus problemas. O canto I termina com um banquete dos deuses no palácio de Zeus. Odisséia Sinopse da Odisséia Ulisses, rei de Ítaca, participa da grande expedição dos aqueus, comandada por Agamêmnon, contra a cidade de Tróia, com o fim de resgatar Helena para Menelau. Após 10 anos, Tróia é saqueada e os heróis aqueus regressam a casa. Quando a Odisséia começa, já se passou mais de uma década desde a queda de Tróia. Ulisses ainda não regressou. Todos os outros chefes já tinham regressado às suas pátrias ou já tinham morrido. Não havia, porém, qualquer notícia do rei de Ítaca. Na sua ausência, os nobres de Ítaca e das cidades vizinhas convergiram para o palácio, esperando obter a mão de Penélope, mulher de Ulisses. Esta, sempre fiel à memória do marido, não quer voltar a casar e, enquanto permanecem no palácio tentando que ela mude de idéia, os pretendentes esbanjam a fortuna de Ulisses para seu próprio prazer e corrompem muitos dos seus criados. Quando Telêmaco, o filho de Ulisses, cresceu, visitou vários senhores aqueus na esperança de saber se o pai ainda estava vivo. Durante esses dez anos, Ulisses vagueou pelo mundo, passando por uma série inacreditável de aventuras e sofrendo tormentos inimagináveis, causados pela maldade de Possêidon. Perdeu todos os seus barcos e é o único sobrevivente do valoroso exército que partiu de Tróia. Finalmente, com a ajuda do rei dos feaces, Ulisses regressa a Ítaca. Auxiliado pela deusa Atená, de quem é o favorito, Ulisses castiga os pre- tendentes e restitui-se como rei. Reencontra a mulher, o filho e o pai, e uma possível guerra civil é evitada pela intercessão dos deuses. A Odisséia começa com a invocação de Homero à musa da poesia, na qual enuncia o tema do poema épico e lhe pede que o oriente para que possa contar a história de modo adequado. É, diz ele, a história de um homem solitário que vagueou pelo mundo durante muitos anos e sofreu muitos tormentos antes de a sua tentativa de regressar à pátria ser bem sucedida. No início da história, todos os sobreviventes da guerra de Tróia, com a exceção de Ulisses, já regressaram a casa. Ele se encontra retido pela ninfa Calipso, que tem esperanças de o fazer seu marido e, enquanto a maior parte dos deuses lhe vota simpatia, Posídon, deus do mar, tem-lhe rancor e fá-lo sofrer muitas provações. Na ausência de Posídon, Zeus, o rei dos deuses, convoca um conselho divino no Olimpo. Depois do discurso de abertura sobre o castigo de Egisto, o assassino de Agamêmnon, Atená interrompe o pai. Recorda-lhe o pobre Ulisses, separados da família e dos seres amados numa ilha distante e exige que os deuses retomem a sua anterior amizade para com ele. Salienta que embora Posídon lhe tenha rancor porque Ulisses cegou um dos seus filhos, ele pode ser obrigado a submeter-se ao desejo conjunto dos outros deuses. Sugere que Hermes seja enviado a Calipso, ordenando-lhe que liberte Ulisses, enquanto ela se disfarçará e irá visitar Telêmaco, o filho de Ulisses. Zeus e os outros deuses concordam com a sugestão de Atená. Atená veste-se de guerreiro e vai imediatamente a Ítaca, o país de Ulisses. Ali, encontra a casa do herói ocupada por um bando de príncipes menores e jovens nobres que aparentemente fazem a corte à mulher de Ulisses, mas que, ao mesmo tempo, passam os dias em banquetes e festins nos quais esbanjam toda a fortuna de Ulisses. Atená, identificando-se como Mentes, chefe dos Táfios e velho amigo de Ulisses, é bem recebida por Telêmaco. Sentados ao jantar, Telêmaco pede desculpa pelo comportamento grosseiro dos pretendentes. Pergunta a Atená se tem notícias do pai. Atená tranqüiliza Telêmaco, dizendo que Ulisses está vivo em algum lugar e que acabará por regressar a casa e castigará os pretendentes. Telêmaco descreve os problemas causados pela ausência do pai e explica como Penélope, a mãe, se recusa a casar-se novamente. Atená recomenda a Telêmaco que convoque uma reunião na ágora, durante a qual ordenará aos pretendentes que saiam da casa e, ao mesmo tempo, anunciará a sua intenção de procurar saber notícias do Ulisses. Então, a deusa aconselha, deve partir para Pilo e Esparta para saber o que for possível, por intermédio de Nestor e Menelau. Além disso, salienta Atená, se Ulisses tiver morrido, então é hora de Telêmaco enfrentar as suas responsabilidades, reclamando a sua herança, fazendo que a mãe escolha um novo marido e castigando os pretendentes. A deusa parte e ambos separam-se como amigos. Entretanto, no festim dos pretendentes, um aedo canta sobre as aventuras dos aqueus de Tróia. Penélope aparece e fica perturbada por esta lembrança de Ulisses, ausente há tanto tempo, mas Telêmaco orde- na-lhe que saia da sala, onde o divertimento é, afinal, destinada a homens e não a mulheres sensíveis. Os pretendentes tentam interrogar o jovem sobre o seu recente visitante. Ele anuncia a convocação da assembléia para a manhã seguinte, bem como a sua projetada viagem em busca de informações e o castigo que tenciona aplicar a todos eles. Ficam surpresos com esta súbita afirmação de virilidade, mas prosseguem o festim esbanjador. Telêmaco vai-se deitar e sonha com a sua próxima viagem. 1.4 - A Epopéia em Roma Publius Vergilius Maro, às vezes chamado de Vergílio (Andes, 15 ������������������������� de Outubro������������ de 70 �������� a.C.� - Brindisi���������������������������� ������������������������������������ , �������������������������� 21 de Setembro������������ de 19 �������� a.C.�) Sua obra mais conhecida é a Eneida. Foi considerado ainda em vida como o grande poeta romano e expoente da literatura latina. Seu trabalho foi uma vigorosa expressão das tradições de uma nação que urgia pela afirmação histórica, saída de um período turbulento de cerca de dez anos, durante os quais as revoluções prevaleceram. Considerado o maior poeta latino, era natural da região de Mântua (70-19 a.C.) e filho de uma família de camponeses. Alcançou pelo casamento uma situação estável, podendo então ouvir, em Milão e Roma, as lições de filósofos epicuristas. Amigo de Horácio, como ele protegido por Mecenas, entrou em contato com o imperador, de quem recebeu o incentivo para escrever a Eneida. Admirador da cultura helênica, empreendeu uma viagem à Grécia, berço e viveiro da cultura, sonho que há muito acalentava: o destino concedeu-lhe a realização desse anseio, mas morreu no regresso, junto de Brindisi. O seu túmulo encontra-se em Nápoles. A obra de Virgílio compreende, além de poemas menores, compostos na juventude, as Bucólicas ou Éclogas, em número de dez, em que reflete a influência do gênero pastoril criado por Teócrito. As Geórgicas, dedicadas ao seu protetor Mecenas, constam de quatro livros, tratando da agricultura. Trata-se de uma obra de implicações políticas indiretas, embora bem definidas: ao fazer a apologia da vida do campo, o poeta serve o ideal político-social da dignificação da classe rural. Reflete a influência de Hesíodo e Lucrécio. Literariamente, as Geórgicas são consideradas a sua obra mais perfeita. E, finalmente, a Eneida, que o poeta considerou inacabada, a ponto de pedir, no leito de morte, que fosse queimada, constitui a epopéia nacional. Eneida resumo e comentários A tempestade: Enéias em Cartago Arma virumque cano... Início da Eneida, verso célebre na antigüidade. Foi usado por poetas como Propércio, Ovídio, Pérsio e Marcial, como referência à obra vergiliana. Sobre paredes de Pompéia, foram encontrados diversos grafites reproduzindo-os ou parodiando-os, como: Fullones ululamque cano, no Arma virumque. (Eu canto os pisantes e a coruja, não as guerras e o varão.) Nos sete primeiros versos está resumida toda a ação da Eneida. O primeiro verso Arma virumque cano, Troiae qui primus ab oris evoca Enéias – sem o nomear – e Tróia, sua pátria; o último dos sete Albanique patres atque altae moenia Romae termina sobre o nome de Roma, ou seja, de Tróia até o Lácio, malgrado a ira de Juno. Ao mesmo tempo estão presentes os dois personagens principais do poema: Enéias, o troiano fugitivo que os destinos chamam para fundar uma cidade sobre as margens do Tibre, e Roma, cuja grande imagem estará sempre no pensamento do leitor. Arma (= instrumentos bélicos de defesa e ataque) quer dizer guerra, luta; ao passo que virum (homem, varão, em oposição a homo < humus) refere-se ao herói, isto é, a um ser cujo epíteto é uma garantia de nobreza; é o ser dotado da areté e da timé; é aquele que tem de superar um a um os obstáculos para mostrar que é herói, isto é, que está acima do comum dos homens – um semideus; mas é também aquele que vai se sujeitar ao Destino e à vontade dos deuses (Fato profugus). A isto o poeta diz cano, isto é, canto, do verbo cantar. Cantar é mais do que dizer, narrar: é falar grande, é ser grandiloqüente. 23 24 Depois deste preâmbulo, o poeta invoca a Musa: Musa, mihi causas memora... (A musa da poesia épica, a filha mais velha de Mnemosine, era Calíope, uma das sete musas protetoras das artes e da literatura). A invocação da Musa é uma tradição homérica. Esta invocação termina com uma pergunta do poeta: Tentaene animis coelestibus irae?. Tal questionamento mostra que o poeta, assim como todos os romanos, não admite que os deuses possam ser acessíveis às mesmas paixões que rasgam os humanos. Como se explica isso? Vergílio assinala desde o início do poema: diante dos sofrimentos infligidos ao herói – alma religiosa! – por uma divindade rancorosa, ele, o herói, se assombra e sua piedade emudece. O poeta explica que Juno teme por Cartago, sua cidade predileta, que seja aniquilada por um povo oriundo da raça troiana. Além disso, a deusa ainda guarda em seu coração o julgamento de Páris, em que fora preterida. Deste modo, Juno aparece como uma deusa vingativa; os infelizes mortais são, então, os joguetes das paixões divinas. Em Homero este conceito era aceito normalmente, sem objeções; mas, entre os romanos, era inconcebível que os deuses agissem assim. Vergílio atualiza o dado com o verso Tantae molis erat Romanam condere gentem! (Tantos esforços eram para fundar a nação romana). É a resposta à pergunta que acaba a invocação. Ou seja, as divindades têm suas iras, mas as perseguições servem para dizer que os fins justificam a injustiça: eram necessárias as tribulações de Enéias para que Roma pudesse nascer. Quer dizer, Roma não nasce sem sacrifícios, sem dor; é também o preço de tanto poder e de tanta glória. Enéias será o herói desses sacrifícios necessários e Juno, deusa que é, o instrumento de um Destino que ela crê combater (também os deuses estavam sujeitos ao Fado). Começa então a apresentação dos feitos em que o herói se envolve. A narrativa se inicia in medias res, isto é, no meio dos acontecimentos. O primeiro deles se dá no mar: os navios já estão se aproximando do destino final da viagem, os marinheiros estão felizes, quando desaba uma terrível tempestade, que Juno fez desencadear, e afasta os troianos para as costas da África. O poema não se inicia com os fatos conforme a ordem de ocorrência: a destruição de Tróia, depois a fuga, depois a viagem, depois a chegada. Começa no meio (esta forma de iniciar está em Homero, na Odisséia, quando Ulisses, depois de ter deixado a ilha de Calipso num navio, está para chegar ao país dos feaces. Vem uma tempestade que o leva para longe, entre os etíopes). Juno, para desencadear a tempestade, dirige-se a Éolo, o deus dos ventos, que lhe deve obrigações (através dela ele se tornou rei dos ventos); a deusa oferece-lhe em matrimônio Deiopéia, a mais bela de suas ninfas, como recompensa, a qual lhe dará belos filhos. Juno é a deusa dos bons casamentos. Vergílio, com isso, quer valorizar o prazer da dignidade do ca- samento e a legitimidade das alegrias familiares. Faz parte do plano augústeo de renovação dos costumes: a volta aos antigos costumes. É, pois, no meio do turbilhão dos ventos que aparece pela primeira vez o herói Enéias. Surge voltado para os céus, em plangente queixa. É a figura do pius Aeneas, cujo pensamento se volta sem cessar para o céu. Embora suas palavras não sejam uma oração, e sim um pranto, caracterizam o herói como o sobrevivente de uma “troupe” de outros tantos heróis como Diomedes, Aquiles, Heitor... A descrição das cenas que envolvem a tempestade são um belo exemplo da grandiloqüência épica. A tempestade representa um obstáculo mortal ao qual o herói deverá suplantar. Visto que estas forças da natureza são grandes demais para um homem, Netuno intervém majestosamente, opondo-se a Juno e a Éolo, e ajuda Enéias. Mas esta ajuda se justifica, visto que Juno e Éolo se intrometem num domínio que não lhes pertencia. No mais, a tempestade é a desordem dos elementos em convulsão; Netuno é igual a Augusto que vem restabelecer a ordem na cidade. E os troianos ganham as costas da Líbia. A liderança do herói se ressalta pelas cenas de reconhecimento do lugar, pela procura dos companheiros dispersos, pela provisão dos alimentos, pelo encorajamento aos companheiros através do discurso eficaz. Vênus vai ter com Júpiter, buscando satisfações para o que acontece. Através das palavras de Júpiter, Vergílio projeta a história e o futuro de Roma. E mostra o entendimento que deve dar à obra: será uma epopéia nacional e será um poema dinástico (Augusto é o continuador de Enéias). As guerras heróicas de Enéias no Lácio, as guerras que formaram o poderio romano dão início ao império de Augusto, o fundador da pax romana. Júpiter manda Mercúrio a Cartago a fim de preparar Dido para a chegada de Enéias. Segue-se o encontro