1 GIOVANA FERRO DE SOUZA RORIZ O SEQUESTRO FLORESTAL DE CARBONO EM ÁREAS (RE) FLORESTADAS COMO ATIVIDADE AGRÁRIA PARA UM NOVO CONCEITO DE PRODUTIVIDADE DO IMÓVEL AGRÁRIO UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação Curso de Mestrado em Direito Agrário Goiânia, ago. 2010. 2 GIOVANA FERRO DE SOUZA RORIZ O SEQUESTRO FLORESTAL DE CARBONO EM ÁREAS (RE) FLORESTADAS COMO ATIVIDADE AGRÁRIA PARA UM NOVO CONCEITO DE PRODUTIVIDADE DO IMÓVEL AGRÁRIO Dissertação apresentada como exigência parcial para a obtenção do grau de Mestre em Direito Agrário, junto ao Curso de Mestrado em Direito Agrário da PróReitoria de Pesquisa e Pós-Graduação – PRPPG da Universidade Federal de Goiás – UFG, sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Carlos Falconi. Goiânia, ago. 2010. 3 GIOVANA FERRO DE SOUZA RORIZ O SEQUESTRO FLORESTAL DE CARBONO EM ÁREAS (RE) FLORESTADAS COMO ATIVIDADE AGRÁRIA PARA UM NOVO CONCEITO DE PRODUTIVIDADE DO IMÓVEL AGRÁRIO Goiânia, ago. 2010. 4 GIOVANA FERRO DE SOUZA RORIZ O SEQUESTRO FLORESTAL DE CARBONO EM ÁREAS (RE) FLORESTADAS COMO ATIVIDADE AGRÁRIA PARA UM NOVO CONCEITO DE PRODUTIVIDADE DO IMÓVEL AGRÁRIO Dissertação defendida em 04 de agosto de 2010 e aprovada pela Banca Examinadora: ____________________________________________ Avaliação: _______ Prof. Dr. Luiz Carlos Falconi – UFG Presidente ____________________________________________ Avaliação: _______ Prof. Dr. Benedito Ferreira Marques – UFG Membro ____________________________________________ Avaliação: _______ Prof. Dr. Jean-Marie Lambert – PUCGO Membro Avaliação final: _______ 5 Aos meus pais, Antonio de Pádua Roriz e Joslucilda Ferro de Souza Roriz, pelo amor que me faz feliz, apoia, estrutura, sustenta, protege e oportuniza trilhar o meu próprio caminho e chegar aqui; com admiração, respeito, fidelidade, amor e gratidão eternos. 6 AGRADECIMENTOS À Deus, pela fonte inesgotável de amor e pela luta sempre fiel por mim. À minha mãe, Joslucilda Ferro de Souza Roriz, pelo amor que não mede esforços, pela entrega que me faz receber, pela renúncia que me faz construir, pela proteção que me permite crescer, pelo exemplo que me faz lutar e pela companhia que me faz a filha mais feliz do mundo. Ao meu pai, Antonio de Pádua Roriz, pelo amor, trabalho, confiança e exemplo que me faz cada dia mais forte para a vida. À minha irmã Camila Ferro de Souza Roriz, pelas indagações pertinentes que me permitiram aperfeiçoar esta dissertação, e pela confiança e amor de sempre. Aos meus sobrinhos Eduardo e Endrigo Ferro Hanum Roriz Sardinha, pela felicidade com que me inundam. À Dr.ª Lília Mônica de Castro Borges e ao Des. Carlos Hipólito Escher, pela oportunidade e confiança. Ao meu primo Pedro Augusto Costa Roriz (UnB – Engenharia Florestal), pelo material comigo compartilhado e pelas ponderações construtivas que permitiram melhor abordar o tema desta dissertação. À Ms. em Direito Danielle Limiro, meu primeiro contato com o mundo do carbono, pela disposição de auxiliar com vasto material. Ao P.h.D. Carlos Roberto Sanquetta (UFPR – Engenharia Florestal), pela contribuição ímpar em passagem por Goiânia, quando disponibilizou material sobre o tema e orientou quais caminhos seguir para a realização deste trabalho. Aos colegas de Mestrado, pelo convívio fraterno. Aos professores do Programa de Mestrado, pelas orientações e material repassados nas disciplinas por eles ministradas. Ao Prof. Dr. Luiz Carlos Falconi, orientador desta dissertação. Ao Prof. Dr. Benedito Ferreira Marques, Carla Regina Silva Marques, Fabrício Ribeiro dos Santos Furtado, Fernanda de Souza Furtado Ribeiro, Francisco Provázio Lara de Almeida e Maria das Graças Prado Fleury pela amizade sincera. 7 SUMÁRIO RELAÇÃO DE FIGURAS E TABELA................................................................. 8 RELAÇÃO DE ABREVIATURAS, SIGLAS E SÍMBOLOS................................. 9 RESUMO............................................................................................................. 13 ABSTRACT......................................................................................................... 14 INTRODUÇÃO.................................................................................................... 15 1 A EMERGÊNCIA DA QUESTÃO AMBIENTAL COMO PROBLEMA GLOBAL PARA A FORMAÇÃO DO DISCURSO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL................................................. 1.1 O DESENCANTAMENTO DO MUNDO RUMO AO DISCURSO DO DESENVOVIMENTO.............................................................................. 1.2 24 O CORPUS JURIS DE PROTEÇÃO INTERNACIONAL DO MEIO AMBIENTE.............................................................................................. 2 24 59 PERSPECTIVAS DO SEQUESTRO FLORESTAL DE CARBONO NO CERRADO BRASILEIRO....................................................................... 103 2.1 O SEQUESTRO FLORESTAL DE CARBONO........................................ 104 2.2 O CASO DO CERRADO NO PLANALTO CENTRAL BRASILEIRO....... 127 2.3 3 OS SISTEMAS AGROFLORESTAIS POTENCIAIS NO CERRADO......... 139 O SEQUESTRO FLORESTAL DE CARBONO COMO ATIVIDADE AGRÁRIA............................................................................................... 3.1 A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA PARA O 155 DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL...................................................................................... 3.2 A CONCEPÇÃO JURÍDICA BRASILEIRA.............................................. 3.3 A PRODUTIVIDADE E A NECESSIDADE DO MANDADO DE INJUNÇÃO.............................................................................................. 156 167 190 CONCLUSÃO.................................................................................................... 197 REFERÊNCIAS.................................................................................................. 199 8 RELAÇÃO DE FIGURAS E TABELA Tabela 1 Espécies nativas do Cerrado com potencial de uso em projetos de 142 MDL florestal Figura 1 Principais estoques e fluxos de carbono num ecossistema terrestre 37 Figura 2 Efeito estufa 43 Figura 3 Estrutura da molécula de CO2 44 Figura 4 O carbono estabelece duas duplas ligações: uma com cada oxigênio 44 Figura 5 Duas duplas ligações, duas zonas de repulsão, que se afastam uma da outra, fazendo com que a molécula assuma a disposição geométrica linear 44 Figura 6 El Niño no Pacífico Central e Oriental 55 Figura 7 As principais correntes ambientalistas sobre o desenvolvimento sustentável 85 Figura 8 Fluxograma do processo de MDL e os custos médios de cada etapa 96 Figura 9 Técnicas integradas na metodologia de quantificação de carbono 115 Figuras 10, 11 e 12 Equipamentos e técnicas para amostragem e mensuração da vegetação na área do projeto 116 Figuras 13, 14, 15, 16, 17 e 18 Determinação da biomassa 118 Figura 19 Estocagem de carbono no eucalipto 120 Figura 20 Biomas do Brasil nas regiões político-administrativas 131 Figura 21 Principais tipos fitofisiômicos do Cerrado 133 9 LISTA DE ABREVIATURAS, SIGLAS E SÍMBOLOS AMMA – Agência Municipal do Meio Ambiente de Goiânia APA – Área de Preservação Ambiental APP – Área de Preservação Permanente Ar – Argônio ARL – Área de Reserva Legal art. – artigo arts. – artigos C – Carbono 0 C – Graus Celsius CCX – Chicago Climate Exchange (Bolsa de Valores de Chicago) CEPAL – Comissão Econômica Para a América Latina e Caribe CER – Redução Certificada de Emissão Cf. – Conforme CF/88 – Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988 CFCs – Clorofluorcarbonos CFlo. – Código Florestal CFU – Carbon Finance Unit CH4 – Metano CO – Monóxido de Carbono CO2 – Dióxido de Carbono ou Gás Carbônico Comigo – Cooperativa Mista dos Produtores do Sudoeste Goiano CONAMA – Conselho Nacional do Meio Ambiente COP – Conferência das Partes COP3 – Terceira Conferência das Partes realizada em Kyoto, Japão, em 1997 COP15 – Décima Quinta Conferência das Partes realizada em Kopenhagen, Dinamarca, em 2009 CTN – Código Tributário Nacional DS – Desenvolvimento Sustentável 10 Embrapa – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária EPE – Empresa de Pesquisa Energética ERPA – Emition Reduction Purchase Agreement ou contrato internacional de cessão de direito de créditos de carbono ERU – Emission Reduction Units ou Crédito da Implementação Conjunta et. al. – e outros EUA – Estados Unidos da América do Norte EU ETS – European Union Emissions Trading Scheme (Bolsa de Valores da União Europeia) FLONAS – Florestas Nacionais GEE – Gás de Efeito Estufa GEE – Grau de Eficiência na Exploração GO – Goiás GPS – Global Positioning System GUT – Grau de Utilização da Terra GWP – Global Warming Potential ou Potencial de Aquecimento Global He – Hélio H2 – Hidrogênio H2S – Sulfeto de Hidrogênio HFCs – Hidrofluorcarbonos IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IDH – Índice de Desenvolvimento Humano inc. – inciso INC/FCCC – Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária IPCC – Intergovernmental Panel Climate Change ou Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática Km – quilômetro Kr – Kriptônio 11 LULUCF – Land Use, Land Use Change and Forestry ou Uso da Terra, Mudança no Uso da Terra e Floresta MBRE – Mercado Brasileiro de Reduções de Emissões MDL – Mecanismo de Desenvolvimento Limpo MG – Minas Gerais MOS – Matéria Orgânica do Solo n. – número N2 – Nitrogênio Ne – Neônio NH3 – Amônia NSW – New South Wales (Bolsa de Valores da Austrália) O2 – Oxigênio O3 – Ozônio ONGs – Organizações Não Governamentais ONU – Organização das Nações Unidas p. – página PDD – Project Design Document ou Documento de Concepção do Projeto de MDL PEC – Proposta de Emenda à Constituição Federal pg. – peta gramas ou bilhões de toneladas PIB – Produto Interno Bruto PMCF – Programa Federal de Manejo Florestal Comunitário e Familiar PNUMA – Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente PPL – Produção Primária Líquida PFCs – Perfluorcarbonos RCE – Redução Certificada de Emissão SEMARH – Secretaria Estadual do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos de Goiás SEPLAN-GO – Secretaria do Planejamento do Estado de Goiás SF6 – Hexafluoreto de Enxofre SO2 – Dióxido de Enxofre 12 STF – Supremo Tribunal Federal STJ – Superior Tribunal de Justiça TACs – Termos de Ajustamento de Conduta tC – tonelada de Carbono tC.ha.a – tonelada de Carbono por hectare por ano tCO2e – tonelada de Dióxido de Carbono equivalente Tg – Teragrama ou um trilhão TNC – Organização Não-Governamental The Nature Conservancy do Brasil TRF1 – Tribunal Regional Federal da Primeira Região UA – Unidades Animais UFG – Universidade Federal de Goiás UNCED – Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento UNCTAD – Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento UNEP – Programa de Meio Ambiente das Nações Unidas UNFCCC – Convenção sobre Mudanças Climáticas da Organização das Nações Unidas US$ – dólar VER – Verified Emition Reduction ou Crédito do Mercado Voluntário Xe – Xenônio WMO – Organização Meteorológica Mundial % – percentual ou por cento § – parágrafo 13 RESUMO O sequestro florestal de carbono mostra-se tema interessante diante da crise ambiental global. Na verdade, constitui importante instrumento para enfrentamento da problemática ambiental da mudança do clima. Para tanto, concebe-se a natureza como o fato moral em Durkheim; constata-se um descompasso entre o que se professa e o que se pratica em relação ao meio ambiente, conforme analisado em Elster; identifica-se o desencantamento do mundo, segundo Weber; concebem-se o desenvolvimento e a sustentabilidade como discursos de Foucault; e se concebe a norma agrária com caráter continuamente renovador e finalista, com apoio nos neopositivistas Robert Alexy, Humberto Ávila, Luís Roberto Barroso e Rodolfo Viana Pereira. Utilizando-se do método hipotético-dedutivo e dos métodos auxiliares comparativo, histórico e estatístico, formula-se o sequestro florestal de carbono como atividade agrária típica, que, explorável na forma de manejo sustentável, inclusive no Cerrado e em áreas protegidas, como as de reserva legal e de preservação permanente, contribui para um novo conceito de produtividade do imóvel agrário. Palavras-chaves: sequestro florestal carbono; atividade agrária; produtividade; imóvel agrário 14 ABSTRACT The forest carbon sequestration appears to be interesting topic in the face of global environmental crisis. Indeed, it is an important discourse of sustainable development‟s tool for coping with environmental problems of climate change. For this, nature is conceived as the moral fact in Durkheim, there has been a mismatch between what is professed and what is practiced in relation to the environment, as discussed in Elster, identifies the disenchantment of the world, according to Weber ; conceive of themselves as the development and sustainability discourses of Foucault, and is conceived with standard agrarian character continually renewing and finalist of the neo-positivists Robert Alexy, Humberto Avila, Luis Roberto Barroso and Rodolfo Pereira Viana. Using the hypothetical-deductive method and auxiliary methods of comparison, historical and statistical, forest carbon sequestration is formulated as a typical agricultural activity, which exploitable in the form of sustainable management, even in the Cerrado and in protected areas, as the legal reserves and permanent preservation, contributes to a new concept of agrarian property‟s productivity. Keywords: carbon sequestration forestry, agrarian activity, productivity, agrarian property 15 INTRODUÇÃO Segundo a linha de pesquisa do Mestrado, um novo Direito Agrário deverá necessariamente acolher e responder questões nascidas da relação entre o homem, a terra e o desenvolvimento, objetivando contribuir com a construção de conceitos mais específicos sobre a posse e propriedade da terra diante das graves demandas sociais. Diante disso, o presente trabalho tem por título “O sequestro florestal de carbono em áreas (re) florestadas como atividade agrária para um novo conceito de produtividade do imóvel agrário” e se encontra estruturado da seguinte forma: capa; folha de rosto; folha de avaliação; dedicatória; agradecimentos; sumário; relação de figuras (22 ao todo) e tabela (apenas 1); relação de abreviaturas, siglas e símbolos; resumo (com 171 palavras); abstract; introdução; 3 capítulos; conclusão (na forma sistematizada de súmulas) e referências (204 no total). Tendo em vista a linha de pesquisa do curso, o tema do sequestro florestal de carbono em áreas (re) florestadas como atividade agrária para um novo conceito de produtividade do imóvel agrário se justifica, na medida em que o imóvel agrário, por meio do Cerrado, responde, satisfatoriamente, à questão do aparente conflito entre desenvolvimento e proteção do meio ambiente, na qualidade de mecanismo de desenvolvimento sustentável. Interessa, nesse sentido, ao Direito Agrário, pois a exploração da atividade agrária com vistas ao desenvolvimento da propriedade e posse agrária, de quem a explora, e do Brasil, depende do meio ambiente natural sadio e equilibrado. O método hipotético-dedutivo é o utilizado a fim de verificar o problema da produtividade do imóvel agrário diante do dever de preservação ambiental; de formular nova hipótese de produtividade, por meio do sequestro florestal de carbono, e de conduzir a um processo de falseamento dessas conjecturas, com apoio em pesquisas desenvolvidas pela Embrapa, esclarecimentos prestados pela Ph.D. Beáta Emöke Madari (Embrapa Arroz e Feijão), material disponibilizado pelo P.h.D. Carlos Roberto Sanquetta (UFPR – Engenharia Florestal) e pelo graduando em Engenharia Florestal (UnB) Pedro Augusto Costa Roriz, bem como em produções científicas constantes de acervos bibliotecários de Universidades brasileiras e de órgãos estatais. 16 Métodos auxiliares, como o comparativo, histórico e estatístico, também são utilizados, a fim de visualizar projetos de carbono semelhantes em outras regiões de Cerrado no País e descrever a evolução histórica do sequestro florestal de carbono, apresentando-se dados sob a forma de números, percentuais, gráfico, tabela, mapa e figuras. O referencial teórico é o neo-positivismo, com assento em Alexy, Humberto Ávila, Luís Roberto Barroso e Rodolfo Viana Pereira, com vistas ao caráter continuadamente renovador e finalista da norma agrária. Para tanto, nas 81 páginas do capítulo 1, intitulado “A emergência da questão ambiental como problema global para a formação do discurso do desenvolvimento sustentável”, a noção a ser apresentada sobre o desenvolvimento sustentável o considera como discurso e parte de uma formação discursiva mais ampla, a do desenvolvimento, nos termos da “Teoria do Discurso” de Foucault. A opção por esse caminho necessariamente aborda os acontecimentos mundiais que transformaram os moldes de reprodução do capital da sociedade ocidental moderna, entendida como aquela de filiação europeia e norte-americana. O contexto do pós-Segunda Guerra foi determinante. Conquanto as ideologias da época, socialismo e capitalismo, fossem guiadas por orientações políticas diversas, a ordem era industrializar para conquistar: pessoas, territórios, progresso, felicidade ... Os Estados Unidos da América do Norte (EUA) promoveram, a partir de então, vigoroso investimento na industrialização, de que fez parte a ideia de desenvolvimento, pautados no tipo ascético da ética religiosa protestante. Isso, porque o protestantismo não explicava o mundo por meio da observação mágica e encantada de uma natureza sacralizada, mística e ufanista. Ao contrário, dispunha que a intensa atividade profissional era o meio mais adequado para a eliminação da solidão do indivíduo protestante. Tal orientação fomentou o abandono da contemplação e incentivou um agir com agressividade latente e instrumental sobre o planeta, sendo os impactos ambientais contabilizados como taxas de progresso e níveis de desenvolvimento. Produziu-se, segundo Weber, uma radicalização da racionalidade instrumental: o desencantamento do mundo, justificando-se, assim, o mundo e as 17 ações do homem sobre ele, em uma relação na qual todas as coisas podiam ser dominadas pelo cálculo. Esse modelo de industrialização intensificou os fenômenos naturais transfronteiriços, tal qual o aquecimento em nível global da atmosfera, como consequência da intensificação do efeito estufa, devido ao aumento da concentração de Gases de Efeito Estufa (GEE). É que a exploração da atividade industrial e mesmo da atividade agrária, no processo de expansão da fronteira agrícola para dar suporte ao urbano, aumentou a concentração na atmosfera, por exemplo, de um gás que naturalmente a compõe, o dióxido de carbono (CO2). Esse gás é denominado GEE, haja vista que, devido à sua estrutura de geometria linear e quantidade na atmosfera, apresenta potencial de aquecimento que mais retém calor no planeta, mantendo-o aquecido como um cobertor, no fenômeno denominado efeito estufa que promove aquecimento global. O efeito estufa é um fenômeno natural, composto por quantidades pequenas dos GEE, que mantém a temperatura média da Terra, devido à absorção da radiação infravermelha. O aumento da concentração desses gases, todavia, pode bloquear a saída dos raios infravermelhos térmicos e aumentar sobremaneira a temperatura média do planeta. O aumento da concentração do dióxido de carbono aumenta o efeito estufa e o aquecimento global, ocasionando, num balanço geral, consequências negativas, como diminuição da disponibilidade de água, aumento do processo de desertificação, extinção de plantas e animais e diminuição da produtividade agrícola e, inclusive, pecuária. Por esse contexto, dividiram-se opiniões acerca do aspecto ambiental do desenvolvimento: de um lado, aqueles segundo os quais a racionalidade, por meio da ciência e da técnica, garantia a emancipação social e o progresso dos indivíduos. De outro, os que reconheciam a problemática ambiental como limite da fé cega naquela razão, reclamando restrições ao desenvolvimento industrial. O desenvolvimento latino-americano, inclusive, foi inserido na ordem do discurso pela Comissão Econômica Para a América Latina e Caribe (CEPAL), 18 quando, na década de 1970, o pensamento cepalino também se voltou à discussão da problemática ambiental, em torno da relação meio ambiente e desenvolvimento, numa dupla linha de ação: produção-sistematização de informações sobre os recursos e as condições ambientais da região e busca de estratégias para nortear a inserção da dimensão ambiental nas políticas de desenvolvimento. Isso indicou a necessidade de que as instituições sociais exercessem externamente um controle e impusessem uma coerção, já que o indivíduo, por si, parecia não querer cooperar voluntariamente, tampouco pensar a proteção do meio ambiente como o fato moral em Durkheim: revestido com o manto da desejabilidade e racionalidade. Imprescindível, para tanto, uma cooperação universal. Nessa oportunidade foi que a questão ambiental emergiu, então, como problema global e se elaborou a noção de desenvolvimento sustentável, orientando políticas, implementando programas ou definindo condutas e práticas tendentes à proteção do meio ambiente. A Conferência de Estocolmo ou Conferência das Nações Unidas sobre o Homem e o Desenvolvimento, realizada entre 5 e 16 de junho de 1972, foi o primeiro evento internacional significativo que abordou a questão ambiental no interior das discussões sobre a necessidade inadiável de reorientação do estilo de desenvolvimento predominante. Em 1987, a Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento Humano da Organização das Nações Unidas (ONU) apresentou à comunidade internacional o relatório de Brundtland ou Nosso Futuro Comum, evidenciando-se, pela primeira vez, que desenvolvimento sustentável é desenvolvimento que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a capacidade de as futuras gerações satisfazerem suas próprias necessidades. No ano de 1997, a Conferência das Partes da ONU aprovou o Protocolo de Kyoto, que estabeleceu um cronograma de limitações quantitativas para as metas de redução e limitação da emissão de GEE: média de 5,2% abaixo dos níveis de 1990, no período de 2008-2012, como patamar de segurança que impedisse uma interferência perigosa no sistema climático e de consequências ambientais desastrosas. Essa coerção imposta de fora por organizações internacionais pressionou os países signatários a cooperarem com vistas à solução do problema ambiental. 19 Acontece que a solidariedade entre esses atores, inclusive os nacionais, não decorre apenas de seus interesses imediatos, pois se movem também por meio de escolhas racionais, embasadas no cálculo de vantagens e custos de participação. Daí o porquê do Protocolo de Kyoto ter previsto um retorno financeiro, por meio da geração de créditos de GEE, e sua consequente comercialização no mercado de carbono. Para tanto, o protocolo incluiu o instrumento de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) com LULUCF (Land Use, Land Use Change and Forestry – Uso da Terra, Mudança no Uso da Terra e Floresta), cujas atividades elegíveis são o florestamento e reflorestamento. É que as árvores reduzem os extremos climáticos com a fixação de carbono. Pela fotossíntese, uma árvore remove o gás carbônico atmosférico que, com a incidência da luz solar e em simbiose com a água, é transformado em energia para a promoção do crescimento e manutenção da vida da árvore, fixando-se o carbono do gás na biomassa aérea, na serapilheira, na biomassa subterrânea e no solo. E foi observando esse importante serviço florestal, de sequestrar e fixar carbono prestado pelas árvores no ecossistema terrestre, que o Protocolo de Kyoto, no âmbito do discurso do desenvolvimento sustentável definido no Relatório de Brundtland, em 1987, como o dever de promover o desenvolvimento, protegendo-se o meio ambiente para as gerações presentes e futuras, colocou em evidência o sequestro geológico de carbono nas plantas. Para o Brasil, país signatário do protocolo e constituído por biomas que proporcionam muitas opções para projetos florestais, o sequestro florestal de carbono pode representar a possibilidade de restaurar áreas protegidas degradadas e induzir o uso sustentável da terra em regiões de fronteiras agrícolas, como o Cerrado. Nas 55 páginas do Capítulo 2, intitulado “Perspectivas do sequestro florestal de carbono no Cerrado brasileiro”, discorre-se acerca desse MDL florestal, dentro e fora do âmbito do Protocolo de Kyoto. Extrai-se do estudo a definição de floresta como formações vegetais com uma cobertura mínima de 30% e altura das árvores mínima de 2-5 metros na maturidade, ocupando, pelo menos, 1 hectare, restringindo-se, nesse sentido, as 20 áreas elegíveis no Cerrado para um MDL florestal, dada a predominância de formação savânica do bioma. De igual modo, extrai-se o conceito de sequestro florestal de carbono como o processo consistente na remoção pelas árvores de uma floresta do gás carbônico da atmosfera e sua fixação na estrutura aérea e subterrânea daquelas mesmas árvores, bem assim na serapilheira e no solo. O sequestro de carbono florestal em áreas (re) florestadas pode se dar por árvore exótica, como o eucalipto, ou por nativa do Cerrado, a depender de estudos técnicos do solo e do clima, consistindo, pela primeira espécie arbórea ou pela outra, importante instrumento de recuperação, na modalidade ou não de sistemas agroflorestais, das áreas degradadas do bioma Cerrado com a expansão da fronteira agrícola no Planalto Central brasileiro, desde que comprovada, no mínimo, a adicionalidade, isto é, que a implantação da floresta, por florestamento ou reflorestamento, removeu mais carbono na região em que o projeto florestal foi implantado do que na ausência do projeto. É que para os fins de obtenção de créditos de carbono comercializáveis nos moldes do Protocolo de Kyoto são necessários, além da adicionalidade, a voluntariedade (desenvolvimento do projeto por vontade própria) e melhorias climáticas mensuráveis. Nesse diapasão, analisa-se, nas 44 páginas do Capítulo 3, intitulado “O sequestro florestal de carbono como atividade agrária”, a concepção do imóvel agrário, da atividade agrária e da flora no direito brasileiro, estudando-se, para tanto, os apontamentos legislativos, doutrinários e jurisprudenciais a respeito. Discorre-se que, para fins de Direito Agrário, o imóvel agrário é a propriedade imobiliária destinada à exploração de atividade agrária, por meio da utilização adequada e racional do meio ambiente, com vistas ao desenvolvimento, pela produtividade, de quem o explora, e do Brasil. Reconhecem-se as áreas de preservação permanente e de reserva legal como necessárias à própria exploração da atividade agrária, na medida em que as primeiras localizam-se em regiões estratégicas de um imóvel agrário, como no leito de rio, nascente, topo de morro e encosta, cuja proteção é imprescindível, por exemplo, para a garantia de água e de solo cultivável (fértil e sem erosões) na propriedade imobiliária agrária, enquanto as segundas contribuem para a 21 manutenção da biodiversidade local. Admite-se, inclusive, o manejo sustentável nessas áreas protegidas, de modo a garantir a proteção do meio ambiente e o crescimento econômico-social local: nas de reserva legal o próprio Código Florestal expressamente o admite (art. 16, § 2º), enquanto que nas de preservação permanente permite-se, inclusive, a supressão de sua vegetação em caso de interesse social, que inclui as atividades imprescindíveis à proteção da integridade da vegetação, como a proteção de plantio com espécie nativa, e as atividades de manejo agroflorestal sustentável que não descaracterizem a cobertura vegetal e não prejudiquem a função ambiental da área (art. 4º e art. 1º, § 2º, IV e V). Nesse contexto, o sequestro florestal de carbono em áreas (re) florestadas pode consistir atividade de manejo agroflorestal sustentável, praticável, portanto, para a recuperação de áreas de preservação permanente e de reserva legal degradadas. O serviço ambiental de sequestro florestal de carbono também é contemplado, expressamente, no âmbito da concessão de florestas públicas, conforme o § 2º do art. 16 da Lei n. 11.284, de 2 de março de 2006, segundo o qual, no caso de reflorestamento de áreas degradadas ou convertidas para uso alternativo do solo, o direito de comercializar créditos de carbono poderá ser incluído no objeto da concessão. Ademais, o Supremo Tribunal Federal (STF) já entendeu que o exercício de atividade econômica em ecossistema sob proteção constitucional direta, como no caso do Pantanal que é considerado patrimônio nacional (art. 225, § 4º, da Constituição Federal de 1988), é possível, desde que respeitadas as condições necessárias à preservação ambiental. Outrossim, nos termos do art. 102 da Lei n. 8.171, de 17 de janeiro de 1991, que dispõe sobre a política agrícola no Brasil, o solo deve ser respeitado como patrimônio natural do País. Os imóveis agrários, todavia, também se situam em biomas não protegidos constitucionalmente sob a insígnia de patrimônio nacional, como no caso do Cerrado, mas se sujeitam ao mesmo dever de recuperação e proteção de áreas de preservação e de reserva legal. Segundo o inc. IV do art. 10 da Lei n. 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, 22 são consideradas não aproveitáveis as áreas de efetiva preservação permanente e demais áreas protegidas por legislação relativa à conservação dos recursos naturais e à preservação do meio ambiente. Essa norma é, com efeito, de caráter cogente-injuntivo, no sentido de ser de ordem pública, não modificável, portanto, pela vontade. O posicionamento do STF e a tendência de toda a normativa posterior a esse diploma, bem como o princípio do caráter finalista e continuadamente renovador da lei, conduzem a uma nomogênese em que o legislador pátrio pretendeu excluir, na verdade, o uso predatório e degradante daqueles espaços protegidos. Não se cuida, no caso, de proposta de modificação da norma, mas sim de verificar seu verdadeiro alcance. Por exemplo, a literalidade daquela mesma regra, que considera não aproveitáveis as áreas protegidas por legislação relativa à conservação dos recursos naturais e à preservação do meio ambiente, excluiria da exploração de atividade econômica os imóveis rurais situados em áreas de patrimônio nacional. Conforme orientação do STF, no entanto, aquelas áreas são passíveis de exploração econômica sustentável e, na hipótese de se tratar de floresta pública objeto de concessão, é possível, inclusive, o comércio de créditos de carbono, nos termos da legislação própria. Razoável, então, admitir-se, também, em áreas de preservação permanente e de reserva legal a exploração de uma atividade econômica sustentável, tal qual o sequestro florestal de carbono por meio de (re) florestamento, desde que garanta o alcance da finalidade para a qual essas áreas foram instituídas: o de proteção do meio ambiente. E é nesse diapasão que a prática de sequestrar carbono florestal pelo (re) florestamento constitui verdadeira atividade agrária para um novo conceito de produtividade do imóvel agrário. É que a mesma Lei n. 8.629/93 considera efetivamente utilizada a área de exploração extrativa florestal e de exploração de floresta nativa (art. 6º, § 3º, incs. III e IV), sendo que uma área de determinado imóvel agrário somente é efetivamente utilizada, para fins agrários de produtividade, se nela for explorada uma atividade agrária. Inobstante a Instrução Normativa n. 11 do Instituto Nacional de Reforma 23 Agrária (INCRA) relacione parâmetros médios de produtividade para cômputo do Grau de Eficiência na Exploração (GEE), inexiste, no ordenamento jurídico brasileiro, um parâmetro próprio da atividade agrária de sequestro florestal de carbono. A omissão legislativa pode ser suprida pelo manejo do mandado de injunção, nos termos do art. 5°, inc. LXXI da CF/88, de modo que o Governo Federal, com apoio em equipe técnica de agrônomos, engenheiros florestais e outras profissões correlatas, estabeleça os parâmetros para o cálculo do GEE em imóvel agrário onde haja exploração da atividade agrária de sequestro florestal de carbono. Esses parâmetros devem se diferenciar conforme as características próprias dos biomas nas diversas regiões do país, variando em consequência das condições do clima, solo e disponibilidade de água, bem como da espécie de árvore, nativa ou exótica, na medida em que representam fatores influenciáveis na quantidade de carbono atmosférico removido durante o processo da fotossíntese. A adicionalidade, por si, já indica o caminho, pois demonstra que, na área degradada que abriga o projeto florestal, sequestra-se mais carbono do que na ausência da atividade de (re) florestamento, apresentando-se, nesse sentido, a ação declaratória de produtividade outra opção para se reconhecer produtivo o imóvel agrário. Dessa forma, abrem-se oportunidades de incentivo para a recuperação e o enriquecimento da cobertura florestal em áreas degradadas, inclusive de reserva legal e de preservação permanente, de forma a promover o desenvolvimento sustentável e contribuir para uma nova modalidade de atividade agrária e de um novo conceito de produtividade do imóvel agrário. 24 1 A EMERGÊNCIA DA QUESTÃO AMBIENTAL COMO PROBLEMA GLOBAL E O DISCURSO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL A noção a ser apresentada sobre o desenvolvimento sustentável o considera como discurso e parte de uma formação discursiva mais ampla, a do desenvolvimento, nos termos da “Teoria do Discurso” de Foucault. Segundo esse autor, “Fazer aparecer, em sua pureza, o espaço em que se desenvolvem os acontecimentos discursivos não é tentar restabelecê-lo em um isolamento que nada poderia superar; não é fechá-lo em si mesmo; é tornar-se livre para descrever, nele e fora dele, jogos de relações”.1 O discurso do desenvolvimento se constitui em torno desse conjunto de relações que determina o que pode ser dito e quem está autorizado a dizer. A opção por esse caminho aborda, necessariamente, os acontecimentos mundiais que transformaram os moldes de reprodução do capital da sociedade ocidental moderna, entendida como aquela de filiação europeia e norte-americana. 1.1 O DESENCANTAMENTO DO MUNDO RUMO AO DISCURSO DO DESENVOLVIMENTO O contexto do pós Segunda Guerra Mundial foi determinante. Conquanto a ideologia socialista e capitalista da época fosse guiada por orientações políticas diversas, considerando-se o homem como animal político por natureza e, como tal, a convivência é o destino e o caminho que permite a vida boa, isto é, a felicidade, 2 a ordem era industrializar para conquistar: pessoas, territórios, progresso, felicidade... Partindo, então, da premissa de que a industrialização, o trabalho e a produção faziam a riqueza das nações e de que a pobreza era um obstáculo e uma ameaça para as próprias regiões pobres e também para as mais prósperas, é que, 1 2 FOUCAULT apud MACHADO, Vilma de Fátima. A produção do discurso do desenvolvimento sustentável: de Estocolmo à Rio-92, 2005, p. 68. Cf. WOLF, Francis. Aristóteles e a Política, 1999, p. 35-41, 68-73. 25 segundo Truman,3 era tempo de deslanchar um novo programa para tornar disponíveis os avanços científicos e o progresso industrial norte-americano, com vistas à melhoria e à consolidação do crescimento econômico daquelas regiões subdesenvolvidas e desenvolvidas, respectivamente. Foi, inclusive, no contexto daquele Pós-Guerra “que os termos Terceiro Mundo e Subdesenvolvido foram se tornando conceitos operativos na descrição da situação das economias não industrializadas”.4 O crescimento econômico era, pois, a chave para prosperidade, paz, liberdade e felicidade. E a chave para o crescimento econômico era a aplicação mais extensa e vigorosa do moderno conhecimento tecnológico e científico norteamericano. Os Estados Unidos da América do Norte (EUA) promoveram, a partir daí, vigoroso investimento na industrialização, baseada “nos supostos do fordismokeynesiano”,5 com o intuito de criar um mercado mundial, buscando a globalização da economia. Isso porque, de maneira geral, o “fordismo” envolvia a criação de um sistema de produção em massa, da intercambialidade de peças e de funcionários, e da padronização de produtos, de ferramentas e de métodos de trabalho. Para tanto, a ordem era reduzir as tarifas6 e as barreiras espaciais “pela compressão do espaço através do tempo e compressão do tempo pelo espaço”;7 forte na ideia de desenvolvimento pautado no tipo ascético da ética religiosa protestante: vocação para o trabalho. A razão era que o protestantismo não explicava o mundo por meio da observação mágica e encantada de uma natureza sacralizada, mística. Ao contrário, dispunha que a intensa atividade profissional fazia-se o meio mais adequado à produção da autoconfiança e à eliminação da angústia e da solidão do indivíduo protestante. 3 4 5 6 7 Cf. TRUMAN apud MACHADO, Vilma de Fátima. A produção do discurso do desenvolvimento sustentável: de Estocolmo à Rio-92, 2005, p. 76. MACHADO, Vilma de Fátima. A produção do discurso do desenvolvimento sustentável: de Estocolmo à Rio92, 2005, p. 80. LINHARES, Maria Yedda Leite e SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Terra prometida: uma história da questão agrária no Brasil, 1999, p. 148. Cf. IANNI, Octavio. Agricultura e Estado, 1984, p. 191-205. CARVALHO, Horácio Martins de. A insustentabilidade do atual modelo econômico e tecnológico da agricultura brasileira, 2005, p. 198-351. 26 Segundo Lima: “Para o crente calvinista, o mundo existia não para os homens, mas sim estes por causa de Deus; a vida, para o crente, era a glorificação do Senhor. Além do mais, os preceitos de salvação da fé renovada colocavam o devoto diante do fato de que somente uma pequena parte dos homens serão salvos (sic) – os escolhidos. Imputando ao crente, como destino, uma imensa solidão. Só diante de Deus podia-se buscar solitariamente, na condição de eleito, a salvação. Para tanto, não mais havia mediação possível, meios mágicos ou sacramentados para realizá-la, que só poderiam 8 fomentar ilusões sensuais e sentimentais, ou então superstições idólatras.” Tal orientação fomentava o abandono da contemplação, fundada na racionalidade mística e teológica do homem medieval, e incentivava um agir com agressividade latente e instrumental sobre o planeta. Produzia-se, segundo Weber,9 uma radicalização da racionalidade instrumental: o desencantamento do mundo, justificando-se, assim, o mundo e as ações do homem sobre ele, em uma relação na qual todas as coisas podiam ser dominadas pelo cálculo. É que, nas palavras de Lima: “O mundo organizado e explicado pela ciência e dominável pela técnica se revela um mundo desencantado... A fé na ciência e no aperfeiçoamento tecnológico dá origem à fé na noção de progresso e na possibilidade do desenvolvimento ilimitado do mundo da sociedade industrial.”10 Esses valores, tão caros à cultura moderna ocidental, justificavam, dessa forma, a ação incessante do homem sobre o planeta. Na América Latina esse modelo de industrialização foi fato antes de ser política e foi política antes de ser teoria. Isso resultava na necessidade de considerar as especificidades econômicas da região com vistas a políticas mais eficazes na promoção do seu desenvolvimento.11 Somente em 1948, contudo, é que o desenvolvimento latino-americano foi inserido na ordem do discurso com a criação, em 25 de fevereiro daquele mesmo 8 9 10 11 LIMA, Ricardo Barbosa de. Uma visão dos limites da modernidade construída pelo prisma da crise ecológica global: o desencantamento do mundo, 1996, p. 14. Cf. WEBER apud LIMA, Ricardo Barbosa de. Idem, p. 11-12. LIMA, Ricardo Barbosa de. Idem, p. 17. Cf. MACHADO, Vilma de Fátima. A produção do discurso do desenvolvimento sustentável: de Estocolmo à Rio-92, 2005, p. 94-95. 27 ano, da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL). É que essa comissão econômica regional das Nações Unidas, com sede em Santiago, no Chile, “foi criada para monitorar as políticas direcionadas à promoção do desenvolvimento econômico da região latino-americana, assessorar as ações encaminhadas para sua promoção e contribuir para reforçar as relações econômicas dos países da área, tanto entre si como com as demais nações do mundo. Posteriormente, seu trabalho ampliou-se para os países do Caribe e se incorporou o objetivo de promover o desenvolvimento social e sustentável.”12 (destaquei) Desde então, a CEPAL via nas condições de produção e na estrutura da propriedade fundiária dos países latino-americanos latifúndios improdutivos, que se colocavam como verdadeiros obstáculos à realização do processo de desenvolvimento idealizado. A industrialização era o caminho mais rápido, curto e direto para superar a condição do subdesenvolvimento da América Latina. Era nesse sentido que a CEPAL orientava estratégias para superação daqueles obstáculos. O pensamento cepalino apregoava políticas de transformação na forma de produção agrícola, por meio da mecanização e do progresso técnico, assentando-se no consumo crescente dos recursos naturais13 e na externalização dos custos sociais e ambientais resultantes do processo produtivo então em movimento. “Em linguagem econômica, os custos sociais ou os danos não- 12 13 Cf. explicação disponível em: <http://www.eclac.cl>. Acesso em: 1º abr 2010. Consta também que “Todos os países da América Latina e do Caribe são membros da CEPAL, junto com algumas nações desenvolvidas, tanto da América do Norte como da Europa, que mantêm fortes vínculos históricos, econômicos e culturais com a região. No total, os Estados-membros da Comissão são 44 e 8 membros associados, condição jurídica acordada para alguns territórios não-independentes do Caribe. Os Estados-membros são: Alemanha, Antígua e Barbuda, Argentina, Bahamas, Barbados, Belize, Bolívia, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Dominica, Equador, El Salvador, Espanha, Estados Unidos da América, França, Granada, Guatemala, Guiana, Haiti, Honduras, Itália, Jamaica, Japão, México, Nicarágua, Países Baixos, Panamá, Paraguai, Peru, Portugal, Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, República Dominicana, República da Coréia, Santa Lúcia, São Cristóvão e Neves, São Vicente e Granadinas, Suriname, Trinidad e Tobago, Uruguai e Venezuela. Os Países-membros associados são: Anguilla, Antilhas Holandesas, Aruba, Ilhas Virgens Britânicas, Ilhas Virgens dos Estados Unidos, Montserrat, Porto Rico, Ilhas Turcas e Caicos.” Há notícia de que a expressão “recursos naturais” foi mencionada pela primeira vez na década 1970, por E.F. Schumacher no seu livro intitulado “Small is Beautiful”. Cf. FREITAS, Eduardo de. Os recursos naturais. Brasil escola. Disponível em: <http://www.brasilescola.com/geografia/os-recursos-naturais.htm>. Acesso em 17 mar. 2010. 28 compensáveis denominam-se externalidades”14 E assim são chamadas porque, “embora resultantes da produção, são recebidas pela coletividade, ao contrário do lucro, que é percebido pelo produtor privado. Daí a expressão „privatização de lucros e socialização de perdas‟, quando identificadas as externalidades negativas”.15 É que “herdamos da literatura marxista a idéia de produção necessária e de produção desnecessária, isto é, a produção cuja presença é capaz de assegurar o bem-estar das populações em confronto com outra produção, destinada à exportação”.16 Segundo um critério moral, a produção desnecessária seria, então, não apenas excedente, mas também excessiva, acarretando para a sociedade uma circulação também desnecessária.17 “O estabelecimento de infra-estruturas de custo pesado e a mobilização de veículos e serviços para assegurar tal circulação e tal intercâmbio”,18 por exemplo, “quando não incidem sobre o bem-estar geral da população, constituiriam uma carga para a sociedade”,19 um ônus desnecessário, uma externalidade negativa. Destarte, “é necessário energia para manter em funcionamento toda esta infra-estrutura capitalista”20 de produção e circulação de mercadoria, num modelo em que “quanto maior a capacidade instalada de produção e comercialização, bem como de avanço técnico, maior será a demanda de energia”.21 O custo ambiental, nesse contexto, é facilmente identificado como externalidade negativa, na medida em que, a partir da Revolução Industrial, a energia utilizada para o funcionamento das máquinas era oriunda da exploração intensa de recursos naturais. Os recursos naturais são, a rigor, tudo aquilo que se encontra na natureza e é de utilidade ao homem, com vistas ao desenvolvimento da civilização e sobrevivência e conforto da sociedade em geral. 14 15 16 17 18 19 20 21 LIMIRO, Danielle. Créditos de Carbono. Protocolo de Kyoto e Projetos de MDL, 2008, p. 56. DERANI, Cristiane apud MILARÉ, E. Princípios fundamentais do Direito do Ambiente, 1998, p. 53-68. SANTOS, Milton e SILVEIRA, María Laura. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI, 2001, p. 297. Cf. SANTOS, Milton e SILVEIRA, María Laura. Idem. SANTOS, Milton e SILVEIRA, María Laura. Idem. SANTOS, Milton e SILVEIRA, María Laura. Idem. CARVALHO, Horácio Martins de. O campesinato no século XXI – Possibilidades e condicionantes do desenvolvimento do campesinato no Brasil, 2005, p. 361. CARVALHO, Horácio Martins de. Idem. 29 Incluem a atmosfera, os elementos da biosfera, o mar territorial, os estuários, as águas interiores, superficiais e subterrâneas, o subsolo, o solo, a fauna e a flora.22 A flora designa o conjunto de espécies vegetais de uma determinada região, enquanto que a fauna é o termo coletivo para a vida animal de uma determinada região ou período de tempo. O solo é o resultado da ação conjunta de agentes externos ativos (como a chuva, o vento e a umidade) e passivos (como a rocha, o relevo e a matéria orgânica), ao passo que o subsolo é a camada que fica abaixo do solo, onde são encontrados minerais do tipo ouro, prata, cobre e pedras preciosas, bem assim combustíveis fósseis como carvão mineral e petróleo.23 Para Mazzuoli: “As águas interiores são a parte interna do domínio marítimo do Estado. (...) No domínio das águas interiores encontram-se os mares internos (fechados ou abertos), as baías, os golfos, os lagos, os estuários, os portos e os ancoradouros (naturais ou artificiais). (...) Os mares internos são aquelas grandes porções marítimas, cercadas de terra, apresentando, ou não, comunicação navegável com o mar livre. Neste último caso são chamados de “mar fechado” (land locked sea) (...) São exemplos de mar fechado o Mar Morto, o Mar Cáspio e o Mar de Aral. Serão abertos, por sua vez, aqueles mares que, embora rodeado por terras, comunicam-se com o mar alto, por meio de uma via natural, tendo-se como exemplos o Mar Negro, o Mar de Azoff, o Mar de Mármara, o Mar Branco e o Mar Báltico. (...) Os estuários correspondem a verdadeiras baías pela sua largura, formadas quando o rio desemboca no mar, fazendo com que a foz assuma o aspecto de um estuário. Assim, chama-se de estuário a baía formada por um rio pouco antes de chegar ao mar, quando as águas daquele se misturam com a deste último. (...) São exemplos de estuários de rios que se projetam no oceano o rio Amazonas, o Mississípi e o Prata, bem como o Severn e o Humber, na Inglaterra e o São Lourenço no Canadá. Os portos (naturais ou artificiais) e os ancoradouros (que constituem prolongamento do mar ao longo da costa incrustada no território e que serve de abrigo aos navios de todas as bandeiras, sem qualquer distinção) são parte integrante do domínio público do Estado (...) Já se tentou diferenciar os golfos das baías, entendendo-se como sendo os primeiros as reentrâncias do litoral de formação circular, com amplo raio de curvatura, e as segundas as reentrâncias geralmente menores, com curvaturas mais acentuadas (e bem menos amplas) e abertura pela qual o mar penetra. (...) O mar territorial pode (...) ser conceituado como a faixa marítima que banha o litoral de um Estado e onde, até um limite pré-fixado, o mesmo exerce sua jurisdição e competência. Trata-se de uma zona intermediária entre o alto mar e a terra firme (de domínio exclusivo do Estado costeiro), cuja existência encontra-se justificada pela necessidade de segurança, conservação e defesa do Estado 22 23 Cf. art. 3º, V, da Lei nº 6.938, de 31de agosto de 1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente. Cf. VIEIRA, L.S. Manual da Ciência do Solo: com ênfase aos solos tropicais, 1988, p. 464. 30 ribeirinho, bem como por motivos econômicos (navegação, pesca etc.), e, ainda, de política aduaneira fiscal. (...) São de 12 milhas marítimas (cerca de 22 Km) a extensão do mar territorial de qualquer Estado costeiro (...) A delimitação do mar territorial se faz medindo-se a largura da linha litorânea de maré-baixa (linha de base normal, considerada como a linha de baixamar ao longo da costa, tal como indicada nas cartas marítimas de grande escala, reconhecidas oficialmente pelo Estado costeiro), alternada com a 24 linha de limite das águas interiores quando existirem baías ou portos.” (destaques no original) A atmosfera, por seu turno, é uma camada de ar que envolve a Terra, composta naturalmente pelos gases nitrogênio (N 2), oxigênio (O2), argônio (Ar), gás carbônico ou dióxido de carbono (CO 2), neônio (Ne), hélio (He), metano (CH4), kriptônio (Kr), hidrogênio (H2), xenônio (Xe), havendo traços de óxidos de nitrogênio (NO, NO2 e N2O), monóxido de carbono (CO), ozônio (O 3), amônia (NH3), dióxido de enxofre (SO2) e sulfeto de hidrogênio (H2S),25 sendo o nitrogênio (N2) e o oxigênio (O2) os gases principais “que, juntos, compõem cerca de 99% da atmosfera”.26 Sanquetta complementa que “nos primeiros 96 Km, a atmosfera tem uma composição bastante homogênea, sendo que os gases que a compõem com suas respectivas porcentagens por volume são: nitrogênio (N 2) com 78,09%; oxigênio (O2) com 20,95%; argônio (Ar) com 0,93%; dióxido de carbono (CO 2) com 0,03% e outros gases”.27 Essa camada, mais densa nas proximidades do solo e mais rarefeita à medida que se ganha altura, circunda a Terra e alcança algumas centenas de quilômetros de espessura, de modo a proteger o planeta das radiações nocivas dos raios solares, bem assim absorver e deter parte do calor irradiado pelo Sol. No tocante à temperatura, a atmosfera classifica-se em troposfera, estratosfera, mesosfera e termosfera.28 A troposfera, do grego tropos que significa movimento (que no caso decorre da presença de correntes de ar frias e quentes) é a camada mais próxima à superfície da Terra; possui espessura variável entre 8 e 16 quilômetros e contém cerca de 90% dos gases que compõem a atmosfera, além de quase todo o vapor d'água. 24 25 26 27 28 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público, 2007, p. 628-643. Cf. SOUSA, Rogério. Raios, relâmpagos e trovões. Disponível em: <http://www.ufpa.br/ccen/fisica/aplicada/inicial.htm>. Acesso em: 27 fev. 2010. BERTUCCI, Afonso Celso. O Protocolo de Kyoto e o mercado de créditos de carbono, 2006, p. 2. SANQUETTA, Carlos Roberto. Créditos de Carbono. Base Científica. Formulação de Projetos, 2008, p. 1. Cf. SOUSA, Rogério. Raios, relâmpagos e trovões. Disponível em: <http://www.ufpa.br/ccen/fisica/aplicada/inicial.htm>. Acesso em: 27 fev. 2010. 31 Os gases que compõem essa camada não absorvem as ondas de calor do Sol; estas são absorvidas pela crosta terrestre que se aquece e transfere calor para a troposfera, de maneira que com o aumento da altitude sua temperatura diminui. A estratosfera, por sua vez, constitui-se de um ar bastante rarefeito e composto basicamente de ozônio; alcança altitudes de mais ou menos 50 quilômetros e sua temperatura aumenta com a altitude, sendo o seu valor médio em torno de -3 0C. A mesosfera, por seu turno, é a camada intermediária constituída de um ar mais rarefeito ainda e composto de ozônio e vapor de sódio; com altitudes de cerca de 80 quilômetros, onde a temperatura volta a diminuir com a altitude, sendo o seu valor médio em torno de -93 0C. Por último, a termosfera, que tem por limite até onde a densidade gasosa seja tão baixa a ponto de se confundir com o espaço interplanetário. Já sobre a biosfera, Cintra esclarece: “que o termo começou a ser empregado por volta de 1920. A palavra é formada por Bio = vida e esfera = camada, espaço, esfera; sendo assim, a biosfera é o espaço que possui vida na Terra. Esse termo está relacionado aos componentes abióticos do nosso planeta que são: Hidrosfera: espaço ocupado por água (hidro). (...) Litosfera: espaço formado por solo, rochas (litos). (...) E Atmosfera: espaço formado por gás (atmos). (...) O conjunto desses componentes com os seres vivos é que forma a biosfera. A biosfera compreende desde o topo das mais altas montanhas até as profundezas dos oceanos, ela é delimitada de acordo com a presença de seres vivos. O limite superior da Biosfera está em torno de 7000m e seu limite inferior em 11.000m, totalizando uma faixa de, aproximadamente, 18 Km. A maioria dos seres vivos terrestres se encontra até 5000m acima do nível do mar e nos oceanos, algumas bactérias, já foram encontradas a mais de 9000m de profundidade, sendo que também a maioria se encontra até 150m de profundidade. A diversidade de características que existe nesses ambientes se traduz na diversidade de espécies e na quantidade de seres vivos que habitam determinadas regiões. Por exemplo, nos extremos superior e inferior da biosfera, poucos seres vivos conseguem viver. As condições ambientais mais favoráveis estão nos limites intermediários dessa faixa. (...) essa faixa também se mostra auto-reguladora, dinâmica, capaz de resistir, 29 ao menos dentro de certos limites, às modificações do meio ambiente.” (destaquei) E é conforme o tempo necessário à sua reposição que esses recursos 29 CINTRA, Selmi Vianna. Biosfera. Disponível em: <http://www.infoescola.com/biologia/biosfera>. Acesso em: 19 abr. 2010. 32 naturais classificam-se em renováveis e não-renováveis. Os não-renováveis incluem substâncias que jamais podem ser recuperadas ou não o são em um curto período de tempo, como por exemplo, o petróleo e os minérios em geral. Os renováveis são aqueles que podem se renovar ou recuperar, com ou sem interferência humana, como as florestas, a luz solar, os ventos e a água. Podem ser classificados, ainda, em energéticos (a exemplo do carvão, do petróleo e da água) e não energéticos, conforme a capacidade de produzir energia.30 De acordo com o recurso natural utilizado para a execução do trabalho ou realização de uma ação, bem assim a poluição ambiental produzida, essa energia é denominada limpa ou não limpa. A energia limpa é aquela que não libera ou libera poucos gases ou resíduos em sua produção ou consumo, como a proveniente da luz solar, dos ventos, do biogás e dos biocombustíveis. Essa energia, inobstante seja considerada limpa e, portanto, potencial alternativo limpo, pode apresentar alguns óbices.31 Por exemplo: “produzir energia elétrica com ajuda do vento ou do sol é até oito vezes mais caro do que por métodos tradicionais”.32 Ou ainda: a energia solar tem sua produção interrompida à noite e diminuída em dias de chuva, de neve e em locais com poucas horas de sol, além de depender da prévia produção industrial de células fotovoltaicas, que são dispositivos eletrônicos responsáveis pela transformação da energia luminosa do sol em eletricidade. A energia eólica, por sua vez, depende da prévia produção de cataventos, que geram poluição visual e sonora, enquanto o biogás é um gás de difícil armazenamento resultante da transformação de excrementos de animais e de lixo 30 31 32 Cf. FREITAS, Eduardo de. Os recursos naturais. Brasil escola. Disponível em: <http://www.brasilescola.com/geografia/os-recursos-naturais.htm>. Acesso em: 17 mar. 2010. No mesmo sentido: ALMEIDA, Francisco Provázio Lara de. Recursos naturais renováveis na legislação brasileira: o respeito à tutela do meio ambiente como requisito para o cumprimento da função social do imóvel rural, 2009, p. 1-3. Cf. ALVES, Líria. Energia limpa. Brasil escola. Disponível em: <http://www.brasilescola.com/quimica/energia-limpa.htm>. Acesso em: 1º abr. 2010. Na mesma linha de entendimento: DIDONÊ, Débora (et. al.). Quais os tipos de energia limpa existentes? Planeta sustentável. Disponível em: <http://planetasustentavel.abril.com.br/noticia/energia/conteudo_448632.shtml>. Acesso em: 1º abr 2010. FRANÇA, Ronaldo. Fome de ar, água e comida. Veja, São Paulo, n. 50, p. 132-140, 2009. 33 orgânico. Finalmente, os biocombustíveis, tal qual o etanol e o biodiesel para veículos automotores, produzidos a partir de produtos agrícolas (como semente de mamona e cana-de-açúcar) ou de cascas, galhos e folhas de árvores, dependem da produção da matéria-prima que ocupa terras que poderiam ser destinadas ao plantio de alimentos. A energia utilizada pode, pois, indicar os estilos de vida de uma sociedade. Nesse sentido, Correia esclarece que o balanço energético, documento que é elaborado no Brasil em nível nacional pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e no âmbito do estado de Goiás pela Secretaria de Infraestrutura, contabiliza a realidade energética de uma região, contribuindo para que os governos avaliem: “através das políticas públicas que energias uma sociedade vem ao longo do tempo consumindo seja para elevarem a qualidade de vida da sociedade, seja para sustentar o crescimento econômico que é, como sabemos, altamente dependente dos investimentos em energia. (...) Posto isso e tendo em vista o último Balanço Energético do Estado publicado em 2008 avaliando a evolução da realidade energética goiana de 1992 a 2006 (...) é possível observarmos a seguinte realidade para o Goiás de 1992: o consumo de lenha representava cerca de 21% do total das fontes energéticas consumidas no Estado; 11,6% das energias consumidas em Goiás era eletricidade. De longe os derivados do petróleo tinham o maior peso entre todas as energias consumidas no Estado: cerca de 52,4%. Finalizando o peso das energias chamadas verdes, originadas da cana de açúcar, era de tão somente 8,7%. Em 2006, o balanço apontou para uma brutal redução do consumo de lenha para 4,4%. A eletricidade consumida aumentou para 16,3% e as energias verdes originadas da cana de açúcar elevaram seus consumos significativamente chegando a representar nesse ano cerca de 20% do total das energias consumidas em território goiano. E como petróleo é sempre petróleo os derivados dessa fonte continuam a ser o que sempre foram: os campeões de consumo chegando esse consumo, em 2006, a representar algo em torno de 54,3% do total das energias consumidas em Goiás.”33 (destaquei) Esse modelo de exploração e utilização de energia, desenvolvido com base nos supostos do “fordismo” e com vistas a amparar o processo de industrialização posto em movimento (quer em Goiás, quer em outros estados brasileiros, quer em outros países do mundo), provocava, indubitavelmente, mudanças negativas no meio ambiente, que compreende o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, 33 CORREIA, Salatiel Soares. Energia e os estilos de vida em Goiás, 2010, p. 12. 34 abriga e rege a vida em todas as suas formas.34 E, partindo do pressuposto de que tudo o que diga respeito ao equilíbrio ecológico e induza a uma sadia qualidade de vida seja questão afeta ao meio ambiente, é que Mazzilli ainda o considera sob os seguintes aspectos: “a) meio ambiente natural (os bens naturais, como o solo, a atmosfera, a água, qualquer forma de vida); b) meio ambiente artificial (o espaço urbano construído); c) meio ambiente cultural (a interação do homem com o ambiente, o que compreende não só o urbanismo, o zoneamento, o paisagismo e os monumentos históricos, mas também os demais bens e valores artísticos, estéticos, turísticos, paisagísticos, históricos, arqueológicos etc), neste último incluído o próprio ambiente do trabalho. Tudo o que diga respeito ao equilíbrio ecológico e induza a uma sadia qualidade de vida é, pois, questão afeta ao meio ambiente.”35 Assim, no contexto da industrialização, a concepção do meio ambiente natural não era a de algo a ser contemplado e preservado em sua originalidade. Mas a de um objeto de apropriação e de manipulação,36 recurso a ser utilizado para o desenvolvimento material e social, sendo os impactos ambientais contabilizados como taxas de progresso e níveis de desenvolvimento. “A exploração predatória, que era considerada o „preço do atraso‟, passou a ser considerada o „preço do progresso‟”,37 restando clara, naquele momento, a estreita vinculação entre os processos de desenvolvimento rural-agropecuário e urbano-industrial. Isso porque, a política industrial não podia ser constituída sem que ocorressem profundas alterações no meio rural 38 e, de conseguinte, na natureza, isto é, no meio ambiente natural, quando, na oportunidade, o rural devia dar suporte ao urbano. Nesse sentido é que a questão agrícola dizia respeito “fundamentalmente, 34 35 36 37 38 Cf. art. 3º, I, da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente. MAZZILLI, Hugo Nigro. Proteção ao meio ambiente, 2007, p. 147-157. Na mesma linha de entendimento: SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional, 2007, p. 3; SIRVINSKAS, Luís Paulo. Manual de Direito Ambiental, 2003, p. 235 e NERY JÚNIOR, Nelson e ANDRADE NERY, Rosa Maria. Constituição Federal comentada e legislação constitucional, 2006, nota ao art. 1º da LACP. Cf. PEREIRA, Mônica Cox de Britto. A conservação ambiental e a produção agrícola podem – ou devem caminhar juntas?, 2002. Nessa mesma linha de entendimento, XAVIER, Mário Sérgio Melo. O homem e o fim da devoção pela natureza, 2010. PÁDUA, José Augusto. A questão que permanece, 1987. Cf. CARVALHO, Horácio Martins de. A insustentabilidade do atual modelo econômico e tecnológico da agricultura brasileira, 2005, p. 198-351. 35 à análise das condições produtivas e de rentabilidade relativa, enquanto „suporte funcional‟ à expansão do setor mais dinâmico da economia, o industrial”.39 Assim, com a Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra em meados do século 18 e expandida para o mundo a partir do século 19, operacionalizava-se, com efeito, um processo de substituição da força motriz animal pela mecânica. 40 Esse movimento contribuía para o aumento da liberação na atmosfera, de gases que naturalmente a compõem, e de outros de origem antrópica ou antropogênica, isto é, de produção exclusiva humana. Dentre a primeira categoria de gases, o dióxido de carbono (CO 2), o metano (CH4) e o óxido nitroso (N2O) resultavam da queima de combustíveis fósseis, tal qual o gás natural, o petróleo e o carvão mineral, que constituíam a maior parte da energia utilizada para o funcionamento das máquinas. O aumento progressivo da concentração do CO 2 também era provocado pela “destruição de reservatórios naturais de carbono e os sumidouros (principalmente o desmatamento de florestas)”.41 Sobre essa última causa de aumento da emissão de CO 2, Aduan, Vilela e Klink explicam que: “Um ecossistema apresenta um conjunto de populações de diferentes espécies que coabitam uma área, interagindo entre si e com o ambiente abiótico. As interações entre as partes que o constitui geram propriedades emergentes que não poderiam ser percebidas pela simples análise das partes isoladamente. Uma dessas características emergentes dos ecossistemas é a sua função. O conceito de função na escala ecossistêmica, apesar de abrigar várias definições diferentes, inclui principalmente a maneira pela qual a matéria e a energia fluem e se reciclam dentro dos ecossistemas. Quando as funções de um ecossistema exercem influência significativa sobre o modo de vida das populações humanas (adjacentes ou não ao ecossistema considerado), essas funções são chamadas de serviços ambientais (DALY et al., 2000). Esses serviços podem ser exercidos das mais diversas maneiras, sendo apenas alguns exemplos: a manutenção da disponibilidade e da qualidade 39 40 41 CORAZZA, Gentil e MARTINELLI JR., Orlando. Agricultura e questão agrária na história do pensamento econômico, 2009. Nessa mesma linha de entendimento: LENIN, V.I. O capitalismo na agricultura (O livro de Kautsky e o artigo do senhor Bulgákov), 1981. Cf. LIMIRO, Danielle. Créditos de carbono – Protocolo de Kyoto e Projetos de MDL, 2008, p. 22. BERTUCCI, Afonso Celso. O Protocolo de Kyoto e o mercado de créditos de carbono, 2006, p. 3. Na mesma linha de entendimento: DEMETERCO NETO, Antenor. Desenvolvimento sustentável e aquecimento global, 2007, p. 27-35. LIMIRO, Danielle. Créditos de Carbono. Protocolo de Kyoto e Projetos de MDL, 2008. MEDEIROS, Josemar Xavier de. Aspectos econômico-ecológicos da produção e utilização do carvão vegetal na siderurgia brasileira, 2009. OLIVEIRA FILHO, Eduardo Cyrino e MEDEIROS, Flávia Natércia da Silva. Ocupação humana e preservação do ambiente: um paradoxo para o desenvolvimento sustentável, 2008, p. 33- 61. 36 da água, do clima regional e global ou da biodiversidade. Assim como a composição e a estrutura, as funções de um ecossistema não são imutáveis. Elas, da mesma forma como os serviços resultantes dessas funções, variam ao longo do tempo, podendo ser vulneráveis à ação antrópica. Por conseguinte, a ação humana, direta ou indiretamente, pode influenciar significativamente os serviços de determinado ecossistema. Uma função comum a todos os ecossistemas terrestres é a capacidade de eles emitirem ou seqüestrarem carbono atmosférico”.42 (destaquei) Assim é que, considerando-se um balanço mundial de CO2, não restrito ao ecossistema terrestre,43 são identificáveis estoques de carbono (C) em diferentes compartimentos do planeta: na atmosfera são calculados 760 pg de carbono; na vegetação 620 pg; nos solos 2.500 pg e nos oceanos 38.000 pg, sendo o pg símbolo da unidade de medida denominada “peta gramas” (bilhões de toneladas).44 “Os reservatórios de CO2 na terra e nos oceanos são maiores que o total de CO2 na atmosfera”.45 Já nos compartimentos específicos da vegetação e do solo, a ciclagem de carbono tem na biomassa aérea, na biomassa subterrânea, no litter ou serapilheira e na matéria orgânica do solo (MOS) os principais estoques, 46 conforme ilustrado na Figura 1. 42 43 44 45 46 ADUAN, Roberto Engel, VILELA, Marina de Fátima e KLINK, Carlos Augusto. Ciclagem de Carbono em Ecossistemas Terrestres – O Caso do Cerrado Brasileiro, 2003, p. 9. Cf. SANQUETTA, Carlos Roberto. Créditos de Carbono. Base Científica. Formulação de Projetos, 2008, p. 4. Cf. BODDEY, Roberto M. (et. al.). Seqüestro de carbono em solos sob sistemas agropecuários produtivos, 2004. YU, Chang Man. Seqüestro de Carbono Florestal: oportunidades e riscos para o Brasil, 2002, p. 89. ADUAN, Roberto Engel, VILELA, Marina de Fátima e KLINK, Carlos Augusto. Ciclagem de Carbono em Ecossistemas Terrestres – O Caso do Cerrado Brasileiro, 2003, p. 12-19. 37 Figura 1 Principais estoques e fluxos de carbono num ecossistema terrestre Fonte: ADUAN, Roberto Engel. Respiração de solos e ciclagem de carbono em cerrado nativo e pastagens no Brasil central, 2003, p. 15. Sobre as particularidades desses estoques, Aduan (et. al.) explica: “A biomassa aérea viva é a parte mais visível do ecossistema. (...) Nas folhas, está a principal via de entrada de carbono para o ecossistema. (...) A biomassa subterrânea de uma vegetação compreende todos os órgãos vivos localizados abaixo da linha do solo, tendo como funções fixar a vegetação, captar e translocar recursos como água e nutrientes, além de estocar reservas. (...) A serapilheira (também conhecida como folhedo, liteira e litter) é representada pela camada de material morto, proveniente da biomassa aérea da vegetação, que permanece no solo até ser fragmentado e decomposto pelos processos físico-químicos e bióticos que ocorrem nessa importante fração do ecossistema. A serapilheira é um estoque importante de carbono, acumulando uma quantidade de duas a três vezes mais alta que a atmosfera (CÔUTEAUX; BERG, 1995). (...) A matéria orgânica do solo é o maior estoque de carbono da maioria dos ecossistemas terrestres e, talvez, o mais complexo. (...) O carbono proveniente da vegetação entra no solo pela queda do folhedo, do 38 47 48 49 turnover das raízes e micorrizas e da exudação de carbono pelas raízes finas. (...) A matéria orgânica do solo não constitui estoque homogêneo. (...) São raros os estudos sobre o comportamento funcional das diferentes porções da MOS em ecossistemas florestais. Até agora, sabe-se que a MOS, associada à areia, é mais lábil do que a associada a partículas de silte e argila e mais particulada, isto é, não ligada a componentes minerais (NEUFELDT et al., 2002)”.50 (destaques no original) Dessa forma, conquanto no balanço mundial de CO 2 a vegetação represente o menor estoque de carbono, é devido a ela, em especial as árvores, que o solo constitui a maior reserva de carbono em sistemas terrestres. É que as árvores, por meio da fotossíntese, retiram o dióxido de carbono (CO2) da atmosfera, convertem-no em açúcar (C6H12O6) e devolvem o oxigênio (O2) na atmosfera, conforme a seguinte equação: CO 2 + H2O + luz solar = C6H12O6 + O2. Nesse processo natural, a árvore utiliza água e energia solar para a conversão das moléculas de CO2 em moléculas de alta energia (C6H12O6), a serem utilizadas em seu metabolismo e crescimento de sua estrutura.51 “O aumento de volume de uma árvore nada mais é do que o acúmulo de madeira na sua estrutura. A madeira de uma árvore, genericamente, possui uma porcentagem de água que varia de 25 a 40% e da biomassa seca restante o teor de carbono é de cerca de 50%”.52 Yu53 ensina que o estoque que absorve carbono é chamado de “poço” (ou sink, em inglês) e o que libera é chamado de “fonte” (ou source, em inglês), de maneira que áreas florestais são consideradas “poços de carbono” (ou carbon sinks, em inglês). Essa é a razão de uma floresta funcionar como “sumidouro de carbono”, na medida em que uma planta, por meio da fotossíntese, retira carbono da 47 48 49 50 51 52 53 Turnover de raízes é o ciclo de produção-morte-decomposição (PMD) de raízes finas, segundo SANTOS JÚNIOR, João de Deus Gomes dos (et. al.). O sistema minirhizotron no estudo da dinâmica de raízes, 2007, p. 15. “A micorriza é uma associação simbiótica, não-patogênica, entre fungos benéficos e específicos do solo e raízes de plantas superiores que proporciona acréscimo na absorção de nutrrientes pelas plantas”, segundo MIRANDA, Jeanne Christine Claessen de e MIRANDA, Leo Nobre de. Micorriza arbuscular e uso de adubos verdes em solos do Bioma Cerrado, 2006, p. 211 e _____. Micorriza arbuscular, 1997, p. 69-123. Exudação ou perda. ADUAN, Roberto Engel. (et. al.). Ciclagem de Carbono em Ecossistemas Terrestres – O Caso do Cerrado Brasileiro, 2003, p. 12-19. Cf. Explicação disponível em: <http://www.florestasdofuturo.org.br>. Acesso em: 25 out. 2008. Explicação. Idem. Cf. YU, Chang Man. Seqüestro de Carbono Florestal: oportunidades e riscos para o Brasil, 2002, p. 89-90. 39 atmosfera e o estoca, em forma de madeira e acumulação no solo. Solos cobertos com a mesma vegetação podem apresentar, todavia, quantidades diferentes de carbono estocado. Nesse caso, um fator edáfico,54 isto é, do próprio solo, é o motivo: a sua textura. Assim, considerando que a MOS é retida no solo em função da superfície específica das partículas desse solo, os estoques de carbono em solos de textura fina, argilosos, por exemplo, são maiores do que os estoques em solos de textura grossa, do tipo arenosos.55 Destarte, a quantidade de carbono no solo resulta, também, do balanço entre a deposição de resíduos de plantas (serapilheira e raízes), que, originalmente, obtiveram seu carbono do CO2 por meio da fotossíntese, e a decomposição desses resíduos depositados. “O primeiro processo é favorecido por altas taxas de produção primária, favorecida pela abundância de água, calor e nutrientes”,56 tendo em vista que a quantidade de CO2 absorvida por uma árvore é influenciada por inúmeras variáveis, dentre elas a espécie arbórea, a densidade ou a quantidade dessa espécie, a fertilidade do solo, a temperatura do ambiente, a quantidade e a distribuição da chuva ao longo do ano, as doenças, os predadores e a luminosidade.57 Sobre esse aspecto, avalia Yu que, no debate sobre os “sumidouros de carbono”,58 o interesse maior volta-se às florestas e às savanas tropicais, como as existentes no Brasil, “pois é sabido que estas são caracterizadas por alta taxa de produtividade primária”.59 A produtividade primária líquida (PPL), determinada pela diferença da fotossíntese com a respiração da parte aérea e das raízes, é estimada em 11 tC.ha.a numa área de 17,6 106Km2 de floresta tropical e em 4,5 tC.ha.a em 22,5 106Km2 de savanas tropicais, onde “tC.ha.a” é a unidade de medida toneladas de carbono por 54 55 56 57 58 59 São também fatores edáficos a estrutura e a capacidade de retenção e armazenamento de água, cf. SILVA, José Eurípedes da e RESCK, Dimas Vital Siqueira. Matéria orgânica do solo, 1997, p. 467-523. Cf. ADUAN, Roberto Engel (et. al.). Ciclagem de Carbono em Ecossistemas Terrestres – O Caso do Cerrado Brasileiro, 2003, p. 18 e 19. BODDEY, Roberto M.(et. al.). Seqüestro de carbono em solos sob sistemas agropecuários produtivos, 2004. No mesmo sentido: POZZI, Jantalia Claudia (et. al.). Estoques de Carbono e Nitrogênio do Solo após 17 anos sob Preparo Convencional e Plantio Direto em Dois Sistemas de Rotação de Culturas em Cruz Alta, RS, 2006, p. 6. Segundo explicação disponível em: <http://www.florestasdofuturo.org.br>. Acesso em: 25 out 2008. YU, Chang Man. Seqüestro de Carbono Florestal: oportunidades e riscos para o Brasil, 2002, p. 89. YU, Chang Man. Idem. 40 hectare por ano e “106Km2” corresponde a 10.000.000 de quilômetros quadrados.60 O segundo processo, isto é, a decomposição, também é favorecida pela abundância de água e calor, sendo ainda mais estimulada pela movimentação ou manejo do solo. As práticas de movimentação ou manejo que afetam de forma negativa o solo, imprimindo alterações nas diversas formas e reservatórios do carbono e na população microbiana nele existentes, incluem o arado, a monocultura, o uso indiscriminado de agroquímicos, o desmatamento e o fogo.61 A intensificação de algumas dessas práticas agropecuárias em determinadas épocas do ano integra, inclusive, estados brasileiros à lista de risco ou emergência ambiental do Ministério do Meio Ambiente (MMA) no Brasil. Nesse sentido é o alerta de Sassine: “Goiás faz parte, desde o dia 5, da lista de Estados em situação de emergência ambiental ao longo de 2010. Uma portaria publicada pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) no Diário Oficial da União relacionou 14 Estados onde as queimadas serão mais freqüentes a partir do próximo mês, quando o tempo fica mais seco e se intensificam os focos de calor. A inclusão de Goiás na lista objetiva reforçar o combate a esses focos. (...) A justificativa para a edição da portaria, expressa no texto publicado no Diário Oficial, é a necessidade de o Brasil cumprir os compromissos internacionais de redução de CO2. O desmatamento é o principal emissor de dióxido de carbono no País e, por isso, o combate de incêndios florestais é visto pelo MMA como fator de redução de CO2”.62 (destaques no original) Já sobre o desmatamento, Scardua 63 é pelo seu desestímulo, principalmente nas áreas com vegetação nativa ou em adiantado estado de reconstituição, e acrescenta que, no Brasil, em específico, a prática é precedida, obrigatoriamente, por uma licença de conversão para uso do solo na hipótese de corte inevitável de vegetação nativa para abertura de novas áreas e exploração florestal. 60 61 62 63 Cf. ADUAN, Roberto Engel. Respiração de solos e ciclagem de carbono em cerrado nativo e pastagem no Brasil central, 2003, p. 24. Cf. BODDEY, Roberto M. (et. al.). Seqüestro de carbono em solos sob sistemas agropecuários produtivos, 2004. Na mesma linha de entendimento: SILVA, José Eurípedes da e RESCK, Dimas Vital Siqueira. Matéria orgânica do solo, 1997, p. 506. SASSINE, Vinicius Jorge. Goiás tem emergência ambiental, 2010, p. 2. Cf. SCARDUA, Fernando. Responsabilidade Ambiental na Produção Agrícola, 2008, p. 21. 41 Quanto ao fogo, Kato64 anota que esse sistema de uso da terra pode até preservar a produtividade dos cultivos quando praticado de modo a manter taxas de rotação com período de pousio (descanso) suficientemente longo, permitindo na vegetação secundária, assim, o ciclo de água e nutrientes, o acúmulo de carbono e a manutenção da diversidade florística. Se, no entanto, o período de pousio decresce com a prática de repetidas queimadas, junto com ele decresce também a efetividade daqueles atributos, na medida em que a técnica afeta o solo nos dois primeiros centímetros de profundidade, de maneira a reduzir a microflora ali existente e, de conseguinte, o teor da MOS disponível.65 Pinheiro exemplifica: “A conversão de ecossistemas naturais para a agricultura envolve uma série de atividades que afetam as taxas de adição e decomposição da matéria orgânica do solo (MOS). A decomposição da MOS é especialmente acelerada por distúrbios físicos que destroem os macroagregados e a expõe à oxidação pela ação da biomassa microbiana do solo. Esse processo pode afetar severamente a qualidade do solo, reduzir a produtividade das culturas em prazo e aumentar os riscos de erosão e de emissão de CO2. A atividade agrícola no país vem sofrendo transformações (...), como é o caso da cultura de cana-de-açúcar. Na década de 50, devido ao grande avanço do setor açucareiro, houve um estímulo a práticas culturais que facilitassem o manejo da cultura e reduzissem o uso da mão-de-obra. Com isso, a queima de canavial antes do corte, passou a ser uma prática bastante difundida. No entanto, nestas últimas duas décadas, a preocupação com o meio-ambiente fez com que práticas como a reutilização da vinhaça para fertilizar o canavial, e a colheita da cana sem a tradicional queima passasse a ser adotada. (...) O sistema de colheita sem a queima da palhada apresentou 11% a mais de C estocado no solo comparado com o sistema cana queimada, até 100 cm de profundidade. O carbono total da vegetação anterior (mata) diminui nos dois sistemas de colheita da cana-de-açúcar, sendo que, o sistema de colheita que manteve a palhada na superfície preservou maior quantidade de carbono original”.66 Sanquetta, então, quantifica que o desmatamento e a queima de vegetação nativa contribuem “com 0,5 até 2,6 bilhões de toneladas de carbono anualmente”,67 enquanto a queima de combustíveis fósseis contribui com cerca de 5 64 65 66 67 Cf. KATO, Osvaldo Ryohei (et. al.). Alternativas do uso do fogo no preparo de áreas para o plantio, com base no manejo da capoeira na Amazônia, 2008, p. 42. Cf. SILVA, José Eurípedes da e RESCK, Dimas Vital Siqueira. Matéria orgânica do solo, 1997, p. 507. PINHEIRO, Érika Flávia Machado (et. al.). Estoques de carbono e nitrogênio num agrissolo amarelo cultivado com cana-de-açúcar: influência da queima ou manutenção da palhada, 2007, p. 6-19. SANQUETTA, Carlos Roberto. Créditos de Carbono. Base Científica. Formulação de Projetos, 2008, p. 4. 42 bilhões de toneladas de carbono no mesmo período. Cada átomo fóssil desse, colocado na atmosfera na forma de CO2, corresponde à diminuição de uma molécula de oxigênio, esclarece Poppe.68 E, segundo o mesmo autor, “como a concentração de oxigênio na atmosfera é da ordem de 200.000 ppmv, 69 a diminuição é irrelevante em termos do oxigênio em si, porém importante para comprovar a”70 também “origem fóssil do carbono responsável pelo aumento da concentração de dióxido de carbono” 71 na atmosfera. De igual modo, foram produzidos com a Revolução Industrial os hidrofluorcarbonos (HFCs), os perfluorcarbonos (PFCs) e os hexafluoretos de enxofre (SF6), provenientes da fundição de alumínio e da fabricação de semicondutores, sendo esses, no entanto, gases de produção exclusiva humana. 72 Inobstante sejam de ocorrência natural ou não na atmosfera, todos esses gases são de efeito estufa (GEE), e assim são denominados em razão de cada um apresentar potencial de aquecimento global ou Global Warming Potential (GWP), em inglês, que se traduz no impacto calor/energia adicional na atmosfera. O CO2, por exemplo, possui GWP igual a 1, enquanto que o GWP do CH4 é igual a 21, o do N2O é de 310, o dos PCFs varia entre 6.500 e 9.200, o dos HFCs de 140 a 11.700 e o do SF6 é igual a 23.900.73 Esse potencial, somado à quantidade disponível do gás na atmosfera, descreve a contribuição do GEE sobre o efeito estufa, sendo a do CO 2 em 55%, a do CFC em 20%, a do CH4 em 15% e a do N2O e de outros em 10%.74 O efeito estufa é um fenômeno natural que mantém a temperatura média da Terra, na medida em que os GEE presentes na atmosfera são transparentes à radiação visível do Sol e não permitem, ainda que parcialmente, a saída da radiação infravermelha, o que impede a perda demasiada de calor para o espaço, mantendo, 68 69 70 71 72 73 74 Cf. POPPE, Marcelo Khaled (Coord.). Manual de capacitação. Mudanças do Clima e Projetos de Mecanismos de Desenvolvimento Limpo, 2008, p. 32. “Ppmv” é o símbolo da unidade de medida partes por milhão em volume. Cf. POPPE, Marcelo Khaled (Coord.). Manual de capacitação. Mudanças do Clima e Projetos de Mecanismos de Desenvolvimento Limpo, 2008, p. 32. Cf. POPPE, Marcelo Khaled (Coord.). Idem. Cf. HOFFMAN, Andrew J. e WOODY, John G. Conselhos para o CEO. Mudanças climáticas: desafios e oportunidades empresariais. Tradução Ana Beatriz Rodrigues, 2008, p. 20. LIMIRO, Danielle. Créditos de Carbono. Protocolo de Kyoto e Projetos de MDL, 2008, p. 23. Cf. BOTTINI, Felipe Jamé. Economia de Baixo Carbono sob a Perspectiva de Baixo Mercado, 2010. Cf. GOLDEMBERG, 1989 apud LIMIRO, Danielle. Créditos de Carbono. Protocolo de Kyoto e Projetos de MDL, 2008, p. 23. 43 assim como um cobertor, a Terra aquecida,75 conforme demonstra a Figura 2. Figura 2 Efeito estufa Fonte: Disponível em: <http://ultimahora.publico.pt/fichas/ambiente/efeito_estufa.html>. Acesso em: 25 fev. 2010. Não fosse o efeito estufa natural, a temperatura média da superfície da Terra seria 33 ºC mais baixa,76 sendo que a absorção da radiação infravermelha pelos GEE ocorre porque: “a radiação nessa faixa do espectro excita o modo de vibração das moléculas (modulado pela rotação da Terra) (...) Dentre esses gases, o vapor d‟água merece uma atenção especial, pois é o principal GEE na atmosfera, devido à sua grande quantidade – se comparada a outros gases 75 76 Cf. BERTUCCI, Afonso Celso. O Protocolo de Kyoto e o Mercado de Créditos de Carbono, 2006, p. 2; POPPE, Marcelo Khaled (Coord.). Manual de capacitação. Mudanças do Clima e Projetos de Mecanismos de Desenvolvimento Limpo, 2008, p. 27-28. BERTUCCI, Afonso Celso, O Protocolo de Kyoto e o Mercado de Créditos de Carbono, 2006, p. 2; LIMIRO, Danielle. Créditos de Carbono. Protocolo de Kyoto e Projetos de MDL, 2008, p. 21; POPPE, Marcelo Khaled (Coord.). Manual de capacitação. Mudanças do Clima e Projetos de Mecanismos de Desenvolvimento Limpo, 2008, p. 27. 44 de efeito estufa (GEE) – em conjunto com a sua alta capacidade de absorção da radiação infravermelha. A quantidade de um determinado gás na atmosfera é normalmente expressa pela sua concentração em unidades de partes por milhão em volume (ppmv), ou micromol por mol. No entanto, a concentração de vapor d‟água na atmosfera não é determinada pelo homem, mas pelo balanço entre a evaporação e transpiração, por um lado, e pela precipitação, por outro. (...) Muitos gases minoritários, porém importantes como poluentes atmosféricos locais, (...) apresentam uma grande reatividade química e, portanto, uma vez emitidos para a atmosfera, desaparecem rapidamente como resultado de reações químicas. É o caso, por exemplo, de poluentes como o monóxido de carbono, os óxidos ímpares de nitrogênio (NO e NO2, ou NOx) e o dióxido de enxofre (SO2)”.77 São essas as razões de alguns gases serem desprezados na análise do clima e o CO2 produzir o efeito que mais afeta o balanço de radiação e, de conseguinte, o aquecimento da atmosfera. Isso porque, embora possua o menor GWP e apareça em maior concentração na atmosfera, o CO2, uma vez lançado, fica na atmosfera por um tempo relativamente longo devido à sua estrutura molecular de geometria linear, conforme Figuras 3, 4 e 5, de modo que absorve o calor e impede que o mesmo se dissipe. Figura 3 Estrutura da molécula de CO2 Fonte: LANA, Carlos Roberto de. Geometria molecular. Distribuição espacial dos átomos em uma molécula. Disponível em: <http://educacao.uol.com.br/quimica/ult1707u43.jhtm>. Acesso em: 26 fev. 2010. Figura 4 O carbono estabelece duas duplas ligações: uma com cada oxigênio Fonte: LANA, Carlos Roberto de. Geometria molecular. Distribuição espacial dos átomos em uma molécula. Disponível em: <http://educacao.uol.com.br/quimica/ult1707u43.jhtm>. Acesso em: 26 fev. 2010. 77 POPPE, Marcelo Khaled (Coord.). Manual de capacitação. Mudanças do Clima e Projetos de Mecanismos de Desenvolvimento Limpo, 2008, p. 24-56 45 Figura 5 Duas duplas ligações, duas zonas de repulsão, que se afastam uma da outra, fazendo com que a molécula assuma a disposição geométrica linear Fonte: LANA, Carlos Roberto de. Geometria molecular. Distribuição espacial dos átomos em uma molécula. Disponível em: <http://educacao.uol.com.br/quimica/ult1707u43.jhtm>. Acesso em: 26 fev. 2010. Poppe78 explica que a absorção do calor não ocorre quando as moléculas não têm um dipolo elétrico, como nos casos dos gases raros (hélio, neônio, argônio), que existem na atmosfera na forma de moléculas monoatômicas, ou no caso do nitrogênio e do oxigênio moleculares (N 2 e O2, respectivamente), que existem na atmosfera na forma de moléculas diatômicas, compostas de dois átomos idênticos. Nesse contexto, Sanquetta informa que “Durante os últimos 400.000 anos, a temperatura da superfície acompanhou de perto as flutuações da concentração de dióxido de carbono”,79 pois da mesma maneira que o CO2 é injetado para dentro da atmosfera, o efeito estufa é “transferido descentemente na atmosfera na forma de transporte de calor”.80 Isso gera o conceito de que há uma “equivalência de CO 2”81 para cada 78 79 80 81 Cf. POPPE, Marcelo Khaled (Coord.). Manual de capacitação. Mudanças do Clima e Projetos de Mecanismos de Desenvolvimento Limpo, 2008, p. 27. SANQUETTA, Carlos Roberto. Créditos de Carbono. Base Científica. Formulação de Projetos, 2008, p. 7. SANQUETTA, Carlos Roberto. Idem. A ONU criou em 23 de março de 2010, durante a 5ª edição do Fórum Urbano Mundial, um padrão internacional para medir emissões dos GEE nas cidades. Esse padrão comum é uma iniciativa conjunta do PNUMA, da ONU-Habitat (Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos) e do Banco Mundial e vai calcular as emissões per capita de cada cidade. O evento esclareceu que as emissões variam muito entre as cidades, conforme a fonte primária de energia, o clima, o meio de transporte e a forma urbana, de modo que nem sempre a densidade demográfica resulta em maior emissão de GEE. O método demonstrou que as cidades brasileiras, por exemplo, emitem pouco GEE em relação ao resto do mundo devido à matriz hidrelétrica, ao etanol e também ao sistema de transporte melhor do que em outras localidades. Esclareceu, ainda, que a cidade do Rio de Janeiro emite mais CO2 do que a cidade de São Paulo: cada carioca emite 2,1 tCo2/ano enquanto que o paulistano emite 1,4 tCO2/ano, isso porque a maior quantidade de habitantes em São Paulo "dilui" a poluição entre mais gente, já que o índice é per capita, ao passo que a maior malha de metrô em São Paulo transporta seis vezes mais passageiros do que o sistema carioca. Cf. HOORNWEG, Daniel. Gases-estufa ganham padronização internacional para cálculo de emissões. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/vidae,gases-estufa-ganham-padronizacao-internacional-para-calculo-deemissoes,528540,0.htm> Acesso em: 1º abr 2010. No mesmo sentido: ÚLTIMO SEGUNDO. ONU cria padrão para medir emissões dos gases do efeito estufa nas cidades. Disponível em: 46 GEE. Assim, por exemplo, o GWP do CH4 igual a 21 (vinte e um) significa que 1 (uma) tonelada de metano representa 21 (vinte e uma) toneladas equivalentes de CO2 para a mudança climática, entendida como “uma mudança de clima que possa ser direta ou indiretamente atribuída à atividade humana que altere a composição da atmosfera mundial e que se some àquela provocada pela variabilidade climática natural observada ao longo de períodos comparáveis”.82 Essa definição conduz, inclusive, à constatação de que “As mudanças no sistema climático da Terra são processos naturais, consideradas as escalas de tempo de milhares de anos de eras geológicas”,83 sendo, porém, a velocidade e a intensidade dessas mudanças, a partir da Revolução Industrial, mais precisamente, o que preocupa cientistas e líderes mundiais. Para uma noção da interferência do ser humano sobre a Terra desde a Revolução Industrial, Limiro destaca que: “a organização não-governamental Greenpeace veiculou, na Inglaterra, uma propaganda que compara o pouco tempo em que nossa espécie está na Terra, em relação à idade do planeta, com os estragos que já fizemos. Para melhor compreensão, os 4,6 bilhões de anos da Terra são condensados em 46 anos. De acordo com o anúncio, foi só quando o planeta tinha 42 anos que a Terra começou a florescer. Os dinossauros só surgiram quando a Terra já tinha 45 anos e os mamíferos chegaram há apenas 8 meses. No meio da semana passada, macacos com características humanas evoluíram para humanos com características de macacos e, no final da semana passada, a última idade do gelo envolveu o planeta. O homem moderno só apareceu há 4 dias. Há uma hora descobrimos a agricultura. A Revolução Industrial aconteceu há apenas um minuto. Neste único minuto, o homem moderno transformou este oásis de vida, que é nosso planeta, em um depósito de lixo. Multiplicou-se como uma praga, poluiu a atmosfera, devastou florestas, criou armas de destruição em massa”.84 “A interferência da atividade econômica sempre foi notória e significativa em todos os setores da vida humana e, particularmente, (...) sobre o meio ambiente natural”,85 de modo que não é razoável “que se admita nos dias presentes o 82 83 84 85 <http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2010/03/23/onu+cria+padrao+internacional+para+medir+emissoes+d os+gases+do+efeito+estufa+nas+cidades+9437154.html>. Acesso em: 1º abr 2010. Cf. art. 1-2 da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. Disponível em: <http://www.mct.gov.br>. Acesso em: 1º mar 2010. SANQUETTA, Carlos Roberto. Créditos de Carbono. Base Científica. Formulação de Projetos, 2008, p. 6. LIMIRO, Danielle. Créditos de Carbono. Protocolo de Kyoto e Projetos de MDL, 2008, p. 24. FALCONI, Luiz Carlos. O uso inadequado das áreas de preservação permanente e reserva legal como causa de desapropriação da propriedade imobiliária rural no Brasil, 2005. 47 isolamento de qualquer área do conhecimento”.86 “Não pense”, assim, “em mudança climática como uma questão ambiental”,87 tão somente, “mas sim como uma questão de mercado”88 e de sociedade, o que torna evidente a transdisciplinaridade da problemática ambiental. É que, a rigor, novos problemas conduzem à identificação de pontes de contato entre as diferentes disciplinas, resultando em abordagens pluri, multi, inter e transdisciplinares. Para uma melhor compreensão, Santos e Lima explicam: “Por pluridisciplinaridade entende-se o estudo de um tópico de pesquisa não apenas dentro dos limites do quadro de referência da pesquisa disciplinar a ele diretamente ligada, mas demanda várias disciplinas, e seus quadros de referência, ao mesmo tempo. Assim, o tópico em análise será ulteriormente enriquecido pela associação das perspectivas das várias disciplinas e, ainda, o quadro de referência de cada disciplina se enriquece e se amplia. A multidisciplinaridade, por sua vez, aporta um “plus” à disciplina diretamente relacionada ao objeto em estudo, mas esse “plus” está sempre subordinado à disciplina-foco, ou seja, a abordagem multidisciplinar ultrapassa as fronteiras disciplinares, porém seus objetivos permanecem limitados pelo quadro de referência da pesquisada pesquisa disciplinar. Com relação à interdisciplinaridade pode-se afirmar que o seu objetivo difere do da multidisciplinaridade por buscar a transferência de métodos de uma disciplina para outra, ultrapassando as disciplinas, mas seu objetivo permanece dentro do mesmo quadro de referência da pesquisa disciplinar. (...) Desde os anos de 1960 e 1970 do século XX, autores como Capra (1982) afirmam que os problemas atuais, após a constatação de que são globalmente interligados e interdependentes, necessitam de um novo modelo de análise, com uma visão denominada holística (do grego holos – todo), ecológica ou sistêmica emergente, reorientado por uma cosmovisão. (...) Frijot Capra (1982) adverte que o novo paradigma na ciência não só olha para alguma coisa como uma totalidade, mas, também, para o modo como essa totalidade está embutida dentro de totalidades maiores, que transcendem as disciplinas com seus quadros de referência atuais. Daí a transdisciplinaridade. (...) além da horizontalidade observada na pluri, multi e interdisciplinaridade, a transdisciplinaridade visa uma verticalidade suportada pelos níveis de Realidade aliados aos níveis de Percepção, estes mais subjetivos, porém não menos essenciais para o novo paradigma. (...) Assim, como o prefixo 'trans' indica, a transdisciplinaridade diz respeito ao que está, ao mesmo tempo, entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de todas as disciplinas, com o objetivo de compreender o mundo presente, e um dos imperativos para isso é a unidade do 89 conhecimento”. (destaquei) Assim, desde que a atividade humana passou a utilizar ora o 86 87 88 89 FALCONI, Luiz Carlos. O uso inadequado das áreas de preservação permanente e reserva legal como causa de desapropriação da propriedade imobiliária rural no Brasil, 2005. HOFFMAN, Andrew J. e WOODY, John G. Conselhos para o CEO. Mudanças climáticas: desafios e oportunidades empresariais. Tradução de Ana Beatriz Rodrigues, 2008, p. 9. HOFFMAN, Andrew J. e WOODY, John G. Idem. SANTOS, Nivaldo dos e LIMA, Rosa Maria. Transdisciplinariedade e o direito ambiental, 2008, p. 2-4. 