de Enéias com sua mãe-protetora Vênus, que vem ajudá-lo, pondo-lhe a par do lugar em que está e das pessoas com quem há de lidar. Segue-se a narração do encontro de Enéias com a fenícia Dido ou Elissa, rainha da nascente Cartago. [Cartago teria sido fundada por volta de 814-813 a.C. por colonos Tírios, sob o reinado de Tir Pigmalião, por obra da irmã deste, Deido. Visto que as condições da fundação de Cartago eram desconhecidas, Vergílio as explica de forma legendária. Vergílio também cria a lenda da paixão de Dido por Enéias, afastando-se da história que, segundo Varrão, narra que Enéias teria tido uma aventura amorosa na África, mas não com Dido e sim com Ana, que seria a verdadeira fundadora da capital tíria (como se vê, a história é polêmica)]. Se Vergílio introduziu Enéias no palácio de Dido para que ele vivesse ali uma aventura amorosa, tinha suas razões. L. A. Constans enumera três delas: a primeira, de ordem literária ou estética, pretende que Enéias, da mesma forma que Ulisses, fique retido pelo amor de uma mulher – é o lado romanesco da epopéia; a segunda é de ordem histórica ou nacionalista, visto que a Eneida evocaria no espírito romano toda a história de Roma – alguma coisa anterior devia relacionar-se às guerras púnicas, fato que domina a história da fase republicana: Dido ao ser abandonada por Enéias lança-lhe imprecações antes do suicídio, ou seja, as guerras púnicas encontram uma explicação legendária e sobrenatural, pois elas são o cumprimento das imprecações de Dido; por fim, a terceira razão está relacionada com as circunstâncias da atualidade: a cidade que Enéias vê em construção não era uma cidade fenícia do século oitavo a.C., mas uma cidade nos moldes romanos, ou seja: no ano 44 a.C. César havia decidido ressuscitar Cartago, enviando veteranos para a colonia Iulia Carthago. Esta cidade seria a cidade em construção que Vergílio alusivamente descreve. A Eneida Após Vergílio Enéias vê-se em Cartago onde o detém um vasto templo que está sendo construído em homenagem a Juno, em meio a um bosque sagrado. Afrescos decorativos representam episódios da guerra de Tróia. O herói os contempla, comove-se ao extremo, vai às lágrimas e geme, em suspiros profundos arrancados do peito. Mais de uma vez o herói chora na Eneida. É a interpretação vergiliana do caráter do herói, do seu fundo psicológico, que, num momento de pausa e reflexão, mergulha no imo da alma humana para se compadecer. Há um elo sentimental entre Tróia, Enéias e Cartago. Mas esse mergulho é interrompido pelo que se pode então, de súbito, ver. Dido lhe aparece deslumbrante de beleza. Traz não só a majestade da rainha mas também um não sei o quê que a torna bem digna do filho de uma deusa. Mostra-se a construtora de uma cidade no momento em que ele sonha em fixar os penates num novo país. Não se pode pensar, por outro lado, que todas as opiniões só foram favoráveis à Eneida. Houve alguns autores e críticos que resistiram a ela nos primeiros tempos. É o caso de Carvilius Pictor que escreveu Aenneosmastix para fustigá-la. Herennius revela seus erros, enquanto que Perellius Faustus e Otavius Avitus denunciam seus plágios. O grande crítico Asconius Pedianus, do primeiro século da nossa era, consagrou uma obra para combater os detratores de Vergílio (Contra obtrectatores Virgilii). Calígula pretendeu banir das bibliotecas públicas as obras e as imagens de Vergílio, porque, segundo ele, era uma obra de “nenhum gênio e de magro saber” (Suetônio, Calígula, 34). Outros gramáticos como Valério Probo e Anneus Cornutus comentaram largamente a Eneida. Posteriormente, o estudo de Vergílio tornou-se um dos meios indispensáveis para a educação liberal, mas mantinha ainda alguma polêmica. Vênus, por sua vez, no intuito de ajudar o filho angustiado, transforma-lhe a fatigada e a pálida face desfigurada pelo naufrágio na vislumbrante figura que lembra a estátua de um deus. À vista daquela beleza sobrenatural, a rainha Dido se comove e seu coração feminino se enternece de piedade só de pensar nos sofrimentos do herói. Através das escolas, a Eneida ganhava outros locais além dos muros de Roma. Difundiu-se nos círculos mundanos e nos meios populares. Também passou a servir de motivo de esnobismo: na alta sociedade dos tempos de Nero era de bom tom falar sobre o conhecimento da Eneida. Juvenal (Sátira, VI) nos fala de uma mulher tocada pela literatura que senta à “mesa, louva Vergílio, justifica Dido pronta para morrer, põe os poetas em paralelo, compara-os, suspendendo na balança Vergílio de um lado e Homero de outro”. Políbio, alforriado por Cláudio, havia empreendido a tradução de Homero para o latim e de Vergílio para o grego, no que fora elogiado por Sêneca. Obstipuit primo aspectu Sidonia Dido Casu deinde viri tanto... (I, 613-614) (A sidônia Dido ficou estupefata à primeira vista; depois pela tão grande desgraça de um varão...) Ele é belo, mas infeliz. Ela está pronta a amá-lo. Vênus põe Cupido em ação, que toma os traços de Ascânio, o qual serve para os aproximar. Desenrola-se o banquete e Dido já “bebia o amor em prolongados goles”. A pedido da rainha, Enéias toma a palavra e fará o relato que ocupará os livros II e III. A glória de Vergílio já dura vinte séculos. Já na Antigüidade, as escolas esboçavam a imagem de um Vergílio sábio universal e filósofo místico, cuja obra encerraria, sob os vôos da alegoria e do símbolo, todos os segredos do universo. Até mesmo os cristãos viram no autor da IV égloga (Bucólicas) um anunciador do nascimento de Cristo. Traçaremos, a seguir, alguns esboços sobre a Eneida, desde sua publicação até nossos dias. A Eneida mal começou a ser escrita e já se tornara célebre. Os poetas da época de Augusto, Ovídio, Propércio, Horácio, até mesmo o historiador Tito Lívio, foram influenciados pela Eneida. No primeiro século da nossa era, Sílio Itálico e Estácio esforçam-se por enriquecer a epopéia latina seguindo os traços do mestre. Os gramáticos e os retóricos comentam seus versos. A Eneida também difundiu-se entre o povo. Os desocupados escreviam seus versos sobre as paredes das casas e sobre os monumentos públicos (pichações). A pantomima se amparava em seus heróis: Nero, no dia de sua morte, prometera imitar, dançando, um tre- 25 26 cho de Turno, de Vergílio, se ele escapasse de seus inimigos. O poema também era declamado em lugares públicos: Petrônio, no Festim de Trimalcião, nos mostra um convidado de seu jantar ridículo fazendo seu escravo recitar o livro V da Eneida. Na época dos Antoninos, o arcaizante crítico Fronto dizia preferir Ênio a Vergílio; o imperador Adriano achava o mesmo. Nessa época, a Eneida começa a se colorir de idéias supersticiosas: tiram-se dela, principalmente do livro VI, predições e avisos sobrenaturais. Para isto, abria-se o livro ao acaso e interpretava-se o primeiro verso que se oferecia. Adriano, malgrado suas prevenções literárias, foi o primeiro imperador a consultar as sortes vergilianae, cujo uso se perpetuaria durante a Idade Média. Esta tendência de fazer da Eneida um livro sagrado no qual se procuravam revelações de toda ordem, se traduziu nas escolas pela exegese alegórica. A partir desse procedimento, descobriu-se uma chave de um enriquecimento ilimitado: fazer significar no texto de Vergílio idéias filosóficas, religiosas e morais; abriamse ao ensino perspectivas que não tinham outros limites senão o da engenhosidade do mestre. O comentário de Servius, no final do século IV, nos mostra que desde então exercitava-se em fazer o poeta dizer o que ele não havia dito, e que sua obra estava para se tornar o que de fato foi, na alta Idade Média, uma vertente inexaurível de ensino filosófico e místico. Eis um exemplo que Servius nos dá acerca do ramo de ouro que a Sibila mandou Enéias colher para realizar sua viagem ao Hades: sabe-se que Pitágoras via a vida humana à imagem da letra Y: o tronco figura a primeira idade; a bifurcação, o momento da juventude, em que o homem tem de escolher entre o vício, que é representado pelo galho esquerdo, e a virtude, que simboliza o galho direito. O ramo de ouro tinha a forma de um Y, para significar que era preciso seguir o caminho da virtude; se Vergílio diz que ele estava escondido numa floresta, é porque de fato a virtude se dissimula no meio da confusão da vida e entre uma multidão de vícios. O mito das duas portas do Sono, uma de chifre e outra de marfim, é explicada por Sérvio da seguinte maneira: “a porta de chifres significa os olhos, porque eles têm a cor do chifre e são mais resistentes que as outras partes do corpo: visto que não sentem o frio, como diz Cícero em De natura deorum; a porta de marfim significa a boca, por causa dos dentes”. Na época em que apareceram os comentários de Servius, o Império, agonizante de melhores espíritos, fazia um supremo desejo de fé para manter o que eles acreditavam imortal: Roma, seu poder e sua cultura. E o momento em que Ausônio, um claudiano, tenta demonstrar pelos exemplos que a técnica vergiliana é sempre capaz de produzir belos poemas; é quando Rutílio Namatiamo diz em seus versos de forma clássica seu amor à cidade eterna. Vergílio, o poeta clássico por excelência e o cantor da grandeza romana, não podia deixar de ocupar um lugar de honra nesse renascimento. Na obra de Macróbio, quase a metade de suas Saturnales é dedicada a Vergílio. Ele insiste sobre a universalidade de seus conhecimentos: distingue-se nitidamente, nos diálogos macrobianos, os primeiros traços do Vergílio onisciente da Idade Média. A familiaridade que havia com a obra de Vergílio favoreceu os jogos literários dos centões (poesias constituídas por versos ou parte de versos de diversos autores), que teriam bela sorte na Idade Média. O Cento Nuptialis de Ausônio é um dos melhores espécimens do gênero: 131 versos de Vergílio, tirados especialmente da Eneida, são escolhidos e reunidos de tal forma que constituem um canto nupcial. Antes dele, um tal de Hosidius Geta compusera toda a tragédia de Medéia com a ajuda dos versos da Eneida. Esta renovação cultural havida entre os séculos IV e V da nossa era provocou uma série de reedições da Eneida, conforme nos atestam os manuscritos dessa época chegados até nós. A veneração que o autor da Eneida experimentava no final da Idade Antiga encontra-se também entre os autores cristãos. Não foi sem luta e remorsos que Santo Agostinho, bispo de Hipona, dizia: “Quem mais digno de piedade do que um infeliz que não tinha piedade por si próprio, e que chorava a morte de Dido, sobrevinda porque ela amava Enéias, mas que não chorava a sua própria morte, sobrevinda pela falta de te amar, ó Deus, luz do meu coração...”. No mesmo instante em que ele o acusa, freme ainda à lembrança de tudo o que fez bater seu coração de estudante: “Eu pecava, pois, quando, menino, preferia coisas vãs a coisas mais úteis, ou, dizendo melhor, quando eu detestava umas e amava as outras. Sim, ‘um e um fazem dois, dois e dois fazem quatro’ era para mim um refrão odioso, e eu experimentava as mais vivas delícias a este espetáculo de vaidade: um cavalo de madeira, cheio de soldados armados, incendeia Tróia, e a sombra da própria Creúsa”. São Jerônimo é ainda mais dramático. Conhecemos o sonho que teve em Antioquia: ele comparece diante de um juiz no tribunal que lhe diz: “Tu és Ciceroniano, e não cristão. Lá onde está teu tesouro, lá está teu coração”. E lá de cima um anjo lhe batia com varas. Ele fez então a promessa de não abrir mais nenhum livro profano. A leitura alegórica permitiu aos cristãos ler Vergílio sem nenhum remorso. Fulgêncio, no século VI, escreveu De continentia Vergiliana (Sobre o conteúdo de Vergílio), fornecendo um modelo de tal leitura. Escreve que o espectro de Vergílio lhe aparecera e lhe revelara que, ao escrever a Eneida, tivera como objetivo fazer um espelho da vida humana. O início do poema lhe forneceu a ocasião de mostrar de uma só vez a vertiginosa e inquietante profundidade do seu simbolismo: arma, virum, primus, essas três palavras correspondem a ter, governar, ornar, isto é, significam a natureza, a ciência e a felicidade. A tempestade do primeiro livro é a imagem das tempestades da vida e o naufrágio de Enéias era o nascimento do homem, que entra chorando nas praias da existência. Os livros II e III correspondem à infância, ávida de narrativas fabulosas; este período termina com a morte de Anquises, a qual simboliza que o homem se liberta da tutela paterna. Então ele se dedica aos prazeres da caça e ao amor (Dido). Depois ele retorna, dá-se conta dos ensinamentos de seu pai, dedica-se aos nobres exercícios (jogos fúnebres do canto V) e, com a inteligência triunfante, queima os instrumentos do erro (incêndio dos navios), libera-se das alucinações (Palinuro) e da vaidade (Misenas). A descida aos infernos é a viagem do espírito humano em busca da verdade filosófica. É inútil dizer se tudo é símbolo no país das sombras: o velho Caronte é o templo que nos ajuda a passar a vida sobre as águas agitadas e tumultuosas da juventude (Aqueronte); Cérbero, o cão ladrador, são as querelas que dividem os homens a quem somente o mel da sabedoria acalma. A etimologia – a mais fantasista – tem naturalmente sua tarefa nesta enlouquecedora exegese. A Itália, Ausônia, à qual Enéias aspira, é o símbolo dos progressos da virtude: ele não atingirá a virtude perfeita senão através de dores e provações e é isto que significa o nome Lavínia (Lavínia, id est laborum viam = Lavínia, isto é, vida de trabalhos); ele terá necessidade da aliança do