48 desmatamento, ora a queima de combustíveis fósseis, como fonte principal de energia do maquinário à época do processo de industrialização, 90 emissões acumuladas de gases estufa contribuíram para o aumento da concentração na atmosfera desses mesmos gases. E esse aumento da concentração dos gases estufa eleva o bloqueio da saída dos raios infravermelhos térmicos e, de conseguinte, aumenta a temperatura média do planeta, o que provoca a intensificação de fenômenos naturais transfronteiriços como o aquecimento em nível global da atmosfera. Sobre a física do processo do aquecimento global, é esclarecedora a seguinte lição de Poppe: “O aumento da eficiência da estufa da Terra produz um aquecimento que pode ser expresso em termos da potência (energia por unidade de tempo) equivalente. Atualmente, esse aquecimento corresponde a cerca de 2 watts, para cada metro quadrado da superfície: é como se ligássemos um aquecedor de radiação, com potência de 2 watts, para cada metro quadrado da superfície do planeta e o deixássemos ligado por muitas décadas. É relativamente fácil estimar o aumento de temperatura resultante, pois tal aumento é igual ao total de energia (potência multiplicada pelo tempo de aquecimento, expressa em watt/hora) dividido pela capacidade calorífica do objeto que está sendo aquecido. No caso do planeta Terra, e considerando que o solo é mau condutor de calor, serão aquecidos essencialmente os oceanos. A capacidade calorífica é igual ao volume de água dos oceanos multiplicado pelo seu calor específico, ambos bem conhecidos”.91 Nesse diapasão, impactos advindos do aquecimento global são de ordem ambiental, econômica e social, sentidos, em dimensões de escala mundial, em todas as regiões, embora de maneira diferenciada: algumas perdem mais, outras menos, e algumas até ganham em curto prazo.92 Prováveis impactos na África incluem, por exemplo, a diminuição da produtividade agrícola, a diminuição da disponibilidade de água na região do Mediterrâneo e países do sul, o aumento de vetores de doenças, o aumento no 90 91 92 Cf. DEMETERCO NETO, Antenor. Desenvolvimento sustentável e aquecimento global, 2007. MEIRA FILHO, Gylvan. 1º Seminário do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas (FBMC), 30 jun. 2001. POPPE, Marcelo Khaled (Coord.). Manual de capacitação. Mudanças do Clima e Projetos de Mecanismos de Desenvolvimento Limpo, 2008, p. 29. Cf. LIMIRO, Danielle. Créditos de Carbono. Protocolo de Kyoto e Projetos de MDL, 2008, p. 28-29. No mesmo sentido: OLIVEIRA FILHO, Eduardo Cyrino e MEDEIROS, Flávia Natércia da Silva. Ocupação humana e preservação do ambiente: um paradoxo para o desenvolvimento sustentável, 2008, p. 33- 61. TSUKAMOTO FILHO, Antonio de Arruda. Fixação de carbono em um sistema agroflorestal com eucalipto na região do cerrado de Minas Gerais, 2003. 49 processo de desertificação e a extinção de animais e plantas. Na Ásia podem diminuir a produtividade agrícola e a disponibilidade de água na região semi-árida e árida, bem assim aumentar o nível do mar, deslocando pessoas. A Austrália e a Nova Zelândia podem enfrentar a diminuição da disponibilidade de água e a extinção de plantas e animais, enquanto na Europa podem desaparecer as geleiras nos Alpes, aumentar a produção agrícola e impactar o turismo. Na América Latina e do Norte podem ocorrer a diminuição da produção agrícola e a elevação dos vetores de doenças, sendo também provável a extinção de plantas e animais na primeira região. As Pequenas Ilhas podem presenciar o aumento do nível do mar deslocando pessoas e a diminuição da disponibilidade de água, da atividade pesqueira e do turismo. Na região Polar, finalmente, danos à calota polar podem ocorrer.93 Especificamente sobre a diminuição da calota polar, Oliveira Filho 94 avalia que o processo já está em andamento em diversos picos gelados (Kilimandjaro, Everest, Aconcágua), o que comprova Ward, após temporada no Ártico, ao relatar que é espantoso ver “a maneira como a calota polar está retrocedendo”.95 Por esses prováveis impactos, verifica-se uma inversão dos termos da relação utilização-capacidade de regeneração da natureza, na medida em que “nossa espécie começou a violentar o movimento global da natureza, alterando o quadro, com a ruptura da escala e do ritmo”, 96 sem margem à resiliência,97 sob o efeito “do desenvolvimento tecnológico sem precedentes históricos”.98 É que a riqueza se “produz a partir da estrutura disponível na natureza, 93 94 95 96 97 98 Cf. Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC), 2001. Cf. OLIVEIRA FILHO, Eduardo Cyrino e MEDEIROS, Flávia Natércia da Silva. Ocupação humana e preservação do ambiente: um paradoxo para o desenvolvimento sustentável, 2008, p. 32, 53- 61. WARD, Peter. A mãe natureza é cruel, 2010, p. 17-21. YU, Chang Man. Sequestro florestal de carbono no Brasil. Dimensões políticas, socioeconômicas e ecológicas, 2004. Resiliência é a capacidade de um sistema de manutenção de sua estrutura e comportamento frente a perturbações externas. YU, Chang Man. Sequestro florestal de carbono no Brasil. Dimensões políticas, socioeconômicas e ecológicas, 2004. 50 que nem sempre pode ser reposta pelo homem”, 99 registrando-se nos últimos 45 (quarenta e cinco) anos que “a demanda pelos recursos naturais do planeta dobrou”.100 Esse aumento se deve à elevação do padrão de vida e nível de consumo das nações ricas e emergentes, ao crescimento demográfico dos países pobres e ao crescimento econômico dos países em desenvolvimento, que aumenta “em ritmo frenético a necessidade de matérias-primas para as indústrias”101 e provoca uma “virada da poluição”.102 No caso brasileiro, as principais fontes são a mudança no uso da terra e florestas (75%) e a queima de combustíveis fósseis (23%). “O restante está distribuído em: resíduos sólidos, esgotos, evaporação de solventes e outros produtos, produção industrial e agropecuária”.103 O primeiro setor compreende: “mudança nos estoques de biomassa em floresta e outras formações lenhosas; conversão de florestas para outros usos; abandono de áreas manejadas e emissão e remoção de CO 2 pelos solos”.104 Nesse setor, as emissões de CO2 somaram 776 Tg, onde “Tg” é a unidade de medida teragrama (10 12 ou 1.000.000.000.000). Desse volume, 96% são do desmatamento e das queimadas de florestas e outras formações lenhosas para a realização da agricultura, da pecuária e de outras atividades afins.105 Para Oliveira Filho, não há dúvida, pois, sobre o incremento do aquecimento global causado pelo acúmulo de gases de efeito estufa, provenientes de emissões antrópicas nos últimos 150 anos: “Os dados são apresentados pelo „Relatório Intergovernamental sobre Mudança Climática‟ (IPCC) e desmentem qualquer afirmação de que as mudanças climáticas globais não passariam de uma abstração teórica, de interesse acadêmico, superdimensionada por pressões políticas de grupos ambientalistas. O documento conclui ser inegável que a principal causa da elevação da temperatura em todo o mundo, nas últimas décadas, é oriunda de atividades humanas que aumentam a concentração de gases de efeito 99 100 101 102 103 104 105 HAWKEN, Paul apud MORAES, Renata e FREITAS, Carlos Eduardo. O capital natural – o valor do patrimônio finito, 2009, p. 262. LIMA, Roberta de Abreu e VIEIRA, Vanessa. A terra não aguenta, 2008, p. 96. LIMA, Roberta de Abreu e VIEIRA, Vanessa. Idem, p. 98. FRANÇA, Ronaldo. Fome de ar, água e comida, 2009, p. 137. SANQUETTA, Carlos Roberto. Créditos de Carbono. Base Científica. Formulação de Projetos, 2008, p. 11. SANQUETTA, Carlos Roberto. Idem, p. 27. Cf. SANQUETTA, Carlos Roberto. Idem. 51 106 estufa e de aerossóis na atmosfera (SALATI et al., 2002)”. (destaquei) Não obstante grande parte da maximização do aquecimento global tenha, com efeito, interferência da ação humana, Jones107 admite que nos períodos de 1860-1880 e de 1910-1940 o mundo teve, na verdade, um aquecimento global semelhante ao que ocorre agora, sem que se possa atribuí-lo à atividade humana. Assim é que, “Apesar de a ciência do clima ter avançado muitíssimo, com técnicas que permitem resgatar a concentração de CO2 e de outros GEEs de até 1.000 anos atrás, através da espessura e densidade de anéis de árvores velhas e de bolhas de ar capturadas nas camadas de gelo polar que datam centenas de milhares de anos, e apesar dos sofisticados modelos climáticos computadorizados que permitem prognosticar a temperatura para daqui a 100 anos, nem o aquecimento global, nem a contribuição antrópica ao fenômeno, tampouco seus impactos são consenso geral entre os cientistas. Alguns estudiosos insistem em que documentos históricos comprovam que o clima flutua naturalmente, sendo a influência humana irrelevante nessas mudanças. Acreditam que os recentes aumentos de temperatura são explicados mais por fatores naturais, em relação aos quais a emissão de gás carbônico e de gases que causam o efeito estufa não seriam suficientemente relevante para serem responsabilizados pelas mudanças.”108 A inclusão das forças antrópicas na análise do clima permite, indubitavelmente, uma explicação plausível de parte substancial da mudança da temperatura no planeta. A melhor observação em relação ao aquecimento global, contudo, ocorre quando ambas forçantes, antropogênica e natural, são somadas ao modelo 109 cuja principal dificuldade tem origem no próprio método científico. Sobre a problemática do método, ensina Poppe que: “A codificação das regras da lógica científica foi descrita por René Descartes (Discurso sobre o Método, 1637) e Karl Popper (A Lógica da Descoberta Científica, 1934). Trata-se de uma lógica aplicável à exploração das leis da 106 107 108 109 OLIVEIRA FILHO, Eduardo Cyrino e MEDEIROS, Flávia Natércia da Silva. Ocupação humana e preservação do ambiente: um paradoxo para o desenvolvimento sustentável, 2008, p. 31-55. Phil Jones, climatologista inglês diretor do Centro de Pesquisas Climáticas da Universidade de East Anglia, é autoridade sobre mudança climática e autor de e-mails em que se admitiu publicamente manipulação nos relatórios do IPCC, explica SOUZA, Okki de. O dogma derrete antes das geleiras, 2010. p. 94-95. YU, Chang Man. Sequestro florestal de carbono no Brasil. Dimensões políticas, socioeconômicas e ecológicas, 2004, p. 48. Cf. WARD, Peter. A mãe natureza é cruel, 2010. p. 17-21. No mesmo sentido, YU, Chang Man. Sequestro florestal de carbono no Brasil. Dimensões políticas, socioeconômicas e ecológicas, 2004. 52 natureza que, por sua vez, consiste na formulação de uma hipótese e da definição de um experimento apropriado tal que, dependendo de seu resultado, a hipótese possa ser negada ou aceita. O experimento ideal para testar a hipótese de que há uma mudança do clima como resultado do aumento da concentração de GEE na atmosfera consistiria em observar, por exemplo, durante cem anos, o clima de dois planetas no laboratório, idênticos em tudo, exceto no fato de que, em um deles, a concentração daqueles gases seria aumentada. Como isso não pode ser feito, resta a simulação do clima por modelos que, por sua vez, são validados, com dados observados. Assim, os modelos são e serão, para sempre, parte integrante da consideração da mudança do clima. (...) Ocorre que a 110 mudança do clima não pode ser observada diretamente”. (destaquei) Yu acrescenta que os modelos de simulação climática carecem de aprimoramento, pois apresentam dificuldades para reproduzir as características importantes do clima atual, “em particular do ciclo hidrológico, a dinâmica dos oceanos e as nuvens (seus tipos, formas, constituição, distribuição e altura). Estes, quando mal simulados, podem causar variações significativas na temperatura”.111 A paleoclimatologia, no entanto, já produziu avanços importantes no entendimento da variabilidade em escalas de tempo mais longas. Os resultados são obtidos com o uso de testemunhos de gelo, por meio de perfurações que permitem extrair cilindros de gelo formados pela acumulação anual de neve, sendo sua idade facilmente definida, pois o gelo contém bolhas de ar que, “analisadas com métodos isotópicos, permitem estimar a concentração de dióxido de carbono e a temperatura no passado.”112 O clima pode, assim, ser observado em sua totalidade, considerando-se vários efeitos. O clima inclui o efeito do aumento da concentração dos GEE pela ação humana, mas também diversos outros; alguns devidos ao homem, mas que não são devidos a GEE, e outros naturais. Dentre esses outros efeitos atribuídos ao homem, destaca-se o efeito de aerossóis lançados na atmosfera pela ação humana, resfriando ou aquecendo a superfície da Terra, tais quais, respectivamente, as cinzas de queimadas e o negro de fumo, ou fuligem, proveniente do uso de diesel em motores mal regulados. Como outros efeitos naturais, têm-se o efeito de erupções vulcânicas que 110 111 112 POPPE, Marcelo Khaled (Coord.). Manual de capacitação. Mudança do clima e acordos internacionais, 2008, p. 31-32. YU, Chang Man. Sequestro florestal de carbono no Brasil. Dimensões políticas, socioeconômicas e ecológicas, 2004, p. 50. POPPE, Marcelo Khaled (Coord.). Manual de capacitação. Mudanças do Clima e Projetos de Mecanismos de Desenvolvimento Limpo, 2008, p. 35. 53 causam um resfriamento da superfície terrestre ao injetarem cinzas na atmosfera, tornando-a mais opaca. “No período de 1865 a 1989”, por exemplo, “os anos de menor temperatura (1865-1920) coincidem com a maior incidência de erupção vulcânica, e os anos de maior aquecimento (1920-1940 e a década de 80) registraram menor número de erupções”.113 Igualmente natural, o efeito da variabilidade da radiação solar, na medida em que o sol é a principal fonte energética para os processos físicos atuantes na atmosfera. Sua produção de energia, porém, não é constante. “Observações feitas por satélites confirmam que as manchas solares variam em ciclos de 11 e 22 anos”,114 bem como em função do diâmetro do sol, “cujo ciclo é de 80 a 90 anos. A dimensão destas variações corresponde de 30 a 50% do aumento da radiação infravermelha prevista para uma atmosfera com o dobro de CO2”.115 As circulações oceânicas também influenciam, naturalmente, a distribuição de calor entre o mar e a atmosfera, sendo que “nos últimos 40 anos, as temperaturas de superfície do setor ártico do Atlântico e do Pacífico esfriaram de 1,0 a 1,5º C [fato este que alguns cientistas têm utilizado para contra-argumentar a tendência do aquecimento global]”.116 A explicação seria a diminuição no afundamento das águas oceânicas naquelas regiões e, por conseguinte, a redução do transporte de calor das regiões equatoriais por correntes marítimas. No tocante à fixação de CO2 pelos plânctons, “Isla (1998) afirma que, apesar de os oceanos serem os maiores depositários naturais de CO 2, desconhecese o nível de concentração da calcita nas profundidades oceânicas, onde os carbonatos precipitados do plâncton se dissolvem e atuam como regulador no ciclo do carbono”.117 As variações dos parâmetros orbitais da Terra, por sua vez, são de ciclo longo (41 mil anos) e, de igual modo, isto é, naturalmente, parece estar relacionada 113 114 115 116 117 YU, Chang Man. Sequestro florestal de carbono no Brasil. Dimensões políticas, socioeconômicas e ecológicas, 2004, p. 48. YU, Chang Man. Idem, p. 49. YU, Chang Man. Idem. YU, Chang Man. Idem. YU, Chang Man. Idem. 54 às grandes mudanças climáticas (glaciações), que são intercaladas por períodos mais quentes (interglaciais). Há, inclusive, o registro de que “O último inter-glacial começou acerca de 15 mil anos e atingiu o máximo há 6-7 mil anos, quando as temperaturas estiveram em média cerca de 2 a 4º C acima das presentes”.118 As variações do clima podem, natural e finalmente, resultar das instabilidades decorrentes da não linearidade do sistema climático, consistente no conjunto da atmosfera, dos oceanos e da biosfera,119 e que produzem oscilações com periodicidade não bem definida. É que o clima se refere às estatísticas das variáveis que descrevem o estado instantâneo da atmosfera. Segundo Poppe,120 essas variáveis, normalmente, são a temperatura, a pressão, as três componentes do vento (nos sentidos norte-sul, leste-oeste e vertical) e a concentração de vapor d‟água, de água líquida e de água sólida. O mesmo autor chama a atenção para o fato de que, em meteorologia, existe uma diferença entre tempo e clima, considerando-se o primeiro o valor instantâneo dessas variáveis num determinado local, e o segundo seus valores médios. O fenômeno atmosférico-oceânico denominado El Niño é forte exemplo da instabilidade decorrente da não linearidade do sistema climático que provoca variações do clima. Derivada do espanhol, a expressão El Niño refere-se à presença de águas quentes que todos os anos aparecem na costa norte do Peru na época de Natal. Os pescadores do Peru e do Equador chamaram a esta presença de águas mais quentes de Corriente de El Niño em referência ao Niño Jesus ou Menino Jesus. A dinâmica do El Niño revela a interação entre a superfície do mar e a baixa atmosfera e representa o aquecimento anormal das águas superficiais e subsuperficiais do Oceano Pacífico Equatorial, bem como as mudanças na atmosfera próxima à superfície do oceano, com o enfraquecimento dos ventos alísios (que 118 119 120 YU, Chang Man. Sequestro florestal de carbono no Brasil. Dimensões políticas, socioeconômicas e ecológicas, 2004, p. 49. Cf. POPPE, Marcelo Khaled (Coord.). Manual de capacitação. Mudanças do Clima e Projetos de Mecanismos de Desenvolvimento Limpo, 2008, p. 24-56. Cf. POPPE, Marcelo Khaled (Coord.). Idem. 55 sopram de leste para oeste) na região equatorial. O aquecimento do oceano e o enfraquecimento dos ventos provocam mudanças da circulação da atmosfera nos níveis baixos e altos, determinando mudanças nos padrões de transporte de umidade e provocando variações na distribuição das chuvas em regiões tropicais e de latitudes médias e altas, culminando, assim, no aumento ou na queda de temperatura em algumas regiões do globo, conforme na Figura 6, onde os tons avermelhados indicam regiões com valores acima da média climatológica e os azulados valores abaixo. Figura 6 El Niño no Pacífico Central e Oriental Fonte: OLIVEIRA, Gilvan Sampaio de. O El Niño e Você – o fenômeno climático. Disponível em: <http://enos.cptec.inpe.br/>. Acesso em: 28 fev. 2010. Essa não linearidade do sistema climático, tal qual evidenciada no El Niño, é uma forçante natural que, além de provocar alterações no clima, conduz ao pensamento de que a vida pode naturalmente conspirar contra si própria; 56 semelhante ao efeito colateral do processo evolutivo em que as espécies evoluem, aprimorando características que permitem triunfar no jogo da sobrevivência, enquanto a biosfera não evolui.121 Nesse caso, destaca Ward,122 a natureza se comporta como Medeia que, na mitologia grega, representa a mãe impiedosa que mata os próprios filhos, diversamente da “boa mãe” Gaia. E segue explicando sobre as duas versões da hipótese Gaia: “Uma diz que os seres vivos colaboram entre si para manter as condições ambientais dentro de parâmetros compatíveis com a manutenção da vida. A outra, mais radical, afirma que os organismos não apenas estão programados para manter os padrões de „habitabilidade‟ da Terra, como ainda conseguiriam melhorar a química da atmosfera e dos oceanos. Essas duas versões da hipótese Gaia estão totalmente erradas. Tomados em conjunto, os organismos existentes na Terra interagem com o ambiente de tal maneira que, a longo prazo, a vida tende a desaparecer. Os episódios de extinção em massa no passado geológico do planeta – processos conduzidos pelos próprios seres vivos que acarretaram reduções dramáticas na biomassa – são evidências de que a hipótese Medeia é correta. Exemplo disso é o da grande extinção no fim do período permiano, cerca de 250 milhões de anos atrás, quando pereceram 90% das espécies marinhas e 70% do total da biota por causa, segundo melhor teoria, de bactérias que, como resultado de seu metabolismo, produzem o gás sulfídrico (H2S) que, à época, envenenou os oceanos e entrou na atmosfera”.123 Na mesma linha de entendimento, em 1962, Reid procurou demonstrar, no livro The Sociology of Nature, que: “na natureza (da qual o homem é parte) o que ele chama de „Princípio da Dependência‟ governa a existência de todas as criaturas, de todas as formas de vida. A natureza possui uma ordem ditada por uma emaranhada rede de relações e interdependências entre plantas, animais, clima, solo, água e ar. A luta pela existência está inscrita nessa ordem, seja através de uma acirrada e dolorosa competição, seja através da cooperação entre animais e plantas, entre uma espécie animal e outras, ou ainda, entre animais da mesma espécie (...) havendo a necessidade de se conhecer as partes, mas também a relação delas entre si e com o todo”.124 É nesse diapasão que algo semelhante aos episódios catastróficos 121 122 123 124 Cf. WARD, Peter. A mãe natureza é cruel, 2010. p. 17-21. Cf. WARD, Peter. Idem, p. 20. WARD, Peter. Idem. REID apud MACHADO, Vilma de Fátima. A produção do discurso do desenvolvimento sustentável: de Estocolmo à Rio-92, 2005, p. 141. 57 naturais de extinção em massa (registrados no passado geológico do planeta) pode voltar a acontecer, e, dessa vez, com contribuição humana. Segundo Ward,125 no fim do período permiano, cerca de 250 milhões de anos atrás, pereceram 90% das espécies marinhas e 70% do total da biota. É que um grupo de bactérias anaeróbicas que produz o gás sulfídrico (S2H), altamente tóxico e mortífero para plantas e animais, até mesmo em baixas concentrações, proliferou de maneira exponencial, a ponto de envenenar os oceanos e a atmosfera. A causa da proliferação incomum foi o grande volume de magma lançado por vulcões nos mares e na terra, continuamente, por milhares de anos; o que potencializou o efeito estufa e o aquecimento da superfície do planeta a praticamente quase eliminar o oxigênio livre nas águas oceânicas. No mesmo sentido, as palavras de Drummond: “Ao longo da história, ocorreram, comprovadamente, uma série de extinções em massa. Os fósseis são as provas. Houve algumas que, pela intensidade, colocaram os pesquisadores em campo atrás de possíveis causas. Podemos citar as do Devoniano (cerca de 400 Milhões de anos atrás), do Permiano (250 milhões), do Cretáceo (70 milhões) e a do Pleistoceno (11 mil). A primeira citada teria como causas as secas continuadas e periódicas. No Permiano teriam sido as ingressões marinhas, ou seja, enormes superfícies foram invadidas pelo mar (Sibéria, Rússia), o que causou um desequilíbrio tão grande que, alguns calculam que 96% das espécies então viventes se extinguiram. No Cretáceo, a extinção espetacular dos dinossauros, répteis marinhos, pterossauros, muitos invocam como causa principal um meteorito catastrófico. Mas mesmo com meteorito, as causas seriam outras, como as novas formas de vida na Terra – angiospermas substituindo as gimnospermas e, nos mares, o predomínio dos peixes ósseos. A do Pleistoceno foi muito traumática na Europa, América do Norte e América do Sul. Muitos mamíferos desapareceram em pouco tempo. Discutem-se como as causas o homem, as doenças, entre outros. Acredito na climática que transformou biomas, temperaturas e regime pluvial. Hoje há um elemento absolutamente diferente, pelo que não há como comparar com o passado. Extinções sempre houve. É lei da vida. Espécies surgem, modificam-se, desaparecem, são substituídas ou não, paulatinamente. Raramente são catastróficas como as enunciadas. Mas há um elemento novo absolutamente imprevisível – o homem. É a única espécie capaz de modificar o ambiente em que vive. Devido à característica da espécie e à tecnologia, ele é capaz de ocupar, praticamente, todos os biomas do Planeta. E destruí-los ou modificá-los a uma velocidade de catástrofe. O que poderá acontecer é imprevisível. Podemos afirmar que, neste ritmo, não há futuro”.126 125 126 Cf. WARD, Peter. A mãe natureza é cruel, 2010, p. 20-21. DRUMMOND, Gláucia apud TRANCHES, Renata. O que poderá acontecer é imprevisível, 2010, p. 18. 58 Contudo, “Efeito estufa é efeito estufa, pouco importa se causado por vulcões ou por fábricas e automóveis. Quando e se os níveis de CO 2 na atmosfera superarem a taxa-limite de 1.000 ppm (partes por milhão), a série de eventos de longo curso que pode levar a uma extinção como a descrita se porá em movimento”.127 Destarte, “Conservar o meio ambiente significa preservar a viabilidade do próprio negócio”.128 “A longevidade de uma empresa”,129 por exemplo, “está intimamente relacionada à sua capacidade técnica para usufruir a natureza”, 130 de onde retira sua matéria-prima e energia, sem, contudo, esgotá-la, pois “Empresas com problemas socioambientais tendem a ter também problemas econômicofinanceiros”.131 Essas evidências contribuíram para que, ainda na década de 1970, a CEPAL se voltasse à discussão de caminhos para superação do grande desafio de “conciliar o desenvolvimento dos países com a preservação dos recursos naturais”.132 Desse pensamento cepalino, infere-se a concepção do clima como advinda da preservação dos recursos naturais, num circuito recursivo, em que, por exemplo, o desmatamento e a queima da flora elevam a concentração de CO2 na atmosfera, intensificando o efeito estufa, o aquecimento global e as mudanças no clima e impactando negativamente, em dimensões mundiais, os recursos naturais que fomentam o desenvolvimento urbano-industrial e rural agropecuário dos países. Essa ampliação da escala espacial, de modo a ultrapassar os limites da propriedade privada e dos territórios nacionais, vislumbra, como consequência natural, “o problema ambiental como algo cuja solução razoável exige o concurso de todos os países do mundo e de todos os proprietários de terra de cada país”.133 É a emergência da questão ambiental, enfim, como problema global que, inevitavelmente, inclui as preocupações e discussões sobre o clima na Terra. 127 128 129 130 131 132 133 WARD, Peter. A mãe natureza é cruel, 2010, p. 21. MORAES, Renata e FREITAS, Carlos Eduardo. Capital natural - O valor do patrimônio finito, 2009, p. 263. MORAES, Renata e FREITAS, Carlos Eduardo. Idem. MORAES, Renata e FREITAS, Carlos Eduardo. Idem. WELLS, Christopher apud GOMES, Luci. Um discurso que afeta o caixa, 2008, p. 70. LIMA, Roberta de Abreu e VIEIRA, Vanessa. A Terra não agüenta, 2008, p. 99. NEVES, Cleuler Barbosa das. O ato administrativo na tutela ambiental do solo rural: uma análise da erosão laminar e do uso do solo na bacia do Ribeirão João Leite, 2006, p. 95. 59 1.2 O CORPUS JURIS DE PROTEÇÃO INTERNACIONAL DO MEIO AMBIENTE As preocupações e discussões sobre o clima na Terra não são, contudo, recentes. Ainda no século 14, a poluição do ar já preocupava o rei Eduardo I, que proibiu o uso do carvão em fornalhas abertas na região de Londres. 134 Para demonstrar que a questão do carvão na Inglaterra é mesmo remota, Manning lembra que Newcasatle “é construída sobre o carvão”, sendo “originário de Newcastle o carvão queimado na Revolução Industrial”.135 Já no ano de 1874, a esgotabilidade dos recursos naturais constava da pauta de preocupações sobre o meio ambiente, como nas palavras de Julio Verne: "Então formaram-se imensos reservatórios de carvão, que entretanto, não são inesgotáveis, e que em três séculos de exploração na presente e acelerada taxa de consumo irão exaurir, a não ser que o mundo industrial encontre um remédio".136 A impressão sobre ser novidade cuida-se, pois, de paradigma,137 uma vez que a dimensão global da problemática ambiental é um modelo, um padrão de apreciação e de explicação para orientar a descrição e a compreensão da realidade ora circundante,138 na medida em que desafia, no contexto da industrialização, o nascimento de uma “cidadania planetária”,139 com vistas à promoção de medidas de enfrentamento de dimensões também globais. Nesse propósito, reuniram-se culturas e economias diferentes; situações e interesses de classes divergentes; espaços políticos conflitantes e atores sociais, econômicos e políticos diversos para definir uma agenda de combate aos problemas ambientais globais e à degradação social e ambiental do planeta.140 134 135 136 137 138 139 140 Cf. DAMASCENO, Monica. A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, 2007, p. 39. MANNING, David. 2nd Annual International Meeting of the International Biochar Initiative (IBI). Newcastle Civic Centre, Newcastle, UK, 2008: “Newcastle is built on coal; it is from Newcastle that the coal that fired the Industrial Revolution originated.” VERNE, Julio. Viagem ao Centro da Terra. 1874 apud BOTTINI, Felipe Jamé. Economia de Baixo Carbono sob a Perspectiva de Baixo Mercado, 2010. Cf. BOTTINI, Felipe Jamé. Economia de Baixo Carbono sob a Perspectiva de Baixo Mercado, 2010. DAMASCENO, Monica. A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, 2007, p. 37-52. Cf. SANTOS, Nivaldo dos e LIMA, Rosa Maria. Transdisciplinariedade e o Direito Ambiental, 2009, p. 2. Cf. “Cidadania planetária” é uma expressão de BELINKY, Aron – representante de ONGs de países em desenvolvimento no comitê redator da ISO 26000. Globalização 2.0. Éramos caubóis, somos astronautas, 2009. p. 258-260. Cf. LIMA, Ricardo Barbosa de. Uma visão dos limites da modernidade construída pelo prisma da crise 60 Isso conduziu à configuração de diferentes formas de perceber e encaminhar o desenvolvimento econômico e a degradação do meio ambiente, pois na medida em que o indivíduo passa a conhecer racionalmente a natureza, esse indivíduo passa a depender cada vez mais apenas dele mesmo para agir no sentido da regra justa e moralmente mais perfeita.141 Foi nesse contexto que o aspecto ambiental do desenvolvimento dividiu opiniões. De um lado, aqueles segundo os quais a racionalidade, por meio da ciência e da técnica, garantia a emancipação social e o progresso dos indivíduos. De outro, os que reconheciam a problemática ambiental como limite da fé cega na razão. Para esses últimos, a questão ambiental reclamava mais atenção, como o implemento de restrições de âmbito global ao desenvolvimento industrial, medida que Lima analisa com a parcimônia abaixo: “por um lado, tem se destacado, nas últimas décadas, a capacidade do ideário ambientalista de perpassar diferentes segmentos sociais. Por outro, essa capacidade de fertilizar e informar os grupos sociais parece não se traduzir em práticas sociais condizentes; pelo menos, não com o mesmo rigor e freqüência com que a ladainha do „ecologicamente correto‟ é apregoada. Mas ainda, os indivíduos que professam esses ideais (que se dizem deles sabedores e/ou defensores), por vezes, parecem, eles mesmos, não se orientarem por esses preceitos. E se pensarmos nos custos coletivos desse descompasso entre o que se professa e o que se faz, os resultados parecem ser ainda mais destoantes”.142 No descompasso entre a profecia e a prática no trato com a natureza, havia o desafio de explicar o fenômeno segundo o qual um indivíduo bem informado sobre como e por que agir corretamente comportava-se, diversamente, no sentido de sua autodestruição, por exemplo, contribuindo negativamente para a mudança do clima. Nas palavras de Lima: “Segundo Elster (1990), para a explicação da conduta humana concorrem a racionalidade e as normas sociais. (...) na ação individual, o homem se 141 142 ecológica global: o desencantamento do mundo, 2009, p. 32-33. Cf. LIMA, Ricardo Barbosa de. A constituição do fato moral em Durkheim: coerção, desejo e racionalidade no ambientalismo como um ideal civilizatório, 1997, p. 85. LIMA, Ricardo Barbosa de e RUA, Maria das Graças. Cotidiano, racionalidade e sereias: o “dilema do prisioneiro” como metáfora da questão ambiental, 1986, p. 68. 61 apresenta como o homo economicus de Adam Smith, orientando suas ações pela lógica maximizadora dos seus interesses; (...) na interação social, o indivíduo se apresenta como o homo sociologicus de Émile Durkheim, subordinado ao jogo das forças sociais que lhe são externas e anteriores”.143 (destaques no original) Isso indicava a necessidade de que instituições sociais exercessem externamente um controle, impusessem uma coerção e revestissem com o manto da obrigatoriedade, da desejabilidade e da racionalidade o cuidado com o meio ambiente, já que o indivíduo, por si, parecia não querer cooperar voluntariamente, 144 tampouco pensar o meio ambiente como um fato moral. Nesse propósito, cabia inquirir sobre as alternativas do ser humano em relação aos efeitos negativos da mudança do clima, entendidos esses como as mudanças no meio ambiente físico ou biota, resultantes da mudança do clima, que tenham efeitos deletérios significativos sobre a composição, resiliência ou produtividade de ecossistemas naturais e administrados, sobre o funcionamento de sistemas socioeconômicos ou sobre a saúde e o bem-estar humanos.145 “Num mundo mais complexo e interligado, as repercussões econômicas de qualquer evento são grandes e ocorrem em cadeia. Por isso, a grande lição é que é preciso ter planos de contingência, alternativos, para a eventualidade de eventos que provoquem fatos em cadeia”,146 como os eventos climáticos extremos agravados ou provocados pelo aquecimento global, porque “inesperados farão mais surpresas”.147 Para Ward, “ainda que consigamos interromper a tendência atual de aquecimento do planeta ensejada pela atividade humana, a longo prazo temos de lidar com outro problema: nosso sol se tornará maior, e enviará mais energia para a Terra. Algumas alternativas já foram aventadas, como a construção de espelhos gigantescos que seriam postos em órbita para produzir a incidência de luz solar sobre o planeta, ou a cobertura de grandes áreas de terra e mar com material refletivo. Parece ficção científica, mas, diante de um desafio dessa magnitude, não podemos abandonar a nossa imaginação.” Notadamente quando “Os planetas vizinhos são hostis demais 143 144 145 146 147 LIMA, Ricardo Barbosa de e RUA, Maria das Graças. Cotidiano, racionalidade e sereias: o “dilema do prisioneiro” como metáfora da questão ambiental, 1986, p. 72. Cf. LIMA, Ricardo Barbosa de e RUA, Maria das Graças. Idem, p. 77. Cf. art. 1-1da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre mudança do clima. Disponível em: <http://www.mct.gov.br>. Acesso em: 1º mar. 2010. LEITÃO, Miriam. Custo do inesperado, 2010, p. 33. LEITÃO, Miriam. Idem. 62 à vida. É mais fácil colonizar a Antártica do que Marte. E, dadas as distâncias e a escala temporal envolvidas (...) A Terra é só o que temos”.148 Nesse diapasão, e ignorando as ideias de engenharia planetária, tal qual alterar a refletividade da superfície da Terra ou inserir na atmosfera aerossois que reflitam a radiação solar, pois pouco práticas e demasiadamente caras para serem implantadas, há, a rigor, três comportamentos possíveis: a inação, a adaptação e a mitigação.149 A inação significa o não fazer nada e pode consistir na aceitação dos danos decorrentes da mudança do clima. A adaptação reside em tomar medidas para enfrentar os efeitos negativos, adaptando-se ao novo clima por meio, por exemplo, do desenvolvimento de novas variedades de plantas agrícolas. E a mitigação consiste em atividades pela atenuação ou eliminação das causas dessa mudança, como as reduções das emissões e das quantidades de GEE na atmosfera. Considerando a necessidade humana de acesso às fontes energéticas e que a adaptação nem sempre é possível e, em muitos casos, tem um limite prático, é sensata a escolha de um conjunto de ações envolvendo, em âmbito global, ao menos, a terceira alternativa, com vistas à homeostase, “consistente no equilíbrio dinâmico entre os seres vivos e o meio em que vivem”. 150 Nesse intento é que se estudou, por exemplo, a produção de biochar. O termo biochar, explica Grisi,151 resulta da fusão dos termos, em inglês, “biomass + charcoal” (biomassa + carvão) e designa o carvão obtido da pirólise de biomassa em estufa, quase sem oxigênio, para fertilização posterior do solo em processo semelhante ao da “terra preta dos índios” na Amazônia central. Mann explica que: “A terra preta é encontrada apenas onde vivem pessoas, o que significa que 148 149 150 151 WARD, Peter. A mãe natureza é cruel, 2010, p. 21. Cf. ALEGRIA, Manuela. Árvores artificiais para reduzir carbono. Revista Meio Ambiente. Disponível em: <http://www.revistameioambiente.com.br/2009/09/25/arvores-artificiais-para-reduzir-carbono/>. Acesso em: 1º mar 2010. No mesmo sentido: POPPE, Marcelo Khaled (Coord.). Manual de capacitação. Mudanças do Clima e Projetos de Mecanismos de Desenvolvimento Limpo, 2008, p. 42-44. Cf. FIORILLO, Celso Antonio Pacheco, Curso de Direito Ambiental Brasileiro, 2003, p. 20. GRISI, Breno. “Biochar”: solução da geoengenharia ou pretexto para continuar poluindo?! Disponível em <http://ecologiaemfoco.blogspot.com/2009/07/biochar-solucao-da-geoengenharia-ou.html> Acesso em 27 fev. 2010. 63 é um solo artificial, de produção humana, datado de antes da chegada dos europeus na América. (...) O solo é rico em minerais vitais, tais quais fósforo, cálcio, zinco e manganês, os quais são escassos na maioria dos solos tropicais. Mas o carvão é o seu componente mais atraente – grandes quantidades dele é que dão a coloração da terra preta. Não há certeza sobre se os índios adicionaram o carvão na terra deliberada ou acidentalmente, tampouco se desde o início foi utilizada para fins agropecuários (...) A chave para a terra preta é o carvão, obtido da queima de plantas e mantido em baixas temperaturas (...) que adicionado ao típico pobre solo tropical provoca um crescimento exponencial na população de microorganismos (...) tornando-o mais vivo, mais fértil.” Isso porque “a terra preta enriquecida com carvão apresenta 10 a 20 vezes mais carbono que os típicos solos tropicais” e, conquanto “ninguém saiba com exatidão a quantidade de carbono que pode ser estocada no solo – alguns estudos sugerem um limite finito”, “a terra preta poderia provocar o que o jornal científico Natureza tem chamado uma „ revolução preta‟ em toda a extensão do largo arco de solos pobres do Sudeste da Ásia à África” e “provavelmente ainda auxiliar no combate ao aquecimento global”.152 Na perspectiva de gerenciamento pela comunidade internacional do problema da mudança do clima e da limitação prática de algumas providências, a história recente revela outras iniciativas internacionais sobre a problemática ambiental no âmbito da mitigação, colocando o Direito e o Estado diante do problema de conciliar a existência humana com as demais espécies que co-habitam a Terra.153 Os direitos atinentes ao meio ambiente passaram, então, a ser prioridades incontestes da agenda internacional moderna, o que incluiu a formação de um corpus juris de proteção internacional do meio ambiente. Corpus juris é uma expressão de Mazzuoli para esclarecer que: “Diferentemente da ecologia, que é regida por leis científicas (por ser um ramo da biologia), o „meio ambiente‟ é regido por leis humanas, que variam 152 153 MANN, Charles C. Our Good Earth. The future rests on the soil beneath our feet. Can we save it?, 2008, p. 80-109: “Terra preta is found only where people lived, which means that it is an artificial, human-maid soil, dating from before the arrival of Europeans. (…) The soil is rich in vital minerals such as phosphorus, calcium, zinc, and manganese, which are scarse in most tropical soils. But its most striking ingredient is charcoal – vast quantities of it, the source of terra preta‟s color. Neves isn‟t sure wheter Indians had stirred de charcoal into the soil deliberately, if they had done it accidentally while disposing of household trash, or even if the terra preta created by charcoal initially had been used for farming (…) Key to terra preta is charcoal, made by burning plants and refuse at low temperatures (…) that simply adding crumbled charcoal and condensed smoke to typically bad tropical soils caused an „exponential increase‟ in the microbial population (…) it was literally more alive” because, “charcoal-rich terra preta has 10 to 20 times more carbon than typical tropical soils” and “nobody knows for sure how much carbon can be stored in soil – some studies suggest there may be a finite limit”, “terra preta could unleash what the scientific journal Nature has called a „black revolution‟ across the board arc of impoverished soil from Southeast Asia to Africa” and “might even help combat global warmimg.” Cf. NEVES, Cleuler Barbosa das. O ato administrativo na tutela ambiental do solo rural: uma análise da erosão laminar e do uso do solo na bacia do Ribeirão João Leite, 2006, p. 84. 64 segundo as opções do comportamento humano. Isto quer dizer que, ao contrário das leis científicas, que são governadas pela ciência, as leis decorrentes do comportamento humano são regidas pela liberdade de escolha do ser humano, em que não se faz presente o conceito de verdade. Sob esse último aspecto, não se cuidara de saber o que é verdadeiro e o que é falso, uma vez que a norma jurídica não determina com exatidão (como faz a biologia) a relação entre causa e efeito; apenas se trata de impor sanções pela violação das regras de conduta vigentes, elaboradas – 154 repita-se – pela vontade do homem”. A vontade de proteger o meio ambiente, traduzida em normas de preservação ambiental, revelou a decadência do liberalismo econômico e do individualismo jurídico e a consequente abertura de espaço à visão social do direito. Era evidente que: “o liberalismo se fortaleceu à sombra da revolução industrial, com o multiplicar das invenções ocorridas principalmente a partir da segunda metade do século XVIII, que geram ipso facto o aumento da produção e do consumo. Mas, ao desenvolvimento da produtividade com vantagens para uma das partes, a detentora dos meios de produção, não correspondiam proporcionalmente os ganhos sociais dos trabalhadores (...) Essa desigualdade econômica teria de ser igualada pelo direito, que se omitia sob as vestes do individualismo. Numa visão interdisciplinar econômica e jurídica, pode-se afirmar que, se o liberalismo simbolizava a imagem da eficiência em matéria produtiva de riqueza, o individualismo representava a negligência e a ineficiência na luta contra o egoísmo próprio do ser humano, descumprindo, enquanto direito, a sua missão social. (...) Tudo estava a indicar a necessidade de intervenção na liberdade econômica e na autonomia privada contratual. (...) Assiste-se à passagem do Estado liberal, fruto da revolução industrial e tecnológica geradora de crescimento econômico de um lado, e de egoísmo e problemas sociais de outro, para o Estado democrático e social. (...) A complexidade econômica e social também influenciou o aparecimento de novos ramos do direito, a fim de regrar com abrangência e profundidade questões surgidas na sociedade contemporânea, impossíveis de serem regradas pelos vetustos caminhos do direito civil. Nesse caminhar, o econômico entrelaça-se com o social e o social estende-se ao ecológico”.155 Nessa perspectiva, passou a viger no cenário internacional o Direito Internacional do Meio Ambiente, entendido “como o conjunto de regras e princípios criadores de direitos e deveres de natureza ambiental para os Estados, para as organizações internacionais intergovernamentais e também para os indivíduos”.156 Esses três atores, explica Mazuolli, são os sujeitos de Direito 154 155 156 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público, 2007, p. 771. FALCONI, Luiz Carlos. O uso inadequado das áreas de preservação permanente e reserva legal como causa de desapropriação da propriedade imobiliária rural no Brasil, 2005, p. 31-36, 53-55. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público, 2007, p. 771-772. 65 Internacional, sendo o Estado o primeiro e mais importante elemento que nasce na formação da sociedade internacional.157 É “a organização jurídico-política da Nação, e que lhe dá validade e legitimação para atuar, no plano externo, como sujeito de Direito Internacional Público”.158 O indivíduo também detém personalidade jurídica internacional, o que o leva a ter direitos e deveres quanto aos ilícitos internacionais por ele praticados, enquanto as organizações internacionais intergovernamentais são associações voluntárias de Estados, criadas por convênios constitutivos e com finalidades prédeterminadas, regidas pelas normas de Direito Internacional e dotadas de personalidade jurídica distinta da de seus membros, não se confundindo com as organizações privadas ou não governamentais (ONGs) criadas por particulares. Do conceito de Direito Internacional Ambiental, extrai-se que as regras e os princípios são fontes desse Direito, na medida em que representam os elementos básicos do regime jurídico internacional para o meio ambiente. As fontes podem ser divididas em materiais e formais. 159 As fontes materiais referem-se aos fatores sociológicos, econômicos, ecológicos, psicológicos e culturais que condicionam “a decisão do poder no ato de edição e formalização das diversas fontes do Direito”,160 determinando, assim, a sua elaboração, sentido ou alcance. Nesse sentido, aliás, é a teoria tridimensional do direito de Reale, que dispõe ser “possível deduzir a conjectura segundo a qual, no momento da escolha legislativa de uma opção que deverá ser erigida à condição de norma (nomogênese), opera-se uma integração de fatos segundo valores”.161 Para Neves, esse modelo concebe a norma: “como advinda do próprio fato (...) através de um processo de escolha 157 158 159 160 161 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público, 2007, p. 331-335, 343. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Idem. Reale critica o desdobramento em fonte formal e material do direito, pois, no seu entender, “uma fonte de direito só pode ser formal, no sentido de que ela representa sempre uma estrutura normativa que processa e formaliza, conferindo-lhes validade objetiva, determinadas diretrizes de conduta (em se tratando de relações privadas) ou determinadas esferas de competência, em se tratando sobretudo de Direito Público” (destaques no original). REALE, Miguel. Fontes e modelos do direito: para um novo paradigma hermenêutico, 1994, p. 2. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público, 2007, p. 83. NEVES, Cleuler Barbosa das. O ato administrativo na tutela ambiental do solo rural: uma análise da erosão laminar e do uso do solo na bacia do Ribeirão João Leite, 2006, p. 36. 66 prévia e aplicação posterior mediados pela valoração, ou seja, pelos valores sociais que foram e continuam sendo plasmados pela evolução históricocultural daquela comunidade. (...) Não se está aqui descartando a possibilidade da norma editada alterar os costumes sociais, o que pode bem ocorrer (ex. Código de Defesa do Consumidor, Estatuto do Índio, Estatuto da Criança e do Adolescente, Código Florestal, Estatuto da Mulher Casada etc.), nem tampouco admitindo que o édito seja mero reflexo dos costumes tradicionalmente estabelecidos, mas sim concebendo a norma como um produto dialético que vem do fato e que, num movimento circular, volta ao fato, sendo que o complexo dessas idas e vindas é intermediada pelos valores sociais”.162 Nessa perspectiva, o substrato econômico é o valor preponderante do Direito Internacional, quando, por exemplo, “o gerenciamento da opinião pública mundial aponta claramente „para o motor econômico e político da atividade normativa internacional‟”.163 Segundo Lambert: “Visto sob esse prisma, o Direito Internacional é, e sempre foi, a lei do mais forte. Reflete, basicamente, os valores dos países que, em determinada hora, conseguem impor seus pontos de vista. (...) Assim gira o mundo do Direito Internacional. Cínico, relativiza e até desconhece as noções de certo e errado, de bem e de mal... ou faz delas uso oportunístico, convencido, até a medula, de que a razão do mais forte é sempre a melhor. Reveste a roupagem dos grandes princípios, se lhe convém, mas os esquece quando precisa e inventa outros sempre que achar necessário impressionar os ingênuos. (...) Como se vê, a produção normativa é tão sutil quanto complexa. À primeira vista, pode parecer desgovernada, mas se soubermos embasar nosso raciocínio no plano econômico, acharemos uma razão para toda essa agitação: dinheiro”.164 (destaques no original) “Os prejuízos de eventos sísmicos e climáticos entre 2004 e 2009 foram de US$ 753 bilhões, segundo a resseguradora Munich Re”.165 Para Bertucci, “se o homem não conseguiu domar a natureza, ele está aprendendo pelo menos a ratear a conta dos prejuízos provocados por catástrofes – hoje boa parte é coberta por seguros”.166 Hoffman e Woody esclarecem que: “O relatório de McKinsey and Company (...) conclui que os custos mundiais 162 NEVES, Cleuler Barbosa das. O ato administrativo na tutela ambiental do solo rural: uma análise da erosão laminar e do uso do solo na bacia do Ribeirão João Leite, 2006, p. 45-47. 163 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público, 2007, p. 83. 164 LAMBERT, Jean-Marie. Curso de direito internacional público – o mundo global, 2001, p. 57, 59 e 65. 165 LEITÃO, Miriam. Custo do inesperado, 2010, p. 33. 166 BERTUCCI, Afonso Celso. O Protocolo de Kyoto e o mercado de créditos de carbono, 2006, p. 6. 67 anuais de redução das emissões dos gases de efeito estufa para 450 ppm poderiam ser entre 0,6% e 1,4% do Produto Interno Bruto (PIB) até 2030. Da mesma maneira, um relatório feito por Sir Nicholas Stern, ex-economista chefe do Banco Mundial (Stern Report), afirma, com mais veemência, que custará 1% anualmente do PIB para sair de 500 para 550 ppm (US$446 bilhões, com base nos números de 2005). No entanto, o relatório afirma também que, se não fizermos nada, „os custos e riscos gerais da mudança climática serão equivalentes a perder pelo menos 5% do PIB global por ano. Se uma faixa de riscos e impactos mais ampla for levada em consideração, as estimativas de danos poderiam subir para 20% do PIB ou mais‟. Em suma, os benefícios econômicos da ação inicial para reprimir os gases de efeito estufa são muito mais importantes do que os custos”.167 Nessa perspectiva, a motivação econômica transforma-se em ideia e representação, que “desabrocham em sistemas ideológicos”,168 para, finalmente, concretizar-se numa norma jurídica ambiental. As fontes formais, por sua vez, pertencem ao universo da Ciência do Direito e indicam as formas pelas quais o Direito se desenvolve, pois, na medida em que a Ciência do Direito coloca problemas para ensinar (e não para explicar, conforme intencionam a Sociologia, a Psicologia, a História e a Antropologia) o cientista do Direito se sente vinculado a uma solução, à segurança da certeza na expectativa de determinadas ações, numa correlação de fins e meios, de questões e solução de questões.169 E é no propósito da solução dos problemas ambientais que as fontes formais do Direito Internacional do Meio Ambiente incluem, por exemplo, o costume170 internacional. O costume é espécie de fonte supletiva, “seja ele decorrente da prática dos interessados, dos tribunais e dos jurisconsultos, seja secundum legem, praeter legem ou contra legem”.171 O costume secundum legem reconhece a eficácia obrigatória de uma lei; 167 168 169 170 171 HOFFMAN, Andrew J. e WOODY, John G. Conselhos para o CEO. Mudanças climáticas: desafios e oportunidades empresariais, 2008, p. 22 e 23. LAMBERT, Jean-Marie. Curso de direito internacional público – o mundo global, 2001, p. 57. FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. A ciência do direito, 1980, p. 108. No Brasil, o costume, ao lado da analogia e dos princípios gerais de direito, é meio supletivo das lacunas, nos termos do art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil. “A Lei de Introdução não é parte integrante do Código Civil, constituindo tão-somente uma lei anexa para tornar possível uma mais fácil aplicação das leis. Estende-se muito além do Código Civil, por abranger princípios determinativos da aplicabilidade das normas, questões de hermenêutica jurídica relativas ao direito privado e ao direito público e por conter normas de direito internacional privado.” DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro interpretada, 2007, p. 3. DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro interpretada, 2007, p. 115-143. No mesmo sentido DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo, 2002, p. 111-172 68 o praeter legem reveste-se de caráter supletivo e supre a lei nos casos omissos, enquanto o contra legem se forma em sentido contrário ao da lei. “O costume internacional ligado ao meio ambiente é”, todavia, “relativamente recente, e fica difícil visualizar, com contornos bem definidos, uma prática constante e uniforme dos Estados, num mesmo sentido, com a crença de convicção de tratar-se de uma regra jurídica”.172 A doutrina e a jurisprudência internacionais também são fontes formais do Direito Internacional do Meio Ambiente, na razão de que são meios auxiliares para a definição exata das regras desse direito.173 Mazzuoli assim as explica: “A doutrina tem se manifestado nos colóquios e trabalhos das comissões internacionais em matéria de meio ambiente, instituídos na maioria das vezes sob os auspícios das Nações Unidas. No que tange ao Direito Internacional do Meio Ambiente, reconhece-se também como de cunho doutrinário os trabalhos realizados pelas organizações não-governamentais (ONGs), dedicados ao progresso e desenvolvimento das normas internacionais de proteção. No que toca à jurisprudência internacional, merece destaque o papel da Corte Internacional de Justiça e do Tribunal Internacional do Direito do Mar, cuja competência em relação à matéria ambiental é inquestionável (v.g., assuntos relativos a mares e oceanos, pesca internacional e poluição daqueles espaços). Os três casos clássicos da Corte Internacional de Justiça que influenciaram o campo do Direito Internacional do Meio Ambiente foram o caso (...) da Fundição Trail, o caso do Estreito de Corfu e o caso do Lago Lannoux (que, embora não versasse especificamente sobre poluição transfronteiriça, acabou por abordar a hipótese)”.174 (destaques no original) Igualmente fontes formais do Direito Internacional Ambiental, as decisões e resoluções das organizações internacionais intergovernamentais, como as expedidas pela Organização das Nações Unidas (ONU), cujos propósitos consubstanciam-se em: “a) preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade; b) reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, da dignidade e no valor do ser humano, na igualdade do direito dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas; c) estabelecer condições sobre as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos; d) promover o progresso 172 173 174 MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público, 2007, p. 778. Cf. art. 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público, 2007, p. 779. 69 social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla; e) praticar a tolerância e viver em paz, uns com os outros, como bons vizinhos, e unir as nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais, e a garantir, pela aceitação de princípios e a instituição dos métodos, que a força armada não será usada a não ser no interesse comum; f) empregar um mecanismo internacional para promover o progresso econômico e social de todos os povos; g) manter a paz e a segurança internacionais e, para esse fim, tomar coletivamente, medidas efetivas para evitar ameaças à paz e reprimir os atos de agressão ou outra qualquer ruptura da paz e chegar, por meios pacíficos e de conformidade com os princípios da justiça e do direito internacional, a um ajuste ou solução das controvérsias ou situações que possam levar a uma perturbação da paz; h) desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio da igualdade de direito e de autodeterminação, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal; i) conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião; e j) ser um centro destinado a harmonizar a ação das nações para a consecução desses objetivos comuns”.175 O tratado internacional, do mesmo modo, é fonte formal do Direito Internacional do Meio Ambiente, e, na posição de Mazzuoli,176 é expressão genérica por natureza que designa todo acordo internacional, bi ou multilateral, de especial relevo político, qualquer que seja sua denominação.177 O mesmo autor complementa que: “O termo designa normalmente (mas não exclusivamente) os ajustes solenes concluídos entre Estados e/ou organizações internacionais, cujo objeto, finalidade, número e poderes das partes têm maior importância. (...) Assim, sem embargo de as Constituições brasileiras sempre terem colocado os termos „tratado‟ ao lado de outras expressões, como „acordo‟ e „convenção‟, dando a impressão de que tratados, acordos e convenções designam coisas diversas, a verdade é que atualmente tal opção redacional 178 é tecnicamente redundante e sem qualquer valor prático.” (destaques no original) Inobstante também entender pela irrelevância da denominação, Limiro 179 relaciona como atos internacionais o tratado, a convenção, o acordo, o ajuste ou acordo complementar, o protocolo, o memorando de entendimento, o convênio e o acordo por troca de notas, para dizer que no contexto das mudanças climáticas a 175 176 177 178 179 Cf. preâmbulo e art. 1º da Carta Constitutiva da ONU, assinada em 26 de junho de 1945. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público, 2007, p. 516-517. Cf. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Idem, p. 140 e 141. Nos termos do art. 2º, §1º, “a”, da Convenção de Viena MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público, 2007, p. 140 e 141 Cf. LIMIRO, Danielle. Créditos de Carbono. Protocolo de Kyoto e Projetos de MDL, 2008, p. 31. 70 convenção e o protocolo são as bases da mitigação do problema ambiental global. E conceitua a convenção como acordo multilateral, oriundo de conferência internacional, que cuida de assunto de interesse geral; e o protocolo como ata final de uma conferência internacional ou acordo, bi ou multilateral, menos informal que o acordo complementar e o tratado. Finalmente, os princípios gerais de direito como última fonte formal do Direito Internacional Ambiental, relativamente aos quais se visualiza um quadro bem definido. Um princípio geral de direito, do ponto de vista lógico, “é uma proposição fundamental que dá estrutura e forma a um dado sistema jurídico, isto é, a um certo conjunto de normas que regulam a conduta humana nas suas diversas relações intersubjetivas”.180 Ou ainda, nas palavras de Diniz: “são cânones que não foram ditados, explicitamente, pelo elaborador da norma, mas que estão contidos de forma imanente no ordenamento jurídico (...) não são preceitos de ordem ética, política, sociológica ou técnica, mas elementos componentes do direito. São normas de valor genérico que orientam a compreensão do sistema jurídico, em sua aplicação e integração, estejam ou não positivadas. Não se confundem, ainda, com os brocardos ou máximas, embora sejam, em parte, integrados por estas. Tais parêmias valem apenas como cristalizações históricas dos princípios gerais 181 de direito”. Seu valor genérico possibilita reconhecer o elevado grau de abstração de que se reveste e, associado a outros critérios, permite diferenciá-lo da regra que, a seu lado, constitui a outra espécie de norma jurídica. As diferenças, contudo, não se referem somente ao grau de abstração, “mas também à natureza, à forma e à incidência”, sendo critérios distintivos das duas espécies normativas, além do grau de abstração ou generalidade, o caráter de fundamentalidade, o modo de solução de conflitos e o peso.182 Nesse sentido, ao contrário da regra jurídica, o princípio possui alto grau de generalidade e baixa densidade normativa; constitui a expressão primeira dos 180 181 182 NEVES, Cleuler Barbosa das. O ato administrativo na tutela ambiental do solo rural: uma análise da erosão laminar e do uso do solo na bacia do Ribeirão João Leite, 2006, p. 73. DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro interpretada, 2007, p. 115-143. OLIVEIRA, Umberto Machado de. Princípios de Direito Agrário na Constituição vigente, 2006, p. 86. 71 valores fundamentais, o que possibilita sua aplicação imediata pela interpretação; é dotado de plasticidade ou poliformia, o que possibilita sua multiplicidade de sentidos e, consequentemente, sua amoldação a diferentes situações e épocas; e o seu conflito com outro princípio jurídico resolve-se no plano do valor, isto é, da ponderação dos interesses opostos, o que revela sua dimensão de peso ou importância, na medida em que, no caso concreto, escolhe-se o princípio que prevalece ou sofre menor constrição.183 Apoiado nas lições de Espíndola, Bonavides e Müller, Oliveira184 resume as fases (jusnaturalista, positivista e pós-positivista) pelas quais passou a normatividade do princípio jurídico até ser finalmente reconhecida a sua força positiva. Na fase jusnaturalista, o princípio jurídico era norma universal de bem obrar, com normatividade nula ou, ao menos, de “incerta propriedade praxeológica”. Na positivista, era fonte normativa secundária, vez que deduzido dos textos legais para suprir os vazios normativos, o que fazia reduzidíssima a sua normatividade. E na pós-positivista alcançava, finalmente, a posição de norma jurídica vinculante, vigente e eficaz “para muito além da atividade integratória do Direito”.185 Nesse ínterim, a força positiva traduz-se na possibilidade de utilização do princípio jurídico no controle de constitucionalidade de ato normativo ou administrativo e na interpretação e superação do desuso das regras jurídicas. 186 Nessa altura, Oliveira187 anota ser imprescindível o registro das expressões “jusprivatismo” e “juspublicismo”, pois evidenciam “o ponto nevrálgico da transformação normativa por que passaram os princípios, qual seja, a localização da sua normatividade, visto que foram hauridos dos „Códigos‟ para se instalar nos textos” de algumas Constituições, 183 184 185 186 187 Cf. ALEXY, Robert, Teoría de los Derechos Fundamentales, 1997, p. 83, 89, 90-92; ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 2006, p. 23-112; CANOTILHO, J.J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3. ed., p. 1085 a 1.115; OLIVEIRA, Umberto Machado de. Princípios de Direito Agrário na Constituição vigente, 2006, p. 81-94; ROCHA, Carmém Lúcia Antunes. Princípios constitucionais do processo administrativo no Direito Brasileiro, p. 39. Cf. OLIVEIRA, Umberto Machado de. Princípios de Direito Agrário na Constituição vigente, 2006, p. 8186. Cf. OLIVEIRA, Umberto Machado de. Idem. Cf. NEVES, Cleuler Barbosa das. O ato administrativo na tutela ambiental do solo rural: uma análise da erosão laminar e do uso do solo na bacia do Ribeirão João Leite, 2006, p. 78-79. OLIVEIRA, Umberto Machado de. Princípios de Direito Agrário na Constituição vigente, 2006, p. 84. 72 “como as da Alemanha de 1949 (arts.74, 20º e 24º e 65, 3º), da Suíça de 1957 (arts.24, 4º, 6º e 7º) e da Bulgária (1971) mas foi a partir dela que o tema passou a receber maior atenção dos constituintes (Portugal, 1976, exUnião Soviética, 1977, Espanha, 1978, Chile 1981, China, 1982, etc). Destaque especial, como anota Afonso da Silva (2003, p.45) merece a Constituição portuguesa, ao correlacionar (...) 1. Todos têm direito a um ambiente de vida humana, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender. 2. Incumbe ao Estado por meio de organismos próprios e por apelo a iniciativas populares: a) prevenir e controlar a poluição e os seus efeitos e as formas prejudiciais de erosão; b) ordenar o espaço territorial de forma a construir paisagens biologicamente equilibradas; c) criar e desenvolver reservas e parques naturais e de recreio, bem como classificar e proteger paisagens e sítios, de modo a garantir a conservação da Natureza e a preservação de valores culturais de interesse histórico ou artístico; d) promover o aproveitamento racional dos recursos naturais, salvaguardando a sua capacidade de renovação e a estabilidade ecológica. 3. O cidadão ameaçado ou lesado no direito previsto no n.1, pode pedir, nos termos da lei, a cessação das causas de violação e a respectiva indenização. 4. O Estado deve promover a melhoria progressiva e acelerada 188 da qualidade de vida de todos os portugueses.” Inobstante as regulamentações sobre o meio ambiente natural estivessem, até então, limitadas aos níveis constitucionais domésticos ou nacionais, foi a partir de Estocolmo que ganharam, efetivamente, o caráter de preocupação internacional, funcionando a estrutura político-institucional da ONU, a partir daí, como espaço privilegiado na produção de estratégias discursivas, que serviriam de eixo na definição dos contornos do discurso do desenvolvimento sustentável.189 A Conferência de Estocolmo ou Conferência das Nações Unidas sobre o Homem e o Desenvolvimento,190 realizada entre 5 e 16 de junho de 1972, foi o primeiro evento internacional significativo que abordou a questão ambiental no interior das discussões sobre a necessidade urgente de reorientação do estilo de desenvolvimento predominante. Na ocasião, foram firmados 26 (vinte e seis) “princípios”, dos quais se assinalam os seguintes: “Princípio 1. O homem tem o direito fundamental (...) ao desfrute de condições de vida adequada em um meio cuja qualidade lhe permite levar uma vida digna e gozar de bem-estar e tem a solene obrigação de proteger e melhorar esse meio para as gerações presentes e futuras; Princípio 2. Os recursos naturais da Terra, inclusos o ar, a água, a terra, a flora e a fauna e especialmente as amostras representativas dos 188 189 190 FALCONI, Luiz Carlos. O uso inadequado das áreas de preservação permanente e reserva legal como causa de desapropriação da propriedade imobiliária rural no Brasil, 2005, p. 54. Cf. MACHADO, Vilma de Fátima. A produção do discurso do desenvolvimento sustentável: de Estocolmo à Rio-92.2005, p. 197. United Nations Conference on Man and the Environment, em ingles. 73 ecossistemas naturais, devem ser preservados em benefício das gerações presentes e futuras, mediante uma cuidadosa planificação ou regulamentação segundo seja mais conveniente; (...) Princípio 4. O homem tem a responsabilidade especial de preservar e administrar prudentemente o patrimônio representado pela flora e pela fauna silvestres, bem como pelo seu habitat, que se encontram atualmente em grave perigo em virtude de uma conjugação de fatores adversos. Consequentemente, ao se planejar o desenvolvimento econômico deve atribuir-se uma importância específica à conservação da Natureza, aí incluídas a flora e a fauna silvestres; (...) Princípio 8. O desenvolvimento econômico ou social é indispensável para assegurar ao Homem um ambiente de vida e trabalho favorável e criar na 191 Terra condições favoráveis para melhorar a qualidade de vida.” “(...) Princípio 24. Todos os países, grandes ou pequenos, devem empenhar-se com espírito de cooperação e em pé de igualdade na solução das questões internacionais relativas à proteção e melhoria do meio. É indispensável cooperar mediante acordos multilaterais e bilaterais e por outros meios apropriados, a fim de evitar, eliminar ou reduzir, e controlar eficazmente os efeitos prejudiciais que as atividades que se realizem em qualquer esfera possam acarretar para o meio, levando na devida conta a soberania e os interesses de todos os Estados.” 192 No mesmo ano de 1972, foi realizada a Convenção Relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, que considerou patrimônio natural os monumentos naturais de valor universal, as áreas de valor excepcional ou que constituíssem moradia de animais ou de vegetais ameaçados, e os lugares notáveis de conservação necessária para a preservação da beleza natural, estabelecendo que sua identificação, proteção e conservação eram da responsabilidade dos Estados, a fim de que fosse deixado como legado às gerações futuras.193 Ainda em 1972, o Clube de Roma194 concluiu que: “1. Se as atuais tendências de crescimento da população mundial, industrialização, poluição, produção de alimentos e diminuição de recursos naturais continuarem imutáveis, os limites de crescimento neste planeta serão alcançados algum dia dentro dos próximos cem anos. O resultado mais provável será um declínio súbito e incontrolável, tanto da população quanto da capacidade industrial. 2. É possível modificar estas tendências de crescimento e formar uma 191 192 193 194 FALCONI, Luiz Carlos. O uso inadequado das áreas de preservação permanente e reserva legal como causa de desapropriação da propriedade imobiliária rural no Brasil, 2005, p. 54. LIMIRO, Danielle. Créditos de Carbono. Protocolo de Kyoto e Projetos de MDL, 2008, p. 53. Cf. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, 2003, p. 379-390. “O Clube de Roma é uma organização internacional, cuja missão é agir como um catalisador de mudanças globais, livre de quaisquer interesses políticos, econômicos ou ideológicos. A organização busca analisar os problemas-chaves diante da humanidade. Seus trabalhos, como a publicação, em 1972, do notório “Limits to growth”, possuem significativo impacto no cenário político internacional.” destaca LIMIRO, Danielle. Créditos de Carbono. Protocolo de Kyoto e Projetos de MDL, 2008, p. 60. 74 condição de estabilidade ecológica e econômica que se possa manter até um futuro remoto. O Estado de equilíbrio global poderá ser planejado de tal modo que as necessidades materiais básicas de cada pessoa na Terra sejam satisfeitas, e que cada pessoa tenha igual oportunidade de realizar seu potencial humano individual. 3. Se a população do mundo decidir empenhar-se em obter este segundo resultado, em vez de lutar pelo primeiro, quanto mais cedo ela começar a 195 trabalhar para alcançá-lo, maiores serão suas possibilidades de êxito.” Afinado com a problemática ambiental, Maurice Strong “usou, em 1973, pela primeira vez o conceito de ecodesenvolvimento para caracterizar uma concepção alternativa de política de desenvolvimento”, cujos caminhos indicados por Ignacy Sachs, Philippi Jr. e Rodrigues incluíam a elaboração de um sistema social que garantisse emprego, segurança social e respeito a outras culturas; programas de educação; participação da população envolvida; solidariedade com as gerações futuras; satisfação das necessidades básicas e preservação dos recursos naturais e do meio ambiente.196 Em 1974, a Conferência das Nações Unidas sobre ComércioDesenvolvimento (UNCTAD) e o Programa de Meio Ambiente das Nações Unidas (UNEP) elaboraram a Declaração de Cocoyok que assim destacou: “a) a explosão populacional tem como uma das suas causas a falta de recursos de qualquer tipo; pobreza gera o desequilíbrio geográfico; b) a destruição ambiental na África, Ásia e América Latina é também resultado da pobreza que leva a população carente à superutillização do solo e dos recursos vegetais; c) os países industrializados contribuem para os problemas do subdesenvolvimento por causa do seu nível exagerado de consumo. Não existe somente um mínimo de recursos necessários para o bem-estar do indivíduo; existe também um máximo. Os países industrializados têm que baixar seu consumo e sua participação desproporcional na poluição da biosfera.”197 Em 1975, as posições até então existentes foram superadas no relatório de Dag-Hammarskjöld, que apontou interligação entre abuso de poder e degradação ambiental, na medida em que o sistema de colonização europeia reservou a uma minoria social e aos colonizadores europeus os solos mais aptos à agricultura, enquanto que solos menos apropriados foram esgotados pelas grandes massas de 195 196 197 BRÜSEKE, Franz Josef. O problema do desenvolvimento sustentável, 1994, p. 29 BRÜSEKE, Franz Josef. Idem. No mesmo sentido: LIMIRO, Danielle. Créditos de Carbono. Protocolo de Kyoto e Projetos de MDL, 2008, p. 60. BRÜSEKE, Franz Josef. O problema do desenvolvimento sustentável, 1994, p. 30. 75 população marginalizadas pelo próprio sistema. 198 Em 1979, a Primeira Conferência Mundial sobre o Clima reconheceu a mudança climática como um problema grave e de interesse global, criando o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). No ano de 1980, o Protocolo de Montreal firmou o objetivo de “redução ou eliminação de substâncias perigosas instituindo o Primeiro Fundo Ambiental Global na intenção assistencial aos países em desenvolvimento”.199 Por essa toada, grande parte dos elementos constitutivos do desenvolvimento sustentável foi posta em resposta à questão ambiental, para tornar nomeável e descritível um novo objeto de discurso, em transposição do alcance do discurso primevo do desenvolvimento, ora limitado à questão social desenvolvimento-subdesenvolvimento. Foi então que a Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento Humano da ONU, em 1987, apresentou à comunidade internacional o relatório Brundtland ou Nosso Futuro Comum, 200 que não revelou “as críticas à sociedade industrial que caracterizaram os documentos anteriores sobre o tema”.201 Ao contrário. Demandou “crescimento tanto em países industrializados como em subdesenvolvidos, inclusive ligando a superação da pobreza nestes últimos ao crescimento contínuo dos primeiros”202 e sublinhando uma postura ética de responsabilidade “tanto entre as gerações quanto entre os membros contemporâneos da sociedade atual”.203 Para Comparato204 a injustiça na matéria reside exatamente no fato de que, embora os grandes poluidores no mundo fossem os países desenvolvidos, calculando-se, por exemplo, que “Um americano joga, em média, 19 toneladas de gás carbônico na atmosfera anualmente”, enquanto “Um afegão (...) contribui com 198 199 200 201 202 203 204 Cf. BRÜSEKE, Franz Josef. Idem, p. 31. SANTOS, Nivaldo dos e PLAZA, Charlene Maria C. de Ávila. Certificados de emissões reduzidas e o mecanismo de desenvolvimento limpo (MDL): socialização dos prejuízos e privatização dos lucros, 2009, p. 5. Ou Our Common Future, em inglês. MARQUES, Carla Regina Silva. Mecanismos de Desenvolvimento Limpo: juridicidade do documento de concepção de projetos, 2007, p. 10. MARQUES, Carla Regina Silva. Mecanismos de Desenvolvimento Limpo: juridicidade do documento de concepção de projetos, 2007, p. 10. BRÜSEKE, Franz Josef. O problema do desenvolvimento sustentável, 1994, p. 31. Cf. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, 2003, p. 379-390. 76 modestíssimos 26 quilos de CO2”,205 foram as nações proletárias que sofreram mais intensamente os efeitos da degradação do meio ambiente. No contexto dessa globalização pela qual todos os países foram convidados a lutar,206 é que Brundtland assinalou, pela primeira vez, que “desenvolvimento sustentável é desenvolvimento que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a capacidade de as futuras gerações satisfazerem suas próprias necessidades”.207 A questão central consistiu em reclamar a necessidade de crescimento econômico para combater a pobreza e os problemas ambientais. “O argumentochave foi declarar que a pobreza era tanto ou mais responsável pela degradação ambiental que o padrão de consumo dos ricos”. 208 O cuidado ambiental não era, contudo, o objetivo principal do relatório. Na verdade, era o meio que possibilitaria o desenvolvimento a longo prazo, na medida em que esse não se sustentaria sem os recursos naturais. Assim foi que a responsabilidade ambiental ingressou no âmbito dos valores humanos e dos objetivos desenvolvimentistas da ONU, sem que fosse preciso, para tanto, renunciar ao crescimento econômico. Por essas circunstâncias, o questionamento do desenvolvimento sustentável seguiu curso209 com a sequência de novos eventos e acordos que se sucederam na tentativa de se evitar “um confronto cruel entre direitos humanos e direito ao desenvolvimento”.210 Assim, em 1988, a Organização Meteorológica Mundial (WMO) e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) criaram, conjuntamente, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). O IPCC “é a mais alta autoridade científica do mundo sobre aquecimento global. A entidade reúne centenas de cientistas atmosféricos, oceanógrafos, 205 206 207 208 209 210 FRANÇA, Ronaldo. Fome de ar, água e comida, 2009, p. 139. Cf. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, 2003, p. 379-390. MARQUES, Carla Regina Silva. Mecanismos de Desenvolvimento Limpo: juridicidade do documento de concepção de projetos, 2007, p. 10. YU, Chang Man. Seqüestro florestal de carbono no Brasil – Dimensões políticas, socioeconômicas e ecológicas, 2004, p. 104. Cf. DAMASCENO, Monica. A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, 2007, p. 37-52. SOARES, Guido Fernando Silva. A proteção internacional do meio ambiente, 2003, p. 1-11. 77 especialistas em gelo, economistas, sociólogos e outros especialistas”, 211 com o objetivo de informar sobre os riscos do aumento da temperatura na Terra induzida pelas atividades humanas, seus impactos e as possíveis mitigações, publicando, ao final dos estudos, relatórios de avaliação.212 Após publicação de relatórios pelo IPCC, a ONU reconheceu que o problema ambiental global somente se resolveria “através de ações multinacionais coordenadas, o próximo passo foi firmar compromissos internacionais para essas ações através de um tratado mundial”.213 Em 1990, a ONU, sob recomendação do IPCC, iniciou negociações para adoção de uma Convenção sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC), criando, para tanto, o Comitê Intergovernamental de Negociações para uma Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (INC/FCCC). Naquele propósito, o INC/FCCC preparou a redação da UNFCCC e, em 9 de maio de 1992, adotou-a na sede da ONU em Nova York. Em junho de 1992, a UNFCCC foi aberta a assinaturas na Cúpula da Terra no Rio de Janeiro ou Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (UNCED), também conhecida como ECO-92 ou Rio-92. À sua “ratificação, aceitação, aprovação ou adesão somaram-se 185 países além da União Européia, com entrada em vigor em 21 de março de 1994”,214 comprometendo-se, a partir daí, com seus termos. Nas disposições constantes do seu art. 2º, a UNFCCC firmou o objetivo de “estabilização da concentração de gases de efeito estufa na atmosfera num nível que impeça uma interferência antrópica perigosa no sistema climático”, que deveria ser alcançado “num prazo suficiente que permita aos ecossistemas adaptarem-se naturalmente à mudança do clima”.215 Para alcançar aquele objetivo, o art. 3º da UNFCCC esclareceu que as 211 212 213 214 215 DAMASCENO, Monica. A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, 2007, p. 40. Cf. DAMASCENO, Monica. Idem. SANTOS, Nivaldo dos e PLAZA, Charlene Maria C. de Ávila. Certificados de emissões reduzidas e o mecanismo de desenvolvimento limpo (MDL): socialização dos prejuízos e privatização dos lucros, 2009, p. 6. DAMASCENO, Monica. A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, 2007, p. 40. SANTOS, Nivaldo dos e PLAZA, Charlene Maria C. de Ávila. Certificados de emissões reduzidas e o mecanismo de desenvolvimento limpo (MDL): socialização dos prejuízos e privatização dos lucros, 2009, p. 7. No mesmo sentido: DAMASCENO, Monica. A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, 2007, p. 41-49. MARQUES, Carla Regina Silva. Mecanismos de Desenvolvimento Limpo: juridicidade do documento de concepção de projetos, 2007, p. 11. Cf. art. 2º, da UNFCCC. Disponível em: <http://www.mct.gov.br>. Acesso em 1º mar. 2010. 78 Partes deveriam orientar-se, em suas ações, por 5 (cinco) “princípios”: “1. As Partes devem proteger o sistema climático em benefício das gerações presentes e futuras da humanidade com base na equidade e em conformidade com suas responsabilidades comuns, mas diferenciadas, e respectivas capacidades. Em decorrência, as Partes-países desenvolvidos devem tomar a iniciativa no combate à mudança do clima e a seus efeitos. 2. Devem ser levadas em plena consideração as necessidades específicas e as circunstâncias especiais das Partes-países em desenvolvimento, em especial aqueles particularmente mais vulneráveis aos efeitos negativos da mudança do clima, e das Partes, em especial Partes-países em desenvolvimento, que tenham que assumir encargos proporcionais e anormais sob esta convenção. 3. As Partes devem adotar medidas de precaução para prever, evitar ou minimizar as causas da mudança do clima e mitigar seus efeitos negativos. Quando surgirem ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a falta de plena certeza científica não deve ser usada como razão para postergar essas medidas, levando em conta que as políticas e medidas adotadas para enfrentar a mudança do clima devem ser eficazes em função dos custos, de modo a assegurar benefícios mundiais ao menor custo possível. Para esse fim, essas políticas e medidas devem levar em conta os diferentes contextos socioeconômicos, ser abrangentes, cobrir todas as fontes, sumidouros e reservatórios significativos de gases de efeito estufa e adaptações, e abranger todos os setores econômicos. As Partes interessadas podem realizar esforços, em cooperação, para enfrentar a mudança do clima. 4. As Partes têm o direito ao desenvolvimento sustentável e devem promovê-lo. As políticas e medidas para proteger o sistema climático contra mudanças induzidas pelo homem devem ser adequadas às condições específicas de cada Parte e devem ser integradas aos programas nacionais de desenvolvimento, levando em conta que o desenvolvimento econômico é essencial à adoção de medidas para enfrentar a mudança do clima. 5. As Partes devem cooperar para promover um sistema econômico internacional, favorável e aberto conducente ao crescimento e desenvolvimento econômico sustentáveis de todas as Partes-países em desenvolvimento, possibilitando-lhes, assim, melhor enfrentar os problemas da mudança do clima. As medidas adotadas para combater a mudança do clima, inclusive as unilaterais, na devem constituir meios de discriminação arbitrária ou injustificável ou restrição velada ao comércio internacional.” Esses princípios “representam os pontos básicos pelos quais qualquer ação de luta contra as mudanças climáticas deve ser iniciada”,216 sendo assim considerados ainda que “não sejam aceitos por todos os sistemas jurídicos estatais, bastando que um número suficiente de Estados os consagrem”.217 Daí ser importante conhecê-los. Stéphane Doumblé-Billé observa que o Direito Internacional Ambiental é “alimentado pela formulação de princípios nos instrumentos não obrigatórios, bem 216 217 FRANGETTO, Flavia Witkowski e GAZANI, Flavio Rufino. Viabilização Jurídica do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) no Brasil – O Protocolo de Kyoto e a cooperação internacional, 2002, p. 33. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público, 2007, p. 82-101. 79 como por sua repetição nos textos”218 de convenções internacionais. Essa “necessidade de adaptação da ordem internacional contemporânea às temáticas emergentes no Direito Internacional – de que é exemplo a proteção internacional do meio ambiente – acabou dando causa ao surgimento daquilo que se convencionou chamar de soft law”.219 Nessa sistemática, os princípios caracterizam-se como soft law ou droit vert (direito flexível), expressões utilizadas para designar norma moral, sem status de norma jurídica, cuja finalidade é “fixar metas para futuras ações políticas nas relações internacionais” e “recomendar aos Estados adequarem as normas de seu ordenamento interno”220 aos comandos internacionais nela contidos, sem, contudo, a presença de um elemento coator.221 No contexto da mudança climática, Lima,222 contudo, alerta: “Quando as normas operam em benefício de todos, a tendência é de que cada um acredite que os demais irão observá-las e, então, torna-se racional „pagar na mesma moeda‟. Entretanto, como normas significam restrições, há enormes vantagens para qualquer indivíduo isolado que prefira violá-las especialmente quando os demais as estão acatando. Este é justamente o foco do impasse presente na aplicação do Protocolo de Kyoto: por um lado, não há como agir contra as conseqüências destrutivas do auto-interesse, forçando todos a cooperar; por outro, para alguns, há grandes vantagens em não cooperar exatamente porque os demais assumem comportamentos cooperativos.” De fato, a eficácia de uma soft law é reduzida “quando se trata de uma sociedade habituada a agir somente se pressionada a fazê-lo diante do risco de uma sanção (pena) a sobrevir”.223 De qualquer modo, um tratado internacional é hard law ou droit dur (direito rígido). Portanto, seu oposto. 218 219 220 221 222 223 DOUMBLÉ-BILLÉ, Stéphane apud FRANGETTO, Flavia Witkowski e GAZANI, Flavio Rufino. Idem, p. 34. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público, 2007, p. 780. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Idem. FRANGETTO, Flavia Witkowski e GAZANI, Flavio Rufino. Viabilização Jurídica do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) no Brasil – O Protocolo de Kyoto e a cooperação internacional, 2002, p. 34. No mesmo sentido: DAMASCENO, Monica. A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, 2007, p. 37-52. MACHADO, Vilma de Fátima. A produção do discurso do desenvolvimento sustentável: de Estocolmo à Rio-92.2005, p. 197. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de Direito Internacional Público, 2007, p. 780. SOARES, Guido Fernando Silva. A proteção internacional do meio ambiente, 2003, p. 19. LIMA, Ricardo Barbosa de e RUA, Maria das Graças. Cotidiano, racionalidade e sereias: o “dilema do prisioneiro” como metáfora da questão ambiental. In: Meio Ambiente, Desenvolvimento e Sociedade. Brasília: O Departamento, 1986, p. 78. FRANGETTO, Flavia Witkowski e GAZANI, Flavio Rufino. Viabilização Jurídica do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) no Brasil – O Protocolo de Kyoto e a cooperação internacional, 2002, p. 34. 80 Dessa forma, se a partir de Estocolmo procedeu-se à reavaliação das fontes do Direito Internacional Ambiental através de declarações de diretivas e princípios (soft law); com a UNFCCC esses mesmos princípios, agora adaptados às mudanças climáticas, passaram a integrar o sistema jurídico climático (hard law). Conquanto seja recorrente, no Direito Internacional do Meio Ambiente, alguns tratados internacionais apresentarem denominações particulares, sendo a “convenção-quadro” uma delas, a “UNFCCC é um tratado; logo dotado de cogência”.224 Isso significa dizer que aqueles 5 (cinco) princípios da UNFCCC são coincidentes com os princípios gerais do Direito Internacional Ambiental (hard law) da cooperação entre os povos; das responsabilidades comuns, porém diferenciadas; do poluidor pagador; da precaução e prevenção; da participação e informação e do desenvolvimento sustentável. A cooperação entre os povos orienta o livre intercâmbio de experiências científicas, tecnológicas e financeiras entre os países, onde as responsabilidades são comuns, porém diferenciadas, na medida da poluição causada, por uma questão de equidade. A cooperação com responsabilidades comuns, mas diferenciadas, converge na lição de Hart sobre a integração das revoluções da “base da pirâmide” e das “tecnologias limpas” ao modelo de produção: “Esses dois movimentos, igualmente cruciais para a busca da sustentabilidade, caminharam até agora de maneira isolada. O desenvolvimento de tecnologias que produzem menos impactos no meio ambiente esteve até agora muito voltado para o topo da pirâmide. (...) o movimento de negócios para a base da pirâmide ganhou corpo sem muita preocupação com o meio ambiente, adotando o que chamo de „estratégia de empurra‟. Ou seja, as empresas pegaram os produtos que possuíam, estudaram como poderiam oferecê-los em embalagens menores ou mais baratas e estenderam os canais de distribuição para que eles chegassem até as classes mais pobres. (...) Para que uma estratégia de base de pirâmide seja bem sucedida ao longo prazo, ela deve ter uma abrangência maior. O que a empresa deve considerar, no entanto, é o impacto que aquele produto provocou na comunidade. (...) Existem riscos nas duas revoluções (...) No caso das tecnologias limpas, o risco é termos mais uma bolha se não conseguirmos encontrar boas maneiras de comercializá-las. Já no movimento da base da pirâmide o risco é de colapso ambiental. Afinal, se o único objetivo das empresas continuar a ser gerar mais atividade econômica e consumo na parte inferior da pirâmide de renda, assim como fizemos no topo, iremos ainda mais rápido ladeira abaixo em termos 224 FRANGETTO, Flavia Witkowski e GAZANI, Flavio Rufino. Idem, p. 35. 81 ambientais e veremos o fim do jogo. (...) A saída é promover uma grande convergência desses dois movimentos. Trata-se de um desafio colossal, mas também de uma oportunidade sem precedentes para as empresas. Elas precisam entender que essas tecnologias limpas devem ser desenvolvidas e testadas, de maneira ambientalmente correta, na base da pirâmide. (...) trata-se do melhor ambiente para tirar do papel essas tecnologias. (...) Trata-se de uma fase na qual é preciso enxergar os pobres 225 não só como consumidores mas também como parceiros de negócios”. E é no contexto dos negócios que os custos sociais externos do processo produtivo superam, em regra, o valor social dos benefícios, dando causa àquilo que se convencionou chamar externalidades negativas. “Quando as externalidades se encontram presentes, o preço de um bem não reflete necessariamente seu valor social, (...) poderia dizer que há um enriquecimento do produto à custa de um efeito negativo suportado pela sociedade”,226 danos não compensáveis ou uso não pago do ambiente. Pelo poluidor pagador, preconiza-se a internalização daqueles custos, pela contabilização e assunção dos mesmos na elaboração dos custos da produção, ou seja, visa imputar ao poluidor o custo da poluição gerada sobre bens, pessoas e toda natureza, em uma abrangência ampla.227 Essa sistemática não visa suportar a poluição mediante o pagamento de um preço, tampouco somente compensar os danos já causados. É uma medida de controle que também objetiva evitar mais danos ao meio ambiente e ao clima na Terra, consoante o princípio da precaução e prevenção, que, de igual modo, busca evitar ou minimizar os efeitos nocivos da mudança climática, pela utilização parcimoniosa dos recursos naturais, que devem ser preservados em prol das gerações presentes e futuras. Para tanto, a melhor maneira é uma planificação e um ordenamento, 228 que garantam aos cidadãos interessados o acesso às informações relativas à questão ambiental de que disponham os próprios Estados e, consequentemente, a sua participação na tomada de decisões sobre a problemática em torno do meio 225 226 227 228 HART, Stuart L. apud HERZOG, Ana Luiza. Só a base da pirâmide salva, 2008, p. 98-100. SANTOS, Nivaldo dos e PLAZA, Charlene Maria C. de Ávila. Certificados de emissões reduzidas e o mecanismo de desenvolvimento limpo (MDL): socialização dos prejuízos e privatização dos lucros, 2009, p. 17. Cf. SANTOS, Nivaldo dos e PLAZA, Charlene Maria C. de Ávila. Idem, p. 18. No mesmo sentido: MILARÉ, E. Princípios fundamentais do Direito do Ambiente. In: Revista de direito ambiental, out./dez. 1998, p. 53-68. Cf. princípio 2 da Declaração de Estocolmo e art. 3º, §3º da UNFCCC. Disponível em: <http://www.mct.gov.br>. Acesso em: 1º mar 2010. 