homem de bem, Evandro; Turno, a quem precisa vencer, é a violência insensata (Turnus enin graece dicitur quase, furibundus sensus); seu cocheiro Metisca é a embriaguez; sua inspiradora Juturna (diuturna) é a má obstinação. Tais elucubrações de Fulgêncio tiveram sucesso durante a Idade Média. Jean de Salisbury, no século XII, em Polycraticus, completa-as, acrescentando eu ennaios, quer dizer, “habitante”: assim, Enéias é o símbolo da alma que habita o corpo. Vergílio é para Dante o artista incomparável que lhe ensinou “o belo estilo”: ele é o bom conselheiro, o amigo que protege e consola como uma mãe; ele é, enfim, o romano que representa, aos olhos de um cidadão da “Itália escrava”, a idéia da pátria e o grande sonho imperial. Todo mundo conhece o sonho que deu origem à Divina Comédia. Numa manhã de sexta-feira santa do ano de 1300, o poeta se viu numa floresta escura, tendo perdido o caminho, e encontrando sucessivamente, ao longo de uma encosta cheia de angústia, uma pantera, um leão, uma loba e três fulvos símbolos que lhe barravam o acesso à sabedoria e à virtude que ele, em vão, esforçava-se por alcançar. Aparece-lhe então, no deserto em que se debatia sua alma, a grande sombra do mantuano (Vergílio), que Beatrice tinha enviado para ajudá-lo. Vergílio assume a missão de guiá-lo, com a mais alta autoridade e a mais terna solicitude, através do Inferno e do Purgatório. É visível o modelo do livro VI da Eneida para a concepção da Divina Comédia, não somente na descrição do Inferno, mas também do Purgatório e até mesmo do Paraíso. Dante, num imenso esforço de criação, concilia o mundo pagão, necessário à epopéia, com o mundo cristão, um imperativo de sua época. Surgiram várias histórias medievais envolvendo o personagem Enéias, tanto na França como na Inglaterra. Na França, no século XII, surgiu o mais célebre dos romances contando a história de Enéias e Dido: Roman de la rose. O Renascimento italiano se interessou muito por Vergílio. Petrarca foi um admirador do mantuano. Interpretava a Eneida ainda alegoricamente, fazendo dele, segundo a tradição de Fulgêncio, uma representação da vida humana. O italiano, no entanto, não acreditava, como os homens de seu século, numa Eneida mágica; nem concebia que a IV Égloga anunciava Cristo; também insurgiu-se contra os que acreditavam que a fábula dos amores de Enéias e Dido fosse uma verdade histórica. Escreveu África, inspirado pela luta de Cipião e de Aníbal, rivalizando com o autor da Eneida. No século XV, surgiram muitos comentadores e imitadores da Eneida. Cristóforo Landino interpretou-a sob as idéias de Platão. Cândido Decembrio continua a Eneida, criando um XIII canto. No século XVI multiplicaram-se as edições e os comentários acerca da Eneida, quando se fizeram também as primeiras traduções para as línguas românticas. Ainda mais: os poetas da época sentiram-se tentados, à maneira de Vergílio, de constituir, para seus países, uma epopéia. Surge assim Orlando Furioso, de Ariosto e Jerusalém Libertada, de Torquato Tasso, na Itália. Em Portugal, Luís de Camões escreve o belo poema Os Lusíadas. No século XVII, Milton, na Inglaterra, escreve O Paraíso Perdido. No século XVIII, na França, Voltaire escreve a Henriade, que se parece com a Eneida (há uma tempestade, uma Gabrielle abandonada como Dido, uma descida aos Infernos, os Campos Elísios, onde também coloca os bons e os maus da pátria. Não podemos esquecer de que, no século XVIII, no Brasil, surgiram duas epopéias: O Uraguai, de Basílio da Gama, e o Caramuru, de Santa Rita Durão. Além de inspirar epopéias, a Eneida inspirou inúmeras peças de teatro durante o nascimento do teatro clássico-renascentista: Dido se sacrificando, de Jodelle, De partu Virginis, de Sannazaro, Dido, de Hardy, Enéias travestido, de G. B. Lalli, e Vergílio tra- 27 28 vestido, de Scarron (1633); duas comédias; em ópera: Dido abandonada, de Metastásio, no século XVIII. A Eneida não exerceu uma ação considerável só no domínio da literatura universal; foi também para muitos outros artistas uma fonte de inspiração. Alguns monumentos da antigüidade atestam sua influência nessa arte. Exercícios de Auto-avaliação 1- Como foi transmitida a literatura clássica? 2- Qual foi a época de ouro da Literatura Latina? 3- Defina uma epopéia. 4- Como começa A Ilíada? 5- Como começa A Odisséia? Há, no entanto, alguns quadros inspirados pela Eneida, encontrados em Pompéia e Herculano. O maior número de quadros inspirados pela Eneida foram produzidos a partir do Renascimento. Encontram-se nos museus de Paris, no Louvre, no National Gallery, de Londres, no Palácio Máximo, em Roma, no Palácio Ducal em Mântua, em Viena, em Dresde e em Bruxelas. UNIDADE II 29 O LIRISMO 2.1 - O Surgimento da Poesia Lírica na Grécia A poesia lírica, na antiga Grécia, ritmava a dicção dos textos subjetivos, a partir do instrumento que a acompanhava – a lira. Esse acompanhamento musical já deixava de ser executado na passagem da poesia grega para a romana, mas veio definitivamente divorciado a partir do chamado Doce Estilo Novo, movimento poético italiano nascido na Baixa Idade Média. Com o desaparecimento da melodia, determinados traços musicais foram acrescidos ao verso: ritmo, rima, aliteração e outros aspectos que acentuam a sonoridade. Segundo a professora Nely M. Pessanha, a poesia dita lírica, na Grécia Antiga, “nem sempre é expressão da entrega, do abandono ao fluxo e refluxo dos mais variados sentimentos; nem sempre é manifestação do estado anterior à distinção sujeito-objeto, de onde resulta o ‘um no outro’, de que fala Emil Staiger. Pode ela ‘recordar’, pode trazer de novo ao coração as ressonâncias de um estado sincrético entre o ‘eu’ e o ‘outro’”. Isto se explica historicamente. Se lírica se refere ao instrumento, o sintagma “poesia lírica” alcança dimensões maiores, visto que a significação se amplia e a expressão passa a designar todo o poema cantado, acompanhado de um instrumento musical de cordas: lyra, phórminx, kítharis, bárbitos – ou de sopro – o aulós. Iniciando-se no século VII a.C., passando melodiosamente pelo século VI e ainda ressoando no século V, ressurge renovada nos séculos III e II a.C. Há, pois, dois momentos distintos na história da lírica grega: a lírica arcaica e a lírica alexandrina. A lírica arcaica constitui a Idade Lírica. Sobre ela faremos considerações mais prolongadas. A lírica alexandrina floresceu numa época de anseios de erudição, nos séculos III e II a.C. Caracteriza-se sobretudo pelo culto da forma, pela busca da expressão rara, pelo distanciamento da linguagem coloquial. Os poetas dessa época são, por assim dizer, os longínquos precursores do Parnasianismo: tinham o lema da Arte pela Arte. Os alexandrinos deixaram de cultivar muitas das modalidades da lírica arcaica ou transformaram-nas profundamente. Cultivavam a elegia, de conteúdo amoroso e mitológico. O idílio e a poesia bucólica foram as criações (formas novas) desse período. 2.2 - Momento Histórico O surgimento e expansão da lírica na Grécia está no bojo de grandes transformações políticas, sociais, econômicas e culturais, decorrentes das ações de colonização e de ampliação de uma economia voltada para o comércio e as navegações. No século VII a.C., as cidades gregas viviam sob o governo das oligarquias, que substituíram os governos monárquicos. O poder era, então, aristocrático, fundado na ancestralidade, reconhecida como divina, e na riqueza, ligada à propriedade rural. Naquele século, a expansão do mundo grego, através da emigração, se fazia indispensável, visto que a população aumentara e o solo era pobre. Fundaram-se colônias às margens do mar Egeu e do mar Jônio, onde havia terras propícias à agricultura. Assim, nasceram novas cidades e a Grécia Continental e Asiática. O comércio e a navegação levaram os gregos a negociar (cereais, matérias-primas, metais preciosos, lãs, vinho, azeite, produtos manufaturados, como a cerâmica) para além do mundo grego, chegando, por exemplo, à Síria e ao Egito. As oligarquias, que tinham um poder absoluto, começam a sofrer pressões de uma emergente classe média, de uma “burguesia” (oriunda do comércio) que reivindica participação no governo. A introdução da moeda e as transações comerciais mudou o conceito de riqueza, até então assentada na posse de grandes quantidades de terra. Os pequenos agricultores são obrigados a contrair dívidas na tentativa de superar os efeitos de uma má colheita. Não conseguindo pagálas, perdem as terras e são reduzidos à condição de simples trabalhadores e de escravos. Tal fato impele os camponeses para o outro lado do mar. Inicia-se, ao mesmo tempo, o movimento reivindicatório de novas leis, como: anistia das dívidas, divisão das terras (reforma agrária) e a publicação de 30 leis escritas, isto é, a díke ou nómos que substitui a thémis (casuística) (Thémis = forma de lei vigente até então, tida como justiça de caráter divino. Consistia no poder do rei ou do eupátrida de julgar em nome de deus...). Surgem então os legisladores, dos quais se destaca a figura de Sólon. As leis produzidas por eles, no entanto, não causam grande efeito e a crise social continua. Tal fato determinou a substituição da forma de poder, que saiu das mãos dos eupátridas, passando para as dos tiranos (= líderes provenientes da aristocracia que se uniam ao povo e à classe média para protegê-los contra os nobres. A conotação pejorativa veio mais tarde). Os tiranos trataram de realizar obras de utilidade pública (templos, festas religiosas, jogos etc.) conseguindo prestígio junto ao dêmos. O regime tirânico durou só até o fim do século VI. Características A lírica arcaica grega não pode ser caracterizada por aquilo que entendemos como estilo lírico hoje em dia. Primitivamente, o lírico está coesamente ligado ao canto e ao som dos instrumentos de corda. Há outros dois elementos fundamentais ligados à estrutura formal: o metro e o dialeto utilizados. O metro variava segundo a palavra e a melodia. Há variedades métricas ligadas às epopéias homéricas que usavam o hexâmetro datílico, combinan- do-o com o pentâmetro – caso da elegia. Outras, por sua vez, operam com metros que imitam o ritmo da língua falada, como os versos iâmbicos. Tendo em vista a variedade de metros, a harmonia entre sons e palavras, aliada à busca da musicalidade, podemos dizer que a lírica moderna conserva traços da lírica dos tempos dos gregos. Outra característica da lírica arcaica é a subordinação a um tipo de dialeto grego, o que se explica pelo fato de ela ter surgido em diversas cidades e regiões gregas. Voltado para o presente, o lírico grego deixa fluir seus sentimentos e emoções. Também reflete a vida de sua pólis, exortando, recordando preceitos morais, louvando os que demonstram sua areté (excelência de qualidades físicas, morais, intelectuais). Cada um desses climas líricos eram expressos através de estruturas métricas próprias e diferenciadas. Assim é que havia a Elegia, a Ode, o Peã, o Epinício etc. As Formas Líricas No período arcaico, havia basicamente quatro modalidades líricas distintas: a elegia, o iambo, a mélica monódica e a mélica coral. 2.3 - O Lirismo em Roma A Época de César (78-44 a.C.) A poesia neotérica e Catulo Poetae novi (neòteroi, à grega) é a expressão usada por Cícero para indicar as tendências inovadoras, o moderno gosto poético de uma corrente que se desenvolve e se afirma no primeiro século a.C., demarcando uma decisiva curva na história da literatura latina. O processo de renovação do gosto literário promovido pelos poetae novi não é senão um aspecto do fomento geral de helenização dos costumes, de transformação dos modos de vida conseqüentes das grandes conquistas do II séc. a.C. que abriram ao poderio romano o cenário da área oriental do Mediterrâneo, e posto em contato a arcaica sociedade dos camponeses-soldados com populações habituadas a formas de vida mais refinadas. Este enorme e complexo fenômeno de civilização – que encontra em Roma a tenaz hostilidade dos cultores da tradição, do “partido catoniano” – manifesta sua influência, como é óbvio, também no campo especificamente literário, no qual se assiste a um lento mas progressivo enfraquecimento dos valores e das formas da tradição (de gêneros literários política e moralmente “empenhados”, como a épica e, sobretudo, o teatro), e ao emergir de exigências novas, ditadas pelo refinamento do gosto e da sensibilidade. O que esses poetas têm de verdadeiramente novo, no que diz respeito às escolhas dos antecessores, é não tanto a predileção pela literatura grega mais recente (também os autores arcaicos trabalharam com técnica já alexandrina), mas, sim, a decisiva imitação dos aspectos eruditos e preciosos que caracterizavam exatamente aquela literatura. Os neóteroi tomam dos poetas helenísticos o gosto pela contaminação entre os gêneros, o interesse pela experimentação métrica, a pesquisa de um léxico e de um estilo sofisticados, enfim, o caráter decisivamente descompromissado da sua poesia. Não obstante os elementos de continuidade entre a poesia nugatória (poesia de versos ligeiros, de entretenimento, futilidades, vaidades, erotismo) e a propriamente neotérica, bem maior é comumente a sabedoria que esta última possui e, mais nitidamente, o descarte que ela introduz no que diz respeito à tradição literária latina. A elegância freqüentemente maneirada, o artificioso experimentalismo praticado sobre os modelos gregos pelos literatos do círculo de Lutácio Cátulo, deixam lugar a um tipo de poesia que não concede