82 ambiente. Dessa forma, a cooperação de todos os povos, com responsabilidades comuns, mas diferenciadas, na assunção, como poluidor pagador, dos danos que causaram e na precaução e prevenção de novos danos, mediante acesso às informações que detêm os Estados, pode garantir a participação dos cidadãos interessados na promoção do desenvolvimento sustentável. “O consenso geral que ganhou esta proposta significou, daí em diante, a clara hegemonia da concepção do ambientalismo moderado no terreno da discussão ambiental”229 e do desenvolvimento sustentável. Antes disso, correntes ambientalistas enfrentaram-se no debate sobre as causas da crise ambiental e suas possíveis soluções, diferenciando-se os dicursos conforme a “concepção ética sobre a relação homem-natureza.”230 As correntes que privilegiam a natureza são denominadas ecocentristas, distinguindo-se, dentro da sua base, as linhas dos ecologistas profundos ou radicais e dos ecologistas tout court ou verdes. Os ecologistas radicais centram suas críticas na ética antropocêntrica, que privilegia o homem em detrimento da natureza, e, com apoio na “bioética baseada no igualitarismo biosférico e no respeito à vida em todas as suas formas”, propõem intervenções radicais na coisa pública, por exemplo, ao se oporem ao uso humano dos recursos naturais e sugerirem uma significativa diminuição da população humana em todo o mundo. Os ecologistas verdes, por seu turno, deitam críticas ao modelo de crescimento econômico da sociedade industrial, que, produtivista e consumista em massa, desconsidera a esgotabilidade ou o tempo necessário à renovação dos recursos naturais. Depositam as soluções nas energias e tecnologias limpas aliadas ao controle populacional. Em suma, essas duas linhas se diferenciam por admitir ou não o uso humano da natureza: os ecologistas radicais centram-se mais na ética individual e os verdes nas políticas ecológicas; e se assemelham por compartilharem a crítica à economia industrial. 229 230 YU, Chang Man. Seqüestro florestal de carbono no Brasil – Dimensões políticas, socioeconômicas e ecológicas, 2004, p. 105. YU, Chang Man. Idem. 83 As correntes que, por sua vez, privilegiam o homem são denominadas antropocentristas. Na base antropocentrista, distinguem-se os críticos e os tecnocentristas. Os antropocentristas críticos consideram que os problemas ambientais decorrem “da ordem econômica e social dominante, e que as soluções supõem mudanças que questionam sua estrutura e lógica, colocando como fim a satisfação das necessidades da maioria”,231 identificando-se, ainda, nessa linha os ecologistas sociais, os marxistas e os ecodesenvolvimentistas. Os ecologistas radicais ou ecoanarquistas colocam a natureza como modelo ideal, em que a interdependência das espécies significa um igualitarismo entre as mesmas, que questiona toda e qualquer forma de dominação. Assim, propõem um modelo de comunidade autogestionada, sem a presença do Estado, baseada na cooperação, produtividade pequena, tecnologia adequada e racionalidade ecológica.232 Por sua vez, os marxistas, que relacionam a crise ambiental com o sistema capitalista de produção, privatizador de lucros e socializador de perdas. Para essa linha, a solução demanda sair do capitalismo para uma sociedade que produza com a lógica da gestão social dos meios de produção, responsabilidade ambiental e satisfação da maioria.233 Por último, os ecodesenvolvimentistas, que se opõem ao modelo de desenvolvimento imposto pelos países centrais aos periféricos, caracterizado pela inobservância das particularidades culturais e ambientais locais, bem assim pelo desrespeito ao direito de autodeterminação. A solução que propõem consiste num modelo alternativo de desenvolvimento para os países pobres: autocentrado, em critérios definidos por esses próprios países, e autosustentado, por recursos e tecnologias apropriadas às particularidades locais. Yu, então, as resume: “Vê-se que as correntes antropocentristas críticas têm em comum a crítica social ao sistema vigente e a identificação com os interesses da maioria pobre, mas se diferenciam na extensão da crítica e suas soluções, 231 232 233 YU, Chang Man. Seqüestro florestal de carbono no Brasil – Dimensões políticas, socioeconômicas e ecológicas, 2004, p. 108. Cf. YU, Chang Man. Idem, p. 110. Cf. YU, Chang Man. Idem, p. 111. 84 traduzindo-se em ações diferentes. Os ecodesenvolvimentistas, ainda que tenham um horizonte ideológico vasto, concretamente promovem projetos de desenvolvimento local ou regional, desenhados segundo sua concepção, preocupando-se, principalmente, em articular-se com as comunidades locais. Os anarquistas e marxistas, que são concepções que, desde o século XIX, vêm lutando por alternativas ao capitalismo, têm a questão ambiental contemporânea como um aspecto do sistema, cuja solução requer a superação deste para outro tipo de sociedade. Isso quer dizer que, guardadas as especificidades entre as duas correntes, o ambiental fica inserido no seu programa geral de ação ideológica, social e política, que, em função do tamanho desafio, é de longo fôlego. A diferença prática que pode aparecer mais claramente é que os ecologistas sociais orientam sua militância em criar comunidades ecoanarquistas, ou estimular esse caráter nos projetos concretos de desenvolvimento, enquanto os marxistas orientam sua luta em integrar a causa ambiental na luta de classes, entendida como forma de questionamento mais profundo do sistema”.234 Já os antropocentristas tecnocentristas, distinguem-se em cornucopianos e ambientalistas moderados. Em relação aos cornucopianos, Yu explica que “A cornucópia é um vaso com forma de corno retorcido, cheio de frutas e flores, que representa a abundância. 'Cornucopianos', porque acreditam na capacidade humana de gerar riqueza infinita, vencendo todos os limites”.235 Nesse sentido, negam que exista crise ambiental global, opondo-se a qualquer intervenção estatal no setor. Finalmente, os ambientalistas moderados, que reconhecem sinais de esgotabilidade de alguns recursos naturais por culpa do mau uso, entendido como as próprias imperfeições do mercado em identificar e administrar a escassez ou em cobrar preços inadequados, o que mantém as externalidades negativas afastadas do cálculo do custo monetário do produto. Para tanto, sugerem a internalização das externalidades por meio da aplicação de multas, por exemplo, e apostam em possibilidades técnicas para a solução dos problemas ambientais, desde que fomentadas pelo Estado e propagadas entre os países por organismos internacionais. Assim, os cornucopianos e os ambientalistas moderados assemelham-se na medida em que propõem ajustes, sem que para isso ocorram mudanças sociais mais profundas; diferenciando-se no tocante à confiança depositada na tecnologia: os cornucopianos são mais confiantes, enquanto os ambientalistas moderados 234 235 Cf. YU, Chang Man. Seqüestro florestal de carbono no Brasil – Dimensões políticas, socioeconômicas e ecológicas, 2004, p. 111. YU, Chang Man. Idem, p. 107. 85 entendem pela intervenção do Estado no incentivo das tecnologias e correção das falhas de mercado. E, de volta ao panorama político geral, cabe observar que a aceitação da expressão desenvolvimento sustentável não significa a existência de uma concepção única acerca do que consiste ou de como instrumentá-lo, mas tão somente supõe aquiescer com a definição de Brundtland. Conceitualmente, há consenso entre as correntes ambientalistas sobre suas dimensões econômica, ecológica e social, que deve, cada uma, alcançar a sustentabilidade correspondente, conforme ilustra a Figura 7. Figura 7 As principais correntes ambientalistas sobre o desenvolvimento sustentável Fonte: YU, Chang Man. Seqüestro florestal de carbono no Brasil – Dimensões políticas, socioeconômicas e ecológicas, 2004, p. 114. O desacordo reside, no entanto, nas interpretações sobre como integrar essas dimensões da sustentabilidade, sendo razoável a que as contempla de modo hierarquizado. As razões são que, primeiro, a ideia de equilíbrio é imprecisa, na medida em que não é possível definir um equilíbrio genérico, pois a cada situação corresponde uma forma de combiná-las, sendo a escolha política. Segundo: a hierarquização de uma dimensão subordina a ela as demais, otimizando-a. Nesse diapasão, cabe observar que a política internacional ambiental 86 seguiu pelo eixo do ambientalismo moderado, uma vez que os ambientalistas moderados inseriram-se num projeto do desenvolvimento sustentável “em que a dimensão ecológica é atendida naquilo que pode afetar a economia (sustentabilidade ecológica „ponte‟ para a econômica), e, a social, na medida em que a pobreza pode afetar os recursos naturais (sustentabilidade social „ponte‟ para a ecológica)”.236 Nos dizeres de Deniz são, então, pressupostos básicos do desenvolvimento sustentável os seguintes: “I) Pressuposto cultural: a cultura local deve ser protegida sob pena de haver desagregação e um processo de emigração proveniente de um choque no padrão cultural moldado durante anos pela história da comunidade. Além disso, é sob a ótica da educação que nasce a conscientização ambiental. II) Pressuposto econômico: há forte interação entre o pressuposto econômico e o ecológico por ser a degradação ambiental uma consequência de um sistema econômico mal gerido. Para se alcançar o pressuposto econômico, necessário se faz uma valoração dos recursos naturais, a fim de que haja maior incorporação do valor do bem natural no processo de produção. III) Pressuposto ecológico: em relação a este, mister se faz a existência de uso dos recursos para propósitos válidos, como por exemplo, limitação no consumo de combustíveis e reciclagem de energia e recursos. IV) Pressuposto geográfico: trata-se de organização na estrutura rural e urbana com o fito de distribuição territorial equilibrada no tocante aos assentamentos humanos e às atividades econômicas. Ocorre que uma exploração demográfica pode ocasionar situações que contribuem para a degradação ambiental, haja vista que a má distribuição de renda, ausência de assistências básicas eficientes como educação, saúde, moradia e saneamento básico, transporte deficitário e outras mais, são fatos geradores de ações que seguem na contramão do caminho ao desenvolvimento sustentável. V) Pressuposto social: busca incessante pela equidade social, partindo-se do entendimento de que na sociedade em que os mais pobres não estão tão distantes dos mais ricos, ou seja, onde a distribuição de renda é realizada sem discrepâncias que saltam aos olhos, a exploração ambiental é reduzida, pois há maior uniformidade sobre os recursos naturais. VI) Pressuposto educacional: educação para o grande público utilizando todos os meios disponíveis para a disseminação das informações, fazendo chegar ao alcance geral a visão da crise ambiental e formulando novas posturas e atitudes compatíveis com a sustentabilidade. Em conjunto com as ações para o grande público é necessário apresentar currículos, programas e projetos para as escolas de ensino fundamental e médio, promover ações que demonstrem como se pode chegar ao Desenvolvimento Sustentável por meio de compartilhamento e atitudes coletivas e individuais. VII) Pressuposto tecnológico: a tecnologia se tornou indispensável ao bem estar dos indivíduos. No entanto, há que se observar a forma como ela é empregada nos sistemas produtivos, pois é necessário que haja um estudo 236 YU, Chang Man. Seqüestro florestal de carbono no Brasil – Dimensões políticas, socioeconômicas e ecológicas, 2004, p. 113. 87 de impacto, intervenção e adaptação entre a alternativa tecnológica eleita e o meio ambiente em que será implantada. Assim, elencados os sete principais pressupostos para se alcançar o Desenvolvimento Sustentável, destaca-se que é de suma importância que haja uma simbiose entre os mesmos, a fim de que cada elemento se identifique com o outro, pois são, indiscutivelmente, peças integrantes de um quebra-cabeças, que ao ser montado, apontará para a solução mais 237 almejada para o homem: qualidade de vida”. (destaquei) Por essa interpretação, operou-se a eleição de um paradigma transdisciplinar, embasado em “uma visão denominada holística (do grego Holos – todo)”, que ensejou “um alargamento da visão antropocêntrica clássica do ambiente”, acentuando a responsabilidade do homem com a natureza e “fazendo surgir uma solidariedade de interesses entre o homem e a comunidade biótica de que faz parte”.238 “Direito e dever como contrapartidas inquestionáveis”.239 Para projetos concretos de desenvolvimento sustentável seriam necessários, no entanto, instrumentos de gestão que atuassem sobre as forças de mercado, alterando os preços e condições de sua operação, a fim de que os agentes econômicos, voluntariamente, internalizassem as externalidades da sua produção. É que a UNFCCC, na qualidade de convenção-quadro, compreende “normas que surgem para aproveitar o momento político propício para a adoção de convenções internacionais complexas, com muitas partes e tecnicidades”,240 deixando as negociações sobre os instrumentos a serem adotados, com vistas à sua própria regulamentação, para um momento posterior à sua entrada em vigor. Dessa forma, inobstante a Convenção-Quadro abrigasse o compromisso de estabilização das concentrações de GEE na atmosfera, não foi definido em seu bojo como cumpri-lo. A Conferência das Partes,241 em reunião realizada no ano de 1997 na cidade de Kyoto (Japão), aprovou o Protocolo de Kyoto, que, adicionalmente à UNFCCC, estabeleceu um cronograma de limitações quantitativas para as metas de 237 238 239 240 241 DENIZ, Leon. Pressupostos para o desenvolvimento sustentável ideal, 2010, p. 20. SANTOS, Nivaldo dos e LIMA, Rosa Maria. Transdisciplinariedade e o direito ambiental, 2009, p. 8. MILARÉ, E. Direito do ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário, 2004, p. 148. DAMASCENO, Monica. A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, 2007, p. 41 “Conferência das Partes é o corpo supremo da Convenção que se reúne anualmente para a definição das resoluções. As negociações detalhadas são realizadas nos corpos subsidiados (SBSTA – Subsidiary Body for Scientific and Technical Advise e SBI – Subsidiary Body for Implementation), que se reúnem duas vezes ao ano, com participação de todas as partes.” YU, Chang Man. Sequestro florestal de carbono no Brasil. Dimensões políticas, socioeconômicas e ecológicas, 2004, p. 26 88 redução e limitação da emissão de GEE outrora assumidas: 242 média de 5,2% abaixo dos níveis de 1990, no período de 2008-2012, para os países do Anexo I.243 As Partes-Anexo I incluem as economias desenvolvidas ou em transição. Em suma, as seguintes: Alemanha, Austrália, Áustria, Belarus, Bélgica, Bulgária, Canadá, Comunidade Europeia, Croácia, Dinamarca, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estados Unidos da América, Estônia, Federação Russa, Finlândia, França, Grécia, Hungria, Irlanda, Islândia, Itália, Japão, Letônia, Liechtenstein, Lituânia, Luxemburgo, Mônaco, Noruega, Nova Zelândia, Países Baixos, Polônia, Portugal, Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, República Tcheca, Romênia, Suécia, Suíça, Turquia, Ucrânia.244 Os demais países signatários do Protocolo de Kyoto, em geral nações em desenvolvimento, são referidos, por exclusão, como Partes Não-Anexo I, pois não possuem metas de redução de GEE para o mesmo período (2008-2012), como o Brasil, a China, a Índia e o México.245 Nesses países, esclarece Poppe, “as reduções de emissões são consideradas em projetos ou programas individuais”.246 Para se ter ideia da redução proposta, naquele ano de 1990 os países do Anexo I “emitiram 3,87 bilhões tC (e o resto do mundo 2,22 bilhões tC), o que significaria uma redução de 200 milhões tC/ano, e um total de 1 bilhão tC durante os cinco anos do primeiro período de compromisso”.247 Com vistas ao alcance da meta, o Protocolo de Kyoto reconheceu que a 242 243 244 245 246 247 Cf. art. 3º, § 7º do Protocolo de Kyoto. Já em dezembro/2009, durante a COP15 realizada na cidade de Copenhague (Dinamarca), 75 (setenta e cinco) países, responsáveis por 80% (oitenta por cento) das emissões globais de uso de energia, firmaram o compromisso de redução ou contenção da emissão de GEE para alcançar a meta de limitar em 2ºC (dois graus Celsius) o aumento da temperatura média do planeta, com a promessa de retomar o assunto em novas rodadas de negociações, de 29 de novembro a 10 de dezembro/2010, na Conferência do Clima no México. BOER, Yvo. Países se comprometem a reduzir emissão de gases do efeito estufa. Disponível em: <http://www.bemparana.com.br/index.php?n=139845&t=paises-se-comprometem-a-reduzir-emissao-degases-do-efeito-estufa> Acesso em: 1º abr 2010. PRESSE, France. 75 países fixaram meta de emissão de gasesestufa para 2020. Disponível em: <http://g1.globo.com/Noticias/Ciencia/0,,MUL1552132-5603,00PAISES+FIXARAM+META+DE+EMISSAO+DE+GASESESTUFA+PARA+DIZ+ONU.html> Acesso em: 1º abr. 2010. Cf. LIMIRO, Danielle. Créditos de Carbono. Protocolo de Kyoto e Projetos de MDL, 2008, p. 44. YU, Chang Man. Sequestro florestal de carbono no Brasil. Dimensões políticas, socioeconômicas e ecológicas, 2004, p. 26. Cf. LIMIRO, Danielle. Créditos de Carbono. Protocolo de Kyoto e Projetos de MDL, 2008, p. 44. YU, Chang Man. Sequestro florestal de carbono no Brasil. Dimensões políticas, socioeconômicas e ecológicas, 2004, p. 26. POPPE, Marcelo Khaled. Manual de capacitação. Mudança Climática e Projetos de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, 2008, p. 48. YU, Chang Man. Sequestro florestal de carbono no Brasil. Dimensões políticas, socioeconômicas e ecológicas, 2004, p. 26. 89 redução das emissões de GEE diretamente na fonte, por meio de aprimoramento tecnológico, e a remoção de emissões já ocorridas constituíam formas eficazes de mitigação do problema da mudança do clima. Nesse contexto, “sob a égide de princípios econômicos como custo efetividade e regulamentação baseada em incentivos”,248 o Protocolo previu mecanismos, “às vezes ditos de flexibilização”249 ou de gestão financeira de mercado, que permitissem “a redução das emissões e/ou o aumento da remoção” 250 de GEE por suas Partes signatárias. Esses mecanismos de flexibilização, conclui Gazoni, “consistem em arranjos técnicos operacionais para utilização de países, ou empresas situadas nestes países, que oferecem facilidades para que as Partes possam atingir as metas”251 de redução ou limitação das emissões de GEE. São da ordem de três os mecanismos de flexibilização previstos no Protocolo de Kyoto: implementação conjunta (Joint Implementation), comércio de emissões (Internacional Emissions Trade) e mecanismo de desenvolvimento limpo (MDL). A implementação conjunta é definida no art. 6º do Protocolo como a “possibilidade de um país do Anexo I receber unidade de emissão reduzida quando ajuda a desenvolver projetos que provoquem redução de emissões líquidas em outros países também do Anexo I, de forma a suplementar as ações domésticas”, 252 permitindo, então, às Partes Anexo I a implementação de projetos conjuntos. 253 Por sua vez, o comércio de emissões, com previsão no art. 17, consiste na comercialização, entre os países do Anexo I, daquelas unidades de emissão evitada ou quotas de emissão. E o MDL, tratado no art. 12 do Protocolo de Kyoto e regulamentado pelo acordo de Marrakesh (COP7, 2001, Marrocos), constitui atividades de projetos de redução das emissões ou remoção de GEE exclusivamente nos territórios das Partes Não-Anexo I, permitindo às Partes Anexo I a compra das unidades de 248 249 250 251 252 253 GAZONI, Ana Carolina. O Protocolo de Kyoto e o estabelecimento de metas de redução de GG, 2007, p. 58. POPPE, Marcelo Khaled. Manual de capacitação. Mudança Climática e Projetos de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, 2008, p. 48. LIMIRO, Danielle. Créditos de Carbono. Protocolo de Kyoto e Projetos de MDL, 2008, p. 63. GAZONI, Ana Carolina. O Protocolo de Kyoto e o estabelecimento de metas de redução de GG, 2007, p. 58. GAZONI, Ana Carolina. O Protocolo de Kyoto e o estabelecimento de metas de redução de GG, 2007, p. 59. COSTA, Caroline Jácome e MEIRELLES, Maria Lucia. Perspectivas de projetos florestais no Cerrado para obtenção de créditos de carbono, 2008, p. 382. 90 redução evitada provenientes desses projetos. Sobre a lógica do MDL, Poppe explica que: “sob a ótica do empresário e de governos dos países do Anexo 1 que negociam essas Reduções Certificadas de Emissões (RCE), essa é uma opção financeiramente mais atraente do que as alternativas de efetuar ele próprio a redução de emissões (...) ou pagar uma eventual multa prevista pelos órgãos competentes de seu país ou região (como ocorre no mercado 254 do bloco europeu)”. Essa constatação conduziu, inclusive, Santos e Plaza à conclusão de que, definitivamente, “o MDL não é instrumento de efetivação do princípio do poluidor pagador, porque a finalidade precípua do MDL é comprar o direito de poluir, utilizando a exegese literal do PPP (princípio do poluidor pagador). Por uma análise bem remota, se o MDL fosse um instrumento do PPP, terse-ia o seguinte: .Responsabilização pura e simples dos países do Anexo I por todos os desastres ambientais e sociais que dele decorrem oriundos dos GEE lançados ao longo dos anos, a partir de 1990. .Impedimento de utilização das matrizes energéticas que sejam responsáveis pela emissão de CO2, como a queima de combustíveis fósseis, atuando de forma a exigir a substituição das matrizes existentes por outras que sejam limpas. .Compensação aos países que ao longo dos anos, tal como o Brasil, se prestam para manter um mínimo de sustentabilidade no clima do planeta, 255 sem nenhuma recompensa ofertada”. Tal exegese não coaduna, contudo, com o preceito do poluidor pagador. Por esse princípio, quem poluiu arca com os danos, e não quem pagou pode poluir. “O sintagma nominal „poluidor pagador‟ é diferente de „pagador poluidor‟”, 256 sem margens, portanto, a ambiguidades ou equívocos no entendimento do princípio. Destarte, contribuíram para o problema ambiental da mudança climática todos os países, embora de forma e em intensidades diferenciadas. Além do que, um processo de substituição de fontes energéticas, de matrizes sujas para limpas, demanda tempo e aprimoramento tecnológico, além de não garantir a eliminação das emissões de CO2. 254 255 256 POPPE, Marcelo Khaled. Manual de capacitação. Mudança Climática e Projetos de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, 2008, p. 47. SANTOS, Nivaldo dos e PLAZA, Charlene Maria C. de Ávila. Certificados de emissões reduzidas e o mecanismo de desenvolvimento limpo (MDL): socialização dos prejuízos e privatização dos lucros, 2009, p. 18. LIMIRO, Danielle. Créditos de Carbono. Protocolo de Kyoto e Projetos de MDL, 2008, p. 57. 91 Por exemplo: os automóveis elétricos transferem as emissões de GEE dos escapamentos para as chaminés das usinas. Em outras palavras, resume Didonê: “as emissões de dióxido de carbono pelo carburador inexistem nos carros elétricos, e, no entanto, eles só poderão circular porque recebem eletricidade produzida em muitos países por usinas movidas a combustível fóssil. De nada adianta usar um automóvel elétrico na China, por exemplo, se as usinas geradoras são alimentadas por carvão. Estimativas americanas indicam que, se eventualmente 250.000 carros elétricos fossem plugados para recarga ao mesmo tempo em um início de noite, seria necessário erguer outras 160 usinas de energia nos Estados Unidos apenas para alimentá-los. (...) Há outro alerta no estudo: no melhor dos cenários, apenas no ano de 2030 esses veículos produzirão impacto real na diminuição das emissões, quando houver frota maior dessa família automobilística nas ruas e estradas”.257 Nessa perspectiva, o projeto de MDL interessa ao empresário de um país Não-Anexo I, porque cada tonelada de CO2 equivalente, que as atividades do projeto por ele desenvolvido deixarem de emitir ou removerem da atmosfera, equivale a 1 Redução Certificada de Emissão (RCE) 258 passível de comercialização; representando os valores advindos de sua venda recurso adicional para o aprimoramento de tecnologias voltadas à redução das emissões de GEE e para a promoção da sustentabilidade de sua empresa. Dessa forma, o MDL tem as funções básicas de auxiliar os países Anexo I no cumprimento de suas metas de redução de emissões, na medida em que a RCE pode por eles ser adquirida; bem assim de promover o desenvolvimento sustentável nos países Não-Anexo I, anfitriões dos projetos, pois a RCE por estes pode ser guardada, comercializada ou utilizada diretamente para cumprir as metas futuras de redução de emissão ou remoção de GEE. 259 Para tanto, a implantação de um projeto de MDL demanda obediência aos requisitos de elegibilidade, entendidos como a presença de contribuição para o desenvolvimento sustentável do país anfitrião; benefícios reais, mensuráveis e de longo prazo, relacionados com a mitigação do clima; adicionalidade; e participação 257 258 259 Cf. DIDONÊ, Débora. Carros elétricos. Eles vão acelerar ou frear as mudanças climáticas?, 2009, p. 230231. Cf. art. 1º, “b”, da Decisão 17/CP.7 que, adotada durante a COP7 (2001, Marrocos), dispõe sobre as modalidades e os procedimentos para um MDL. Cf. LOPES, Ignez Vidigal (Coord.). O Mecanismo de Desenvolvimento Limpo – MDL: guia de orientação, 2002, p. 18. 92 voluntária.260 A avaliação da contribuição para o desenvolvimento sustentável observa o quanto e como o MDL contribui,261 no local da implantação, para a distribuição de renda; sustentabilidade ambiental; desenvolvimento das condições de trabalho e geração líquida de emprego; capacitação e desenvolvimento tecnológico; integração regional e articulação com outros setores.262 A qualidade e extensão do benefício ambiental, social e de desenvolvimento proporcionada pelo projeto, dependem se a natureza da atividade por ele realizada é de Pequena Escala ou de Uso da Terra, Mudança do Uso da Terra e Florestas (Land Use, Land Use Change and Forestry – LULUCF). São tipos de atividades de projetos de MDL de Pequena Escala as que: “Removam gases de efeito estufa em quantidade inferior a dezesseis quilotoneladas de CO2 por ano e que sejam desenvolvidas ou implementadas por comunidade ou indivíduos de baixa renda; produzam energia renovável com capacidade máxima equivalente a até 15 megawatts ou uma equivalência adequada; reduzam o consumo de energia do lado da oferta e/ou da demanda, e melhore a eficiência energética até o limite máximo de produção de sessenta gigawatt/hora por ano ou uma equivalência adequada ou reduzam emissões menores ou equivalentes a sessenta quilotoneladas de equivalentes de CO2 por ano.”263 Por sua vez, as atividades de Uso da Terra, Mudança do Uso da Terra e Florestas (LULUCF) incluem apenas o florestamento (ou aflorestamento) e o reflorestamento. O florestamento (ou aflorestamento) consiste no plantio de árvores em terras onde elas não existiram previamente; enquanto o reflorestamento compreende o plantio de árvores em áreas onde elas existiram e foram derrubadas. Dessa forma, benefícios ambientais para o desenvolvimento sustentável 260 261 262 263 Cf. FRANGETTO, Flavia Witkowski e GAZANI, Flavio Rufino. Viabilização Jurídica do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) no Brasil – Protocolo de Kyoto e a cooperação internacional, 2002, p. 60. No mesmo sentido: LIMIRO, Danielle. Créditos de carbono. Protocolo de Kyoto e Projetos de MDL, 2008, p. 69-70; LOPES, Ignez Vidigal. O Mecanismo de Desenvolvimento Limpo – MDL: guia de orientação, 2002, p. 23. FERNANDES, Lilian Theodoro. O Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, 2007, p. 83. POPPE, Marcelo Khaled. Manual de capacitação. Mudança Climática e Projetos de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, 2008, p. 48. Cf. MOTTA, Ronaldo Seroa da (et. al.). O Mecanismo de Desenvolvimento Limpo e o financiamento do desenvolvimento sustentável no Brasil, 2000, p. 2. Cf. POPPE, Marcelo Khaled. Manual de capacitação. Mudança Climática e Projetos de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, 2008, p. 83. LIMIRO, Danielle. Créditos de carbono. Protocolo de Kyoto e Projetos de MDL, 2008, p. 68. 93 associados a potenciais projetos de MDL podem compreender, a depender da atividade eleita, a qualidade do ar e da água; a disponibilidade de água; a conservação do solo; o lixo sólido; o ruído; a prevenção/proteção contra enchentes e a proteção da biodiversidade, conforme lista Motta: “Qualidade do Ar – Muitas opções alternativas de geração e co-geração de energia levam a reduções substanciais de partículas de CO2 e SO2, fuligem de NOX. Tecnologias renováveis como a eólica e a solar eliminam completamente esses poluentes. Qualidade da Água – As fontes de energia solar e eólica oferecem ganhos indiscutíveis em comparação com alternativas convencionais. O uso da tecnologia do digestor anaeróbio em áreas industriais poderia simultaneamente tratar a água servida e fornecer gás natural. Disponibilidade de Água – A administração de floresta sustentável poderia proteger contra a escassez de água, especialmente se praticada numa área extensa. Conservação do Solo – O manejo sustentável de florestas poderia ter um impacto positivo significativo na conservação do solo, especialmente se praticado numa área extensa. Novas plantações silvícolas podem reduzir a erosão do solo, dependendo do uso da terra disponível. Na China, as plantações de 'redes de árvores' nas planícies podem reduzir a erosão pelo vento. Projetos de reflorestamento em bacias hídricas-chaves podem impedir assoreamento. Lixo sólido – Tecnologias alternativas de combustão reduzem ou eliminam resíduos sólidos, em alguns casos criando subprodutos comercializáveis. Ruído – A substituição de bombas a diesel por bombas movidas a energia eólica leva a uma redução substancial de ruído. Prevenção/Proteção contra enchentes – O reflorestamento em bacias hidrográficas poderia eliminar ou controlar o risco de enchentes. Proteção da biodiversidade – O manejo sustentável de florestas oferece benefícios substanciais comparativamente às práticas atuais de extração de madeira. A co-geração e as tecnologias renováveis reduzem algumas 264 pressões derivadas da mineração”. O mesmo autor relaciona os benefícios sociais e de desenvolvimento de um projeto de MDL às oportunidades de emprego, ao desenvolvimento rural e ao alívio da pobreza e redução da desigualdade, segundo assim indica: “Oportunidades de emprego – Várias opções oferecem oportunidades ampliadas de emprego em regiões subdesenvolvidas importantes ou entre grupos sociais importantes. Desenvolvimento Rural – Fontes de energia renovável permitem a eletrificação de áreas rurais e/ou remotas,de outro modo impossível de ser alcançada devido aos elevados custos de transmissão. Alívio da Pobreza e Redução da Desigualdade – Impactos positivos sobre a desigualdade derivados de muitos projetos, em razão do aumento da demanda de mão-de-obra não-qualificada, frequentemente em áreas de 264 Cf. MOTTA, Ronaldo Seroa (et. al.). O mecanismo de desenvolvimento limpo e o financiamento do desenvolvimento sustentável no Brasil, 2000, p. 9-10. 94 grande desemprego”.265 Por seu turno, o requisito de elegibilidade da presença de benefícios reais, mensuráveis e de longo prazo, relacionados com a mitigação do clima, demanda comparação com um cenário de referência que represente as emissões antrópicas de todos GEEs, nos mais diferentes cenários possíveis, que ocorreriam na ausência das atividades do MDL. “A referência será aplicada distintamente caso a caso, considerando-se o cenário: anterior à implementação do projeto; na situação atual; e posterior à sua implementação.”266 Já a adicionalidade, significa que as atividades do projeto devem proporcionar reduções de emissões ou remoção de GEE que não seriam alcançadas nas suas ausências. Finalmente, a participação voluntária, no sentido de participação espontânea da Parte Não-Anexo I, sem imposição da Parte Anexo I, no projeto de MDL, ainda que as atividades relacionadas sejam previstas como obrigatórias em legislação nacional preexistente,267 na medida em que a implementação de políticas públicas de encorajamento ao desenvolvimento sustentável e a mitigação da mudança do clima são obrigações das Partes a partir da UNFCCC (art. 4º, 1, “b”) e do Protocolo de Kyoto (art. 10, “b”), o que se dá, por exemplo, mediante lei (ato obrigatório). A espontaneidade, nesse caso, não se refere à ausência de exigência legal, mas sim à opção de escolher reduzir emissão ou remover GEE via projeto de MDL, “e isso em nada se contrapõe à obrigação de redução prevista em eventual contrato”268 ou lei. Esses requisitos de elegibilidade das atividades do MDL são aferidos em processo269 que inclui atos de validação; verificação por monitoramento e emissão de RCE, realizados em procedimentos específicos envolvendo agente superior (Conferência das Partes, na qualidade de reunião das Partes – COP/MOP); agente 265 266 267 268 269 Cf. MOTTA, Ronaldo Seroa (et. al.). O mecanismo de desenvolvimento limpo e o financiamento do desenvolvimento sustentável no Brasil, 2000, p. 9-10. FRANGETTO, Flavia Witkowski e GAZANI, Flavio Rufino. Viabilização Jurídica do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) no Brasil – Protocolo de Kyoto e a cooperação internacional, 2002, p. 60. FRANGETTO, Flavia Witkowski e GAZANI, Flavio Rufino. Idem, p. 66. FRANGETTO, Flavia Witkowski e GAZANI, Flavio Rufino. Idem, p. 71. A Decisão 17/CP.7 definiu o método obrigatório para funcionamento de um MDL. 95 central, consultivo e deliberativo (Conselho Executivo) e agentes executores (Entidades Operacionais Designadas), com apoio de Autoridades Nacionais Designadas, stakeholders270 e ONGs. Os procedimentos se encaixam conforme orientações e regras do agente superior (COP/MOP), compondo o processo do MDL o seguinte ciclo: As Partes participantes elaboram o Project Design Document (PDD), documento de concepção do projeto que descreve, com detalhe, as atividades a serem desenvolvidas (seus objetivos, justificativas, limites, metodologias, duração, impactos ambientais, plano de monitoramento e cálculos), e, fazendo-o acompanhar de comentários de stakeholders e da carta da Autoridade Nacional Designada (onde consta declaração sobre a voluntariedade da participação da Parte e a contribuição da atividade do projeto para o alcance do desenvolvimento sustentável no país anfitrião), apresentam-no ao agente executor (Entidade Operacional Designada) que, na hipótese de plausibilidade da proposta, instaura, efetivamente, o processo do MDL. Em seguida, aquele mesmo agente executor (Entidade Operacional Designada - entidade jurídica nacional ou internacional credenciada na qualidade de certificadora independente pelo Conselho Executivo e pela COP/MOP) avalia a atividade do projeto pela análise do PDD e, verificando sua viabilidade, valida o projeto (ato de validação). Após, o projeto é submetido ao agente central, consultivo e deliberativo (Conselho Executivo) que, constatando a conformidade legal do PDD, registra-o, liberando-o à verificação, por monitoramento do agente executor (Entidade Operacional Designada), das reduções de emissões ou remoções de GEE, que, se identificadas como reais, mensuradas, de longo prazo e adicionais, conduzem à sua certificação (garantia escrita de que a atividade do projeto atingiu as metas almejadas). O projeto, então, retorna ao agente central, consultivo e deliberativo (Conselho Executivo) para, finalmente, a emissão de RCE, conforme fluxograma esquematizado na Figura 8. 270 “O termo stakeholders foi criado para designar todas as pessoas ou empresas que, de alguma maneira, são influenciadas pelas ações de uma organização.” LIMIRO, Danielle. Créditos de carbono. Protocolo de Kyoto e Projetos de MDL, 2008, p. 76. 96 Figura 8 Fluxograma do processo de MDL e os custos médios de cada etapa Elaboração do PDD (US$ 0 a ...) Validação do PDD pela Entidade Operacional Designada (US$ 10.000 a 40.000) Registro no Conselho Executivo (US$ 5.000 a 30.000) Monitoramento das atividades do projeto pela Entidade Operacional Designada (US$ 5.000 a 10.000/ano) Verificação e certificação pela Entidade Operacional Designada (US$ 15.000 a 25.000 – primeira – máximo US$ 15.000 – subseqüentes) Emissão de RCE pelo Conselho Executivo (Taxa de administração: US$ 0,10/RCE/ano nas primeiras 15.000 RCEs e US$ 0,20 para cada RCE adicional, até o máximo de US$ 350.000. Contribuição ao Fundo de Adaptação: 2% das RCEs) Fonte: adaptado de COSTA, Caroline Jácome e MEIRELLES, Maria Lucia. Perspectivas de projetos florestais no Cerrado para a obtenção de créditos de carbono. Destarte, deve constar no PDD a opção dos participantes do período de obtenção de crédito, variável conforme a natureza do projeto. Para os projetos industriais o período de obtenção de crédito pode ser de no máximo 7 anos, renovado até 2 vezes por igual período, totalizando 21 anos, ou de no máximo 10 anos, sem opção de renovação.271 Já os projetos florestais podem ter período de obtenção de crédito de no máximo 20 anos, renovado até 2 vezes por igual período, o que corresponde a 60 anos, ou de no máximo 30 anos. Em cada renovação, a entidade operacional designada informará ao Conselho Executivo que a linha de base 272 do projeto é 271 272 Cf. § 49 da Decisão 17/CP.7. “A linha de base pode ser entendida como o nível de emissões de gases de efeito estufa que uma determinada empresa estaria emitindo para a atmosfera caso a atividade de projeto de MDL não tivesse sido implementada.” POPPE, Marcelo Khaled. Manual de capacitação. Mudança Climática e Projetos de 97 válida ou, conforme o caso, foi atualizada de acordo com novos dados. A RCE emitida pelo Conselho Executivo representa 1 tonelada equivalente de CO2 e pode ser vendida como espécie de crédito de carbono. Nesse contexto, Limiro faz o aparte de que “Outras espécies de crédito de carbono são: Emission Reduction Units (ERU), que é o crédito da Implementação Conjunta, e o Verified Emition Reductions (VER), que é o crédito de carbono do mercado voluntário, não vinculado ao Protocolo de Kyoto”,273 como o dos sistemas cap-and-trade e neutralização de carbono.274 O sistema de cap-and-trade inclui licenças expedidas por um Estado para emissão de carbono, também negociáveis no mercado de carbono, gerando renda aditiva para políticas públicas ambientalmente mais eficientes e viabilizando um sistema de trocas de autorizações com vistas à redução global de CO 2. Diferentemente de Kyoto, no cap-and-trade é o próprio Estado, e não a ONU, que limita, por exemplo, a quantidade de emissões de GEE permitida à atividade agroindustrial. Semelhantemente, permite-se ao país alcançar a meta de redução de emissão ou remoção de GEE com um projeto de MDL e, caso não atinja a meta, complementá-la, adquirindo créditos de carbono. Por seu turno, a neutralização de carbono compreende a captação voluntária de GEE da atmosfera e sua consequente incorporação em projetos florestais, que não MDL, em áreas degradadas. Para tanto, precede-se ao projeto um inventário de emissões de GEE, seguido da quantificação dessas emissões em tCO 2e, sendo o total das tCO2e convertido em quantidade de árvores que precisam ser plantadas para capturar os GEEs lançados, a fim de que o balanço entre emissões e absorções seja igual a zero. Especificamente sobre os créditos de carbono de um projeto de MDL (RCE), Gonçalves entende que se enquadram “na categoria de bem intangível puro, por representarem direitos passíveis de serem usufruídos por seus respectivos titulares”,275 bem assim de cessão de direitos, afastando-se do conceito de 273 274 275 Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, 2008, p. 61. LIMIRO, Danielle. Créditos de carbono. Protocolo de Kyoto e Projetos de MDL, 2008, p. 121. LIMIRO, Danielle. Plante esta ideia, 2009, p. 7. GONÇALVES, Fernando Dantas Casillo. A natureza jurídica das RCEs e o seu regime jurídico tributário no Brasil, 2007, p. 258-264. 98 commoditie ambiental, vez que não são mercadorias e os projetos que lhe dão origem “variam bastante e representam processos individuais e únicos,” não havendo, pois, identidade, fungibilidade, padronização e identidade dos “produtos”. Ainda, diversas são as formas de comercializar uma RCE, conforme a transação seja uni, bi ou multilateral. A transação unilateral caracteriza-se pela aquisição, por entidades públicas ou privadas de um país Não-Anexo I, de RCE oriunda de projetos desenvolvidos no seu próprio território ou em outro país NãoAnexo I, com vistas a posterior cessão onerosa a um país Anexo I. No modelo bilateral, um país Anexo I, participando ou não do desenvolvimento, financiamento e operacionalização de projeto de MDL de um país Não-Anexo I, adquire RCE desse mesmo país Não-Anexo I através de contrato internacional (Emission Reduction Purchase Agreement – ERPA) Finalmente, a transação multilateral em que os créditos de carbono são comercializados em fundos de investimento, como o Fundo Protótipo de Carbono do Banco Mundial, ou em bolsas de valores, como a European Union Emissions Trading Scheme (EU ETS) da União Europeia; a Chicago Climate Exchange (CCX) dos EUA; a New South Wales (NSW) da Austrália; a Keidanren Voluntary Action Plan no Japão e o Mercado Brasileiro de Reduções de Emissões (MBRE). Nesse mercado, o Banco Mundial realiza funções de um canal de distribuição, por meio do Programa Carbon Finance Unit (CFU), que recebe as RCEs, não adquirindo o direito de propriedade delas, e as transfere aos investidores. Sobre os financiamentos e riscos no âmbito do CFU, Conejero esclarece: “O CFU assume o custo de elaboração do projeto – e o deduz sem juros na quantia a ser paga na primeira entrega de RCEs – e estimula as instituições financeiras a concederem empréstimos lastreados em RCEs, tendo como garantia o ERPA assinado e a sua credibilidade internacional. O CFU compartilha os riscos inerentes ao projeto de MDL com o desenvolvedor: compra reduções de emissões (ERs) além de 2012, elabora contratos com preço fixo e quantidade variável, garante o pagamento das Ers mesmo sem a existência do Protocolo de Kyoto, estabelece um contrato relacional com possibilidade de ajustes em caso de não-cumprimento 276 (penalidades brandas), ajuda na (re) elaboração de metodologias etc”. Quanto ao preço do carbono, Hoffman e Woody exemplificam que: 276 CONEJERO, Marco Antonio. O Crédito de Carbono do Protocolo de Kyoto como commoditie ambiental, 2007, p. 290. 99 “A Cinergy (que atualmente se fundiu à empresa Duke Energy), por exemplo, estimou que o custo médio por tonelada de reduções de CO 2 foi de US$8,28 em 2004 e de US$12,49 em 2005. Tais números são menores do que a faixa de US$15 a US$40 de permissões vistas na EU ETS entre 2005 e 2006, bem acima do preço de US$0,39 no início de 2007, e acima da média de US$2 a US$4 por tonelada encontrada na CCX. Estão mais próximos da válvula de segurança de US$7 por tonelada (valor proposto em um dos projetos de lei no sistema cap-and-trade no Congresso norte277 americano)”. Na sistemática do mercado de carbono, Poppe explica que “Os principais compradores de RCE ou créditos de carbono, têm variado ao longo dos anos. Tal variação pode ser explicada pela existência de programas governamentais de compra em andamento em um ano específico”. 278 O mesmo autor, com apoio em pesquisa da Capoor & Ambrosi (2007), exemplifica que em 2005 foram comprados 352 milhões de tCO2e; destas, 46% foram adquiridas pelo Japão; 15% pelo Reino Unido; 12% por outros países da Europa; 9% pelas Ilhas Bálticas; 8% pela Holanda e 3% por outros países não especificados.279 Já em 2006, 466 milhões de tCO2e foram compradas, sendo 50% pelo Reino Unido; 10% pela Itália; outros 10% por outros países da Europa; 7% pelo Japão; outros 7% por outros países não especificados; 6% pela Espanha; 4% pela Holanda; 3% pela Áustria e outros 3% pelas Ilhas Bálticas.280 Conejero relaciona os principais compradores do mercado de carbono: “Companhias em busca de atendimento às restrições domésticas de emissões – European Union Emissions Trading Scheme, Japão, Canadá –, Agências governamentais de países desenvolvidos – The Dutch Government CERUPT and ERUPT Tenders, Swedish Energy Agency –, Companhias com metas de redução de emissões voluntárias – Ontario Power Generation, Eletric Power Development Co. Ltd. –, Companhias buscando hedge em relação a riscos futuros – Shell Trading International Limited (STIL), Toyota Tsusho –, Fundos de investimento privados em carbono – Dexia-Fondelec, Clean Tech Fund –, Bancos comerciais – Rabobank, ABN-Amro, Sumitomo-Mitsui, Itaú, outros –, Bancos de desenvolvimento multilateral – United Nations Development Program (UNDP), World Bank Prototype carbon Fund (PCF), Corporación Andina de Fomento (CAF), International Finance Corporation (IFC) –, Outros 277 278 279 280 HOFFMAN, Andrew J. E WOODY, John G. Conselhos para o CEO. Mudanças climáticas: desafios e oportunidades empresariais, 2008, p. 45. POPPE, Marcelo Khaled. Manual de capacitação. Mudança Climática e Projetos de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, 2008, p. 107. Cf. POPPE, Marcelo Khaled. Manual de capacitação. Mudança Climática e Projetos de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, 2008, p. 107. Cf. POPPE, Marcelo Khaled. Idem. 100 intermediários do mercado – Brokers, como CO2e.com, Evolution Markets, 281 Natsource”. Do lado dos vendedores, a participação nas vendas baseada no volume varia conforme o andamento das negociações do contrato e das características do país ofertante, como: “(1) Ambiente político-institucional adequado: os países precisam dispor de uma Autoridade Nacional Designada estabelecida e funcionando adequadamente para a aprovação dos projetos; o governo e/ou setor privado precisam estar engajados na elaboração de projetos; é preciso haver uma cultura de investimentos externos estabelecidas no país, entre outros fatores; (2) Características das matrizes energéticas dos países: países que utilizam predominantemente combustíveis fósseis (China e Índia – carvão mineral) levam vantagem em relação aos países que utilizam predominantemente fontes renováveis (Brasil – hidroelétrica); (3) Características dos projetos: países que possuem projetos que reduzem as emissões de GEE com elevado potencial de aquecimento global, como, por exemplo, HFC-23 (cujo GWP é de 11.700), geram muito mais RCE que os que não usam esses gases”.282 Nesse sentido, no ano de 2005, a China foi responsável por 61% do volume das vendas de RCE e outros créditos de carbono; a Índia por 12%; o restante da Ásia por 7%; outros países não especificados por outros 7%; o Brasil por 4%; o restante da América Latina por 6% e a África por 3%.283 De 2007 a 2008 o mercado de carbono cresceu 83%,284 sendo que em 2008 o mecanismo do crédito de carbono “movimentou 126 bilhões de dólares e evitou 4,8 bilhões de toneladas de carbono (...) num jogo que favorece a inovação e a busca por métodos mais limpos, mas que também provoca receios (...) com os riscos de fraudes e distorções”.285 Em 2009, por exemplo, o crescimento foi de apenas 5% em relação a 2008, devido à chamada “fraude do carrossel” que compreende a prática consistente no pedido feito por fraudadores de “ressarcimento do imposto VAT (espécie de ICMS) ao exportar créditos de carbono entre os países da União Europeia, 281 282 283 284 285 CONEJERO, Marco Antonio. O Crédito de Carbono do Protocolo de Kyoto como commoditie ambiental, 2007, p. 289. POPPE, Marcelo Khaled. Manual de capacitação. Mudança Climática e Projetos de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, 2008, p. 104-105. Cf. POPPE, Marcelo Khaled. Idem, p. 108. LIMIRO, Danielle. O mercado de carbono, 2010, p. 7. DIDONÊ, Débora. Créditos de carbono – Falta definir quanto custa poluir, 2009, p. 266-267. 