senão um espaço limitado ao otium e aos seus prazeres (recortados às margens do sistema, como concessão ocasional de uma conduta de vida centrada ainda nos deveres do civis), mas os coloca no centro da existência, tornando-os os valores absolutos, as razões exclusivas, como acontece em Catulo. A poesia neotérica assinala o auge, sob o plano literário, de uma tendência sensível na literatura latina: de um lado, o crescente desinteresse pela vida ativa gasta a serviço do estado, pelos valores venerados pela tradição, pelo papel, em suma, do civis romano; de outro lado, o contemporâneo afirmar-se do gosto pelo otium, pelo tempo livre, dedicado às letras e aos prazeres, à satisfação das necessidades individuais e privadas. A revolução do gosto literário é acompanhada por uma geral revolta do caráter ético que a substancia e mostra a crise dos valores do mos maiorum. A refutação da vida empenhada ao serviço da comunidade, do modelo do cidadão-soldado, se reflete no difundirse do epicurismo, uma filosofia que prega a renúncia aos negotia político-militares em favor de uma vida à parte e tranqüila, em íntima comunhão dos amigos. A convergência entre os princípios do epicurismo e as tendências dos poetas neotéricos é evidente, mas nota-se também uma diferença importante: para os epicuristas, cuja finalidade é a ataraxia, o prazer sem perturbações, o éros é uma doença insidiosa, da qual devemos fugir pois é fonte de angústia e de dor (basta pensar no livro De rerum natura, de Lucrécio), enquanto que para os neòteroi – sobretudo para Catulo – o amor é o sentimento central da vida, aquele que constitui o fulcro e a razão essencial. Isso torna também, por conseguinte, o tema privilegiado de sua poesia e concorre para dar forma a um novo estilo de vida, inspirado justamente no culto do éros e das paixões e da dedicação à poesia que os alimenta. O trabalho da forma, o escrupuloso cuidado pela composição, o paciente lavor de lima são, enfim, o tratamento distintivo primário da nova poética vinda de Calímaco. Como Calímaco havia asperamente polemizado contra os seguidores do épos homérico, ridicularizando o desmazelo e o proselitismo do poema longo, e havia propugnado um novo estilo poético, inspirado pela brevitas e pela ars (o meticuloso trabalho do cinzel), assim Catulo e os neòteroi ridicularizam os estanques imitadores de Ênio, os pomposos cultores da épica tradicional (Volúsio, Sufeno, Hortênsio), celebrativa das glórias nacionais, já estranhas ao gosto atual, quer pelo cuidado formal quer pelos conteúdos antiquados. Serão, em vez, outros os gêneros privilegiados pela poética calimácea e apropriados para o acurado lavor do cinzel, ao labor limae: os poemas breves, como o epigrama, ou ainda como o epílio, o poema mitológico em miniatura, possibilitam ao poeta a ostentação da própria preciosa erudição (trata-se de antigos mitos de assunto erótico, próximos, talvez, da sensibilidade moderna), e de pôr em prática refinadas estratégias de composição (narrativas de encaixe, narrações tramadas juntas as quais se refletem mutuamente). 2.4 - Virgílio e as Bucólicas As Bucólicas ou Églogas são uma coletânea de poemas inspirados nos idílios do alexandrino Teócrito de Siracusa (III a.C.). Codificam o gênero bucólico. Há églogas díspares, i. é, dialógicas, e as églogas pares, narração com uma só voz. São apresentados, sobre o fundo a campanha padana personagens pastoris que cantam suas experiências e seus sentimentos. A égloga I contém um diálogo entre dois pastores, dos quais um, Melibeu, é obrigado a deixar seus campos confiscados, ao passo que o segundo, Títiro, pode permanecer graças à ajuda de um poderoso que reside em Roma. Na II égloga, Córidão lamenta seu amor não correspondido pelo jovem Aléxis. A III consiste numa disputa poética entre os pastores Dâmeta e Menalca. A IV celebra a renovação do mundo ligado ao nascimento de um menino que abrirá uma nova época de paz. A V evoca, através do canto de dois pastores, a morte e a divinação de Dáfnis. A VI contém o canto de Sileno, inspirado em Lucrécio, que descreve a criação do universo. A VII é uma disputa de canto entre dois pastores árcades. A VIII apresenta o lamento de um pastor pela infidelidade da mulher amada e a descrição dos encantamentos com que a moça procura reconquistar seu amado. A IX tem por protagonista dois pastores, dos quais o primeiro (Mérides) vê seus campos confiscados e o segundo (Licidas) recorda que Menalca tentou inutilmente conservar a propriedade com a poesia. A X canta o amor de Galo pela bela Licóride. 31 32 2.5 - Ovídio Nasceu em Sulmona (hoje Abruzzo) em 43 a.C. Freqüentou as melhores escolas de retórica de Roma, tendo em vista a carreira política e forense. Após uma visita à Grécia entrou para o círculo de Messala, onde se relacionou com os maiores poetas romanos. Devido à sua poesia foi declarado oficialmente imoral e punido por Augusto com o exílio no Mar Negro, o Ponto, em Tomes, hoje Costança. Questiona-se a verdadeira causa do exílio; segundo alguns, a causa verdadeira seria o seu envolvimento num escândalo de adultério com a sobrinha de Augusto. Morreu em Tomes em 17 ou 18 d. C. Sua primeira obra foi Amores (49 elegias, 2460 versos), em dísticos elegíacos. Heroides, Ars amatoria (três livros, 2300 v.), Remedia amoris (814 v.), Medicamina faciei feminae (=Os cosméticos das mulheres), Metamorphóseon libri (15 livros, 12.000 v.), Fasti (seis livros, 5000 v.), Tristia (cinco livros, 3500 v.). Escreveu ainda quatro livros de Epistulae ex Ponto, em dísticos elegíacos. As Heroides Se o éros é o tema da poesia do Ovídio juvenil, a outra grande fonte da sua poesia é o mito. As Heroides, bem como as Metamorfoses, alimenta-se desse tema. Trata-se de uma coleção de cartas poéticas. A primeira série, de 1-15, é escrita por mulheres famosas, heroínas do mito grego (também a Dido, de Vergílio, e sobretudo a personagem histórica Safo) aos seus amantes ou maridos distantes (Penélope a Ulisses, Fílides a Demofonte, Briseida a Aquiles, Fedra a Hipólito, Eno a Páris, Dido a Enéias, Hipsípile a Jasão, Érmião a Orestes, Djanira a Hércules, Ariana a Teseu, Medéia a Jasão, Safo a Fáon etc.). A segunda série, de 16 a 21, é constituída pelas cartas de três enamorados acompanhadas pelas respostas das respectivas mulheres: Páris e Helena, Ero e Leandro, Acôncio e Cídipe. A originalidade dessa obra, com a qual cria uma nova espécie literária, Ovídio se diz orgulhoso. Com efeito, não temos notícias de obras semelhantes antes dele, ou seja, de coletânea de cartas poéticas de assunto amoroso. Se personagens e situações pertencem ao grande patrimônio do mito, muitos elementos são mudados pela tradição elegíaca latina, onde são freqüentes os motivos como o sofrimento pela distância da pessoa amada, recriminações, lamentos, súplicas, suspeitas de infidelidade, acusações de traições etc. Um exemplo disso é a epístola de Fedra a Hipólito, cuja heroína de Eurípedes perde os seus traços de nobre dignidade trágica para assemelhar-se a uma dama despreocupada da sociedade galante, empenhada em seduzir o enteado com os afagos de um fácil furti- vus amor e desenvolta assertiva de uma nova moral sexual, zombeteiramente intolerante com as antigas tradições. Recodificando em termos elegíacos histórias de heroínas da épica e da tragédia, não nascidas “dentro” e “para” o código elegíaco, Ovídio introduz o leitor num novo universo literário, não é antigo, nem moderno, não é épico, nem trágico ou mítico, nem é elegíaco. As Heroides são propriamente poesias de lamento, são a expressão da condição infeliz da mulher, deixada só pelo esposo amante distante. Ovídio põe nas palavras de Safo uma ligação entre o verso elegíaco e a condição da heroína infelizmente enamorada: flendus meus est: elegi quoque flebile carmen devo chorar sobre o meu amor; e a elegia é um canto lacrimoso. Os Amores A falta de uma figura unificante Ovídio não tinha ainda vinte anos quando publicou Amores, uma coletânea de elegias de assunto amoroso. Mostra influências de Tibulo e principalmente Propércio. Também Ovídio é uma voz em primeira pessoa a cantar temas tradicionais da elegia: poesia de ocasião (como o epicédio de Tibulo), ou de pura estampa alexandrina (como a elegia pela morte do papagaio da amada), sobretudo aventuras de amor, encontros fugazes, serenatas noturnas, brigas com a amada, cenas de ciúme, protestos contra a sua venalidade ou seus caprichos e as traições etc. Ovídio e a tradição elegíaca Antes de tudo – e é talvez a novidade mais saliente – falta uma figura feminina em torno da qual se reúnam as várias experiências amorosas que constitua o centro unificante da obra e junto da vida do poeta. Os poetas de amor precedentes, Catulo e Propércio, construíram a própria atividade poética em torno de uma única mulher, de um só grande amor que constitui o sentido daquela atividade. Com Ovídio não é assim: Corina, a mulher evocada aqui e acolá com pseudônimo grego, é uma figura tênue, de presença intermitente e limitada, que se suspeita não tivesse nem sequer uma existência real. Não somente o poeta declara mais vezes de não saber contentar-se com um único amor, de preferir duas mulheres (2,10) ou definitivamente de sofrer o fascínio de qualquer mulher bonita. Como a figura da mulher inspiradora, que não tem os contornos nítidos de uma protagonista e tende a parecer um resíduo, uma função convencional do gênero elegí- aco, também o páthos que tinha caracterizado as vozes da grande poesia de amor latina com Ovídio se dilui e banaliza. O drama de Catulo, de Propércio, a sua intensa aventura existencial, torna-se em Ovídio pouco mais que um lusus (= passatempo), e a experiência do éros é analisada pelo poeta com um filtro de ironia e de destaque intelectual. Não menos significativa é a escassa presença nos Amores de um motivo centralíssimo na poesia elegíaca precedente, ou seja, o servitium amoris, a profissão de total dedicação do amante à amada, aos seus desejos e aos seus caprichos. Em Ovídio, dizia-se, este motivo tem uma função bastante limitada, ao passo que é notável que, numa autêntica elegia, sua posição de realce seja dedicada à profissão de servitium nos confrontos amorosos. Não só: ganha peso, com respeito à poesia precedente, a) a consciência literária do poeta, que se manifesta na insistência sobre a poesia como instrumento de imortalidade, como nos conclusivos versos (1, 15): por isso também quando o rogo fúnebre tiver consumido meu corpo, continuarei a existir e grande parte de mim sobreviverá. b) como autônoma criação do poeta, desvinculada da obrigação de retratar o real, como nos versos (3, 12, 41...): A fértil fantasia dos poetas se desprende sem limites, e não vincula as próprias palavras à fidelidade à história. A elegia ovidiana não mais se apresenta como subordinada à vida, seu fiel reflexo, mas reivindica o seu primado, a sua centralidade na existência do poeta. As Metamorfoses Se Vergílio, na Eneida, seguiu a tradição épica, Ovídio abordou o épos de outra maneira: não optou pelo poema de grandes dimensões, mas seguiu o modelo épico inspirado em Hesíodo (Teogonia), aquele de um “poema coletivo”, que reagrupa uma série de histórias independentes que têm em comum um mesmo tema. Segue, pois, um modelo inspirado entre os alexandrinos, principalmente em Calímaco. O poema narra, em forma épica, em 15 livros, a criação do universo a partir do caos e sobre a criação do homem. Depois vem o dilúvio universal e a regeneração do gênero humano graças a Deucalião e Pirra. A seguir vem o tempo do mito, dos deuses e semideuses, das suas paixões e caprichos: de Apolo e Dafne (a transformação desta em loureiro), de Júpiter e Io, de Faetonte, de Narciso e Eco etc. Passa também pela história de Príamo, pela de Perseu que salva Andrômaca do monstro marinho, pela do rapto de Prosérpina, pela de Minerva e Aracne, de Medéia, de Ícaro e Dédalo, de Peleu e Tétis etc. O amor nas Metamorfoses constitui o tema unificante da obra. Não se trata mais de um amor ambientado na vida quotidiana de Roma, da sociedade mundana, mas no universo do mito, no mundo dos deuses e dos semideuses, como já ocorrera antes nas Heroides. Exercícios de Auto-avaliação 1- ����������������������������������� Qual foi a primeira obra de Ovídio? 2- Aponte diferenças entre Vergílio e Ovidio existentes nas Metamorfoses. 3- De que trata Os Amores, de Ovídio? 4- Aponte algumas características da lírica. 5- O que é o epicurismo? 33 34 UNIDADE III DRAMÁTICO (TEATRO - TRAGÉDIA) 3.1 - A Palavra Tragédia Este primeiro conjunto de explicações sobre a origem da tragédia se funde em parte sobre o substantivo “tragédia” (tragôidia) cujo sentido não é claro. A tragôidia designa a atividade do tragôidios, que é um membro de um coro trágico. É um termo composto de dois elementos: tragos = bode e ôidia, ôidios (ligado a aeidô, cantar). Pode designar, então: “canto do bode”, “canto por um bode” ou “canto em honra de um bode”. Todavia, a presença desse bode intriga. Refere-se a um bode representando a recompensa oferecida ao melhor dramaturgo, como o deixa entrever uma inscrição em mármore, em Páros? Refere-se simplesmente a um disfarce dos atores em bode, que se relacionavam aos sátiros associados a Dioniso, em honra do qual eram representados esses espetáculos? Ou o bode era uma vítima oferecida em sacrifício durante uma cerimônia ritual de purificação à qual eram destinadas as primeiras formas de tragédia? Esta última interpretação, que não é muito mais convincente do que as anteriores, oferece o mérito de relacionar o alcance religioso das manifestações trágicas. 