101 afirmando ter pago o imposto, quando na verdade não o haviam feito.”286 Para 2010 as expectativas são modestas. É que em dezembro de 2009, durante a COP15 realizada em Kopenhagen, não foram estabelecidas novas metas de mitigação da mudança climática para o período pós-Protocolo de Kyoto (20082012). Segundo Boff, isso significa: “os delegados e chefes de Estado presentes representavam mais seus interesses econômicos que seus povos. A questão para eles era: quanto deixo de ganhar aceitando preceitos ecológicos que visam purificar o planeta e assim garantir a continuidade da vida”.287 A ausência de regulação para o pós-2012, período em que termina a vigência, originalmente temporária, do Protocolo de Kyoto, segue-se de uma visão desconfiada do mercado acerca dos créditos de carbono e conduz a um caminho inverso às pretensões em Copenhague: baixa procura e investimentos mornos no mercado de carbono. A Cúpula Mundial dos Povos sobre as Mudanças Climáticas e os Direitos da Mãe Terra, realizada nos dias 19 a 23 de abril de 2010 em Cochabamba (Bolívia), onde se encontravam 35.500 representantes dos povos da Terra, vindos de 142 países, colocou, contudo, como alternativa à humanidade o “bem viver”, que consiste: “viver em harmonia consigo mesmo, com os outros, com a Pacha Mama, com as energias da natureza, do ar, do solo, das águas, das montanhas, dos animais e das plantas e em harmonia com os espíritos e com a Divindade, sustentados por uma economia do suficiente e decente para todos, incluídos os demais seres. Elaborou-se uma Declaração dos Direitos da Mãe Terra que prevê entre outros: o direito à vida e à existência; o direito de ser respeitada; o direito à continuidade de seus ciclos e processos vitais, livre de alterações humanas; o direito a manter sua identidade e integridade com seus seres diferenciados e interrelacionados; o direito à água como fonte de vida; o direito ao ar limpo; o direito à saúde integral; o direito a estar livre da contaminação e da poluição, de dejetos tóxicos e radioativos; o direito a uma restauração plena e pronta das violações infringidas pelas atividades humanas. Previu-se também a criação de um Tribunal Internacional de Justiça Climática e Ambiental, com capacidade jurídica e vinculante de prevenir, julgar e sancionar os Estados, empresas e pessoas por ações ou omissões que contaminem e provoquem mudanças climáticas e que cometam graves atentados aos ecossistemas que garantem o „bem viver‟. Resolveu-se levar os resultados desta Cúpula dos Povos à ONU para que 286 287 LIMIRO, Danielle. O mercado de carbono, 2010, p. 7. BOFF, Leonardo. A Conferência Mundial dos Povos, 2010, p. 3. 102 seus conteúdos sejam contemplados na próxima Conferência Mundial a realizar-se em novembro/dezembro deste ano em Cancún no México.”288 (destaquei) O significado mais profundo desta Cúpula é, então, a convicção de que, no longo prazo, as perspectivas para o mercado de carbono são boas, na medida em que a exaltação do direito ao ar limpo e do direito de estar livre de poluição, bem assim a previsão de um Tribunal Internacional de Justiça Climática Ambiental para os comportamentos que provoquem mudanças climáticas, intensificam a necessidade de redução de emissão ou remoção de GEE. No mesmo sentido, a CEPAL que, durante o Fórum Econômico Mundial para a América Latina realizado em 9 de abril de 2009 em Cartagena (Colômbia), destacou a necessidade de políticas públicas para lograr economias de baixo carbono e desenvolvimento sustentável nas cidades da América Latina e Caribe.289 Destarte, aduz Limiro: “Estima-se que em 2020 o mercado global de carbono chegue a um total de US$ 1,4 trilhão. O EU ETS, mercado europeu considerado como o principal em carbono do mundo, confirmou sua posição em 2020 sobre o pacote de Energia e Clima. Os Estados Unidos, por sua vez, estão cada vez mais próximos da aprovação de uma legislação para criar um esquema de capand-trade nacional, enquanto que a Austrália retomará seu projeto este ano. Estes novos cenários nos fazem acreditar na continuidade da existência e crescimento do mercado de carbono, o qual não será determinado pelo sucesso, ou fracasso, do processo liderado pela ONU para fechar um acordo legalmente obrigatório entre todos os países, mas sim no progresso das legislações climáticas em âmbito nacional”.290 (destaquei) Com Kyoto, o corpus juris de proteção internacional do meio ambiente para o desenvolvimento sustentável e mitigação da mudança do clima, enfim, se consolidou, deixando para o período pós-2012, a lição de que é possível um desenvolvimento sustentável, o legado de que se deve dar continuidade ao processo de mitigação do problema da mudança climática e a herança a que se convencionou chamar sequestro de carbono. 288 289 290 BOFF, Leonardo. A Conferência Mundial dos Povos, 2010, p. 3. BÁRCENA, Alicia. CEPAL destaca políticas para lograr economias bajas em carbono. In: CEPAL servicios de informacion – comunicado de prensa. Disponível em: <www.eclac.org>. Acesso em: 16 abr 2010. LIMIRO, Danielle. O mercado de carbono, 2010, p. 7. 103 2 PERSPECTIVAS DO SEQUESTRO FLORESTAL DE CARBONO NO CERRADO BRASILEIRO O conceito de sequestro de carbono consagrou-se em Kyoto por se tratar da forma de mitigação da mudança climática “de menor custo para reverter o acúmulo de CO2 na atmosfera na redução do efeito estufa”291 e do aquecimento global. O sequestro florestal de carbono consiste na forma natural de sequestrar o CO2 pelo processo de fotossíntese das plantas, que permite estocar o carbono na biomassa aérea, na biomassa terrestre e no solo. Constitui, em outras palavras, o processo de crescimento dos vegetais, de modo que “quanto maior é o porte das plantas, mais biomassa se acumula, e consequentemente mais carbono é fixado”.292 Quantifica Yu que: “A maior parte do carbono terrestre está acumulada no solo florestal pela decomposição de matéria-prima acumulada durante séculos, sendo responsável por 2.000 Gt C. A atmosfera estoca 760 Gt C. Portanto, as florestas, incluindo o solo, estocam dois terços do carbono – 2.5000 Gt C, num total de 3.260 Gt C na superfície terrestre (...) Entre todo o reino vegetal, as florestas proporcionam o mais longo estoque do ciclo do carbono, em forma de madeira e acumulação no solo por centenas de anos antes de retornar à atmosfera através da respiração, decomposição, erosão ou queima”.293 Para a mesma autora,294 as formas de sequestrar carbono florestal podem, assim, ser classificadas em três tipos: a) Preservação, por meio de ação protetora, de estoques de carbono em florestas já existentes; b) Substituição do uso de combustíveis fósseis pelo uso de produtos de biomassa vegetal sustentável; 291 YU, Chang Man. Sequestro florestal de carbono no Brasil. Dimensões políticas, socioeconômicas e ecológicas, 2004, p. 67. 292 YU, Chang Man. Idem, p. 66. 293 YU, Chang Man. Idem. 294 YU, Chang Man. Sequestro de Carbono Florestal: oportunidades e riscos para o Brasil, 2002, p. 90. 104 c) Aumento do estoque de carbono florestal por meio de manejo sustentável, regeneração florestal ou introdução de agrofloresta em áreas de agropecuária. Especificamente em relação a esta última forma de sequestrar carbono florestal, é que há espaço para o sequestro florestal de carbono propriamente dito. 2.1 O SEQUESTRO FLORESTAL DE CARBONO As atividades de sequestro de carbono elegíveis pelo Protocolo de Kyoto, na modalidade Uso do Solo, Mudança no Uso do Solo e Floresta (LULUCF), são apenas de florestação e de reflorestação,295 sendo que os “projetos LULUCF representam hoje apenas 1% do volume de carbono transacionado em projetos MDL”.296 A florestação, florestamento ou aflorestamento297 é a ação direta do homem na conversão de terras que não tenham sido florestadas, por um período de no mínimo 50 anos, para terras florestadas por meio de plantação, semeadura e/ou ação humana promovendo semeadura natural.298 Em outras palavras, “é o plantio de florestas em áreas onde historicamente não existiam florestas. Isto é, em terras que estavam desflorestadas durante os últimos 50 anos”.299 A reflorestação ou reflorestamento, por sua vez, é a conversão, induzida diretamente pelo homem, de terra não-florestada em terra florestada por meio de plantio, semeadura e/ou a promoção induzida pelo homem de fontes naturais de sementes, em área que foi florestada, mas convertida em terra não-florestada. Para o período de compromisso de Kyoto (2008-2012), as atividades de 295 HENRIQSON, Elvio. Reflorestamento e projetos de MDL, 2007, p. 182 e 183. FREITAS, Marcos Aurélio Vasconcelos de (Coord.). Contribuição da Base Florestal ao Ciclo do Carbono, 2007, p. 14. 297 Cf. SANQUETTA, Carlos Roberto. Créditos de Carbono. Base Científica. Formulação de Projetos, 2008, p. 42. 298 Cf. Decisão 19/CP.9. 299 POPPE, Marcelo Khaled. Manual de capacitação – Mudança Climática e Projetos de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, 2008, p. 212. 296 105 reflorestamento estão limitadas às terras que, até 31 de dezembro de 1989, não continham floresta,300 entendida esta, no âmbito da ONU, como: “área mínima de terra de 0,05-1 hectare com cobertura de árvore (ou nível equivalente de estoque) de mais de 10-30% com árvores com o potencial de alcançar uma altura mínima de 2-5 metros na maturidade in situ. Uma floresta pode consistir em formações florestais fechadas, onde árvores de várias alturas e estágios de crescimento cobrem uma alta proporção do chão, ou em florestas abertas. Novas formações jovens e todas plantações que ainda estão por alcançar uma densidade de dossel de 10-30% ou altura das árvores de 2-5 m, estão inclusas em florestas, assim como as áreas que normalmente formam parte de áreas florestais que estão temporariamente fora de condição, como resultado de intervenções humanas, como a 301 colheita ou causas naturais, mas que se espera que revertam a florestas.” Aqui a palavra floresta apresenta característica conceitual ímpar. Nos termos do Dicionário Aurélio, conceitua-a, ainda, como uma formação arbórea densa, na qual as copas se tocam; ou, também, mata.302 Etimologicamente, o termo parece originar-se do latim forestis, de onde decorreu foreste, no francês antigo, atualmente forêt: “bosque externo”. No entanto, relatos de outras origens são identificados: “como a que explica que a palavra pode prender-se ao advérbio latino foras, fora, para fora, que significaria „bosque posto fora do alcance ou uso público, reservado‟. E ainda outra definição etimológica, que coloca a hipótese da sua origem no substantivo neutro forum, praça pública, depois „lugar em que se administrava a justiça‟ e, por fim, „justiça‟, „lei‟, „direito‟, „jurisdição‟ que viria a significar „bosque reservado por lei ou direito ao uso 303 do seu senhor.‟” No Brasil, o disciplinamento jurídico da floresta está inserido, atualmente, na Lei n. 4.771, de 15 de setembro de 1965, também conhecida como Código Florestal brasileiro. Esse diploma legal, conquanto recepcionado pela Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988, como norma geral, não conceitua floresta, tampouco outras normas nacionais o fazem. Na tentativa de se reportar a um conceito legal de floresta, Pereira 300 301 302 303 Cf. Decisão 19/CP.9. Cf. § 8º da Decisão 17/CP.7. Dicionário Aurélio apud MARQUES, Carla Regina Silva e RORIZ, Giovana Ferro de Souza. A concessão de florestas públicas, 2009, p. 7. MARQUES, Carla Regina Silva e RORIZ, Giovana Ferro de Souza. Idem. 106 reproduz trechos da exposição de motivos do anteprojeto do primeiro Código Florestal brasileiro, o de 1934, como segue: “Estabelecido o princípio de que as disposições do Código se aplicam a todas as florestas do país, fazia-se necessário definir o que se deve entender por floresta. No significado vulgar, floresta é toda a vegetação alta e densa, cobrindo uma área de grande extensão. Evidentemente, porém, não é só essa forma de vegetação que necessita ser protegida, apesar do nome dado ao Código. O Ante-Projeto resolveu a dificuldade estatuindo no parágrafo único do Art. 2 que, para os efeitos do Código, são equiparadas às florestas todas as formas de vegetação, que sejam de utilidade às terras que revestem, o que abrange até mesmo as plantas forrageiras nativas que cobrem os nossos vastos campos naturais, próprios para a criação de gado. País destinado a se tornar em futuro próximo um dos maiores centros pastoris do mundo, é de sumo interesse zelar pelas pastagens existentes, só permitindo que nelas se toquem para melhorá-las, e nunca para degradálas, como infelizmente tem sucedido a muitas. Com essa amplitude, talvez conviesse dar ao futuro Código outra designação que melhor traduzisse a matéria conteúda.”304 Assim, o conceito de floresta é, nesse contexto, particularmente importante, pois o sequestro florestal de carbono, conforme indica o próprio sintagma nominal “sequestro florestal”, ocorre no âmbito de formação vegetal com característica de floresta. Em não havendo conceituação no texto legal brasileiro e ante aquele entendimento gramatical demasiadamente simplista, busca-se um conceito mais adequado na conjugação da literatura técnica com o corpus juris de proteção internacional do meio ambiente. Para Felipe, segundo uma interpretação histórica, quando da publicação do Código Florestal de 1965 considerava-se floresta apenas a mata nativa, densa e relativamente grande, formada por árvores silvestres.305 É que, explica Ahrens: “A redação do Art. 1 do „novo‟ Código Florestal inicia-se com as seguintes palavras: „As florestas ... e as demais formas de vegetação...‟. Para entender, hoje, as intenções do legislador de então, cabe verificar que o sentido da sentença resultante da reunião de tais vocábulos não admite interpretação dúbia ou extensiva; sequer permite a produção de múltiplos 304 305 PEREIRA, Osny Duarte. Direito Florestal brasileiro, 1959, p. 179. FELIPE, Julis Orácio. Floresta, uma definição atualizada, 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4173>. Acesso em: 30 maio 2010. 107 significados. Pelo contrário, no Art. 1, o legislador de 1965, de forma tácita, restritiva e unívoca, referiu-se apenas às florestas nativas (ou naturais) e às „demais formas de vegetação‟, excluindo daquele enunciado, portanto, as florestas plantadas. No enunciado da norma em questão, não há significado secundário admissível ou intenção subliminar. O que fundamenta esta afirmativa é o uso da expressão „as demais formas de vegetação‟, na sequência imediata do vocábulo „florestas‟, explicitando, assim, que as „florestas‟ a que se fazia referência eram apenas aquelas que constituíam parte da vegetação (natural) do País”.306 (destaques no original) Assim, ainda para Ahrens, deve-se entender por vegetação, no âmbito da interpretação histórica, o conjunto de plantas que constituem a fitosisionomia natural de uma região, que resulta da dispersão natural das espécies e dos processos sucessionais, no tempo e no espaço, conforme os tipos de clima e de solo. 307 “A esse respeito, ressalte-se que o Mapa da Vegetação Brasileira, editado pelo IBGE, em 1993, não inclui a localização das lavouras, das pastagens plantadas e, assim, também, nem das florestas plantadas”,308 pois estas formas de cultivo não ocorrem naturalmente, na verdade, são estabelecidas de forma intencional, de forma que nesse documento tais culturas estão inseridas em um coletivo nominado “áreas antropizadas”, vez que oriundos da ação humana. Ainda, Felipe, citando o engenheiro silvicultor Mário A. Silveira da Costa, ensina que em relação a um determinado país, sobre a espécie florestal, dizem-se: “„Espontânea, indígenas ou autóctones quando vegetam e se reproduzem naturalmente; Exótica se provenientes de outros territórios ainda não integradas ou mesmo não integráveis na flora natural e que, em princípio, não se regeneram naturalmente, salvo em casos especiais; Subespontânea se, uma vez introduzidas, se aclimatam e reproduzem regularmente num novo ambiente, integrando-se nele com maior ou menor dificuldade; Naturalizada, se as plantas se encontram totalmente adaptadas‟”. 309 Von Deichmann, por sua vez, resume da maneira seguinte as peculiaridades mais importantes que caracterizam uma floresta: “um certo tamanho de área, uma certa forma e tamanho das árvores e um certo povoamento fechado e 306 307 308 309 AHRENS, Sérgio. O “novo” Código Florestal brasileiro: conceitos jurídicos fundamentais, 2003, p. 7. AHRENS, Sérgio. Idem. FELIPE, Julis Orácio. Floresta, uma definição atualizada, 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4173>. Acesso em: 30 maio 2010. FELIPE, Julis Orácio. Idem. 108 seus membros”.310 Acrescenta o escritor acima que: “Se a área for muito pequena devido à densidade de sua espécie populacional ou, devido à área suficientemente grande não houver uma densidade suficiente, mas as árvores estiverem espalhadas isoladamente ou em grupos, então temos o tipo de transcrição entre floresta e estepe, e pradaria de árvores ou o parque (criado artificialmente pelo homem)”.311 Encerrando os comentários técnicos sobre a matéria, Felipe afirma que o Manual Técnico Florestal do Colégio Florestal de Irati, de 1986, indica, especificamente nas páginas 59-61, a existência de formas de floresta, como a nativa, subsidiária ou secundária e artificial, sendo esta última também denominada floresta manejada. 312 Por todo o exposto, notadamente tendo em vista a recente conceituação de floresta, florestamento e reflorestamento no bojo da Decisão 17/CP.7 da ONU, que regulamenta o Protocolo de Kyoto, não resta dúvida de que o termo “floresta” deve, hoje, ser interpretado como área de cobertura vegetal, natural ou exótica, com 1 ou mais espécies, onde 10-30% das árvores têm potencial de altura mínima de 25 metros na maturidade, assim como a área que normalmente forma parte de área florestal que está temporariamente fora de condição, como resultado de intervenções humanas, como a colheita ou causas naturais, mas que se espera que reverta a floresta. Do conceito de floresta, extrai-se seu importante serviço ambiental de captar e fixar carbono atmosférico na biomassa aérea e subterrânea de sua vegetação. A forma pela qual as florestas estão ligadas ao ciclo do carbono é representada, segundo Martinelli e Camargo, pela equação ∆CO2 = CF + UT+ OC ± FO, onde ∆CO2 é a variação da concentração de CO2 na atmosfera; CF é a quantidade de CO2 advinda da queima de combustíveis fósseis; UT é a quantidade de CO2 decorrente da mudança no uso da terra; OC é a quantidade de CO 2 absorvida pelos oceanos e FO o balanço entre fotossíntese e respiração. Em caso 310 311 312 VON DEICHMANN, Vollrat. Ecologia Florestal, 1967, p. 3. VON DEICHMANN, Vollrat. Idem. FELIPE, Julis Orácio. Floresta, uma definição atualizada, 2003. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4173>. Acesso em: 30 maio 2010. 109 de FO positivo (+ FO), a respiração foi maior que a fotossíntese e o CO 2 lançado na atmosfera; sendo negativo o FO (- FO), a fotossíntese foi maior que a respiração e o CO2 retirado da atmosfera.313 Martinelli e Camargo destacam que os fatores CF e FO da equação mostram o papel relevante da vegetação no ciclo global do carbono e que, dentro desse item vegetação, as florestas são de extrema importância. Seguem exemplificando que, no ciclo do carbono em ecossistema terrestre, 15 “cerca de 560 x 10 gC estão estocados na vegetação, sendo que cerca de 75% deste total se encontram estocados em florestas e mais especificamente aproximadamente 50% encontram-se em florestas tropicais. Nos solos estão estocados 1500 x 1015gC, sendo que a metade 314 deste total encontra-se em solos cobertos por florestas.” Quanto a esse potencial de sequestro de carbono em MDL florestal, o projeto pode ser de pequena ou grande escala, sendo de pequena na hipótese de as remoções líquidas anuais serem inferiores a 16 mil tCO2e315 e devem ser desenvolvidos por indivíduos de baixa renda.316 Segundo Tito, as atividades de um projeto de pequena escala não podem resultar do desagrupamento de uma atividade de um projeto de grande escala. “Tendo 16.000 toneladas de CO2e/ano como limite, um projeto florestal de pequena escala que estime um sequestro médio de 10 toneladas de carbono por hectare (equivalente a 36,7 ton. CO2-e / ha) deverá utilizar uma área máxima de aproximadamente 436 hectares.”317 Esses valores variam conforme a espécie plantada e as condições climáticas na área do projeto. Por exemplo: “Plantios de eucalipto apresentarão (...) plantios anuais de absorção de CO2 superiores (até o período de corte) aos alcançados por um reflorestamento em matas ciliares. Como um exemplo simplificado, para promover um 313 314 315 316 317 Cf. MARTINELLI, Luiz Antônio e CAMARGO, Plínio Barbosa de. O monitoramento do carbono em áreas florestadas, 1996, p. 6. MARTINELLI, Luiz Antônio e CAMARGO, Plínio Barbosa de. Idem. Cf. POPPE, Marcelo Khaled. Manual de capacitação. Mudança Climática e Projetos de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, 2008, p. 210. WALTER, Michele Karina Cotta e COLTRI, Priscila Pereira. Créditos de carbono: geração de créditos de carbono por sistemas florestais, 2009. TITO, Marcos Rügnitz (et. al.). Guia para Determinação de Carbono em Pequenas Propriedades Rurais, 2009, p. 13. 110 seqüestro anual de 16 mil toneladas de CO2-e, em um reflorestamento de eucaliptos com ótimas condições de crescimento, seria necessária uma área de aproximadamente 440 hectares. A mesma taxa anual de seqüestro em um reflorestamento de matas ciliares seria alcançada com cerca de 1400 hectares.”318 Ademais, tendo em vista que um projeto de pequena escala existe para reduzir os custos na sua implementação, as atividades nele contempladas podem ser agrupadas ou combinadas em uma pasta cuja redução alcançada não deve ultrapassar aquele limite anual de redução de emissões; as informações exigidas para o documento de concepção são reduzidas; a metodologia de linha de base e o monitoramente são mais simples; a validação, verificação e certificação podem ser realizadas por um único agente executor (Entidade Operacional Designada); e deve ser desenvolvido ou implementado por comunidades ou indivíduos de baixa renda.319 De conseguinte, para um MDL florestal, o passo inicial é caracterizar a elegibilidade da atividade do projeto, segundo o critério de definição de floresta, florestamento e reflorestamento; desenvolvimento sustentável e adicionalidade. Pelos conceitos de floresta, florestamento e reflorestamento, somente são elegíveis para fins de MDL o florestamento e o reflorestamento induzidos pelo homem, de modo que áreas em regeneração natural, por exemplo, são consideradas florestais e, portanto, excluídas da implantação de atividades de um projeto LULUCF, não sendo, pois, contemplada pelo Protocolo de Kyoto a conservação de floresta já existente. Dessa forma, em um MDL, as atividades de florestação ou reflorestação podem ser, segundo Sanquetta,320 conservacionistas ou mercantilistas/comerciais. As conservacionistas compreendem, geralmente, o plantio misto com espécies nativas na recuperação de áreas degradadas, constituindo a atividade preferencial de Kyoto. As mercantilistas/comerciais, por seu turno, geralmente incluem o plantio mono-específico, com vistas à utilização da madeira ou outros produtos florestais, não sendo a preferência de Kyoto. 318 319 320 POPPE, Marcelo Khaled. Manual de capacitação. Mudança Climática e Projetos de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, 2008, p. 210. Cf. POPPE, Marcelo Khaled. Manual de capacitação. Mudança Climática e Projetos de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, 2008, p. 210. Cf. SANQUETTA, Carlos Roberto. Créditos de Carbono. Base Científica. Formulação de Projetos, 2008, p. 43. 111 Já na visão de Bertucci, são tipos de projetos florestais os comerciais, os conservacionistas, os desenvolvimentistas, os industriais, os de preservação e os agroflorestais, em suma por ele assim definidos: 321 “. Projetos Comerciais que priorizam a geração de CERs ou melhoria na imagem ambiental da empresa, visando maior competitividade no mercado e a compensação de compromissos de redução de CO2 tendo em vista a oportunidade de recursos do MDL. . Projetos Conservacionistas que priorizam benefícios ambientais secundários – a conservação – na geração de carbono. Estes projetos são de iniciativa ou mediação e implementação de ONGs ambientalistas. . Projetos Desenvolvimentistas que priorizam objetivos sociais atrelados a metas ambientais na geração do carbono. São financiados por empresas em busca de responsabilidade social, além de compensação dos compromissos de carbono. Os executores apresentam perfil desenvolvimentista, podendo ser o próprio governo. (...) . Florestas “Industriais”: plantios florestais destinados à produção industrial, como papel e celulose, siderurgia, termelétricas, madeira serrada, chapas e compensados. Geralmente são plantios homogêneos, sob regime de manejo regulado, com ciclos pré-determinados de corte e reforma. (...) . Florestas de preservação: reflorestamentos destinados à preservação dos recursos naturais tais como biodiversidade, fauna/flora e recursos hídricos, onde são utilizadas espécies nativas típicas da região de implantação. São florestas permanentes onde não é feito o corte raso para extração madeireira. (...) . Sistemas agroflorestais: Geralmente utilizado por pequenos e médios produtores, feito com plantio consorciado de espécies arbóreas, arbustivas, herbáceas e culturas agrícolas que atendam aos critérios de elegibilidade, principalmente com relação à definição de florestas. Visa a obtenção de vários produtos: agrícolas, medicinais, madeireiros e não-madeireiros, extraídos em pequeno, médio e longo prazo.”322 (destaques no original) Em outras palavras, o sistema agroflorestal, especificamente, é o nome coletivo para sistemas de uso da terra em que espécies lenhosas perenes, do tipo árvores, arbustos e palmeiras, são usadas associadamente, de maneira simultânea ou em sequência temporal, a cultivos agropecuários. O sistema agroflorestal, conforme aspectos da estrutura e função, pode, por seu turno, classificar-se, por exemplo, em agrissilvicultural (culturas + árvores/arbustos), silvipastoril (pastagem/animais + árvores) e agrissilvipastoril (culturas + pastagens + árvores). Seu principal objetivo é otimizar o uso da terra, “conciliando produção de 321 322 CERs é a versão na língua portuguesa de RCEs. BERTUCCI, Afonso Celso. O Protocolo de Kyoto e o mercado de créditos de carbono, 2006, p. 48-49. 112 alimentos, energia e serviços ambientais com a produção florestal”, 323 extrativa madeireira e não madeireira, como frutos e óleos, bem assim proteção, na qualidade, por exemplo, de quebra-vento, conservação e melhoria do solo, conservação da umidade e sombra, para o homem, animais ou cultivos. As práticas florestais são aplicáveis a quase todos os locais potenciais de produção agropecuária, sendo que “a chave para o sucesso está na escolha das espécies e do regime de manejo”.324 O segundo critério de elegibilidade do projeto florestal, o do desenvolvimento sustentável, perquire se o projeto promove o desenvolvimento sustentável na região de sua implantação, no que diz respeito aos seguintes aspectos: “a) contribuição para a sustentabilidade ambiental local – Avalia a mitigação dos impactos ambientais locais (resíduos sólidos, efluentes líquidos, poluentes atmosféricos, entre outros) propiciada pelo projeto em comparação com os impactos ambientais locais estimados para o cenário de referência. b) contribuição para o desenvolvimento das condições de trabalho e a geração líquida de empregos – Avalia o compromisso do projeto com responsabilidades sociais e trabalhistas, programas de saúde e educação e defesa dos direitos civis. Avalia, também, o incremento no nível qualitativo e quantitativo de empregos (diretos e indiretos) comparando-se o cenário do projeto com o cenário de referência. c) contribuição para a distribuição de renda – Avalia os efeitos diretos e indiretos sobre a qualidade de vida das populações de baixa renda, observando os benefícios socioeconômicos propiciados pelo projeto em relação ao cenário de referência. d) contribuição para capacitação e desenvolvimento tecnológico – Avalia o grau de inovação tecnológica do projeto em relação ao cenário de referência e às tecnologias empregadas em atividades passíveis de comparação com as previstas no projeto. Avalia também a possibilidade de reprodução da tecnologia empregada, observando o seu efeito demonstrativo, avaliando, ainda, a origem dos equipamentos, a existência de royalties e de licenças tecnológicas e a necessidade de assistência técnica internacional. e) contribuição para a integração regional e a articulação com outros setores – A contribuição para o desenvolvimento regional pode ser medida a partir da integração do projeto com outras atividades socioeconômicas na região de sua implantação.”325 (destaques no original) No tocante ao aspecto de geração líquida de emprego, a ONG World 323 324 325 DUBOC, Eny, MORAES NETO, Sebastião Pires de e MELO, José Teodoro de. Sistemas agroflorestais e Cerrado, 2008, p. 307. DUBOC, Eny, MORAES NETO, Sebastião Pires de e MELO, José Teodoro de. Idem, p. 313. ROCHA, Marcelo Theoto. Os Projetos Florestais no Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, 2004, p. 13. No mesmo sentido: Resolução n. 1 da Comissão Interministerial de Mudança Global do Clima, Autoridade Nacional Designada no Brasil. Disponível em: <www.mct.gov.br/clima>. Acesso em: 20 abr 2010. 113 Rainforest Movement (WRM), sediada na Europa, critica a limitada capacidade dos reflorestamentos em monoculturas de empregar mão-de-obra.326 Segundo a ONG, em estudo comparativo sobre a relação trabalho/tipo de uso da terra, a demanda é de 1 trabalhador para cada 50 ha na pecuária; 1 trabalhador para cada 26 ha na pecuária conjugada à agricultura empresarial; 1 trabalhador para cada 5 ha na agricultura familiar e de 1 trabalhador para cada 60 ha de reflorestamento de eucaliptos. Quanto à sustentabilidade ambiental local, no sentido de mitigação dos impactos ambientais locais, a ONG Greenpeace, também sediada na Europa, denunciou, no ano de 2000, 2 projetos de reflorestamento na região da Patagônia. O primeiro, financiado por companhias petrolíferas em parceria com a companhia florestal El Foyel S/A para ser desenvolvido no sudoeste do Rio Negro, apresenta, segundo a ONG, potencial de eliminar a floresta nativa para plantar árvores exóticas e, com isso, obter certificado de carbono, transformando-se em incentivo perverso. O segundo projeto de reflorestamento denunciado é o que a reflorestadora alemã Prima Klima pretende desenvolver na província de Chubut, com vistas à conservação, ecoturismo e manejo de florestas em torno do Lago La Plata e Fontana, incluindo, também, a extração da árvore nativa lenga, de elevado valor no mercado internacional, o que, segundo a ONG, pode resultar em estímulo de cortes incontrolados desta espécie. E, por fim, a adicionalidade, último critério de elegibilidade, no sentido de que as atividades serão adicionais se as remoções anuais líquidas de CO 2 forem maiores que a quantidade encontrada, na sua ausência, nos estoques de carbono dentro do limite do projeto. Nesse contexto, Poppe enuncia as definições associadas aos projetos de MDL florestal na seguinte lição: “As Decisões 11/CP.7 e 19/CP.9 do Painel Executivo estabelecem que as seguintes definições devem ser empregadas nos projetos de MDL florestal: (a) Reservatórios de carbono são os reservatórios mencionados no parágrafo 21 do anexo à decisão preliminar -/CMP.1 (Uso da terra, mudança 326 YU, Chang Man. Sequestro florestal de carbono no Brasil – dimensões políticas, socioeconômicas e ecológicas, 2004, p. 75. 114 no uso da terra e florestas), a saber: biomassa acima do solo, biomassa abaixo do solo, serapilheira, madeira morta e carbono orgânico do solo; (b) As fronteiras do projeto delineiam geograficamente a atividade de projeto de florestamento ou reflorestamento que está sob o controle dos participantes do projeto. A atividade de projeto pode conter mais de uma área distinta de terra. (c) A linha de base de remoções líquidas de GEE por sumidouros é a soma das mudanças nos estoques dos reservatórios de carbono dentro do limite do projeto que teriam ocorrido na ausência da atividade de projeto de florestamento ou reflorestamento no âmbito do MDL; (d) Remoções líquidas reais de GEE por sumidouros são a soma das mudanças verificáveis nos estoques dos reservatórios de carbono, dentro do limite do projeto, menos o aumento das emissões de GEE provenientes das fontes (em equivalentes de CO2), em conseqüência da implementação da atividade de projeto de florestamento ou reflorestamento. (e) Vazamento ou fuga é o aumento das emissões de GEE que ocorre fora do limite de uma atividade de projeto de florestamento ou reflorestamento no âmbito do MDL. Deve ser mensurável e atribuível à atividade de projeto de florestamento ou reflorestamento. (f) Remoções antrópicas líquidas de GEE por sumidouros são as remoções líquidas reais de GEE por sumidouros, menos as remoções líquidas de GEE da linha de base por sumidouros, menos as fugas”327 No tocante à aferição da quantidade de CO 2 atmosférico removido, havia, segundo Poppe, até 25 de outubro de 2007, 10 metodologias de grande escala (ARAM0001 a AR-AM0010, cada uma associada a um PDD) e 1 única de pequena escala (AR-AMS0001, versão 4),328 sendo os seguintes projetos de metodologias florestais aprovadas: “. Reflorestamento otimizado na gestão da Bacia Hidrográfica de Guangxi, Rop Pérola, China. . Conservação do solo em Moldávia. . Regeneração natural monitorada em terras degradadas na Albânia. . Reflorestamento no Parque Nacional do Pico Bonito, Honduras. . Reflorestamento como fonte renovável para o suprimento de madeira para uso industrial no Brasil (Projeto PLANTAR S/A). . Florestamento no combate à desertificação em Aohan Countru, Norte da China. . Coservação do carbono e reflorestamento do corredor Choco-Manabi (Equador). . Reflorestamento de áreas degradadas para a produção sustentável de madeira na costa oriental da República Democrática de Madagascar. . Projeto de reflorestamento de San Nicolas (Colômbia) que preconiza o florestamento/reflorestamento de áreas degradadas para o estabelecimento de atividades silvipastoris. . Projeto de florestamento/ reflorestamento às margens da represa da usina hidrelétrica do Rio Tietê (Projeto AES-Tietê).”329 327 328 329 POPPE, Marcelo Khaled. Manual de capacitação. Mudança Climática e Projetos de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, 2008, p. 211-212. Cf. POPPE, Marcelo Khaled. Idem, p. 213-214. COSTA, Caroline Jácome e MEIRELLES, Maria Lucia. Perspectivas de projetos florestais no Cerrado para 115 Para a quantificação do CO2, o projeto se utiliza de metodologia específica que, desenvolvida para tal mister, é apresentada ao Painel Executivo da ONU para aprovação, no âmbito do processo de MDL, pelo agente central, consultivo e deliberativo (Conselho Executivo). Ao dispor sobre a importância da quantificação para conhecimento da capacidade de fixação de carbono pela vegetação, bem assim para uso em inventários de GEE nacionais e internacionais, em projetos de MDL e em projetos para outros mercados (voluntários), Sanquetta propõe a metodologia de ganho e perda representada na seguinte equação: ΔC = Σ ijk [Aijk . (CG – CL)ijk], onde A = área (hectares); ijk = zona climática i, tipo florestal j, manejo k; CG = taxa de ganho de carbono, em toneladas de C por hectare, por ano; CL = taxa de perda de carbono, em toneladas de C por hectare, por ano; C = Biomassa seca (reservatórios). 330 Essa metodologia de quantificação integra diversas técnicas, conforme ilustra o mesmo autor na Figura 9, a seguir. Figura 9 Técnicas integradas na metodologia de quantificação de carbono Fonte: SANQUETTA, Carlos Roberto. Mini-Curso. Quantificação de Carbono na Biomassa, 2009, slide 12. 330 a obtenção de créditos de carbono, 2008, p. 394-395. Cf. SANQUETTA, Carlos Roberto. Mini-Curso. Quantificação de Carbono na Biomassa, 2009, slide 10. 116 O mapeamento por técnicas de geoprocessamento e sensoriamento remoto (geotecnologias) tem dentre seus objetivos fixar o limite do projeto e determinar suas características, como uso do solo e espécies vegetais; bem assim planejar a amostragem de campo e localizar geograficamente as unidades amostrais, utilizando-se, para tanto, de imagens por satélite, fotografias aéreas e mapas base, como cartas do Exército, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e GPS (Global Positioning System).331 No inventário da vegetação, por sua vez, são utilizados mapas e outros materiais pictóricos e equipamentos de medição, como trena e paquímetro, manuseados por uma equipe técnica, conforme ilustram as Figuras 10, 11 e 12. Figuras 10, 11 e 12 Equipamentos e técnicas para amostragem e mensuração da vegetação na área do projeto Fonte: SANQUETTA, Carlos Roberto. Mini-Curso. Quantificação de Carbono na Biomassa, 2009, slides 46 e 47. 331 Cf. SANQUETTA, Carlos Roberto. Mini-Curso. Quantificação de Carbono na Biomassa, 2009, slide 10. 117 A avaliação da biomassa pode ser de forma indireta ou direta. A avaliação indireta pode ser feita por dois métodos: um é utilizando dados de volume de árvores e multiplicá-los por um fator ou fatores apropriados denominados fatores de biomassa, que convertem (expandem ou reduzem) as estimativas de volume para estimativas de biomassa; o outro é realizando o ajuste de equações pelo uso de técnicas de regressão, sendo o procedimento mais comum, onde algumas árvores são amostradas e o peso de cada componente determinado e relacionado por meio de regressão com variáveis dendrométricas disponíveis, como diâmetro (cm) e altura (m).332 A avaliação direta de biomassa, por sua vez, pode ser de duas categorias: método da árvore individual e método da parcela. No método da árvore individual, após um inventário florestal, seleciona-se uma árvore média (mean tree method) e a derruba, determinando-se a biomassa na amostra. Em florestas de estrutura complexa, emprega-se uma variação deste método: “após a realização de um inventário florestal piloto para se conhecer a distribuição diamétrica da floresta, serão derrubadas um determinado numero de árvores para cada amplitude diamétrica, abrangendo todas as classes existentes na floresta.(...) em campo são obtidos separadamente os pesos verdes para o tronco, galhos, folhas e serragens produzidas pela divisão do tronco e galhos. Em seguida, deve-se retirar discos de aproximadamente 3 cm de espessura do tronco e dos galhos em alturas relativas ao comprimento total (...) Todas as amostras do tronco, galhos grossos, galhos finos, folhas e discos devem ser colocadas em estufa ate estabilizarem-se em peso para a obtenção do peso seco.”333 Já o método de parcela utiliza a técnica do corte estratificado (stratified clip technique), que consiste na execução do corte raso em um pequeno ponto amostral no interior da floresta a ser estudada, dividindo-se a parte de cima do solo em 10 ou mais estratos paralelos a superfície do solo, e todas as árvores dentro do ponto são cortadas em partes dentro do respectivo estrato, e pesadas as folhas, ramos e caule pertencentes a cada estrato separadamente. 334 A determinação da biomassa por abate da espécie vegetal, em que se separa a biomassa aérea e subterrânea, pesa-se a biomassa verde em campo e se 332 Cf. SANQUETTA, Carlos Roberto. Mini-Curso. Quantificação de Carbono na Biomassa, 2009. SILVEIRA, Métodos indiretos de estimativa do conteúdo de biomassa e do estoque de carbono em um fragmento de floresta ombrófila densa, 2008, p. 8-9. 334 Cf. SANQUETTA, Carlos Roberto. Mini-Curso. Quantificação de Carbono na Biomassa, 2009. 333 118 retiram amostras para análise em laboratório, está ilustrada nas Figuras 13, 14, 15, 16, 17 e 18, a seguir. Figuras 13, 14, 15, 16, 17 e 18 Determinação da biomassa Fonte: SANQUETTA, Carlos Roberto. Mini-Curso. Quantificação de Carbono na Biomassa, 2009, slides 54, 57 e 58. 119 Em laboratório, através de ataque de ácido ou leitura por infravermelho da biomassa seca, obtida após secagem em estufa até atingir peso constante, os teores de carbono podem, enfim, ser calculados conforme a seguinte equação: CO 2/ha = [V.D.FEB] . (1+R) . FC . 44/12, onde V = ∑Vi (volume por unidade de área); Vi = (DAP2)/40.000 x H x FF ou equação de volume; DAP = diâmetro da planta a 1,30 do solo (altura do peito) (cm); H = altura da planta (m); FF = fator de forma (varia entre 0,40 a 0,70); D = densidade (peso) da madeira (t/m3); FEB = fator de expansão da biomassa (PT/PF); PT = peso seco total (biomassa) da planta (kg); PF = peso seco do caule (VxD) ou por determinação direta (Kg); R = razão parte aérea (peso seco da parte aérea em Kg)/parte radicial (peso seco das raízes em Kg); FC = fração ou teor de carbono.335 Em geral, conclui Sanquetta,336 os teores médio de carbono em matéria vegetal são de 45% a 55% do peso em matéria seca, variando de parte para parte e dependendo de fatores como densidade e idade. Em estudos de caso realizados pelo mesmo autor, o eucalipto, por exemplo, apresentou a maior estocagem de carbono em menor tempo: 1.667 espécies por hectare do eucalyptus grandis, numa rotação de 7 anos, estocou 19,87 tC/ha.ano e 72,86 tCO2e/ha.ano, 337 onde 1 tonelada de carbono equivale a 3,67 toneladas de dióxido de carbono (1 tC = 3,67 tCO 2e), sendo esse resultado obtido em razão dos pesos moleculares do C e do CO 2 de 12/44.338 Enquanto que a mesma quantidade de araucaria angustifolia armazenou, em 20 anos, 5,48 tC/ha.ano e 20,10 tCO2e/ha.ano e de pinus taeda, 12,35 tC/ha.ano e 45,28 tCO2e/ha.ano, também em 20 anos.339 Especificamente no eucalipto, o carbono estocado distribui-se pelas suas biomassas da forma ilustrada na Figura 19. 335 Cf. SANQUETTA, Carlos Roberto. Mini-Curso. Quantificação de Carbono na Biomassa, 2009, slide 59. Cf. SANQUETTA, Carlos Roberto. Idem, slide 66. 337 Cf. SANQUETTA, Carlos Roberto. Idem, slide 102. 338 Cf. TITO, Marcos Rügnitz (et. al.). Guia para Determinação de Carbono em Pequenas Propriedades Rurais, 2009, p. 3. 339 Cf. SANQUETTA, Carlos Roberto. Mini-Curso. Quantificação de Carbono na Biomassa, 2009, slide 102. 336 120 Figura 19 Estocagem de carbono no eucalipto Eu c a lyp tu sg ra n d is 3,21,7 6,9 Fu ste G a lh o s Fo lh a g e m Ra íze s 88,2 Fonte: SANQUETTA, Carlos Roberto. Mini-Curso. Quantificação de Carbono na Biomassa, 2009, slide 100. A quantificação do carbono em MDL florestal também gera RCE nas seguintes categorias: “. RCE temporária ou RCEt: é uma RCE emitida para uma atividade de projeto de florestamento ou reflorestamento no âmbito do MDL, que perde a validade no final do período de compromisso subsequente àquele em que tenha sido emitida; . RCE de longo prazo ou RCEl: é uma RCE emitida para uma atividade de projeto de florestamento ou reflorestamento no âmbito do MDL, que perde a validade no final do período de obtenção de créditos da atividade de projeto de florestamento ou reflorestamento no âmbito do MDL para o qual 340 tenha sido emitida.” (destaques no original) Segundo Poppe: “A escolha do modo RCEt implica quantificações da biomassa estocada em cada período de compromisso, de maneira independente em relação aos demais períodos, ou seja, a cada novo período de compromisso deve-se realizar um averificação, quantificando o montante de RCE estocado na biomassa e emitindo RCEt equivalente a essa quantia. Paralelamente, as RCEt emitidas no período de compromisso anterior deverão ser substituídas por outros tipos de unidades ou por RCEt válidas. A escolha pelo modo RCEl implica verificações incrementais ao longo da vida útil do projeto. Todos os RCEl emitidos pelo projeto expirarão ao término de sua vida útil. Do ponto de vista do desenvolvedor do projeto, a opção pelo modo RCEt implica ciclos relativamente rápidos de emissões e substituições de RCEt, 340 LIMIRO, Danielle. Créditos de Carbono. Protocolo de Kyoto e Projetos de MDL, 2008, p. 153. 121 mas, fundamentalmente, não gera obrigações de manutenção da biomassa plantada entre os períodos de compromisso. Em outras palavras, cada período de compromisso pode ser considerado um ciclo fechado, no qual a quantia total de biomassa estocada deve ser quantificada para a emissão de RCEt. No caso do modo RCEl, as verificações serão feitas de modo incremental ao longo da vida útil do projeto, ou seja, a biomassa quantificada em uma verificação gerará RCEl, que deverão ser abatidos da quantia verificada no futuro. Desse modo, cabe ao desenvolvedor assegurar a manutenção da biomassa estocada em seu projeto ao longo de toda a sua vida útil, sob pena de ser obrigado a ressarci-la caso ocorra perda no estoque dessa biomassa”.341 Walter e Coltri explicam que: “Visto que o único projeto de MDL florestal registrado no mundo foi implementado no ano de 2006, não existem, ainda, créditos de carbono florestais sendo negociados no mercado de Kyoto. Por outro lado, no mercado voluntário, a exemplo da Bolsa de Chicago, o crédito de carbono florestal tem ganhado o mercado. Empresas florestais brasileiras, como a Klabin, a Irani Celulose e Papel e a Plantar Reflorestamentos já negociaram créditos de carbono por esta modalidade. Vale ressaltar que, o crédito obtido no mercado voluntário não pode ser utilizado pelos países Anexo I para o cumprimento das metas estipuladas no Protocolo de Kyoto. Os créditos do mercado voluntário são adquiridos pelas empresas, bancos, negociadores, etc. com vistas a cumprimento de metas internas de redução de emissões existente em alguns países ou para promoção de marketing ambiental”.342 Destarte, um projeto de florestamento ou reflorestamento enfrenta algumas dificuldades, como os elevados custos para sua implantação, em torno de US$ 60 e 150 mil dólares, e a demonstração de que em 31 de dezembro de 1989 a área alvo do projeto estava degradada.343 Ademais, “há muita polêmica sobre a retenção de carbono nas árvores”,344 na medida em que os estoques de carbono na vegetação são menos permanentes que as reduções alcançadas por outros projetos não florestais de MDL, ante a possibilidade de devolução do carbono para a atmosfera na hipótese de, por exemplo, queima ou perda da floresta, na medida em que, em relação a este último caso, a madeira um dia será decomposta liberando carbono.345 Incertezas mais radicais estão em que florestas plantadas saturar-se-ão 341 342 343 344 345 POPPE, Marcelo Khaled. Manual de Capacitação. Mudança Climática e Projetos de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, 2008, p. 78. WALTER, Michele Karina Cotta e COLTRI, Priscila Pereira. Créditos de carbono – Geração de créditos de carbono por sistemas florestais, 2009. Cf. LIMIRO, Danielle. Créditos de Carbono. Protocolo de Kyoto e Projetos de MDL, 2008, p. 156. YU, Chang Man. Sequestro de Carbono Florestal: oportunidades e riscos para o Brasil, 2002, p. 90. YU, Chang Man. Idem. 122 em carbono, de modo que, a partir daí, devolverão boa parte dele à atmosfera, acelerando, inclusive, o aquecimento global. O argumento está no descompasso entre respiração e fertilização por CO 2: chegando a fertilização ao pico, a respiração aumenta.346 Quanto a esses argumentos, cabe observar que a respiração e/ou a decomposição da árvore são, com efeito, processos físico-químicos naturais que devolvem carbono à atmosfera. Todavia, conquanto a árvore atinja o seu pico máximo em fertilização e crescimento, a fotossíntese certamente continua em ritmo e nível que garantam energia para sobrevivência, reprodução e produção da espécie, notadamente se se tratar de modalidade predominantemente frutífera. Em não se prestando à produção de frutos, a substituição das folhas e galhos perdidos por novos brotos, que é um processo constante na natureza na medida em que nenhuma árvore fica 100% intacta depois que cresce no seu máximo, também demanda energia. Ainda, pesquisa do Instituto Max Planck, em Jena (Alemanha) revela que “florestas maduras são melhores que plantações para estoques de CO 2, pois armazenam uma grande quantidade de carbono (...) principalmente no solo profundo, onde pode permanecer por séculos”. 347 Destarte, na hipótese de projeto comercial, industrial ou agroflorestal, antes que a árvore “sature-se”, conforme alertam os críticos, e devolva carbono para a atmosfera, pode proceder-se à sua derrubada e imediata substituição por mudas que, inevitavelmente no processo de crescimento, compensarão a perda de carbono resultante do abate que precedeu o novo plantio. No tocante ao argumento de que a madeira um dia decompor-se-á e, nesse processo, devolverá carbono para a atmosfera, cumpre destacar que a biomassa aérea e subterrânea, uma vez morta, integra a serapilheira e a matéria orgânica do solo, dois consideráveis estoques de carbono. Outrossim, 346 347 “Combustíveis fósseis são biomassas submersas YU, Chang Man. Sequestro de Carbono Florestal: oportunidades e riscos para o Brasil, 2002, p. 91. YU, Chang Man. Sequestro florestal de carbono no Brasil. Dimensões políticas, socioeconômicas e ecológicas, 2004, p. 75. e 123 decompostas durante as formações geológicas de longa escala temporal”.348 Outra questão que frequentemente contribui para as incertezas e limites dos sumidouros é a soberania territorial do país anfitrião de um MDL florestal. Nas palavras de Bertucci: “É natural, senão óbvio, que nenhum país concorde em subordinar a outros, por meio de um tratado internacional (e indefinidamente), o controle de qualquer parte de seu território. Esta questão, entre outras de natureza científica, deu origem a um dos princípios que rege o tratamento das atividades de uso da terra, mudança no uso da terra e florestas, acordado em Marraqueche, na COP7. Este princípio assegura a reversibilidade, no tempo apropriado, da responsabilidade pelas emissões de gases de efeito estufa aos países emissores. Assim, o caráter temporário associado aos créditos de carbono de atividades de florestamento ou reflorestamento foi guiado, além das questões científicas, por este princípio da reversibilidade, garantindo através do MDL um tempo para que os países industrializados concretizem, em seus territórios, as reduções de emissões necessárias para a consecução dos objetivos da Convenção. Cabe ressaltar que a questão de soberania dos países foi fundamental na definição das atividades florestais elegíveis dentro do MDL, e deverá continuar tendo um peso significativo nas próximas negociações relativas ao tratamento das florestas nos próximos períodos de compromisso”. 349 Nesse sentido, os principais desafios que podem limitar a adoção de um projeto de sequestro florestal de carbono compreendem, na verdade, o conhecimento das técnicas e mecanismos para a quantificação e monitoramento de estoques de carbono e o acesso aos mesmos a um baixo custo, podendo ser transpostos por uma equipe especializada e pelo acesso a linhas de financiamento do governo ou instituições privadas. Por todas essas observações, um MDL florestal consegue impactar positivamente os meios ambiental, social e econômico da forma descrita por Limiro: “Meio ambiental – alívio da pressão sobre as florestas nativas que, hoje por lei, não podem ser manejadas; atendimento da legislação que prevê a recomposição de áreas degradadas; utilização de áreas improdutivas ou ociosas; melhoria dos componentes: fauna e flora; retirada de dióxido de carbono da atmosfera variando de acordo com a área do projeto. Meio social – manutenção e possibilidade de aumento de empregos (10.000 a 12.000 empregos diretos e 50.000 indiretos – projeto em 160.000 hectares); melhoria na qualidade de vida da população envolvida; redução do abandono das propriedades rurais. Meio econômico – aumento de estoque e da produção de madeira; capitalização dos pequenos e médios produtores no médio e longo prazo; 348 349 YU, Chang Man. Idem, p. 66. BERTUCCI, Afonso Celso. O Protocolo de Kyoto e o Mercado de Créditos de Carbono, 2006, p. 34. 124 estímulo do setor florestal na região alvo do projeto”.350 Ou nas palavras de Costa e Meirelles, parafraseando Seroa da Motta, Nishi e Yu: “A principal justificativa para a inclusão de projetos florestais no âmbito do MDL foi baseada na sua eficiência econômica, no sentido de menor custo por unidade de carbono sequestrado, uma vez que são os mais baratos dentre todos os mecanismos previstos. Além disso, podem proporcionar outros benefícios ambientais, como, preservação do solo, melhoramento na qualidade e na disponibilidade da água, proteção da biodiversidade, maior resiliência florestal às mudanças climáticas (NISHI, 2003; YU, 2004), criação de zonas amortecedoras e corredores migratórios, utilização de espécies nativas e favorecimento da manutenção da cobertura florestal permanente (SEROA DA MOTTA et. al., 2000)”.351 Por essas razões é que, ainda em 2001, já eram da ordem de 51 os projetos e esquemas florestais de carbono no mundo, segundo afirma Yu com apoio em informações primárias fornecidas por Landell-Mills e Porras (2002), sendo anfitriões os seguintes países: Argentina, Austrália, Belize, Bolívia, Brasil, Burkina Faso, Canadá, Costa Rica, Equador, EUA, Guatemala, Honduras Indonésia, Malásia, México, Holanda, Panamá, Paraguai, Peru, Polônia, República Tcheca, Rússia, Tanzânia, Uganda, Vietnam. 352 Oportunidade rara para o Brasil “que possui dotação e potencial florestal comparativamente avantajados”,353 o que torna o país hospedeiro atrativo para projetos de sequestro florestal de carbono. Segundo Poppe, o Brasil já submeteu ao Painel Executivo da ONU, para fins de MDL florestal e créditos de carbono, as 3 propostas seguintes: “Plantar S/A: Projeto utilizando eucaliptos para uso industrial. Vai ser realizado em uma área de 9.759 hectares e prevê um seqüestro total de 2,5 milhões de toneladas de CO2 durante um período de creditação fixo de 30 anos. Nesse projeto será monitorado o reservatório de biomassa viva e serão emitidas tCER. AES Tietê: Esse projeto prevê o reflorestamento das Áreas de Proteção Permanente ao redor dos reservatórios do Rio Tietê. O projeto compreende 350 351 352 353 LIMIRO, Danielle. Créditos de Carbono. Protocolo de Kyoto e Projetos de MDL, p. 157. COSTA, Caroline Jácome e MEIRELLES, Maria Lucia. Perspectivas de projetos florestais no Cerrado para a obtenção de créditos de carbono, 2008, p. 390. YU, Chang Man. Sequestro florestal de carbono no Brasil. Dimensões políticas, socioeconômicas e ecológicas, 2004, p. 90-94. YU, Chang Man. Sequestro de Carbono Florestal: oportunidades e riscos para o Brasil, 2002, p. 86. 125 uma área de 8.094 hectares, onde serão plantadas espécies nativas, exigido pela legislação para uma Área de Proteção Permanente (APP). O sequestro total de CO2 será de aproximadamente 2,7 milhões de toneladas ao final de um período de creditação fixo de 30 anos e prevê o recebimento de tCER. O reservatório de carbono a ser monitorado será a biomassa viva. Soroteca Agroflorestal: Projeto a ser implementado em 2.319 hectares, utilizando apenas uma espécie: a teca (Tectona grandis). O projeto espera remover 6,5 milhões de toneladas de CO2 ao final de um período fixo de creditação de 24 anos. O projeto prevê a emissão de tCER e o monitoramento do reservatório de biomassa viva (biomassa acima e abaixo do solo)”.354 Os projetos Peugeot, em Juruena (MT); ACAG, em Guaraqueçaba (PR) e PSCIB, na Ilha do Bananal (TO) também são projetos-piloto de sequestro florestal de carbono no Brasil, os quais, inobstante tenham procurado seguir as regras do Protocolo de Kyoto, não pretendem negociar os créditos de carbono gerados pelo reflorestamento, sendo objetivo do primeiro, por exemplo, contrapor-se, através do plantio de espécies nativas, à imagem ambientalmente negativa das indústrias automobilísticas, consideradas um dos setores mais intensivos em emissão de CO2.355 O projeto ACAG, localizado na Área de Proteção Ambiental (APA) de Guaraqueçaba, no litoral norte do Paraná, e financiado pela Central South West Corporation encampada pela American Eletric Power (CSWC/AEP), do setor de geração de energia elétrica, pela General Motors (GM), do setor automobilístico, e pela Texaco, do setor petrolífero, estruturou-se sobre a compra de fazendas de búfalos, controle e vigilância da reserva e restauração florestal através de espécies nativas da Mata Atlântica.356 Finalmente, o projeto PSCIB, localizado no sudoeste do Tocantins, de modo a abranger a Ilha do Bananal, o Parque Estadual do Cantão e a Área de Proteção Ambiental do Cantão. Financiado pela fundação AES Barry Foundation com aproximadamente US$1.000.000, pela doação de US$120.000 do município de Bolzano, na Itália, e por US$80.000 do Programa Millenium Large Scale Biosphere-Atmosphere Experiment in the Amazon, do Banco Mundial, o projeto PSCIB, cujo componente 354 355 356 POPPE, Marcelo Khaled. Manual de capacitação – Mudança Climática e Projetos de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, 2008, p. 214. YU, Chang Man. Sequestro florestal de carbono no Brasil. Dimensões políticas, socioeconômicas e ecológicas, 2004, p. 157, 187 e 245. YU, Chang Man. Idem. 126 florestal foi dividido em 3 linhas de ação (preservação de floresta madura, restauração de floresta degradada em áreas de Cerrado e implantação de sistemas agroflorestais), não priorizou a geração de créditos de carbono, não assumindo, inclusive, compromisso de metas de carbono a gerar.357 Conforme essa tipologia, o projeto de carbono PSCIB buscou, na verdade, a imagem de responsabilidade ambiental e social da empresa que o financiou. Na corrida para conquistar espaço no mercado global, algumas empresas, no Brasil, perseguiram a expansão de seus negócios com equilíbrio social e ambiental através da volta das matas nativas: “Estima-se que a Grande São Paulo produza e lance na atmosfera 3 milhões de toneladas de carbono em um ano. A AES Tietê, geradora de energia elétrica que atua no estado de São Paulo, pretende compensar esse mesmo volume de emissões num período de cinco anos com o reflorestamento de 126 espécies diferentes de mata nativa em reservas no entorno de suas dez hidroelétricas localizadas no interior paulista. A metodologia criada pela AES, aprovada pela ONU em outubro de 2007 dentro do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), do Protocolo de Kyoto, é uma das poucas no mundo que envolvem obtenção de créditos pela reposição de mata nativa – e até então inédita por aqui. O programa vai exigir que a AES Tietê invista cerca de 40 milhões de reais. No total, a empresa pretende reflorestar quase 5.700 quilômetros nas margens dos rios em que opera, com o plantio de 24 milhões de mudas até 2013. A estimativa é que a floresta compensaria a emissão de 6 milhões de toneladas de carbono ao longo de 30 anos. Considerando a cotação atual da tonelada de carbono no mercado europeu, esse volume de créditos poderia corresponder a cerca de 30 milhões de dólares. A medida também é importante para garantir a manutenção de seus reservatórios de água – e a própria atividade da companhia. Sem o reflorestamento, poderá ocorrer o assoreamento dos reservatórios, o que diminui a quantidade de água e, portanto, de energia produzida. „Como geradora de energia, a empresa garante sua longevidade com a preservação do meio ambiente‟, diz o presidente do grupo AES do Brasil e diretor-presidente da AES Tietê, Britaldo Soares. Para tornar o projeto viável, Soares assinou em setembro um convênio com a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo. A escola atua nas etapas de seleção de espécies, produção de mudas e plantio de restauração. Segundo o coordenador de atividades de campo do projeto da Esalq, Eduardo Gusson, os modelos e as técnicas de plantio levaram em conta a biodiversidade de cada região. Parte da mudas virá de um viveiro que a AES Tietê mantém na cidade de Promissão, a cerca de 460 quilômetros da capital paulista. O restante terá origem em viveiros cultivados pela população local – o que beneficiará cerca de 5.000 pequenos produtores que moram em áreas próximas às de atuação da empresa. Após o término do projeto, parte das mudas cultivadas por esses produtores poderá ser vendida para outras companhias – o que estimulará a 357 YU, Chang Man. Sequestro florestal de carbono no Brasil. Dimensões políticas, socioeconômicas e ecológicas, 2004, p. 157, 187 e 245. 127 geração de renda na região.”358 Outras empresas lutaram pelo mercado global através de floresta plantada com a espécie exótica do eucalipto: “Atualmente a Susano Papel e Celulose tem três milhões de toneladas em créditos de carbono em estoque para comercializar no mercado internacional, já que absorve quase quatro vezes mais do que emite. A empresa começou o processo de certificação desses créditos pelas regras do mercado voluntário da bolsa de Chicago. Até 2010, a companhia pretende acumular 5 milhões de toneladas em crédito – o equivalente a cerca de 25 milhões de dólares, segundo a cotação atual nos Estados Unidos.”359 Para o Brasil, sequestrar carbono florestal pode representar, então, a possibilidade de conservar mais efetivamente as áreas protegidas e de fomentar, com alternativas de modelos de produção ambiental e socialmente mais sustentáveis, o uso mais sustentável da terra em regiões de fronteira agrícola. 2.2 O CASO DO CERRADO NO PLANALTO CENTRAL BRASILEIRO O Brasil se adiantou, em termos de escala produtiva e desenvolvimento tecnológico, na reprodução da sociedade de consumo dos países desenvolvidos no período que sucedeu o pós- Segunda Guerra Mundial.360 Devido à dimensão continental e à abundância de recursos naturais, o País ostentou “uma postura razoavelmente autárquica de desenvolvimento econômico”,361 numa trajetória energo-intensiva de desenvolvimento. “Para aliviar a pressão das desigualdades regionais, e oferecer mais um símbolo do destino manifesto da nação”,362 o governo brasileiro investiu, por exemplo, na construção da Capital Federal no Planalto Central. A ideia de construção da Capital longe do litoral remonta à Constituição da 358 359 360 361 362 MATHEUS, Tatiane. A volta das matas nativas, 2008, p. 36. LOTURCO, Roseli. A luta pelo mercado de carbono, 2008, p. 74. FURTADO, André. Opções tecnológicas e desenvolvimento do Terceiro Mundo, 1994, p. 262. MAY, Peter. Economia ecológica e o desenvolvimento equitativo no Brasil, 1994, p. 241. MAY, Peter. Idem, p. 242 128 República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891: “Art. 2º. Cada uma das antigas Províncias formará um Estado, e o antigo município neutro constituirá o Distrito Federal, continuando a ser a capital da União, enquanto não se der a execução do artigo seguinte. Art. 3º. Fica pertencendo à União, no planalto central da República, uma zona de 14.400 kilômetros quadrados, que será opportunamente demarcada para nella estabelecer-se a futura Capital Federal.”363 Com a pedra inaugural lançada em abril de 1922, os trabalhos iniciados em 1957 e a inauguração em abril de 1960, pelo então Presidente da República Juscelino Kubitschek, Brasília fez parte de um projeto maior. O Nacional Desenvolvimentismo e o Plano de Metas previu, no contexto de suas 30 metas, investimentos em energia (carvão, petróleo), transporte (ferroviário, rodoviário), alimentação (mecanização da agricultura) e indústria de base (papel, celulose).364 Historicamente, o Planalto Central, e mais especificamente o estado de Goiás, em cujas dimensões territoriais foi construída Brasília, esteve ligado, a partir de uma relação de subordinação econômica, ao mercado nacional e internacional. A ocupação começou ainda no século 18 com a descoberta de ouro e pedras preciosas na região, quando, por exemplo, povoados foram assentados no oeste de Goiás. Com a decadência do ciclo do ouro, cerca de 50 anos após o seu início, as atividades desenvolvidas passaram a ser a pecuária extensiva e a agricultura de subsistência, que se seguiram por todo o século 19.365 No século 20, a cidade de Goiânia (GO) foi construída (1934), colônias agrícolas foram instaladas, a nova Capital da República foi inaugurada (1960) e a agricultura e a pecuária foram expandidas (1970). Nas décadas de 70 e 80, cresceram os investimentos do Governo Federal em pesquisas e infra-estrutura. Por exemplo: o Polocentro (1975) destinou créditos subsidiados (sem correção monetária e juros baixos) para custeio, investimento e infra-estrutura de lavoura e pastagem plantada na região, enquanto o Prodecer (1987) expandiu a agricultura comercial em Goiás, com financiamento da Agência 363 364 365 ARRAIS, Tadeu Alencar. Geografia Contemporânea de Goiás, 2006, p. 136. Cf. ARRAIS, Tadeu Alencar. Idem, p. 137. Cf. FALCONI, Luiz Carlos. A exploração econômica do cerrado: formas atuais e caminhos futuros, 2005, p. 261. 129 Japonesa de Cooperação e Desenvolvimento Internacional (Jica). Com apoio em Tabela do IBGE publicada, em 2003, pela Secretaria do Planejamento do Estado de Goiás (SEPLAN-GO), Falconi assim analisa os dados do censo agropecuário goiano nos anos de 1970 e 1995-1996: “a área de pastagem plantada em 1970 (por Goiás e Tocantins) atingia 4.362.064 hectares, e, em 1995 a 1996, Goiás sozinho elevou-a para 14.267.411 hectares, ou seja, 41,9% do território atual. Enquanto isso, a área de matas naturais remanescentes, em 1996, perfazia tão somente 3.774.654 hectares, ou seja, 11,0% do território goiano. E a área ocupada em 1996 pelos estabelecimentos atingia 80,7% do território estadual. (...) Quanto à quantidade de bovinos, Goiás e Tocantins possuíam 7.792.839 de cabeças, em 1970, número que passou em 1995 e 1996 para 16.488.390 cabeças (só em Goiás), este, em 2001, atingiu 19.132.372 de cabeças (o quarto rebanho e a segunda bacia leiteira do Brasil), conforme dados do IBGE (SEPLAN, 2003). O número de tratores existentes em 1970 era de 5.692 unidades, isto é, um trator para cada 6.286,54 hectares, ou um trator para cada 25,4 propriedades. Em 1995 e 1996, foram encontrados 43.313 unidades (7,6 vezes mais), ou seja, um trator para cada 634,28 hectares ocupados (ou 131,04 alqueires goianos), ou, ainda, um trator para cada 2,5 propriedades em média”.366 Arrais também exemplifica: “A soja chega em Goiás ao lado da modernização conservadora367 com grande impacto sobre as relações de produção, mas mantendo, ao mesmo tempo, uma estrutura fundiária concentrada, em que poucos se mantêm com muita terra. Criaram-se, assim, condições para a expansão da agroindústria nessas áreas, fato que vem ocorrendo desde a implantação da Cooperativa Mista dos Produtores do Sudoeste Goiano (Comigo) no início da década de 1970. Na década seguinte, ocorre a incorporação comercial do milho, e depois, já na década de 1990, do complexo grãos-carne, aliado aos grandes grupos agroindustriais. (...) Mas não foram apenas as empresas ligadas à agroindústria que se beneficiaram pela política de incentivos do governo de Goiás. A montadora de veículos Mitsubisch e a fábrica de máquinas agrícolas Cameco, por exemplo, se instalaram em Catalão em 1998 e 1999, respectivamente, tendo como justificativa, além da posição estratégica (próxima ao mercado de consumo Centro-Sul), os incentivos fiscais. Isso também ocorreu com as indústrias farmacêuticas no eixo Goiânia-Anápolis, com os frigoríficos, os 368 laticínios, as cerealistas, as atacadistas, entre muitos outros”. 366 367 368 FALCONI, Luiz Carlos. A exploração econômica do cerrado: formas atuais e caminhos futuros, 2005, p. 267-268. “A modernização da agricultura significou, a bem dizer, a modernização parcial do latifúndio, o que justificou a expressão „modernização conservadora‟”. CARVALHO, Horácio Martins de. O campesinato no século XXI – Possibilidades e condicionantes do desenvolvimento do campesinato no Brasil, 2005, p. 231. ARRAIS, Tadeu Alencar. . Geografia Contemporânea de Goiás, 2006, p. 20-21. 130 No mesmo sentido, as palavras de Fazio: “Agropecuária de Goiás responde diretamente pela quarta parte do PIB do Estado. Mas podemos afirmar que ela caracteriza o perfil econômico do Estado por ser responsável, indiretamente, por cerca de 50% do PIB. Esta justificação é justificada (sic), se lembrarmos em nosso cálculo as atividades produtivas a ela correlatas: comércio de insumos e produtos agrícolas, industrialização de produtos primários, etc”.369 Assim, a exploração do Planalto Central configurou o que se convencionou chamar ocupação da fronteira: processo fomentado pelo próprio Poder Público para ocupação de espaços vazios ou de baixa densidade demográfica, com vistas a incorporá-los ao processo produtivo com a produção de alimentos para o mercado nacional e internacional e geração de divisas para os cofres públicos brasileiros. Era o modelo de exploração racionalista, em que a variável ambiental tinha papel inferior à econômica, pois o importante era produzir muito e de várias formas: “desmatamento para aproveitamento de madeira para as diversas necessidades do homem; urbanização com a criação de cidades, distritos e povoados; (...) queimadas e atividades de agricultura e pecuária” 370 e a construção de malha ferroviária e rodoviária que também constituiu fator de urbanização, na medida em que muitas cidades goianas “nasceram a partir do impacto de estradas como a Belém-Brasília, também conhecida como BR-153.”371 Assim, a constituição do território goiano, por exemplo, não se restringiu aos “limites que vão do paralelo 13 ao norte, na divisa com o Tocantins, o Rio Araguaia a oeste, a Serra Geral de Goiás a leste e o Rio Paranaíba ao sul.”372 A difusão da região goiana e do planalto central como alternativa para abertura agrícola, pecuária e industrial, evidentemente, acentuou os riscos para a vegetação nativa e impactou o seu bioma ilustrado na Figura 20, a seguir. 369 370 371 372 FAZIO, Luciano apud LIMA, Ricardo Barbosa de. Uma visão dos limites da modernidade construída pelo prisma da crise ecológica global: o desencantamento do mundo, 1996, p. 24. FALCONI, Luiz Carlos. A exploração econômica do cerrado: formas atuais e caminhos futuros, 2005, p. 255-256. ARRAIS, Tadeu Alencar. Geografia Contemporânea de Goiás, 2006, p. 24. ARRAIS, Tadeu Alencar. Idem, p. 21. 131 Figura 20 Biomas do Brasil nas regiões político-administrativas Fonte: SCARDUA, Fernando. Responsabilidade Ambiental na Produção Agrícola, 2008, p. 7. O bioma Cerrado, com extensão de aproximadamente 2 milhões de Km2, ocupa 24% do território brasileiro,373 abrangendo, como área contínua, Goiás, Tocantins e o Distrito Federal; parte dos estados da Bahia, Ceará, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Piauí, Rondônia e São Paulo, ocorrendo também em áreas disjuntivas ao norte do Amapá, Amazonas, Pará e Roraima, e ao sul no 373 AQUINO, Fabiana de Gois. Sustentabilidade no Bioma Cerrado: visão geral e desafios, 2008, p. 23. 132 Paraná.374 Registra Falconi que “O vocábulo Cerrado, particípio passado do verbo cerrar, quer dizer fechado, vedado, espesso, compacto, denso, conforme o Novo Dicionário Aurélio”,375 sendo que, no Brasil, também significa “um tipo de vegetação caracterizado por árvores baixas, retorcidas, em geral dotadas de casca grossa e suberosa, espaçadas, e que leva por baixo tapete de gramíneas”.376 De acordo com Ribeiro e Walter, Cerrado é uma palavra de origem espanhola utilizada para significar fechado, igualmente; e foi utilizada por Martius, 377 ainda no século 19, ao lado da palavra tabuleiro, para tratar de diferenças fisionômicas na vegetação do Brasil Central, que, na época, eram conhecidas genericamente por tabuleiros378 e “onde as vegetações rasteiras eram bem desenvolvidas, chamavam-nas de tabuleiros cerrados.”379 Segundo os mesmos autores, no final do século 19, Warming denominou uma das formas de vegetação por ele estudada em Lagoa Santa (MG) de “campos cerrados” ou, simplificadamente, “cerrado”. A partir daí, ao longo do século 20, seguiu-se a falta de uniformidade na utilização do vocábulo, de modo que, desde o século 18, mais de 774 termos e expressões foram empregados para se referir às fitofisionomias do bioma. 380 Após experimentar evolução, o vocábulo é empregado atualmente em 3 acepções: escrito com a inicial maiúscula (Cerrado), designa o bioma predominante no Brasil Central; como “Cerrado em sentido amplo” (lato sensu) diz respeito aos 374 RIBEIRO, José Felipe e WALTER, Bruno Machado Teles. As principais Fitofisionomias do Bioma Cerrado, 2008, p. 156. 375 FALCONI, Luiz Carlos. A exploração econômica do cerrado: formas atuais e caminhos futuros, 2005, p. 257. 376 FALCONI, Luiz Carlos. Idem. 377 “Carl Friedrich Philipp von Martius (17494-1868) foi um importante pensador do século XIX; seus estudos abrangem as áreas de botânica, etnografia, folclore e história. Recebera da Academia de Ciências da Baviera, juntamente com Baptiste von Spix (1781-1826), a responsabilidade de pesquisar as províncias mais importantes do Brasil para formação de coleção de plantas, animais e minerais.” As 5 (cinco) províncias de vegetação eram distribuídas geograficamente em “Nayades (Províncias das Florestas Amazônicas), Dryades (Província das Florestas Costeiras ou Atlânticas), Hamadryades (Província das Caatingas do Nordeste), Oreades (Província dos Cerrados) e Napaeae (Província das Florestas de Araucária e dos Campos do Sul”. MARQUES, Carla Regina Silva e RORIZ, Giovana Ferro de Souza. A concessão de florestas públicas, 2009, p. 10. 378 RIBEIRO, José Felipe e WALTER, Bruno Machado Teles. As principais Fitofisionomias do Bioma Cerrado, 2008, p. 161-162. 379 FALCONI, Luiz Carlos. A exploração econômica do cerrado: formas atuais e caminhos futuros, 2005, p. 257. 380 RIBEIRO, José Felipe e WALTER, Bruno Machado Teles. As principais Fitofisionomias do Bioma Cerrado, 2008, p. 163. 133 diferentes tipos de vegetação do bioma e como “Cerrado em sentido restrito” (stricto sensu) refere-se a um dos tipos fitofisionômicos que integram o tipo citado.381 As principais fitofisionomias do Cerrado incluem, dentre as mais de 11 mil espécies vegetais,382 formações florestais, savânicas e campestres, que se diferenciam entre si pela estrutura da vegetação, conforme ilustrado na Figura 21, a seguir. Figura 21 Principais tipos fitofisiômicos do Cerrado Fonte: RIBEIRO, José Felipe. Disponível em: <http://agencia.cnptia.embrapa.br/Agencia 16/AG01/arvore/AG01_23_911200585232.html> Acesso em: 03 abr. 2010. Nessa vegetação, conforme variações na latitude e na fertilidade e profundidade do solo,383 identificam-se 11 tipos fisionômicos que incluem formações florestais (Mata Ciliar, Mata de Galeria, Mata Seca e Cerradão), savânicas (Cerrado sentido restrito, Parque de Cerrado, Palmeiral e Vereda) e campestres (Campo Sujo, Campo Limpo e Campo Rupestre), em suma, assim caracterizadas: “Por Mata Ciliar entende-se a vegetação florestal que acompanha os rios de médio e grande porte da Região do Cerrado, em que a vegetação arbórea 381 382 383 FALCONI, Luiz Carlos. A exploração econômica do cerrado: formas atuais e caminhos futuros, 2005, p. 257. No mesmo sentido RIBEIRO, José Felipe e WALTER, Bruno Machado Teles. As principais Fitofisionomias do Bioma Cerrado, 2008, p. 161-162. MACHADO, Cynthia Torres de Toledo e MACHADO, Altair Toledo. Agroecologia e agrobiodiversidade como instrumentos para o desenvolvimento sustentável do Cerrado brasileiro, 2008, p. 266. AQUINO, Fabiana de Gois. Sustentabilidade no Bioma Cerrado: visão geral e desafios, 2008, p. 24. 134 não forma galerias. (...) As árvores, predominantemente eretas, variam em altura de 20 m a 25 m, com alguns poucos indivíduos emergentes alcançando 30 m ou mais. (...) Ao longo dos anos as árvores fornecem uma cobertura arbórea variável de 50% a 90%. (...) Por Mata de Galeria entende-se a formação florestal que acompanha os rios de pequeno porte e córregos dos planaltos do Brasil Central, formando corredores fechados (galerias) sobre o curso de água. Geralmente localizase nos fundos dos vales ou nas cabeceiras de drenagem onde os cursos de água ainda não escavaram um canal definitivo. (...) A altura média do estrato arbóreo varia entre 20 m e 30 m, apresentando uma superposição das copas, que fornecem cobertura arbórea de 70% a 95%. (...) Sob a designação Mata Seca estão incluídas as formações florestais no bioma Cerrado que não possuem associação com cursos de água (...) A vegetação ocorre nos interflúvios, em locais geralmente mais ricos em nutrientes. (...) A altura média do estrato arbóreo varia entre 15 m e 25 m. A grande maioria das árvores é ereta, com alguns indivíduos emergentes. Na época chuvosa as copas se tocam, fornecendo uma cobertura arbórea de 70% a 95%. Na época seca a cobertura pode ser inferior a 50%. (...) O Cerradão é a formação florestal do bioma Cerrado com características esclerófilas. Esclerófilo refere-se aos vegetais que apresentam folhas duras, coriáceas. Caracteriza-se pela presença preferencial de espécies que ocorrem no Cerrado sentido restrito e também por espécies de florestas, particularmente as da Mata Seca (...) e da Mata de Galeria. O Cerradão apresenta dossel contínuo e cobertura arbórea que pode osciar de 50% a 90%, sendo maior na estação chuvosa e menor na seca. A altura média do estrato arbóreo varia de 8 m a 15 m. (...) O Cerrado sentido restrito caracteriza-se pela presença de árvores baixas, inclinadas, tortuosas, com ramificações irregulares e retorcidas, e geralmente com evidências de queimadas. (...) Em virtude da complexidade dos fatores condicionantes, originam-se subdivisões fisionômicas do Cerrado sentido restrito, sendo as principais o Cerrado Denso, o Cerrado Típico, o Cerrado Ralo e o Cerrado Rupestre. (...) O Cerrado Denso é um subtipo de vegetação predominantemente arbóreo, com cobertura de 50% a 70% e altura média de 5m a 8 m. (...) O Cerrado Típico é um subtipo de vegetação predominantemente arbóreo-arbustivo, com cobertura arbórea de 20% a 50% e altura média de 3 m a 6 m. (...) O Cerrado Ralo é um subtipo de vegetação predominantemente arbóreo-arbustiva, com cobertura arbórea de 5% a 20% e altura média de 2 m a 3 m. (...) O Cerrado Rupestre é um subtipo de vegetação arbóreo-arbustiva que ocorre em ambientes rupestres (rochosos). Possui cobertura rochosa variável de 5% a 20%, altura média de 2 m a 4 m, e estrato arbustivo-herbáceo também destacado. (...) O Parque de Cerrado é uma formação savânica caracterizada pela presença de árvores agrupadas em pequenas elevações do terreno, algumas vezes imperceptíveis e outras com muito destaque, que são conhecidas como „murundus‟ ou „monchões‟. As árvores, nos locais onde se concentram, possuem altura média de 3 m a 6 m. Considerando um trecho com os agrupamentos arbóreos e as 'depressões' ou 'planos' campestres entre eles, forma-se uma cobertura arbórea de 5% a 20%. Considerando somente os agrupamentos arbóreos a cobertura sobe para 50% a 70% e cai praticamente para 0% nas depressões. (...) A formação savânica caracterizada pela presença marcante de uma única espécie de palmeira arbórea é denominada Palmeiral. (...) No bioma Cerrado podem ser encontrados pelo menos quatro subtipos mais comuns de Palmeirais: (...) macaúba, (...) gueroba ou guariroba, (...) babaçu, (...) 135 Buritizal. (...) A Vereda é a fitofisionomia com a palmeira arbórea Mauritia flexuosa emergente, em meio a agrupamentos mais ou menos densos de espécies arbustivo-herbáceas. Para Magalhães (1996), esses locais formam bosques sempre verdes. As Veredas são circundadas por campos típicos, geralmente úmidos, e os buritis não formam dossel como ocorre no Buritizal. (...) Na Vereda, os buritis adultos possuem altura média de 12 m a 15 m e a cobertura varia de 5% a 10%. (...) O Campo Sujo é um tipo fisionômico exclusivamente arbustivoherbáceo, com arbustos e subarbustos esparsos, cujas plantas, muitas vezes, são constituídas por indivíduos menos desenvolvidos das espécies arbóreas do Cerrado sentido restrito. (...) O Campo Limpo é uma fitofisionomia predominantemente herbácea, com raros arbustos e ausência completa de árvores. (...) O Campo Rupestre é um tipo fitofisionômico predominantemente herbáceo arbustivo, com a presença eventual de arvoretas pouco desenvolvidas de até dois metros de altura. Abrange um complexo de vegetação que agrupa paisagens em micro-relevos com espécies típicas, ocupando trechos de afloramentos rochosos.” 384 (destaquei) Na ocupação do bioma Cerrado, desmatou-se indiscriminadamente a cobertura vegetal original. Segundo Rady, estudos da Universidade Federal de Goiás (UFG) indicam que em 2002, por exemplo, 800 mil Km2 foram devastados, estimando-se que em 2040 a destruição alcance 960 mil Km2; “um aumento equivalente à metade do Estado de Goiás.”385 Destarte, segundo Arruda, no bioma Cerrado estão 82 unidades de conservação de proteção integral, correspondendo a 2,48% do bioma; e 16 unidades de conservação de uso sustentável, equivalente a 0,03% do bioma, totalizando 98 unidades protegidas que correspondem a 2,51% do Cerrado.386 Dentre as 22 ecorregiões do bioma Cerrado (Alto Paranaíba, Araguaia Tocantins, Bananal, Bico do Papagaio, Chapadão do São Francisco, Chiquitania, Complexo Bodoquena, Depressão Cuiabana, Depressão do Parnaguá, Grão-Mogol, Jequitinhonha, Paractu, Paraná Guimarães, Paranaíba, Paranapanema Grande, Parecis, Planalto Central Goiano, Província Serrana, São Francisco-Velhas, Serra da Canastra, Serra do Cipó e Vão do Paranã), a ecorregião do Planalto Central Goiano, que corresponde a 7,84% do Cerrado, apresenta um índice de representatividade 384 385 386 RIBEIRO, José Felipe e WALTER, Bruno Machado Teles. As principais Fitofisionomias do Bioma Cerrado, 2008, p. 164-187. RADY, Karla. A salvação do Cerrado, 2010, p. 27. ARRUDA, Moacir Bueno (et. al.). Ecorregiões, Unidades de Conservação e Representatividade Ecológica do Bioma Cerrado, 2008, p. 240-241. 136 por unidade de conservação de proteção integral de 1,90% e 0,10%, sendo presentes as seguintes unidades de conservação: “P.N. da Chapada dos Veadeiros, P.N. de Brasília, P.E. Altamiro de Moura Pacheco, P.E. da Serra de Caldas Novas, P.E. de Paraná, P.E. dos Pirineus, P.E. Telma Ortegal, E.E de Águas Emendadas, Reserva Ecológica (R. Ec.) do Gama, R. Ec. do Guará, R. Ec. do IBGE, R. Ec. do Lago Paranoá, Reserva Biológica (R. B.) da Contagem, A.S.P.E. Córrego Espanha e Ribeirão S. Izabel, F.N. de Brasília, A.R.I.E. Capetinga/Taquara, A.R.I.E. Cerradão, A.R.I.E. da Granja do Ipu, A.R.I.E. do Bosque, A.R.I.E. JK, A.R.I.E Paranoá Sul e A.R.I.E. Riacho Fundo”.387 Esses índices estão abaixo da média brasileira de 3,52% e da mundial de 10%, o que não dá “garantia de sustentabilidade à biodiversidade na atual conjuntura do Cerrado: avançado grau de antropização e de fragmentação de seus ecossistemas – mais de 80% –, com uma descontrolada erosão genética e biológica em todos os seus recantos”.388 As consequências são visíveis. A paisagem retorcida de espécies da flora do Cerrado cedeu espaço às “formas geométricas homogêneas, a exemplo dos belts norte-americanos, comprometendo as nascentes do Araguaia, um dos mais importantes rios do território goiano, como se vê nas proximidades do Parque Nacional das Emas, no município de Mineiros, Sudoeste Goiano”, 389 “com prejuízos diretos aos recursos hídricos, solo e biodiversidade da região”,390 e efeitos biológicos graves, tais quais as pequenas possibilidades de o sistema retornar ao estado inicial.391 Aquino e Miranda também alertam para a denominada fragmentação atrópica de habitats no Cerrado, consistente no processo, causado pela ação humana, que divide uma área contínua em partes menores, de modo a eliminar e reduzir a quantidade de um habitat e isolar os fragmentos de paisagem remanescentes.392 Os mesmos autores listam as seguintes consequências da fragmentação 387 388 389 390 391 392 ARRUDA, Moacir Bueno (et. al.). Ecorregiões, Unidades de Conservação e Representatividade Ecológica do Bioma Cerrado, 2008, p. 259. ARRUDA, Moacir Bueno (et. al.). Idem, p. 243 e 269. ARRAIS, Tadeu Alencar. Geografia Contemporânea de Goiás, 2006, p. 20. RADY, Karla. A salvação do Cerrado, 2010, p. 27. OLIVEIRA FILHO, Eduardo Cyrino e MEDEIROS, Flávia Natércia da Silva. Ocupação humana e preservação do ambiente: um paradoxo para o desenvolvimento sustentável, 2008, p. 37. AQUINO, Fabiana de Gois e MIRANDA, Guilherme Henrique Braga de. Consequências Ambientais da Fragmentação de Habitats no Cerrado, 2008, p. 385-387. 137 antrópica: a) A diminuição e alteração da área e exclusão inicial, na medida em que fragmentos pequenos podem não assegurar a existência de espécies raras ou de distribuição agrupada; b) Efeito de reunião, com o agrupamento de população excedente em áreas remanescentes; c) Barreira e isolamento, por meio de áreas de cultivos, estradas e rodovias; d) Extinção, inclusive de espécies comuns, devido à menor quantidade de recursos disponíveis; e) Introdução de espécies alóctones, como gramíneas exóticas e animais domésticos asselvajados (cães, gatos e porcos), que representam um risco à biodiversidade, na medida em que, respectivamente, podem dificultar o acesso das plantas em regeneração à luminosidade e transmitir doenças, competir por recursos e predar espécies silvestres; e f) Efeito de borda, que caracteriza uma área de transição entre duas unidades de paisagem com limites arbitrários e geometricamente definidos.393 Nesse diapasão, Lima concluiu que: “O cerrado foi construído enquanto um espaço de desbravamento, onde a organização do caos do espaço natural – desconhecido e profano – não se deu através da sacralização religiosa, mas da violência e rapidez com que foi anexada à fronteira agrícola do país, e do acelerado e desordenado processo de urbanização concentrada que sofreu a partir da construção da Capital Federal. (...) A racionalização extremada, o abandono de qualquer referencial sacralizador, retirou todo entrave mágico a uma ação ininterrupta e incansável do trabalho humano diante da natureza. Os valores que orientavam a ação na esfera econômica passaram a abarcar as ações humanas diante do mundo. O que, pretendemos exemplificar com o caso do cerrado, descrevemos a violência e a rapidez com que vem sendo anexo 393 AQUINO, Fabiana de Gois e MIRANDA, Guilherme Henrique Braga de. Consequências Ambientais da Fragmentação de Habitats no Cerrado, 2008, p. 385-387. 138 nacional ao mundo global, são os limites do projeto de expansão da cultura 394 ocidental.” (destaquei) O limite do projeto expansionista é a própria suportabilidade da vida na Terra, que depende de um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Daí que o setor ambiental brasileiro, governamental e não-governamental, deve, inevitavelmente, dar o próximo passo rumo à direção “da abordagem ecossistêmica biomática”.395 Para tanto, um plano de gestão integrada para o bioma deve ser elaborado, com metas e métodos, com vistas à manutenção ou restauração do Cerrado. Nesse contexto, Aquino e Miranda, fazem as seguintes recomendações para minimizar os efeitos da fragmentação, embasando políticas públicas e ações da sociedade: “. Conservar áreas grandes e contínuas para assegurar a sobrevivência de espécies susceptíveis aos efeitos de borda; . Manter ou restaurar conexões naturais entre fragmentos, como, por exemplo, criar corredores ecológicos e stepping stones; . Minimizar efeitos de borda ao redor de áreas naturais remanescentes, estabelecendo técnicas de manejo adequadas e criando zonas-tampão com baixa intensidade de uso da terra; . Intensificar e proteger rotas de migração da fauna; . Evitar a fragmentação e o isolamento de áreas naturais; . Manter manchas pequenas que possam atuar como últimos refúgios para diversas espécies em regiões altamente fragmentadas; . Manter a vegetação nativa em faixas remanescentes ao longo de rios, cercas, margens de rodovia, redes elétricas e outros corredores, a fim de reduzir o efeito de borda e distúrbios humanos; . Executar o manejo ativo para manter a flora e a fauna nativa nos fragmentos que sofrem com fogo frequente ou com outras interrupções dos processos naturais; . Realizar estudos de lona duração para determinar os mecanismos do efeito de borda e suas implicações no Cerrado”.396 Essa estratégia de proteção dos recursos naturais em terras privadas no 394 395 396 LIMA, Ricardo Barbosa de. Uma visão dos limites da modernidade construída pelo prisma da crise ecológica global: o desencantamento do mundo, 1996, p. 26. ARRUDA, Moacir Bueno (et. al.). Ecorregiões, Unidades de Conservação e Representatividade Ecológica do Bioma Cerrado, 2008, p. 269. AQUINO, Fabiana de Gois e MIRANDA, Guilherme Henrique Braga de. Consequências Ambientais da Fragmentação de Habitats no Cerrado, 2008, p. 394-395. 139 bioma Cerrado, “está baseada no conceito de „paisagens produtivas funcionais‟”, 397 na medida em que promove a atividade econômica (paisagens produtivas) e garante a conservação da biodiversidade e dos serviços ambientais (funcionais). 2.3 OS SISTEMAS AGROFLORESTAIS POTENCIAIS NO CERRADO As práticas agroflorestais mais comuns para o Cerrado incluem o sistema taungya, o sistema regenerativo análogo ou agrofloresta, o quintal florestal, os consórcios agroflorestais comerciais, o cultivo em aleias, os quebra-ventos, os sistemas agroflorestais para recuperação e proteção de reservas e os sistemas agrissilvipastoris. O termo taungya, originalmente usado para designar o cultivo de árvores em regiões de agricultura migratória, atualmente designa a combinação de cultivos agrícolas de ciclo curto, como milho, arroz, feijão e mandioca, no estágio inicial da plantação de floresta, com vistas à diminuição de seu custo. Duboc, Moraes Neto e Melo, exemplificam: “Na Mesorregião da Depressão Cuiabana, Estado de Mato Grosso, em região ecológica de transição de Cerrado para o Pantanal, Matta (2002) avaliou a rentabilidade financeira e o comportamento inicial dos consórcios e do monocultivo do angico (Anadenanthera falcata) e do baru (Dipteryx alata), combinados com as culturas de banana (Musa SP.) e da mandioca (Manihot esculenta). O autor concluiu que o angico desenvolveu-se melhor em maiores densidades de plantio, no monocultivo (1.250 plantas ha-1) e no consórcio com a mandioca (1.250 plantas de angico e 9.375 mandiocas ha1 ). O baru desenvolveu-se melhor em menores densidades de plantios e nos consórcios com as bananeiras (625 plantas de baru e 625 plantas de -1 banana ha ). As maiores rentabilidades financeiras foram provenientes dos sistemas bananeiros em monocultivo ou combinados com baru e mandioca, ou com angico e mandioca”.398 Os sistemas regenerativo análogo ou agrofloresta compreende o cultivo denso, permanente e multiestratificado de espécies lenhosas, que, além da lenha, produzem outros produtos florestais, como o mel. 397 398 KLINK, Carlos Augusto (et. al.). Conservação dos Recursos Naturais em Terras Privadas – O papel das reservas legais no arranjo funcional das paisagens produtivas do bioma Cerrado, 2008, p. 401-402. DUBOC, Eny, MORAES NETO, Sebastião Pires de e MELO, José Teodoro de. Sistemas agroflorestais e Cerrado, 2008, p. 320. 140 O quintal florestal, por sua vez, consiste num conjunto diversificado e multiestratificado de plantas, geralmente de 4 estratos verticais, sendo o primeiro estrato ocupado por plantas medicinais e hortaliças a 1 metro de altura do solo; o segundo composto por plantas como mandioca e milho entre 1 a 3 metros de altura do solo; o terceiro estrato de composição variada, em geral é dominado por espécies frutíferas, como goiaba, entre 3 a 10 metros de altura do solo; e o quarto estrato também é ocupado por árvores frutíferas, como jaca, entre 10 a 20 metros de altura do solo, com grande potencial econômico devido à possibilidade de produção, por exemplo, de geleias, doces, sorvetes e polpas. Já os consórcios agroflorestais ou multiestratificados comerciais, caracterizam-se pelo cultivo de um número limitado de plantas, geralmente menos de 10, diferenciando-se do quintal agroflorestal, cujo objetivo é a melhoria das condições de subsistência do agricultor e sua família, e das agroflorestas, cuja composição é mais diversificada. Aguiar e Almeida, também exemplificam esse sistema: “Aguiar e Almeida (2000) descreveram o sistema de cultivo da gueroba (Syagrus oleracea) em consórcio com o milho (Zea mays) e o feijão (Phaseolus vulgaris), durante os dois primeiros anos de estabelecimento do palmito, em um estudo de caso na Fazenda Pantanal dos Buritis, localizada no município de Aragoiânia-GO. Comparando o Valor Presente Líquido (VPL) do consórcio com três cultivos, laranja-pêra-rio, milho e arroz de sequeiro, os autores concluíram que, para as condições vigentes de mercado e níveis de tecnologia considerados, o sistema gueroba proporcionou o maior retorno do capital investido e a maior relação benefício/custo”.399 O cultivo em aleias caracteriza-se pelo crescimento de árvores em densas sebes e de cultivos de ciclo curto, como milho, feijão, mandioca e soja, entre as aleias, sendo que a sombra das copas das árvores controla as ervas daninhas e regula a luminosidade. Os quebra-ventos, por seu turno, são estruturas vegetais que reduzem ou modificam a direção dos ventos, de maneira a proteger as culturas, os animais e as instalações, por exemplo. Os sistemas agroflorestais para recuperação e proteção de reservas têm 399 AGUIAR e ALMEIDA apud DUBOC, Eny, MORAES NETO, Sebastião Pires de e MELO, José Teodoro de. Sistemas agroflorestais e Cerrado, 2008, p. 323. 