3.2 - Teatro e Cerimônia Religiosa A tragédia aparece como um elemento de uma cerimônia religiosa e não somente na sua origem. Ainda na época clássica (séculos V - IV), o aspecto religioso deste espetáculo teatral permanece sensível. As representações têm lugar no quadro do culto de Dioniso, durante as festas desse deus. Elas se desenrolam no teatro de Dioniso, o qual comporta uma cadeira para o sacerdote e o altar de Dioniso fica no centro da orquestra. Ainda que nada nas obras possam lembrar o culto desse deus do vinho e da fecundidade, a ligação com seu culto permanece forte e é, pois, verossímil que a tragédia resulta do alargamento de um rito nas cerimônias em honra de Dioniso. Aristóteles (Poética) afirma que a tragédia saiu de improvisações a partir do ditirambo, que é uma obra coral representada em honra de Dioniso. Aristóteles, todavia, não vê uma filiação continuada: a tragédia não se encontra senão em potencial no ditirambo e deve ter sido representada por poetas para ser verdadeiramente tragédia. 3.3 - Teatro e Tragédia em Roma A Originalidade do Teatro Latino O teatro latino existe por ele mesmo, mas tal existência ainda hoje é ignorada ou mal conhecida. Conhecese o teatro grego porque, por longo tempo, nossa cultura se reconhece nele. Mas o teatro latino não permite a mesma ilusão. Ele nos é bastante estranho, bastante diferente da marmórea imagem que se faz geralmente da Antigüidade clássica. Ele é não só ignorado, mas também visto como uma má imitação do teatro grego. O teatro latino: um evento A primeira característica do teatro latino é a de não ser literário. Em Roma, os textos dramáticos eram escritos unicamente para serem representados, e, mais freqüentemente, uma só vez. A meta do empreendedor do espetáculo era de suscitar um evento, de marcar a memória do público. Para isto, ele montava um espetáculo total onde a música e o canto, a dança, a maquinaria e os atores-vedetes separavam para si a parte do leão. O texto fornece somente o pretexto para a representação; raramente ele era conservado. O essencial em Roma era a festa dentro da qual se inseria o espetáculo teatral: os jogos. É esta festa que se insere na memória coletiva, não o texto. Hoje, nós estamos acostumados a dar prioridade ao texto. Ele é conservado e de novo interpretado em outra ocasião. Para nós, ele constitui um monumento da memória. Estamos, pois, acostumados ao teatromonumento, ao passo que os romanos preferiam o teatro-acontecimento. O calendário teatral Os romanos iam muito freqüentemente ao teatro, mas somente na primavera e no verão. O calendário teatral era o dos jogos. O número de dias consagrados aos jogos não parou de aumentar durante toda a história de Roma. No início da República havia dois dias de jogos, mas já no ano 77 a.C. havia 55 dias para o teatro dentro de um calendário que possuía 175 dias de jogos; durante o Império o número de dias de teatro aumentou para 101, sem contar os dias dos jogos públicos e oficiais. Além desses, havia os jogos privados, oferecidos por famílias nobres por ocasião de um triunfo ou de um funeral. Em cada festa são apresentadas uma ou várias peças teatrais novas, cada qual uma só vez. As reapresentações eram raras e assistemáticas. O costume romano era bem diferente do nosso e mesmo dos costumes gregos. Na Grécia, somente alguns dias por ano eram consagrados ao teatro. Em Roma, a estação dos jogos coincidia necessariamente com a estação militar: deste modo o teatro começava em março e parava em outubro, com raras exceções em novembro, por ocasião dos jogos Plebeus. Um teatro tocado pela vida política Em Atenas, o teatro era uma atividade cívica. Em Roma, o espetáculo teatral é alheio à vida política. Os atores eram grandemente tomados de infâmia; qualquer alusão, sobre o palco, a um homem político era proibida; os poetas dramáticos escreviam apenas para ganhar suas vidas, normalmente voltados para as camadas inferiores da população, descartadas da vida política. O público dos teatros comparecia para se divertir e não para refletir sobre problemas do Estado ou sobre as graves questões morais. A plebe que comparecia sobre os degraus, barulhenta e sedenta por diversões, não constituía uma assembléia de cidadãos. Todas as pessoas iam ao teatro, inclusive crianças, mulheres e escravos. As apresentações não estavam, como em Atenas, submetidas ao julgamento de um júri civil. O poeta recebia apenas um salário, jamais a glória. Com efeito, o espetáculo não se endereça ao julgamento de público, mas à sua sensibilidade musical. Para os romanos, a inteligência, os sentidos político e moral são apanágios dos homens adultos pertencentes às camadas superiores da sociedade: senadores, cavaleiros, ricos plebeus. Se o povo não emite julgamentos, no entanto o sentimento musical é um fator comum a todos. O público não parece uma assembléia política: fica sentado, pacífico, disponível ao prazer dos sentidos. A música, não a mimese As teorias gregas sobre o teatro, especialmente as de Aristóteles, não se aplicam inteiramente ao teatro latino, pois elas se fundam no fator mimese (imitação); será melhor entendê-la como apresentação. A concepção de Aristóteles era a seguinte: o poeta dramático, como o pintor e o escultor ou ainda os outros poetas, é um imitador por duas razões: ele imita a realidade que lhe fornece os assuntos e imita as obras-primas dos seus antecessores, tirando-lhes a técnica. Segundo tal teoria, uma tragédia ou uma comédia é a representação dos sentimentos humanos, transformados pela arte. O teatro é um espelho mais ou menos deformante da sociedade humana. Toda a obra artística seria uma imagem da realidade, não existindo senão em razão do objeto que ela representa. Este teatro de representação não se aplica inteiramente ao teatro latino, pois este não representa, mas apresenta algo sobre o palco para o prazer e o esquecimento dos espectadores. O que regula os gestos das personagens e dita suas palavras não é uma verdade, mas a música. Eles dançam e cantam; seus cantos, sentido e som confundidos, são organizados pelo ritmo e pelo prazer de brincar com as palavras. Um espetáculo lúdico O teatro em Roma, sob todos esses aspectos, para nós insólitos, é um teatro diferente porque ele se inscreve no seio de uma prática ritual própria da civilização romana: os jogos (ludi); é por isso que os romanos não falavam em teatro, mas em jogos cênicos (ludi scaenici). A característica fundamental do teatro romano era a de ser um espetáculo lúdico. Por isso ele faz parte dos jogos, inseridos no calendário dos lazeres dos romanos. É, pois, estudando os jogos romanos que podemos reconstituir o teatro latino, quer como espetáculo cênico, quer como texto escrito. Ele deve ser visto dentro desse contexto da civilização romana. 3.4 - Roma, a Civilização do Espetáculo Havia em Roma quatro tipos de espetáculos cívicos: 1º) O espetáculo do poder: O poder político era encarnado pelos magistrados (censores, cônsules, pretores e edis). Formava o governo: seus memboros tinham função de generais, de presidente da república, de prefeito da cidade ou de ministros. Nas províncias havia os governadores. Seu poder se dava através do aparato que os cercava. Sua roupa, que era aquela dos antigos reis, a toga bordada de vermelho (a toga pretexta), a cadeira de marfim e os 12 litores que os acompanham são a materialização desse poder. Suscitam nos espectadores obediência e respeito espontâneos. 35 36 O triunfo é por excelência a “mise en scène” do poder dos magistrados. O cônsul vitorioso sentia-se autorizado, de maneira especial, a atravessar a cidade à frente de suas tropas, exibindo os espólios tomados e trazendo os reis vencidos amarrados na ponta de uma corrente. O triunfador, com um manto de púrpura e as bochechas pintadas de vermelho, como as estátuas dos deuses, conduzia o carro de Júpiter e subia ao capitólio ao som das trombetas. Toda Roma fazia o percurso em ovações. O Senado, a alta assembléia, formada por antigos magistrados, é também um espetáculo. Esses homens graves em toga pretexta, numa pose digna e compassada, demonstravam uma autoridade tão evidente que um embaixador estrangeiro dizia ter visto neles “uma assembléia de reis”. O aparato do poder em Roma é fundamental; ele é a verdade e manifesta uma legitimidade sagrada. 2º) Os espetáculos da família: As grandes famílias romanas usavam o mesmo tipo de espetáculo para assegurar prestígio e afirmar sua nobreza. O espetáculo por excelência do poderio aristocrático eram os funerais de um magistrado. O morto era levado em procissão através da cidade, depois de uma parada no Fórum. Era precedido por um longo cortejo de ancestrais já falecidos sobre um carro de honra, representados por máscaras fúnebres, moldadas em cera, cujos atores ficavam vestidos com roupas de magistrados. Após esse desfile ao som das flautas, os atores que vestiam as máscaras se instalavam no Fórum, onde faziam seu próprio elogio. Depois sepultavam o morto fora da cidade. O espetáculo desses fantasmas com todo o aparato de sua glória passada e a lembrança de todos seus altos feitos políticos e militares serviam para gravar na mente de todos os romanos a lembrança de seus homens ilustres e lhes davam o gosto da virtude e da glória. Era o espetáculo da memória, a celebração das virtudes cívicas que levam às mais altas funções. As famílias mais ricas e poderosas incluíam, nas solenidades, combates de gladiadores, que ocorriam no Fórum. Denominavam-se “deveres” (munera). Não eram simulações e havia derramamento de sangue. Tais combatentes eram admirados por sua coragem; eram uma lição de virtude. As famílias nobres exibiam-se em lugares públicos. Um homem público não se deslocava na cidade se não estivesse acompanhado de um grupo de “clientes”. Quanto mais numeroso era o grupo, mais importante era o homem. 3º) Os espetáculos da religião: O ato essencial da religião romana era o sacrifício: a exposição da morte de um animal doméstico sobre um altar iluminado e a posterior repartição de suas carnes entre os principais sacrificadores. Sacrifício doméstico ou sacrifício público era sempre um ato coletivo que compreendia atores e espectadores. Ambos faziam parte do sacrifício. Ou se obtinha uma parte do animal e se a comia, ou se assistia à cerimônia. Olhar já era participar, e não apenas uma prova de passividade. 4º) Os espetáculos da palavra A vida política em Roma era aquela da república: a força que agita era o exercício da palavra. Os magistrados eram eleitos, as leis eram votadas. Governar era convencer. Daí se entende a força da eloqüência. No senado, diante do povo, os políticos falavam. Uma parte do auditório votaria, a outra não. A prática do voto não era igualitária, mas os espectadores eram sempre ativos. Outro espetáculo da palavra era proporcionado pelos advogados no Fórum. Era por lá que todo o político iniciava, dava-se a conhecer, defendendo seus amigos e atacando seus inimigos. Apresentavam as provas diante de um público, que todas as manhãs se apresentava ante o tribunal. Sua presença era tão importante que Cícero dizia que não havia causa para defender se não houvesse público. Na civilização romana, a vida pública era constituída em grande parte de espetáculos. Seus atores eram os da vida política. Os espectadores eram os cidadãos, cuja presença indicava uma legitimação dos atos da vida pública. Roma afirmava a legitimidade dos poderes do espetáculo, a verdade das aparências às quais não se opõe nenhuma interioridade. 3.5 - Ator: Glória e Infâmia O ator romano era chamado de ludius. Era um dançarino e um mímico. O cantor e o tocador de flauta eram colaboradores, feitos de glória e de infâmia. - O ator nos espetáculos: O espetáculo latino dá ao ator o primeiro lugar nos espetáculos cênicos. É ele que tem a tarefa mais importante, não o poeta ou o compositor da música. Era ele a quem o público aclamava, a quem os simpatizantes acompanhavam em grupo até sua casa. Ele desencadeava paixões, inclusive paixões amorosas, entre os homens da nobreza. O grande ator Roscius foi sucessivamente o favorito de Lutácio Catulo e de Sila, dois dos mais poderosos e dos mais nobres personagens da sua época. Tal glória decorria da sedução proporcionada pelas suas virtudes físicas, pela sua dança e seus cantos. Eles eram o prazer dos jogos. - O ator cômico – um corpo: O ator cômico era o preferido do público porque ele executava a dança. Uma comédia era quase a metade composta de cenas de balé – cantica – nas quais ele dançava seu papel; o texto era cantado com acompanhamento de flauta e de um tamborete de madeira – scabellum. Cada ator cômico se especializava num papel, masculino ou feminino, treinando quotidianamente. Devia ser esbelto e ter muito fôlego. Os papéis de escravos exigiam agilidade e talento de piadista; os de cortesã, graça e leveza feminina. Não era suficiente ser bom dançarino e acrobata; nas passagens faladas, era preciso encher com sua voz os imensos teatros de Roma. O ator cômico era o modelo do ator de mimo, da atelana e da pantomima, para quem o corpo era mais importante que a voz. Eles eram também capazes de representar nas tragédias. - O ator trágico – uma voz: O ator trágico devia exercitar sobretudo a voz. Na tragédia, as partes declamadas tinham um lugar de destaque. Sem acompanhamento musical, o ator devia impor-se a públicos de 10 a 20 mil pessoas. Sua dicção era sofisticada, bastante próxima do recitativo, quase no limite do canto. Vestido com roupa de rei, na cabeça um diadema de ouro, calçando uma espécie de coturno que o aumentava de tamanho, ele devia distinguir-se em papéis difíceis ou de terror, deva representar Medéia infanticida, Fedra amorosa, Agamêmnon embevecido pela vitória sobre Tróia. A representação do ator trágico devia supor que a voz era uma extensão do seu corpo, pois a expressão corporal na tragédia era essencial: ela exprimia, segundo um código gestual determinado, sentimentos simples como dor, cólera, desespero, jubilação, furor, que eram, de princípio, esquemas coreográficos. Nenhum gesto era improvisado. 3.6 - A Máscara Não se sabe até que época as máscaras foram usadas no teatro romano. Eram mais comuns na comédia. Devem ter sido importantes, pois até hoje elas constituem o símbolo do teatro, enfeitando monumentos consagrados aos espetáculos. Eram maquilagens que tornavam as fisionomias irreais e despersonalizadas. Faziam parte de um estatuto cultural. Usavam máscaras os atores não tocados de infâmia, que representavam nas atelanas. Teria, segundo alguns, desaparecido durante o império. 3.7 - Breve História do Teatro Latino O Teatro Romano Tem uma História? Os jogos cênicos latinos começam com a importação das pantomimas etruscas, no IV século a.C. e se concluem com as pantomimas de assuntos mitológicos que sobrevivem, no Império do Ocidente, até o século V p. C. São mais de mil anos de teatro. É fácil, pois, notar alterações no teatro, em conseqüência da evolução cultural. O movimento relativo do teatro e da civilização constitui a história do teatro romano. Basicamente ele permanece o mesmo, mas se adapta às mutações do mundo no qual está inserido, ou seja, numa Roma que permanece uma civilização de espetáculos. O teatro estava, de início, inserido no calendário dos jogos. Os jogos constituíam um espaço temporário, à parte da vida cívica, mas tinham características bem romanas. Podiam acolher espetáculos estrangeiros, mas sem destruir sua natureza exótica. Deste modo os jogos serviam em Roma para receber espetáculos estrangeiros que os romanos acolhiam por motivos religiosos: oscos, etruscos, gregos. A cada nova importação, os jogos assimilavam o novo espetáculo, transformando-o em espetáculo lúdico, em balé, introduzindo-o nos mimos e na pantomima. Os Jogos Mudam de Estatuto com o Império Na República, os jogos definiam um espaço fora das normas cívicas. O povo dos jogos se opõe ao povo das armadas e ao povo das assembléias. Com o Império, o público romano perde sua dúplice definição política e militar. A oposição cívica X lúdica se apaga. O teatro, com o circo, torna-se o único pretexto para uma coletividade que quer se reunir e que não se define mais como povo de espectadores. A licença lúdica torna-se um modo de relação entre o povo, constituído pelo público, e o imperador, que é sempre o editor dos jogos. O teatro em si não se modificou; permaneceu sempre um lugar de festa e de lazer desenfreado, de exotismo. 37 38 Há três datas marcantes na história do teatro latino: - 364 a.C. : a criação dos jogos cênicos marca um período de teatro sem texto; - 240 a.C.: a criação dos jogos gregos marca um período de teatro com texto; - 27 a.C.: criação da pantomima romana, o desaparecimento da comédia. A tragédia deu origem à pantomima (de novo um teatro sem texto). Os Primeiros Jogos Cênicos Em 364 a.C., uma peste se abateu sobre Roma. Para os antigos, a peste não era epidemia, mas um castigo divino que podia ser execrado através de ritos expiatórios. Depois de esgotados todos os ritos domésticos, os romanos apelaram para um ritual estrangeiro, mandando vir da Etrúria atores para que eles fizessem um espetáculo cênico. O ritual passou a ser celebrado anualmente e integrado aos Grandes Jogos, no meio da procissão e dos espetáculos de circo. Temos aí a matriz do teatro romano, que existirá no futuro como: - um teatro-espetáculo lúdico; - um conteúdo de representações adaptado de espetáculos estrangeiros; - a origem da profissão do ator, chamado de histrio (do etrusco Hister ou Ister) para diferenciá-lo dos ludiones da procissão, pois era o histrio dotado de infâmia e excluído da vida cívica (os histriones reuniamse num colegiado particular); - ������������������������������� um teatro espetáculo de dança. No Tempo dos Jogos Gregos O período de 240 a 27 a.C. é o do teatro com texto. Cultivam-se todas as espécies dramáticas conhecidas. Duas tendências marcam esses dois séculos: a primeira é a multiplicação dos dias de jogos, graças à importação de divindades estrangeiras (como os jogos da Grande Mãe, vinda do oriente), à celebração das vitórias obtidas e aos funerais de ilustres cidadãos; a segunda é a criação do teatro de texto, por imitação dos gregos. Na Grécia, a tragédia e a comédia eram consideradas como obras literárias que proporcionavam aos poetas muitas honras. O mesmo não ocorria em Roma, de imediato. Aos poucos, a condição do dramaturgo ganhou ímpeto. De início, eram chamados de scribae, depois, de poetae. Por fim a tragédia é considerada uma espécie literária. O tempo dos scribae vai de Lívio Andronico, passando por Névio, Plauto, Cecílio, até Ênio. O tempo dos poetae começa com Ênio, passa por Pacúvio, Lúcio Lanúvio até Terêncio. Depois vem o tempo dos oradores. Começa com Ácio e vai até o poeta Varius. No Tempo dos Jogos Imperiais: a Confusão dos Espaços No final da República se instalam os teatros permanentes. Os jogos não constituem mais um parênteses na vida dos cidadãos que se consagram à política e à guerra. Os teatros ficavam no campo de Marte e o campo de Marte é integrado à cidade. Os jogos passaram a funcionar como um intercâmbio entre o povo e o editor dos jogos. Adquiriram um valor político. O campo de Marte, que era o lugar das eleições e da Liberdade, torna-se o lugar dos teatros e da licença. Mas o cidadão romano, definido como um homo spectator, percebe que o espetáculo mudou. O ludismo eliminou o civismo e o civismo, inversamente, entra no teatro. Depois de Augusto, os imperadores introduziram uma série de regulamentações a fim de dar um pouco de seriedade à festa e de tornar o público uma sociedade hierarquizada. O teatro passou a não se dissociar da vida cívica. Cada vez menos se distinguiam os espetáculos lúdicos dos espetáculos cívicos. O mundo imaginário do palco se confundiu com a nova sociedade imperial. Os impossíveis heróis mitológicos da tragédia encarnaramse nos imperadores. Eles eram os novos Héracles e Apolos. Os aristocratas não se preocupavam com a infâmia e subiram ao palco para se tornarem “heróis”. O Teatro de Texto Deixa o Palco Com o início do Império, a tensão entre o teatro monumento e o teatro acontecimento abriu uma ruptura. Sob o reinado de Augusto praticaram-se as leituras públicas – recitatio. Nas casas de cidadãos privados organizaram-se leituras de textos de poemas dramáticos para os amigos. O texto era só declamado, como um discurso. A meta não era suscitar um prazer teatral, mas propor ao julgamento dos ouvintes uma obra que pretendia ser um monumento da cultura latina. O autor dessas obras, geralmente o chefe da casa ou um seu protegido, não procura o sucesso público dos teatros. Segundo Horácio, ele escreve uma obra séria, geralmente uma tragédia, e se deixa prender nas armadilhas da mimese. Ele dá um conteúdo alegórico à peça, e o teatro-texto se torna um instrumento de propaganda entre os espectadores. A poesia dramática se torna um exercício puramente de retórica, como os que praticam os declamadores. A Pantomima Paralelamente uma outra espécie de espetáculo é criada: a pantomima. Dois libertos de Augusto, Pylades e Bathyles, fabricam, a partir da tragédia, peças de teatro em que tudo é cantado e dançado. Um único ator apresentava todos os papéis. Um cantor, acom- panhado pelo coro, canta o texto, um livrinho escrito por um poeta. O mais importante, no entanto, era a dança. Assemelhava-se, de certa forma, aos primeiros jogos cênicos latinos, conforme os modelos do ludis- mo do IV século a.C. A única diferença era que os assuntos eram tomados da mitologia grega. A pantomima tornou-se, até o final do Império, o espetáculo por excelência representado em toda a Europa. 3.8 - As Tragédias de Sêneca Os poetas dramáticos não desapareceram, mas tornaram-se amadores. Os profissionais partem para o que lhes interessava: os livrinhos de textos para a pantomima. Entre os oradores engajados e os livristas interessados, encontram-se alguns dramaturgos na linha de Ênio e de Ácio. Sêneca é um deles. É graças a ele que temos acesso a textos completos de tragédias romanas. Lucius Annaeus Seneca Nasceu entre 2 a.C. e 2 d.C. em Córdova, Espanha. Seu pai era um rico cavaleiro romano, que deixa a Espanha quando seu filho era ainda bebê. Depois de uma agitada juventude que acabou com seu exílio na Córsega, por ordem do Imperador Cláudio, tornou-se o pedagogo de Nero, juntamente com Burrus, e foi seu primeiro ministro. Estóico, é acusado de ter aconselhado Nero no assassinato da mãe do Imperador, Agripina. Foi posto de lado por Nero, que se lança em sua loucura política. Envolvido na conjuração contra Nero, suicida-se em 64 p.C. A leitura das tragédias de Sêneca revela obras cuja eficácia espetacular é evidente. Elas não são inteligíveis sem a reconstituição do espetáculo em que elas poderiam ter lugar. A estrutura se organiza não por uma lógica do discurso, mas pela encenação do ator. Essas tragédias foram representadas? Nunca saberemos, mas o importante é que elas foram escritas como se devessem ser representadas e como obras de propaganda destinadas à leitura pública. Elas são suscetíveis de uma interpretação filosófica? Não se pode, salvo incríveis distorções intelectuais, por não dizer de sofismas, chamá-las de obras estóicas. Talvez elas ofereçam uma filosofia pessimista do poder absoluto e do heroísmo em geral, mas elas afirmam que o homem heróico não tem senão a escolha entre a santidade e a monstruosidade, duas maneiras de excluir a humanidade. Suas obras dramáticas são: Agamêmnon, Hércules Furioso, Hércules no Eta, As fenícias, As troianas, Medéia, Édipo, Fedra e Thiestes. A Atualidade do Teatro Latino O tipo de teatro proposto pelo teatro latino corresponde à evolução contemporânea do palco. Esse teatro, onde o musical ocupa o papel principal, que não tem nada de intelectual visto que se endereça à sensibilidade e não à reflexão, este teatro sem distanciamento e sem mensagem, que não visa a nada senão a produzir um espetáculo total, é, por todas as razões, redescoberto pelos grupos de vanguarda americanos e japoneses. O teatro latino, do mesmo modo, exige corpos e vozes para conseguir reter a expressão de paixões elementares e dar livre curso ao rir. É preciso ainda lembrar que a comédia e a tragédia latinas passaram além das fronteiras do tempo da existência do Império Romano. Quando, no Renascimento, a Europa descobre o teatro antigo, é, de início, através das tragédias de Sêneca. Admiraram-no e o imitaram os poetas trágicos em toda a Europa, até à época clássica, de Shakespeare a Corneille. Os poetas barrocos não conheciam outro autor clássico vindo da Antigüidade. Na época clássica, na França, no século XVII, visto que a tragédia grega eclipsou a tragédia latina, uma comédia de conteúdo psicológico se impôs. É dessa época que surge a desafeição pelo teatro latino depois de muitos séculos. Somente alguns espíritos isolados, Antonin Artraud ou Robert Brasillach, na primeira metade do século XX, releram Sêneca e encontraram sua pujança trágica. A dimensão musical do teatro de Plauto e de Terêncio não foi, por seu turno, verdadeiramente redescoberta. Finalmente, a relação que cada época tem com o teatro latino é revelador de sua própria estética teatral. É preciso, para ser capaz de redescobrir o teatro latino, saber fazer do espetáculo uma festa. Medéia Texto I Prólogo (v. 1-55) O primeiro canto de Medéia, monólogo de abertura da tragédia, é ao mesmo tempo um canto de dolor e um anticanto do himeneu, dando espaço, na entrada, a uma estrutura de inversão: a queixa da dolor se opõe termo a termo ao feliz canto do himeneu constituído pelo primeiro coro. Este prólogo de Medéia deve ser lido do ponto de vista do código e da estrutura. Do ponto de vista do espetáculo, síntese dos dois precedentes, a cena torna imediatamente sensível a decadência de Medéia, 39 40 depois sua progressiva transformação em criatura inquietante e detestável. O espetáculo é o da piedade, depois do horror, o nascimento do monstro. Medéia manipula o ritual das núpcias de Jasão e Creúsa, onde o primeiro coro dirá o caráter perfeitamente normal e normativo. O tempo de sua celebração coincide com aquele da tragédia, e são eles que desvendam a dolor. Formalmente, o canto imita a prece. Toda prece começa por palavras que devem assegurar a comunicação entre quem reza e os deuses destinatários. É por isto que, para atualizar suas divindades, quem ora diz seus nomes e suas características. MEDÉIA INVOCA UMA SÉRIE DE DIVINDADES Aquelas que foram associadas ao seu casamento com Jasão, que, por conseguinte, são garantias e aliadas de Medéia em sua vingança. Elas são o casamento passado de Medéia. MEDÉIA: Deuses do himeneu! E tu, Lucina, deusa do leito onde se engendra a raça! E tu, deusa que ensinaste a Tífis a arte de guiar o primeiro navio para conquistar os mares! E tu, Sol, que distribuis sobre a terra a luz do dia! E tu, ó tríplice Hécato, que dá às misteriosas cerimônias uma tríplice claridade! Ó vós todas, divindades por quem Jasão me jurou sua fidelidade! Depois ela invoca as divindades infernais, que estão em oposição aos deuses associados normalmente nos cantos do himeneu e que vão servir para inverter as núpcias presentes. Sua invocação realça a identidade singular de Medéia, do seu passado de maga. Há, pois, nessas duas listas de divindades invocadas, um dúplice jogo sobre a memória: divindades do casamento passado, divindades do passado de Medéia como maga. Vós todos, poderes que só Medéia tem o direito de invocar! caos da noite eterna, reino de além-túmulo, fantasmas selvagens, soberanos do sombrio império e tu, sua esposa, raptada por um mais fiel amante! O fim da invocação relembra que esta invocação é um canto de dolor. A expressão ambígua “a voz da desgraça” quer dizer “expressão da desgraça” e “portadora de desgraça” marca a dúplice natureza da dolor: sofrimento e desejo de vingança. Ó deuses, eu vos imploro, escutai a voz da desgraça! Depois Medéia invoca as divindades do furor, as Fúrias, que, na mitologia grega, são também as deusas da Vingança. Assim a dolor incita um primeiro movimento rumo ao furor. Ela chama as Fúrias para que as tochas negras da vingança substituam as tochas nupciais e se tornem tochas de luto. Esta substituição é uma das formas que proporcionam a inversão das núpcias de Creúsa em antinúpcias de Medéia. Vê-se como se articulam estreitamente a ação e a estrutura, visto que as Fúrias pertencem a uma e outra. O vetor deste duplo jogo é constituído pelas tochas, que são o emblema das fúrias e, ao mesmo tempo, são os objetos rituais das núpcias e dos funerais. Dito de outro modo, são as tochas do himeneu que queimarão Creúsa e atearão fogo ao palácio: Vinde vós, deusas vingadoras do crime, vinde em meu socorro: os cabelos desarrumados, entrelaçados de serpentes, firme nas mãos sanguinolentas um negro archote, descabeladas, sinistras, como viestes no dia das minhas núpcias! MEDÉIA DÁ O CONTEÚDO DE SUA PRECE Vinde neste dia oferecer a morte à jovem nubente, oferecer a morte a seu pai, oferecer a morte à linhagem real! O conteúdo desta prece é paradoxal: ela inverte os votos habituais formulados por ocasião de um casamento. A morte é posta como o inverso das núpcias. A unidade de tempo, o dia, é comentado pelo acontecimento, as núpcias. Medéia retomará exatamente esta unidade de tempo para inserir a ação trágica: ela fará dele o seu dia. Esta inversão toma uma forma particular no que concerne a Jasão. Medéia quer que sua vingança faça dele, por sua vez, uma Medéia de hoje e um Jasão de outra época, visto que o argonauta chegou para ela suplicante, do estrangeiro, aterrorizado com a tarefa que devia cumprir. De agora em diante, ele não encontrará mais ninguém para o acolher e o ajudar. Ele se tornará errante e odiável. É exatamente o trajeto que ele cumprirá tornando-se uma furiosa vítima: E a mim, dai um outro mal, mais terrível que a morte, para que eu possa dá-lo ao meu esposo: que ele viva, errando pobre por cidades desconhecidas, desterrado, espantado, abominado, sem lar. Que ele me deseje como esposa, e encontre a porta fechada, hóspede já muito conhecido. E - não é possível pensar nada mais horrível - possa ele gerar filhos semelhantes ao pai, semelhantes à mãe. DA DOLOR AO FUROR A súplica pára. Medéia torna-se o assunto de suas frases. A prece tem seu efeito, ela agiu sobre Medéia, envolvendo-a no véu que a leva ao furor. Ela passa do pranto à cólera, da dor à ação. Minha vingança já está lá, minha vingança já nasceu. Eu tenho dois filhos. Palavras. Eu semeio lágrimas e palavras num deserto. Vou passar ao ataque. A própria Medéia transmuda o ritual das núpcias em ritual fúnebre, fazendo do dia luminoso das núpcias uma noite eterna para Creúsa e Corinto: Eu colocarei os archotes nas mãos dos meus inimigos estenderei o dia no céu. Este poder, ela o tem de sua raça, pois é filha do Sol. Mas sua ascendência não pode ajudá-la senão no crime. Lá no alto, o sol nos olha, o ancestral da minha raça, e nós aqui o vemos percorrer indiferente, cheio de claridade, a rota celeste, sem voltar ao nascente, sem parar o dia. Esta ascendência não lhe dá diretamente poder sobre a luz e o fogo. Mas ela tem por ancestral e modelo Faetonte, o filho do Sol. Aquele, guiando o carro do Sol sem saber conduzi-lo, transformou a boa e doce luz do dia num fogo devastador que incendiou a terra. A palavra torna-se uma prece, mas desta vez diretamente endereçada a um ser de sua raça. Indiferente como deus, ele não se ocupa dos homens, mas ouvirá seus ascendentes furiosos: Ó Sol, concede-me uma graça! Sol, ancestral de minha raça, deixa-me voar pelo céu, confia-me as rédeas do teu carro! Eu conduzirei os cavalos de fogo com chicotes flamejantes, incendiarei Corinto, a cidade entre dois mares! O istmo se fundirá nas chamas e as ondas se juntarão. Medéia, queimando Corinto, repetirá o crime de Faetonte e, inscrevendo-se assim na imortalidade mitológica, dá às suas tochas nupciais transformadas em tochas fúnebres a eficácia das tochas das Erínias, tochas da vingança mitológica. A FURIOSA O tipo de palavra muda. Medéia agiu sobre si mesma, donde o uso do eu e do tu que remeterá um e outro a ela mesma. Ela é a destinatária da própria palavra. Medeia começa a procurar o crime que a vingará. Ela é ainda, na estrutura geral, a necessidade de agir no quadro das núpcias. Sua palavra torna-se, pois, metafórica. O crime será encontrado quando ela tiver descoberto o meio de realizar suas metáforas, aquilo que está esboçado aqui, na estrutura da tragédia. Medéia retoma, pois, os elementos do ritual nupcial, um a um: Não me resta senão levar eu mesma a tocha nupcial e degolar, depois das preces rituais, as vítimas sobre o altar consagrado. Tradicionalmente, a inspeção das entranhas dos animais sacrificados permitia predizer o futuro: Coragem, tu procurarás, tu mesma, nas entranhas, o caminho da vingança, se tu ainda estás viva, se tu guardas alguma energia de outrora. Aqui começa o duplo trabalho da memória. Medéia se lembra de sua violência passada, violência mitológica, quando comenta os crimes cometidos para favorecer Jasão, crimes que lhe servirão de modelo: Esquece que tu és uma mulher, um ser medroso, reencontra tua alma de caucasiana, reveste-te de violência. Os horrores em que o Ponto e o Fásis foram ao teatro repetir-se-ão no istmo de Corinto: Insensatos, incríveis, horríveis, espantosos para o Céu e a Terra são os desígnios que se agitam na âmago do meu cérebro: feridas, mortes, membros esparsos e jogados ao relento. Pela palavra, Medéia faz um trabalho de abstração e de classificação sobre os objetos da memória. Assim, seleciona tipos de crimes que servem para inventar outros crimes. Depois, Medéia descarta suas lembranças, pois elas seriam insuficientes para curar hoje a infelicidade que a atinge. Isto prova que o que foi um scelus nefas pode tornar-se o calmante em outro contexto. O passado deve ser transposto. Há uma escala virtuosa do horror. É preciso vencer os ancestrais, vencer-se a si mesma: Não, eis aí lembranças muito inocentes. Eu não era então senão uma menina. A dor de uma mulher é exigente. São-me necessários crimes superiores. Hoje eu sou mãe. Arma-te de cólera, prepara-te para uma luta de morte, um combate de louca. 41 42 O prólogo termina com a afirmação repetida de que a ação vai ser de antinúpcias e de anulação das núpcias passadas de Medéia e Jasão. O nó da ação é ao mesmo tempo dado como a relação existente entre a tragédia e as lendas mitológicas. O que é objeto de narrativa são os crimes mitológicos, tornados crimes trágicos. Não há tragédia, hoje, senão porque sobreveio à lembrança a vingança de Medéia, e essa vingança não foi digna de memória, visto que com ela Medéia se abandona da condição humana por um crime mitológico, ou seja, trágico. Aqui, é o poeta quem fala, dando, por assim dizer, a regrada escritura da tragédia, que deve ser representada como um scelus nefas para justificar sua razão de ser: Medéia repudiada deve tornar-se legendária. Narramos já a história das núpcias. Como tu deixarás teu esposo? Do mesmo modo que o seguiste! Sufoca tuas frouxas perplexidades! Esta casa, onde tu entraste por um crime, por um crime deverás deixá-la. Assim, o quadro da cura fantástica está dado ao púbico: será o das núpcias ao inverso. O instrumento de Medéia é a língua; sua força, a da retórica. A relação metafórica entre a pompa nupcial e a pompa fúnebre é uma constante em Roma. Mas a tragédia faz da metáfora uma metamorfose, da comparação, uma razão. O furioso tem o poder de fazer existir as palavras, de dar à retórica força de realidade. Outras Obras de Sêneca A) Catálogo dos crimes trágicos Tieste O scelus nefas é composto sucessivamente do sacrifício humano cumprido por Atreu e do banquete canibal que se seguiu. A passagem do sacrifício é narrada no banquete sob a ótica de Atreu, que descreve Tieste festejando sob seus olhos, antes de interpelá-lo e de lhe oferecer como brinde um copo de vinho no qual versara o sangue dos seus filhos, depois contempla-o olhando a cabeça e as mãos dos filhos. Os dois sujeitos dos nefas são os dois irmãos, em posição intercambiável de carrasco e de vítima, de furiosos e de dolorosos. Atreu precedera Tieste e o havia feito pouco dele porque sua dor inicial ultrapassara a do irmão. Atreu Sei porque tu choras: Tu te angustias por eu ter tomado depressa este crime que eu te roubei. Não há amas canibais que te angustiem, nem quem te corte a garganta. É por não me teres feito comer, esta foi sempre tua intenção, uma refeição desta espécie, e de servi-la a teu irmão sem que ele percebesse. Tu irias te lançar sobre meus filhos, mas uma coisa te reteve, uma só. Tu suspeitavas que eles nasceram de ti. O crime é a repetição agravada daquele de Tântalo. É a partir daquele modelo que Atreu o inventou. Ele permite aos dois irmãos de inscreverem-se na dinastia da mitologia dos reis de Micenas. Uma cena de astúcia, a reconciliação dos dois irmãos, permitiu a execução do nefas. Fedra O crime de Fedra na tragédia de Eurípedes, Hipólito coroado, trata da história da esposa de Teseu que, na ausência deste, apaixonou-se perdidamente por seu enteado Hipólito. Repelida por este, filho do primeiro casamento de Teseu, Fedra suicidou-se, enforcandose, mas deixou uma mensagem mentirosa ao marido, acusando-lhe o filho de tentar violentá-la, o que irá provocar a morte do inocente Hipólito. Os personagens da peça são Fedra, Hipólito e Teseu, os quais passam para o mito. Fedra renova os amores selvagens da sua mãe Pasífae (esposa do rei Minos, a qual se apaixonara por um touro, dando à luz o minotauro), em seguimento à mesma dolor de Djanira ou Medéia. Fedra é uma mulher rejeitada, uma cretense exilada na Ática, para onde seu pai a enviara como refém: Phaedra O magna vasti Creta dominatrix freti cuius per omnes litus innumerae rates tenuere pontum, quidquid Assyria tenus tellure Nerea pervium rostris secas cur me in penates obsidem invisos datam hostique nuptam degere aetatem in malis lacrimisque cogis? Pefugus en coniux abest praestatque nuptae quam solet Thaeseus fidem. ... FEDRA Ó Creta, soberana do mar vasto, cujos barcos inúmeros na costa cobrem as águas que Nereu franqueia às naus até ao litoral da Assíria, por que me deixas presa em mar odioso, esposa do inimigo, condenada por toda a vida a dor e ao pranto? Prófugo, Teseu me é fiel como já foi às outras. Com pretendente ousado, entrou nas trevas do ínvio lago do qual ninguém regressa. Vai, sócio da paixão, tirar Prosérpina à realeza infernal. Nem a vergonha nem o medo o detém: o pai de Hipólito busca no imo Aqueronte o amor ilícito. Mas dor maior me aflige! O meu cuidado resiste ao sono e à quietação da noite. Gera-se o mal, cresce e me abrasa o seio como, no Etna, o vapor ferve e transborda. das tragédias de Sêneca, era cantado por um cantor enquanto um ator dançava. A cena. Tecnicamente essa dança é uma pantomima, onde o ator imita sucessivamente as diferentes técnicas e os diferentes momentos da caça. Hipólito dá ordens a seus companheiros caçadores antes de partir, de manhã. Manda-os percorrer todo o território da Ática, depois, antes de se engajar ele mesmo nessa expedição, envia uma prece a Diana, deusa da caça, afim de que ela lhe seja favorável. Esta dolor inicial vai estabelecer comunicação com o furor da dinastia de Fedra, memória que lhe proporcionará a própria identidade. É lá que ela vai buscar a origem do seu amor por Hipólito, sua invenção; o moço repete o touro de Pasífae, visto que ele pertence à selvageria, a uma circunstância selvagemente agravante, visto que socialmente ele é visto como filho de Fedra, ou seja, os amores dos animais se caracterizam precisamente não pelo incesto que é uma transgressão, mas pela indiferença à parentela. O amor monstruoso de Fedra ultrapassa ao de sua mãe. O que é mesmo inquietante é o personagem que representa Hipólito. Esse caçador não é um filho de família, um esportista vindo da cidade. É um caçador excessivo, que, ao menos em palavras, transforma toda a Ática em território de caça, onde não vivem senão pastores. As cidades, as terras cultivadas, toda espécie de civilização sedentária desapareceu. Suas primeiras palavras são ambíguas, são as de um chefe que lança os companheiros ao ataque sem que se saiba se trata-se de uma expedição militar ou uma caça; eles vão percorrer o país semeando terror: Hipólito também reata com sua mãe, a Amazona, por seus amores monstruosos, mesmo sendo ele um agente involuntário. Optando deliberadamente pela selvageria contra a civilização, justo antes da cena em que Fedra renova seu desejo por ele, Hipólito passa ao lado do nefas e se torna suscetível para entender seus avós, inventa ele também o nefas. A seguir, mesmo ele recusando com horror o amor de Fedra, ele será seu parceiro num diálogo amoroso, terá falado de amor com uma mulher vestida de Amazona, que ele chamou sua mãe e que prometeu de tomar junto dela o lugar de seu pai. Esta mulher o apertou nos braços e o cobriu de carinhos. O nefas de Fedra e de Hipólito é o enfrentamento de duas selvagerias mitológicas que não podem se amar. Se a selvageria, no imaginário romano, dá às mulheres um erotismo excitante, ao contrário, virilizando excessivamente os homens, transforma-se em erotismo. As mulheres selvagens são lobas, quer dizer prostitutas, os homens-lobos vivem em alcatéias de caçadores celibatários. Hipólito tem horror às mulheres não por capricho particular, mas porque ele se vê um selvagem habitante das florestas. A selvageria de um e outro está presente sobre o palco e visível pelo disfarce da dança. Vimos que Fedra encontrou a pacificação numa veste de Amazona caçadora. Hipólito também está travestido de caçador mitológico. Tal é a função do prólogo de Fedra e de sua natureza particular: instalar no espaço trágico o furor selvagem de Hipólito. Com efeito Fedra se abre com um monólogo que não é nem a dolor de um herói, nem o furor de um deus ou de um fantasma vindo de um outro mundo. A escritura em estrofes líricas prova que esse prólogo, diferentemente dos outros prólogos Ite umbrosas cingite silvas summaque montis iuga, Cecoprii Ide, cercai bosques umbrosos, rodeai com passo errante e lépido, o cume do monte de Cécrops. A volta da caça mostra uma horda, celebrando um triunfo pré-histórico, em torno de charretes rústicas que rodam rangendo rumo às cabanas primitivas. Diana, a quem ele invocara, não é uma divindade dos homens civilizados; seu espaço são os confins do universo habitado. Ela reina pela violência sobre povos selvagens e primitivos. Assiste-nos, ó forte deusa, que reinas sobre as terras virgens; cujas flechas certeiras ferem as feras que se dessedentam no frio Araxes ou que saltam no Istro gelado. A tua destra persegue os leões da Getúlia e as corças de Creta. Agilmente alcanças os gamos velozes. A ti se imolam os pintados tigres, os peludos bisontes e os búfalos de grandes cornos. Todo animal que no deserto pasce, à vista doss gramantes, ou se esconde na selva a’rabica e nos picos dos Pireneus, e ainda nas florestas da Hircânia, nos vastos campos da Sarmácia, teme as tuas aljavas, Diana! Para o imaginário romano, um caçador dos confins é pior do que um bárbaro, é um homem selvagem, que 43 44 vive como animal no meio de animais, que não diferencia entre a caça e a guerra, pois não há diferença entre um animal e um homem. Esse tipo de caçador se situa num espaço de além, fora do espaço habitado. A selvageria extrema e impossível dos confins dá, pois, suas cores em Fedra a uma selvageria mitológica que é a da Amazona, mãe de Hipólito, onde reencontra Pasifae, mãe de Fedra. A dança de Hipólito depois da prece a Diana é a de um chefe selvagem, de um homem-lobo que, se ele reina na Ática, a transformaria em deserto, em floresta virgem. Mas esse valor ideológico do prólogo que deduzimos das palavras de Hipólito é o desenvolvimento verbal de uma evidência espetacular. O público romano reconhecia imediatamente em Hipólito, desde que o vê, um caçador selvagem dos confins. Desde que ele já o viu alhures, essa dança do rei bárbaro que reina sobre sujeitos como sobre um gibon, seja no circo nas venationes, ou gladiadores reproduzindo grandes caças mitológicas ou pseudo-históricas – caças de Hércules ou de Alexandre – seja no teatro das pantomimas com assuntos miológicos. Costumes bárbaros em vivas cores, músicas estranhas e, no circo, presença de animais exóticos (leões, panteras etc.) inscreveram na memória dos romanos imagens definitivas. Ao corpo selvagem e dançante de Hipólito abrindo a tragédia corresponde o quadro final de seu corpo mutilado, incompleto, hediondo, que o traz de volta à civilização. A dança de Hipólito é da mesma natureza trágica que as danças do furor; mas um furor que não foi precedido pelo espetáculo da dolor, ou ainda da mesma natureza que a dança de Tântalo. Ele realiza assim seu corpo mitológico, como fazem Djanira e Medéia. Esta primeira parte do nefas é possível, quer dizer, é o reencontro entre as duas selvagerias, porque Diana serve de intercessora. Ela encarna as duas façes da selvageria, a masculina e a feminina. Ela é a divindade dos confins e da caça. É a divindade dos homens selvagens, mas é também, sob o nome de Hécato, a lua, a deusa da magia amorosa, pois uma lenda narra que a lua se tomou de amor por Endimião, um pastor, e desceu à terra, seduzida. Depois, as magas a associam aos lagos para que ela favoreça aos amores difíceis. Hécato, astro noturno, é uma deusa de mulheres enamoradas. E por isso que a Ama lhe faz uma prece: Rainha da floresta, ó única moradora e adorada na montanha, muda para melhor os meus presságios! Deusa magna das florestas e dos bosques, astro do céu claro, glória da noite, tu que alternas com o dia a luz do mundo, tríplice Hécato, acode em nossa ajuda! Doma do triste Hipólito a alma gélida: aprenda a amar, partilhe os fogos mútuos e saiba ouvir. O coração lhe amansa, enleia-lhe a razão! Hostil e irado retorne às leis de Vênus. Nisso empenha o teu poder. .............................................. Custa-me executar o crime ordenado. Quem teme os reis proscreva o certo e o justo; expulse a honra do peito! O pudor é mau cúmplice dos déspotas. A dúpla natureza de Diana está já presente no fim do prólogo dançado por Hipólito; quando ele terminou sua oração à deusa, ele ouve os latidos dos cães; é um sinal da presença de Hécato, a partir das preces de magia erótica. A tragédia passa-se, pois, em dois tempos correspondentes aos dois estágios corporais dos heróis: a primeira parte é aquela dos corpos selvagens e belos; a segunda, aquela dos corpos em luto e lesados. Teseu sai dos Infernos, lúgubre e despojado como um fantasma. Fedra toma sucessivamente duas posturas de luto: a primeira é a exibição socializada dos efeitos de sua violação (pretendida), a segunda, para chorar Hipólito. Hipólito é um cadáver mutilado, completamente ferido. A cena da confissão amorosa se repete na cena da confissão criminal; essas cenas se juntam em três, com o terceiro ausente. No início, o ausente é Teseu: no país dos mortos, ele não é senão uma máscara posta sobre os olhos de Hipólito; a seguir o ausente é Hipólito, que não passa de um monte de carne desgraçada. Nas duas cenas, Fedra repete o mesmo gesto da sedução que a liga a Hipólito, mas na primeira vez o nefas fica incompleto, pois não foi posto em cena um ritual pervertido; na segunda vez, utilizando o rito do luto, Fedra vai até o fim de sua transformação em monstro e liga seu destino a Hipólito na memória da mitologia. Sua acusação mentirosa contra Hipólito é tipicamente uma cena de astúcia para preparar o scelus nefas. Édipo Édipo é uma das tragédias mais complexas de Sêneca. Salvo as aparências, esta tragédia obedece ao mesmo esquema das outras tragédias. A única diferença está no que se refere ao nefas, que foi cometido antes do início da ação cênica. Mas, como nada se sabe disso no início da peça, é como se o nefas não existisse ainda para aqueles que se tornarão seus sujeitos: Édipo e Jocasta. A invenção do nefas vai coincidir com a descoberta dos crimes cometidos por Édipo, o parricídio e o incesto. Dizer o nefas ou cumpri-lo é a mesma coisa, pois o crime, para tornar-se performativo, é preciso que seja ritualizado. Isto não é espantoso numa civilização em que um prodígio, um monstrum, não existe se não for reconhecido como tal pelas autoridades religiosas e políticas, no curso dos procedimendos da linguagem. modo, sua raiva a seu filho, como Tântalo ou Tieste. Ekle é o digno descendente dos monstros tebanos que o precederam no trono. Édipo, no prólogo doloroso, fala de seu medo de cometer seu scelus nefas anunciado pelo oráculo de Delfos. Compreendendo que ele já o cometera, ele coincide com ele mesmo, com seu ser mitológico e, para dar uma realidade a esta nova identidade enfim reencontrada, ele finge não estar entendendo nada. No fim da tragédia, ele tem a mesma fruição cumprida por Atreu ou Medéia. O furor de Édipo lhe vem tarde na peça, depois que ele apreendeu o nefas. Este furor lhe permite reapropriar-se do crime, o que o leva a crivar-se os olhos e a empurrar sua mãe ao suicídio. Jocasta entra em furor ao mesmo tempo que Édipo. Ela participou da revelação do nefas, sendo a primeira a entender as verdadeiras circunstâncias do assassinato de Laio. Bene habet, peractum est... Iuvant tenebrae... Vultus Oedipodam hic decet. Está bem, tudo se cumpriu... As trevas ajudam... Édipo, tu tens agora teu verdadeiro rosto. O nefas o integra na dinastia tebana como seu pai lhe relembra, saindo dos Infernos, seu pai, que é a figura de um fantasma furioso, comunicando, a seu O espetáculo do nefas é aquele da sua revelação e do posterior prolongamento. A revelação se realiza em duas cenas: a primeira é uma narração, a consulta aos mortos; a outra é a consulta no palco, das entranhas sacrifícais. A seguir, os efeitos da revelação dão lugar a uma narração, que conta como Édipo se crivou os olhos; depois, sobre o palco, Édipo reencontra Jocasta que se suicida diante do público. Culpáveis, mas não responsáveis, ambos entram para a lenda. Exercícios de Auto-avaliação 1- Como se organiza a estrutura das tragédias de Sêneca? 2- Quais são as obras dramáticas de Sêneca? 3- Como era considerada a tragédia na Grécia? 4- Com quem começa o tempo dos poetae? 5- Quando se instalam os teatros permanentes? 6- Onde ficavam os teatros? 45 46 Se você: 1) 2) 3) 4) concluiu o estudo deste guia; participou dos encontros; fez contato com seu tutor; realizou as atividades previstas; Então, você está preparado para as avaliações. Parabéns! Glossário Comédia- obra ou representação teatral em que predomina a graça. Dioniso- deus grego dos ciclos vitais e da alegria e do vinho, chamado de Baco pelos romanos. Ditirâmbico(a)- composição lírica que exprime entusiasmo ou delírio. Iãmbico(a)- irônico, satírico, sarcástico. Ignóbeis- que não tem nobreza. Mimese- imitação, figura que consiste no uso do discurso direto e principalmente na imitação do gesto, voz e palavras de outro. Mito- narrativa dos tempos fabulosos ou heróicos. Pantomimas- arte ou expressão por meio de gestos, mímica. Tragicomédia- peça que participa da tragédia pelo assunto e personagens e da comédia pelos incidentes. Tragédia- obra teatral em versos que se originou do ditirambo. 47 48 Gabarito Unidade I 1- ������������������������������������������������������������� Sugestão: a resposta pode ser formulada a partir do item 1.1. 2- ��������������������������������������������������� Foi a época de Augusto (de 44 ou 43 a.C. a 17 d.C). 3- �������������������������������������������������������������������������������������������������������������������� Sugestão: a contextualização da disciplina, na parte em que fala sobre o gênero épico nos primeiros três parágrafos. 4- ����������������������������������������������������������������������� Começa como todo poema épico, com a invocação à musa (deusa) da poesia. 5- ���������������������������������������������������������������������������������������������������� Começa com a invocação de Homero à musa da poesia, na qual enuncia o tema do poema épico e lhe pede que oriente para que possa contar a história de modo adequado. Unidade II 1- A ������������������������������������� primeira obra de Ovídio foi Amores. 2- ��������������������������������������������������������������������������������������������������� Ovídio abordou o épos de outra maneira, não optou pelo poema de grandes dimensões, seguiu o modelo épico inspirado em Hesíodo. 3- Você ������������������������������������������� pode responder de acordo com o tópico Os Amores. 4- ��������������������� Resposta no item 2.3. 5- Filosofia ����������������������������������������������������������������������������������������������������������� que prega a renúncia aos negotia político-militares em favor de uma vida à parte e tranqüila, em íntima comunhão dos amigos. Unidade III 1- ����������������������������������������������������������� Não por uma lógica do discurso, mas pela encenação do ator. 2- Suas ��������������������������� obras dramáticas são: Agamêmnon, Hércules, Furioso, Hércules no Eta, As Fenícias, As Troianas, Medéia, Édipo, Fedra e Tristes. 3- ����������������������������������������������������������������������������������������������������� Na Grécia, a tragédia era considerada como obra literária que proporcionava aos poetas muitas honras. 4- ��������� Com Ênio. 5- ���������������������� No final da República. 6- Os teatros ficavam no campo de Marte e o campo de Marte é integrado à cidade. Referências Bibliográficas BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1996. v.3. ______. Dicionário mítico-etimológico grego. Petrópolis: Vozes, 1991. v.2. ______. Dicionário mítico- etimológico; mitologia e religião romana. Petrópolis: Vozes, 1993. BRAUNSTEIN, Florence & PÉPIN, Jean-François. 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