141 recebido maior atenção devido à intensificação da fragmentação florestal antrópica no Cerrado como típica região de fronteira agrícola, e sua utilização pode viabilizar o manejo sustentável dos fragmentos. Finalmente os sistemas agrissilvipastoris, que incluem a exploração integrada de árvores, cultivos agrícolas, forrageiras e animais que realizam pastejo, podendo produzir, por exemplo, madeira, grãos, carne e leite. É que as árvores em pastagens, ao reduzirem os extremos climáticos com a produção de sombras, adição de matéria orgânica ao solo e fixação de carbono, contribuem para o aumento da produção de forragem; do leite, entre 12 e 15% e da taxa de concepção dos animais, em 20%, na medida em que se alteram os hábitos de pastejo com o sombreamento (maior descanso e menor estresse dos animais e melhor distribuição da ruminação durante o dia). A esse respeito, segue exemplo de Silva: “O sistema agroflorestal, adotado pela Fazenda Bom Sucesso, da Companhia Mineira de Metais, no Município de Vazante, localizada em pleno Cerrado, tem apresentado resultados positivos, tanto para o uso do solo, como para auto-sustentabilidade econômico-financeira do empreendimento. O eucalipto, plantado no espaçamento de 10 m x 4 m, é consorciado com arroz no primeiro ano (média de 35 sc. ha-1). Colhida a soja, planta-se o capim, principalmente a Brachiaria bizantha, como componente forrageiro para o gado, para recria e/ou engorda, o qual é solto -1 após estabelecimento do capim, obtendo-se em média 850 Kg ha de carne. A madeira é cortada após um ciclo agrissilvipastoril de 10 anos. No segundo ciclo, as produtividades são superiores, cerca de 20% para os grãos e 20% para a madeira, em relação ao obtido no primeiro ciclo. Com as 250 plantas por hectare, obtém-se, na maioria das áreas, incremento médio anual de 40 metros estéreos por hectare, dos quais 50% de madeira para serraria (SILVA, 2004)”.400 Nesse contexto, é necessário enfatizar que uma agropecuária produtiva e sustentável passa, inevitavelmente, pela restauração de áreas degradadas, manutenção de processos ecológicos e proteção da água e do solo através, por exemplo, do cultivo de florestas, hábeis à produção de produtos florestais e à prestação do serviço ambiental de sequestrar carbono florestal. Cabe observar que a definição de floresta, como formação vegetal com cobertura mínima de 30% e árvores com altura mínima de 2-5 metros, restringe as 400 SILVA apud DUBOC, Eny, MORAES NETO, Sebastião Pires de e MELO, José Teodoro de. Sistemas agroflorestais e Cerrado, 2008, p. 330-331. 142 áreas elegíveis no Cerrado para realização das atividades de (re) florestamento no âmbito do MDL do Protocolo de Kyoto, dada a predominância das formações savânicas na região. Permite, no entanto, projeto de MDL para a recuperação e o enriquecimento da cobertura florestal em áreas de reserva legal e de preservação permanente, como a Mata Ciliar, bem como de outros domínios do Cerrado antes cobertos por vegetação tipicamente florestal, como Mata de Galeria, Mata Seca, Cerradão, Cerrado sentido restrito e Parque de Cerrado. Dentre as espécies nativas do Cerrado com potencial de uso em projetos florestais no âmbito do MDL, listam-se algumas na Tabela 1. Tabela 1 Espécies nativas do Cerrado com potencial de uso em projetos de MDL florestal NOME COMUM (NOME CIENTÍFICO) Macaúba (Acrocomia aculeata Lodd) Pau-marfim (Agonandra brasiliensis Miers) Marmelada-de-bezerro (Alibertia edulis L. Rich.) Amburana (Amburana cearensis A.C. Smith) Angico, angico-docerrado (Anadenanthera falcata Speg.) Araticum (Annona crassiflora Mart.) Embira-branca, pau-dejangada (Apeiba tibourbou Aubl.) 401 402 Corticífero é o que produz cortiça. Tanífero é adstringente, coagulante USO ALTURA (METROS) Alimentício, artesanal, forrageiro, ornamental, oleaginoso, melífero Corticífero,401 madeireiro, medicinal, tintorial 20 Alimentício, ornamental, medicinal Aromático, madeireiro, medicinal 8 12 8 a 20 Madeireito, medicinal, ornamental, tanífero402 35 Alimentício, medicinal 8 Artesanal, madeireiro, medicinal, ornamental 25 143 NOME COMUM (NOME CIENTÍFICO) Amarelão,amarelinho, garapa (Apuleia leiocarpa Macbr.) Guatambu, peroba (Aspidosperma macrocarpon Mart.) Aroeira-do-campo, Gonçalo-alves (Astronium fraxinifolium Schott) Paricarana, sucupirapreta (Bowdichia virgilioides Kunth.) Pau-terra-do-mato, tapicuru (Callisthene major Mart.) Guanambi, guanandicarvalho (Callophylum brasiliense Camb.) Jequitibá (Cariniana estrellensis Kuntze) Pequi (Caryocar brasiliense Camb.) Caroba, erva-de-teiú, guaçatonga, pitomb-defolha-miúda (Casearia sylvestris Sw.) Canafístula (Cassia ferruginea Schrad) Cedro, cedro-rosa (Cedrela odorata Linn.) Copaíba (Copaifera langsdorffii Desf.) Caimbé, lixa, lixeira, marajoara (Curatella americana Linn.) USO ALTURA (METROS) Madeireiro, medicinal, ornamental, tanífero 25 Artesanal, madeireiro, melífero 15 Resinífero, madeireiro, medicinal, ornamental, tanífero 30 Madeireiro, medicinal, melífero, ornamental 20 Madeireiro, medicinal, ornamental, tanífero 20 Madeireiro, medicinal, melífero, ornamental, resinífero 15 Madeireiro, medicinal, ornamental, tanífero 40 Alimentício, medicinal, melífero, oleaginoso 7 Madeireiro, medicinal 10 Madeireiro, medicinal, ornamental, tanífero 10 Aromático, madeireiro, medicinal, ornamental, tanífero, resinífero Madeireiro, medicinal, melífero, ornamental, tintorial Madeireiro, medicinal, melífero, ornamental, tanífero 20 35 8 144 NOME COMUM (NOME CIENTÍFICO) Cabiúna-do-cerrado, jacarandá-do-cerrado (Dalbergia miscolobium Benth.) Barbatimão-falso, barbatimão-de-folhamiúda, faveira (Dimorphandra mollis Benth.) Baru (Dipteryx alata Vog.) Aderno, carvalho, faia, limão-do-mato (Emmotum nitens Miers.) Paineira (Eriotheca pubescens Schott & Endler) Cagaita (Eugenia dysenterica Mart.) Mutamba (Guazuma ulmifolia Lamb.) Mangaba (Hancornia speciosa Gomez) Jatobá (Hymenaea stigonocarpa Mart.) Ingá (Inga alba Willd) Folha-santa, pau-santo (Kielmeyera coriacea Mart.) Piquirana (Lamanonia tomentosa O. Kuntze) Açoita-cavalo, estriveira (Luehea paniculata Mart.) Guaximbé, jacarandá-docampo (Machaerium acutifolium Vog.) USO ALTURA (METROS) Artesanal, madeireiro, ornamental, tintorial 12 Forrageiro, medicinal, ornamental, tanífero 15 Alimentício, forrageiro, madeireiro, medicinal, melífero, ornamental, oleaginoso, tanífero Madeireiro ornamental 15 Artesanal, melífero, ornamental, produtora de fibra Alimentício, medicinal, melífero, tanífero, ornamental Artesanal, alimentício, cosmético, madeireiro, medicinal, ornamental, tintorial, produtora de fibra Alimentício, medicinal, ornamental, laticífero 10 Alimentício, indústria de verniz, madeireiro, medicinal, tinorial Alimentício, ornamental 10 Corticífero, melífero, ornamental, tintorial 8 Madeireiro, medicinal, ornamental, tanífero 15 Madeireiro, medicinal, melífero, ornamental, tanífero, tintorial Madeireiro, medicinal, ornamental 10 12 10 10 7 10 10 145 NOME COMUM (NOME CIENTÍFICO) Cuité, mata-peixe, timbó (Magonia pubescens A. St. Hil.) Buriti (Mauritia flexuosa Linn. f.) Braúna, garaúna, ibiraúva (Melanoxylon braunia Schott) Sabiá (Mimosa lacticifera Rizzini & Mattos Filho) Aroeira, aroeira-preta (Myracrodruon urundeuva Fr. Allem.) Bálsamo, pau-debálsamo (Myroxylon peruiferum Linn. f.) Olho-de-cabra, tento (Ormosia fastigiata Tul.) Pau-rosa (Physocalymma scaberrimum Pohl) Candeia, oiteira, vinhático (Plathymenia reticulata Benth.) Angelim-rosa, boleiro (Platycyamus regnelli Benth.) Jacarandá-branco (Platypodium elegans Vog.) Curriola, guapeva (Pouteria ramiflora Radlk.) Imbiruçu (pseudobombax longiflorum A. Robyns) Sucupira-branca (Pterodon emarginatus Vog.) USO ALTURA (METROS) Artesanal, madeireiro, melífero, ornamental, toxicóforo, oleaginoso, tanífero Alimentício, artesanal, medicinal, ornamental, oleaginoso, tanífero Madeireiro, medicinal, ornamental, tanífero, tintorial 10 Madeireiro, ornamental, laticífero 7 Madeireiro, medicinal, ornamental, tanífero, melífero Madeireiro, medicinal, ornamental, aromático, tanífero 25 Artesanal, madeireiro, tintorial, tanífero Madeireiro, ornamental, tintorial 20 Artesanal, madeireiro, ornamental, tintorial 10 Madeireiro, medicinal, ornamental 25 Madeireiro, ornamental 20 Alimentício, madeireiro, ornamental 8 Artesanal, ornamental, produtor de fibra 15 Madeireiro, medicinal, melífero, ornamental 15 15 20 20 15 146 NOME COMUM (NOME CIENTÍFICO) Pau-terra-de-folha-larga (Qualea grandiflora Mart.) Bacupari, saputá (Salacia crassifolia Peyr.) Capotão, pau-de-arara (Salvertia convallariaeodora A. St. Hil.) Carvoeiro (Sclerobium paniculatum var. subvelutinum Vog.) Chicha-do-cerrado, xixá (Sterculia striata A. St. Hil.) Laranjinha-do-cerrado (Styrax ferrugineus Nees & Mart.) Ipê-amarelo (Tabebuia aurea Bur.) USO ALTURA (METROS) Artesanal, madeireiro, medicinal, ornamental, tintorial Alimentício, artesanal 30 Artesanal, madeireiro, medicinal, ornamental 12 Madeireiro, melífero, tintorial 10 Alimentício, madeireiro, ornamental, tanífero 25 Aromático, forrageiro, melífero 15 Madeireiro, medicinal, melífero, ornamental, tintorial 10 6 Fonte: adaptado de COSTA, Caroline Jácome e MEIRELLES, Maria Lucia. Perspectivas de projetos florestais no cerrado para a obtenção de créditos de carbono, 2008, p. 401-406. A Plantar S/A adotou MDL florestal tipicamente comercial, ao desenvolver em Curvelo, Minas Gerais, projeto de substituição energética combinada com seqüestro florestal de carbono através de eucalipto em região de Cerrado: “Seu objetivo central é utilizar os créditos de carbono como uma estratégia para viabilizar a produção de ferro gusa a carvão vegetal da empresa Plantar S/A. A racionalidade baseia-se em evitar a conversão do carvão vegetal para o carvão mineral (coque) na indústria metalúrgica de ferro gusa e plantar eucaliptos para se auto-abastecer de carvão vegetal. (...) A empresa Plantar S/A visa, com este projeto, vender créditos de carbono a empresas internacionais intensivas na emissão de GEE que necessitam de CERs para complementar sua obrigação de redução de emissão nos seus respectivos países. Os créditos viabilizariam o reforestamento (...) permitindo, à companhia, manter as atividades florestais. (...) O projeto baseia-se em três componentes para a geração de créditos de carbono: um deles de substituição energética, que evita a emissão na fonte; um florestal, que seqüestra o carbono; e um de eficiência tecnológica, de menor impacto, que também evitaria a emissão na fonte. São eles: 147 a) Evitar o uso do carvão mineral na produção do ferro gusa. Estima-se que a cada tonelada de gusa produzida com o carvão vegetal, no lugar de carvão mineral, se deixaria de emitir 0,53 tC (1,93 t de CO2), cujo valor, multiplicado pela produção anual de gusa da siderúrgica da Plantar, de 180.000 t/ano, acumulado nos 21 anos, totalizaria 2,1 milhões tC (7,3 milhões t de CO2); b) O reflorestamento de 23.100 hectares de eucalipto estabelecidos em áreas de pasto ou em reflorestamentos antigos de eucaliptos, no final do terceiro e último ciclos, manteria uma fixação média de 1,2 milhão tC (4,54 milhões tCO2); c) O aprimoramento do desenho dos fornos de carbonização (com aproximadamente 2.000 fornos em funcionamento). A meta é reduzir em 70% a emissão de metano no processo de carbonização, cujo gás é muito prejudicial para o aquecimento global. Estima-se que este componente evitaria a emissão de metano corresponde a 117.000 tC de CO2 equivalente (440.000 tCO2). Com estes três componentes, prevê-se que o Projeto Plantar evitaria e sequestraria um total de 3,31 milhões tC equivalente (12,28 milhões t de CO2) num período de 28 anos – sete anos correspondentes ao tempo necessário para o crescimento do eucalipto e 21 anos correspondentes ao tempo de substituição da matéria-prima utilizada na indústria”.403 Ainda, segundo Rezende, em estudo realizado em uma área de 63,54 há de Cerrado sensu stricto destinada a projetos silviculturais na Reserva Ecológica e Experimental da UnB, fazenda Água Limpa, tomou-se como base os dados de um inventário realizado desde 1985, a cada 3 anos, “e verificou-se que a produtividade média do Cerrado sensu stricto estudado em volume, biomassa lenhosa verde, biomassa lenhosa seca e estoque carbono é de, respectivamente, 25,10 ± 2,83 m3.ha-1; 20,04 ± 2,23 ton.ha-1; 9,85 ± 1,08 ton.ha-1 e 4,93 ± 0,54 ton.ha-1”.404 No mesmo bioma Cerrado, Tsukamoto Filho realizou estudo na Fazenda Riacho, pertencente à Companhia Mineira de Metais (CMM), localizada no município de Paracatu, noroeste de Minas Gerais: “Neste estudo constatou-se que a rotação técnica com base no volume de madeira de eucalipto no sistema agrissilvipastoril ocorreu aproximadamente aos 6 anos de idade. Nesta ocasião, o volume determinado foi de 158,41 3 m /ha. A rotação econômica ocorreu aos 7 anos, com US$17,82/ha/ano, segundo o critério B(c)PE, considerando a venda de madeira para energia. A rotação econômica se estendeu para 11 anos quando parte da madeira se destinou ao uso em serraria. De acordo com o volume calculado e as especificações técnicas da análise, o sistema agrissilvipastoril mostrou-se viável economicamente mesmo no cenário onde toda madeira foi vendida 403 404 YU, Chang Man. Sequestro florestal de carbono no Brasil – Dimensões políticas, socioeconômicas e ecológicas, 2004, p. 196-226. REZENDE, Alba Valéria (et. al.). Comparação de modelos matemáticos para estimativa do volume, biomassa e estoque de carbono da vegetação lenhosa de um cerrado sensu stricto em Brasília, DF, 2006, p. 75. 148 para energia. Nas idades de rotação técnica e rotação econômica de volume de madeira, a madeira de eucalipto no sistema agrissilvipastoril apresentou maior quantidade de biomassa que, em ordem decrescente, o litter, a raiz, a casca + galho e a folha. Com o aumento da idade, a biomassa de madeira, casca + galho e litter aumentou, ocorrendo o inverso com a biomassa de folha a partir do ano 2 e de raiz após o ano 7. A quantidade de C fixado pelo eucalipto no sistema agrissilvipastoril variou de 3,80 (ano 1) a 80,67 t/ha (ano 11), devendo ser ressaltado que na idade de rotação técnica de volume de madeira o total fixado foi de 52,82 t/ha e na idade de rotação econômica de 59,25. Em termos de CO2, os números foram de 193,33 t/ha seqüestradas na rotação técnica e de 216,84 t/ha na rotação econômica. O litter de eucalipto apresentou grande potencial de fixação de C ao longo fdo tempo, no sistema agrissilvipastoril. Em números, representou um aumento de 16,57 e de 16,36% no C total, na rotação técnica de volume de madeira e na rotação econômica, respectivamente. A madeira foi a parte da árvore de eucalipto que mais contribuiu para a fixação de C no sistema agrissilvipastoril, em todas as idades ao longo do ciclo de produção de 11 anos, incluindo, portanto, as idades de rotação técnica e rotação econômica de volume de madeira. Nessas idades, depois da madeira, o litter foi o componente que mais fixou C, seguido pela raiz, pela casca + galho e pela folha. A maior quantidade de C fixado pelo eucalipto no sistema agrissilvipastoril encontrou-se na parte aérea, formada pela madeira, pela folha e pela casca + galho, correspondendo a 73,26% do C total fixado (parte aérea + raiz + litter) na rotação técnica de volume de madeira e a 74,65% do fixado na rotação econômica. A participação da raiz foi de 12,50 a 11,29%, respectivamente. A fixação de C pelo eucalipto no sistema agrissilvipastoril foi maior que nos espaçamentos 3 x 3 m, exceto para o ano 1, e nos espaçamentos 3 x 2 m, exceto para os anos 1, 10 e 11. Os sistema agrissilvipastoril fixou maior quantidade de C na madeira que os espaçamentos 3 x 2 m e 3 x 3 m, em todas as idades. Na parte aérea, a quantidade de C fixado também foi maior no sistema agrissilvipastoril, nas idades de rotação técnica e rotação econômica de volume de madeira. A rotação técnica com base no C fixado pelo eucalipto ficou assim definida: a) sistema agrissilvipastoril (C na madeira): aproximadamente aos 6 anos de idade, coincidindo com a rotação técnica de volume de madeira; b) sistema agrissilvipastoril (C parte aérea): 5 anos; c) sistema agrissilvipastoril (C total + litter): % anos; d) espaçamentos 3 x 2 m e 3 x 3 m (C na madeira): 7 anos; e) espaçamentos 3 x 2 m e 3 x 3 m (C na parte aérea): 6 anos; e f) espaçamentos 3 x 2 m e 3 x 3 m (C total + litter): 5 anos. Portanto, o sistema agrissilvipastoril foi considerado o mais indicado para projetos de fixação de C, pois na idade de 5 anos o eucalipto nesse sistema fixou maior quantidade de C que nos espaçamentos 3 x 2 m e 3 x 3 m. (...) No sistema agrissilvipastoril, considerando todos os seus componentes, a idade técnica de corte com base no C total, incluindo o litter, ocorreu aos 4 anos de idade. A rotação passou para 5 anos, quando somente o C na madeira foi considerado na análise. As culturas agrícolas e a pastagem provocaram a antecipação da rotação técnica de C no sistema agrissilvipastoril. Esse sistema fixou mais C que o eucalipto em monocultivo, plantado nos espaçamentos 3 x 2 m e 3 x 3 m, que os monocultivos de arroz e soja e que a pastagem a céu aberto, sendo, então, uma ótima opção para projetos de 149 MDL no Brasil”.405 Outra opção viável para o Cerrado é o desenvolvimento de um sistema agroflorestal sustentável, voltado à restauração de áreas degradadas e financiado “por mecanismos do mercado voluntário de carbono, mais flexíveis e com menor nível de exigência, comparativamente às regras estabelecidas no Protocolo de Kyoto”.406 Nesse sentido, Brito e Câmara narram experiência de uso sustentável, fora do âmbito do Protocolo de Kyoto, dos recursos naturais na Área de Preservação Ambiental (APA) Bacia do Rio São Bartolomeu, no Distrito Federal com Goiás: “O IBAMA, através da Divisão de Conservação de Ecossistemas e SUPES/DF e em parceria com a EMATER/DF, vem executando um trabalho de desenvolvimento sustentado em um núcleo rural no DF, tendo alcançado resultados altamente positivos para a proteção ambiental nesta APA. Em 1994, foi escolhido, dentre vários núcleos rurais avaliados na APA, o Núcleo de Rajadinha, pertencente à administração regional de Planaltina/DF. Alguns critérios utilizados foram a existência de um certo nível de organização comunitária, pois já existia a Associação Comunitária de Rajadinha, atuante e com local para realização de reuniões, a região estava ainda relativamente bem conservada e a agricultura era a tradicional, com utilização intensa de agrotóxicos e biocidas, prática esta proibida pela atual instrução normativa da APA e totalmente incompatível com os objetivos de criação da mesma, destacadamente a proteção dos mananciais para utilização futura como abastecimento da Capital Federal, além uma boa aceitação por parte da população local de discutir com o IBAMA processos alternativos de produção agrícola menos danosos ao meio ambiente. A Coordenação da DICOE decidiu desenvolver este trabalho a partir da percepção dos dois técnicos designados para o mesmo, sendo uma técnica da DICOE com experiência em trabalhos comunitários e um técnico da SUPES com experiência em educação ambiental. Inicialmente buscou-se a participação em reuniões junto à comunidade, palestras e trabalhos práticos na escola e visitas às residências, procurando-se identificar os conhecimentos e as práticas das pessoas, observando-se as habilidades e o potencial das mesmas para produção comercial de produtos feitos para consumo próprio. O nível econômico em geral era baixo, com produção agrícola em pequena escala e pouco diversificada. Ao mesmo tempo observou-se hábitos danosos à fauna local, principalmente pelas crianças. Os adultos, em sua maioria, nem sabiam que moravam dentro de uma APA federal e das restrições existentes no âmbito legal aos usos do solo e demais recursos naturais. Vários produtores rurais já haviam sido multados pela fiscalização do IBAMA, devido ao uso indiscriminado de agrotóxicos e seus condicionamentos inadequados, além de desmatamentos não licenciados ou em áreas protegidas legalmente, como matas de galeria em áreas de 405 406 TSUKAMOTO FILHO, Antonio de Arruda. Fixação de carbono em um sistema agroflorestal com eucalipto na região do Cerrado de Minas Gerais, 2003, p. 79-81. COSTA, Caroline Jácome e MEIRELLES, Maria Lucia. Perspectivas de projetos florestais no Cerrado para a obtenção de créditos de carbono, 2008, p. 440. 150 preservação permanente. Os mesmos consideravam o IBAMA como um órgão punitivo e indesejável. Esta realidade começou a mudar a partir do momento que o IBAMA passou a apontar alternativas econômicas, discutir o que poderia ser melhorado na vida das pessoas, auxiliar na discussão de problemas gerados pela falta de infra-estrutura, assim como despertar a atenção das autoridades de governo sobre o potencial da região e sua importância no contexto da proteção ambiental. (...) Paralelamente, foi identificado um número elevado de árvores frutíferas plantadas nas propriedades e um alto desperdício das frutas, que caíam e apodreciam no chão. Somente uma ou outra dona-de-casa fazia um doce caseiro ou suco para consumo próprio. Levou-se então á discussão a possibilidade do IBAMA apoiar a comunidade a montar uma pequena unidade processadora de frutas para a produção de sucos e extratos concentrados. (...) Aceita a proposta pela comunidade, o IBAMA celebrou convênio com a associação comunitária, repassando recursos financeiros na ordem de R$ 15.000,00, fornecido pelo Centro Nacional de Populações Tradicionais (CNPT/IBAMA) e a cessão de móveis de escritório e um microcomputador. O galpão da fábrica foi construído com financiamento obtido através do Programa de Verticalização da Economia do Produtor Rural, do Governo do Distrito Federal. (...) A agroecologia passou a ser discutida e praticada, buscando-se uma melhoria qualitativa das condições de fertilidade natural do solo e da melhor qualidade nutricional da produção final. (...) Este trabalho foi registrado pela Universidade de Brasília/Departamento de Comunicação através do vídeo intitulado Rajadinha: a natureza tem endereço.”407 (destaques no original) Ainda em Goiás, no assentamento Presente de Deus, no município de Goianésia, uma das práticas do Projeto Cerrado Vivo, que tem o patrocínio da Petrobras, é o sistema agrissilvipastoril, cuja definição se baseia na integração, em uma mesma área, de animais, árvores, cultivos agrícolas e pastagem: “A 1ª etapa do Sistema já foi implantada, em 11 parcelas do assentamento, sendo realizado o preparo do solo e o plantio das espécies arbóreas e agrícolas. Uma das vantagens deste Sistema é o aumento considerável na produção de leite e das culturas, sombreamento para os animais, maior qualidade de pastagem, aumento na biodiversidade local, sem esgotamento do solo e prejuízos ao meio ambiente”.408 Na mesma direção, a estratégia utilizada pela Organização NãoGovernamental The Nature Conservancy do Brasil (TNC) no projeto Cerrado 407 408 BRITO, Francisco A. e CÂMARA, João B. D. Democratização e Gestão Ambiental – Em busca do desenvolvimento sustentável, 2002, p. 218-221. Diário da Manhã, Goiânia, p. 20, 30 abr 2010. 151 Sustentável, para efetivar o estabelecimento de áreas de reserva legal e a recuperação e manutenção de áreas de preservação permanente nos imóveis agrários do município de Lucas do Rio Verde, no Mato Grosso: “Lucas do Rio Verde é um dos principais pólos de desenvolvimento agrícola do Estado. Localizado a 350 Km de Cuiabá, pela rodovia BR 163, o município possui área de 360.000 há e participa com cerca de 1% da produção nacional de grãos, ou seja, cerca de 1,2 milhão de toneladas/ano, especialmente de soja e milho. O município passa pela transição para um segundo ciclo de desenvolvimento econômico, baseado na verticalização da produção, que consiste na transformação de proteínas vegetais (grãos) em proteínas animais (aves e suínos). Indústrias de processamento de carne e de esmagamento de soja para a produção de óleo vegetal e biodiesel já se instalaram no município, que possui boa malha viária e infraestrutura energética, além de indicadores sociais elevados. Exibe o terceiro maior índice de desenvolvimento humano (IDH) do Estado, 100% da população tem acesso a serviços públicos de saúde e água encanada, e as escolas públicas oferecem ensino qualificado. O objetivo do projeto foi tornar ambientalmente legal todo o município. Ou seja, Lucas do Rio Verde será o primeiro município a ter todas as propriedades rurais regularizadas de acordo com o Código Florestal Brasileiro. O programa Lucas do Rio Verde é uma iniciativa da prefeitura municipal e da TNC, e conta com a parceria de órgãos públicos e privados, além do Ministério Público Estadual. (...) Como parceiros, o projeto Lucas do Rio Verde Legal conta com a Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema), o Ministério Público de Mato Grosso, o Sindicato Rural, a Fundação Rio Verde, a Sadia, o Instituto Sadia de Sustentabilidade, a Syngenta e a Fiagril. Para essas empresas, Lucas do Rio Verde apresenta não apenas uma oportunidade de consolidação do agronegócio, mas também um modelo de estratégias e políticas de responsabilidade socioambiental. Alguns resultados importantes já foram alcançados pelo projeto, como: a) 90% do território do município está no domínio do bioma Cerrado, e os 364.987 há do município foram mapeados em 90 dias; b) cerca de 81% das propriedades rurais possuem área de até 520 há; c) toda a base de dados do município foi georreferenciada (banco de imagens SPOT, na resolução 10 m ajustada às bases de dados cartográficos da Sema, e a outros planos de informações do município); d) o georreferenciamento das propriedades rurais foi atualizado; e) a cobertura vegetal foi medida; f) um programa de uso de pesticidas foi implementado; e g) um estudo sobre as condições trabalhistas foi concluído. (...) Atualmente, encontram-se em fase de elaboração: a) relatório analítico sobre as oportunidades econômicas e ambientais para o estabelecimento dos critérios de regularização das ARLs, por meio de compensação extrapropriedade; b) relatório de práticas e condutas trabalhistas nas propriedades rurais; c) estabelecimento de um plano municipal de restauração florestal em parceria técnica com a USP-Esalq; d) identificação dos mecanismos financeiros para a aquisição da áreas de compensação de ARLs com base em critérios técnicos; e e) estabelecimento de Termos de Ajuste de Conduta (TACs) para a regularização ambiental. (...) Esses estudos no campo mostram que o fortalecimento das parcerias com produtores rurais e suas representações, com empresas do agronegócio, com outras ONGs e com órgãos ambientais do governo favorecem o diálogo dentro da cadeia produtiva. Demonstram também que o cadastramento e o 152 diagnóstico ambiental de cada propriedade rural são viáveis, e que seus custos de implementação podem ser minimizados. A melhor forma de resolver a regularização ambiental da agricultura, que é, geralmente, a de mais baixo custo, é o cumprimento do Código Florestal. Como exemplificado anteriormente, ela passa pelo cadastro ambiental de cada propriedade, pelo diagnóstico da sua condição ambiental em coerência com a legislação e pelo estabelecimento de projetos para a manutenção e recuperação das APPs e, finalmente, pela criação das ARLs. (...) Nossa análise do Sistema de Licenciamento Ambiental em Propriedades Rurais (SLAPR), em Mato Grosso, e do Sisleg, no Paraná, e da proposta das Cotas de Reserva Florestal (governo federal) mostra que há dificuldades a superar, tais como falta de incentivos para os produtores, um mercado de compensação ainda incipiente, a falta de incentivos de mercado que possam ajudar na conservação e, em diversos casos, a fragilidade dos títulos de propriedade. Esses desafios apontam para a possibilidade do fortalecimento dos programas de certificação, e para a criação de programas de incentivo e de fortalecimento das servidão florestal, que possam despertar o interesse dos investidores privados pela conservação 409 do bioma.” Nesse aspecto, a execução de projetos florestais de manejo sustentável em áreas degradadas, dentro ou fora do âmbito do Protocolo de Kyoto, em prevenção e reparação à expansão da fronteira agrícola no Cerrado, pode limitar novas investidas exploratórias em áreas nativas. Segundo Scardua, “estima-se, por meio de dados da Embrapa, que há, no País, cerca de 120 milhões de hectares de áreas desmatadas abandonadas. Por meio de processos de recuperação dessas áreas, é possível aumentar em cerca de três vezes a produção nacional, sem o aumento da área desmatada”.410 Assim, a incorporação de áreas degradadas ao processo produtivo pode também ser fator de renda com a possibilidade de comercialização de produtos madeireiros e não madeireiros, evitando o avanço sobre áreas ainda cobertas por vegetação nativa. Sobre o mercado para produtos florestais madeireiros e não madeireiros do Cerrado, Duboc, Moraes Neto e Melo seguem explicando: “O Brasil possui a segunda maior cobertura florestal do planeta, com 477 milhões de hectares, menor apenas que a da Rússia. Em 2005, possuía 5,38 milhões de hectares de florestas plantadas, correspondendo à sexta maior área florestada do mundo (menor apenas que a da China, dos Estados Unidos, da Rússia, do Japão e do Sudão). Além de mais de 326 mil ha plantados com outros gêneros, como acácia, teca e araucária, entre 409 410 KLINK, Carlos Augusto (et. al.). Conservação dos Recursos Naturais em Terras Privadas – O papel das reservas legais no arranjo funcional das paisagens produtivas do bioma Cerrado, 2008, p. 403-405. SCARDUA, Fernando. Responsabilidade ambiental na produção agrícola, 2008, p. 26. 153 outros, correspondendo a 29,4% da cobertura florestal mundial (BACHA, 2005; POU et. al., 2006). No entanto, experimenta uma escassez de madeira oriunda de reflorestamento, com altas nos preços de madeira. A produção brasileira de madeira roliça, na forma de lenha, carvão vegetal e madeira em tora, desde a década de 1990, apresenta tendências de diminuir por causa, principalmente, da redução de produção oriunda de matas nativas. Já a produção gerada de florestas plantadas cresce, mas não compensa a menor produção originada de matas nativas (BACHA, 2005). O carvão vegetal, oriundo de plantios florestais, tem sido insuficiente para atender à demanda suprida pelo aproveitamento de resíduos lenhosos resultantes da expansão da fronteira agrícola (ASSOCIAÇÃO MINEIRA DE SILVICULTURA, 2005), aumentando a pressão sobre os remanescentes florestais, em especial, do Cerrado. De acordo com dados do IBGE (2005a), dos 5,5 milhões de toneladas de carvão vegetal produzidas no Brasil em 2005, 1,9 milhão de tonelada, ou seja, 34,5% da produção nacional foi oriunda da vegetação nativa do Cerrado. Em 2005, a produção primária florestal do País somou pouco mais de 10 bilhões de reais, dos quais 66,4% provieram da silvicultura e 33,6% do extrativismo vegetal (IBGE, 2005b). Dentre as espécies oriundas do extrativismo vegetal, comercializadas no Brasil, estão algumas nativas do Cerrado: as fibras do buriti (Mauritia flexuosa), as amêndoas do pequi (Caryocar brasiliense) e do baru ou cumbaru (Dypterix spp.), as cascas tanates do angico (Anadenanthera macrocarpa) e do barbatimão (Stryphnodendron adstringens) e os frutos da mangaba (Hancornia spp.). (...) Levantamentos com a população nativa da região, nas diversas fitofisionomias do Cerrado, mostraram que existem mais de 150 espécies com potencial econômico e com diferentes potenciais de uso: alimentar, forrageiro, tanífero, artesanal, ornamental, corticífero, melífero, oleaginoso, medicinal, madeireiro, tintorial, resinífero, condimentar, lacticífero e aromático, dentre outros (ALMEIDA et. al., 1998; RIBEIRO et. al., 1994). Muitas possuem viabilidade para exploração econômica e algumas são industrializadas e disponibilizadas aos consumidores em forma de doces, licores, sorvetes e conservas”.411 No Brasil, o manejo sustentável de florestas depende de prévia aprovação de um Plano de Manejo Florestal Sustentável (PMFS) por órgão competente do Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA), como órgão ambiental estadual, municipal ou Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA). O cultivo e manejo de floresta é uma prática que possibilita ao proprietário rural a redução do Imposto Territorial Rural (ITR), bastando, para isso, que a área sob manejo e/ou reflorestamento seja declarada no Documento de Informação e Apuração (DIAT/ITR), em formulário disponível nos postos do IBAMA ou no sítio eletrônico <http://www.ibama.gov.br/adaweb/>. E o interessante é que, conquanto se invista em florestação ou 411 DUBOC, Eny, MORAES NETO, Sebastião Pires de e MELO, José Teodoro de. Sistemas agroflorestais e Cerrado, 2008, p. 331-334. 154 reflorestação pensando tão somente na rentabilidade do negócio, e não no benefício ao meio ambiente; mesmo pensando unicamente em negócios, há mais um em paralelo, porque, além da madeira, existe remoção de carbono atmosférico correspondente a ativos classificáveis como créditos de carbono. “E estes ativos, por trazerem benefícios ambientais, deste ponto de vista serão, com o passar do tempo, cada vez mais valorizados”,412 provocando, inclusive, reforço à área de microcréditos. Por exemplo: “Lançados em 2007 com a proposta de destinar 30% da taxa de administração a projetos de redução de emissões de carbono de organizações não-governamentais, os fundos Itaú RF e DI Ecomudança atingem hoje um patrimônio de 120 milhões de reais”.413 Mello, inclusive, noticia que: “Com o objetivo de identificar projetos que possam ser elegíveis a participar do Mercado de Carbono, foi firmado um convênio „Projetos de Estudos fasttrack para Mecanismo de Desenvolvimento Limpo – Fase II: Identificação, análise e adaptação de projetos, iniciativa e ações para o seqüestro de carbono em áreas florestais da Amazônia e do Cerrado Brasileiro‟. O convênio, fechado entre o CEPEA/ESALQ/USP e a Secretaria de Qualidade Ambiental nos Assentamentos Humanos/Ministério do Meio Ambiente, envolve a participação de professores, pesquisadores e alunos de graduação em Engenharia Agronômica, Engenharia Florestal, Gestão Ambiental e Economia Agroindustrial. Os projetos a serem contemplados pelo convênio para o mercado de carbono, além de contribuírem para as reduções dos gases de efeito estufa, terão um favorável impacto local nas comunidades. Esses benefícios podem se consolidar por meio da geração de energia elétrica a partir de biomassa, da recuperação de áreas degradadas, acompanhada por programas de educação e conscientização ambiental, da tecnificação da exploração madeireira com o plantio comercial de espécies madeiráveis e pela implantação de sistemas agroflorestais, entre outros.”414 É nesse sentido que Scardua conclui que os serviços ambientais prestados por um imóvel agrário, que “utiliza boas práticas agrícolas, reduz ou elimina a perda dos solos, conserva e recupera os recursos hídricos, protege a fauna e a flora, entre outras ações”,415 podem ser objeto de compensações financeiras, sendo potencial fonte de retorno financeiro as florestas. 412 413 414 415 HENRIQSON, Elvio. Reflorestamento e Projetos de MDL, 2007, p. 189. GARÇON, Juliana. Apoio ao microcrédito, 2008, p. 58. MELLO, Pedro Carvalho de. O Sequestro de Carbono na Amazônia e no Cerrado, 2004. SCARDUA, Fernando. Responsabilidade ambiental na produção agrícola, 2008, p. 36. 155 3 O SEQUESTRO FLORESTAL DE CARBONO COMO ATIVIDADE AGRÁRIA As florestas, reportando-se à classificação clássica dos bens jurídicos segundo a percepção civilista, conquanto possam estar sob o domínio privado ou público, como nas Florestas Nacionais (FLONAS), “são bens de interesse comum a todos os habitantes do País”,416 de modo que qualquer deles, nacional ou não, tem interesse jurídico sobre o que nelas acontece. Cuida-se, pois, de um bem protegido com vistas a assegurar um interesse transindividual e indivisível, cujo uso não é individual, mas no interesses de todos. Em termos jurídicos, vale dizer que os cidadãos não proprietários ou possuidores são titulares de contra-direitos que devem se harmonizar com os do proprietário ou possuidor da floresta. Essa percepção, contudo, não ilide o direito dos proprietários ou possuidores de colher os frutos de seu investimento, na hipótese de floresta plantada,417 que, mesmo com espécie exótica, cumpre também funções ambientais, como proteção dos solos e das águas e purificação do ar. Ademais, madeira é, essencialmente, carbono e, ante o vigoroso crescimento dos negócios associados ao carbono, florestas plantadas também são apreciadas pela percepção ambiental utilitarista do recurso florestal de sequestrar carbono. O direito dos proprietários ou possuidores agrários relativamente ao carbono fixado na floresta pode ir além dos negócios com crédito de carbono: o seqüestro florestal de carbono pode constituir retorno aos proprietários e possuidores agrários na modalidade de atividade agrária, nos termos de uma interpretação sistemática da atual concepção no Direito brasileiro do imóvel agrário, da flora e da atividade agrária. 416 417 Art. 1° da Lei n. 4.771, de 15 de setembro de 1965, conhecida como novo Código Florestal brasileiro. Art. 12 do novo Código Florestal brasileiro. 156 3.1 A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL No Brasil, a regulamentação do imóvel agrário, da atividade agrária e da flora coube às legislações esparsas e principalmente aos Direitos Constitucional, Civil, Agrário e Ambiental, considerado este último como direito de coordenação “que impõe aos demais setores do universo jurídico o respeito às normas que o formam”,418 de modo que a discussão sobre ser este autônomo ou não, aqui é superada. Inicialmente, esclarece Alvarenga a pertinência da opção pelo uso da expressão imóvel agrário: “„rural, refletindo um conceito estático, fotográfico e residual, indicará local distante da cidade. É termo que mais se destina ao museu etimológico da ciência agrarista. Contrapõe-se à raiz cinética, de agilização dos fatores produtivos, dos interesses em ação, do trabalho, do fluxo de progresso que se regulará pelo incremento agrário‟. E conclui, de forma enfática, com o seguinte enunciado: „recusamo-nos, portanto, a admitir duplicidade adjetiva para o que possui raiz etimológica clara‟, pois „há uma diferença básica, convém discerni-la, como ponto de partida para o estudo da nossa ciência‟”.419 A caracterização de um imóvel como agrário compreende a concepção da terra como bem de produção,420 vez que possui potencial de utilização voltado à produção e manutenção das mais variadas espécies animais e vegetais. Com a importância da terra como bem de produção, Rezek procede às seguintes distinções: “a) nem toda terra fértil se identifica com o imóvel agrário; b) nem todo imóvel agrário é constituído sobre terra fértil; c) porém, a grande maioria dos imóveis agrários apresenta a terra produtiva como faceta principal, e as terras férteis, via de regra, são definidas como imóveis agrários”.421 A origem histórica do imóvel agrário remonta ao descobrimento do Brasil, 418 419 420 421 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental, 2009, p. 20. ALVARENGA, Octavio Mello apud REZEK, Gustavo Elias Kallás. Imóvel Agrário – Agrariedade, Ruralidade e Rusticidade, 2007, p. 44. A concepção da terra como bem de produção remonta à classificação dos bens, sob o ponto de vista econômico, de Anton Menger, em três classes: bens de consumo, cuja utilização importa na perda de suas principais qualidades; bens de uso, cuja utilização não os exaure; e bens de produção, cujo potencial de utilização se volta à produção de outros bens. REZEK, Gustavo Elias Kallás. Idem, p. 25. REZEK, Gustavo Elias Kallás. Idem, p. 28. 157 no ano de 1500, quando o então vigente Tratado de Tordesilhas, ao dividir o “novo mundo” entre o reino português e espanhol, consolidou a “Terra de Santa Cruz” como propriedade pública do Estado de Portugal, “constituindo a mais importante prova da origem pública das terras brasileiras.” 422 Entre os anos de 1531 e 1536, o “novo território” foi dividido em 14 (quatorze) capitanias hereditárias, através do parcelamento por linhas horizontais, cuja condução foi entregue a 14 (quatorze) diferentes capitães, com autoridade jurídico-administrativa na respectiva área, inclusive para conceder terras virgens em sesmarias. Nesse período, as Ordenações Afonsinas evidenciaram normas de proteção a árvores e florestas, sendo considerada injúria ao Rei, por exemplo, o corte de árvore frutífera; mas não no Brasil, vez que um espécime da floresta brasileira, o pau-brasil, despertava a cobiça dos colonizadores. E, em 1797, as Ordenações Filipinas, por sua vez, declararam de propriedade da Coroa Portuguesa a floresta à beira do mar e dos rios.423 Em 1826, já tendo sido declarada a independência do Brasil, Peters noticia que foi baixada Portaria determinando a reprodução do pau-brasil para evitar sua extinção, sendo que em 1830 foi editado o Código Penal do Império que, nos arts. 178 e 257, punia o corte ilegal de árvores para extração de madeiras; e, em 1840, reprimiu-se o contrabando do pau-brasil.424 Na década seguinte, foi editada a Lei n. 601, de 18 de setembro de 1850, que, também conhecida como Lei de Terras, representou o marco inicial do uso do imóvel rural no Brasil com preocupação ambiental florestal: “Art. 2º. Os que se apossarem de terras devolutas ou alheias, e nellas derribaraem mattos ou lhes puzerem fogo, serão obrigados a despejo, com perda de bemfeitorias, e de mais soffrerão a pena de dous a seis mezes de prisão e multa de 100$, além da satisfação do damno causado.”425 Sob a regência dessa mesma Lei de Terras, dois novos atores influenciaram a constituição da propriedade territorial: o bugreiro, que “Varre e limpa 422 423 424 425 REZEK, Gustavo Elias Kallás. Imóvel Agrário – Agrariedade, Ruralidade e Rusticidade, 2007, p. 82. Cf. PETERS, Edson Luiz. Meio Ambiente e Propriedade Rural, 2006, p. 25. Cf. PETERS, Edson Luiz. Idem, p. 28-29. PETERS, Edson Luiz. Idem, p. 32. 158 a floresta tropical, e atrás dele vem o bandeirante moderno, (...), com seu exército de colonos para trabalhar a terra”,426 e o grileiro, que aproveita as “terras desocupadas de domínio público ou particular”427 e “„cria, pela chicana e pela falsidade, o indispensável título de propriedade‟”.428 Proclamada a República em 1889, foi publicada a Constituição Republicana de 1891 que não trouxe dispositivos com conteúdo de política ambiental, mas tratou, discretamente, da questão agrária correlata, ao dispor que pertenceriam aos Estados as minas e terras devolutas situadas em seus territórios (art. 64).429 Em 1916, o Código Civil Brasileiro denominou o imóvel agrário de prédio agrícola (art. 1.236), estabelecendo o exercício do direito de propriedade exclusivo e ilimitado (arts. 524, 525 e 527), sem qualquer referência à preservação dos recursos naturais, por exemplo, vez que envolto numa atmosfera privatista. No ano de 1934, foi aprovado o Código Florestal pelo Decreto n. 23.793, de 23 de janeiro, que, ao classificar as florestas segundo um critério locacional, delineou “uma espécie de zoneamento florestal no país, disciplinando a destinação do solo e o tipo de atividade permitida ou não ao proprietário rural principalmente.” 430 Ainda em 1934, a Constituição de 16 de julho, com características intervencionistas na ordem social e econômica, ratificou a garantia do direito de propriedade, desde que exercido em consonância com o interesse social ou coletivo (art. 113, § 17).431 Naquele mesmo ano, foi realizada, no Rio de Janeiro, a I Conferência Brasileira para a Proteção da Natureza; evento que pareceu não repercutir muito em matéria de preservação ambiental, vez que foi seguido da Constituição de 10 de novembro de 1937 que, ao garantir aos brasileiros o direito de propriedade, extirpou do seu conceito os elementos relacionados com o direito social ou coletivo (art. 122, XIV). No entanto, foi no mesmo ano de 1937 que se criou o Parque Nacional do 426 427 428 429 430 431 REZEK, Gustavo Elias Kallás. Imóvel Agrário – Agrariedade, Ruralidade e Rusticidade, 2007, p. 97. REZEK, Gustavo Elias Kallás. Idem. REZEK, Gustavo Elias Kallás. Idem. Cf. OLIVEIRA, Umberto Machado de. Princípios de Direito Agrário na Constituição vigente, 2006, p. 34. PETERS, Edson Luiz. Meio Ambiente e Propriedade Rural, 2006, p. 57. Cf. BESSA, Paulo Antunes. Direito Ambiental, 2008, p. 34; FALCONI, Luiz Carlos. O uso inadequado das áreas de preservação permanente como causa de desapropriação da propriedade imobiliária rural no Brasil, 2005, p. 106; OLIVEIRA, Umberto Machado de. Princípios de Direito Agrário na Constituição vigente, 2006, p. 37-39. 159 Itatiaia, e, em 1939, os de Iguaçu e Serra dos Órgãos.432 Em 1945, foi editado o Decreto-lei n. 7.449 que, ao dispor sobre organização da vida rural, definiu em seu art. 1º, § 2º, o imóvel agrário como aquele, “situado dentro ou fora dos limites urbanos, que se destina ao cultivo da terra, à extração de matérias-primas de origem vegetal, à criação ou melhoria de animais e à industrialização conexa ou acessória dos produtos derivados destas atividades.” 433 A Constituição de 18 de setembro de 1946 restabeleceu o uso da propriedade condicionado ao interesse e bem-estar social (art. 147), o que indicava a necessidade de atuação positiva do proprietário. Em 1948, destacou-se no cenário nacional o Decreto Legislativo n. 3, de 13 de fevereiro, aprovando no Brasil a Convenção para Proteção da Flora, da Fauna e das Belezas Cênicas Naturais dos países da América. Em 1961, foi editada a Lei n. 3.964 para proteção dos monumentos arqueológicos e pré-históricos.434 Nesse mesmo ano, o Brasil assinou a Carta de Punta del Este, comprometendo-se a realizar reforma agrária em 10 anos, fazendose necessário, para tanto, alterar a legislação agrária com fins de, a um só tempo, combater propriedades rurais improdutivas e conservar recursos naturais. Nesse propósito, foi aprovada a Lei n. 4.132, de 10 de setembro de 1962, que garantia o direito de propriedade enquanto voltado para o bem-estar social, direcionando-se, por exemplo, ao combate das práticas predatórias de recursos naturais. Em 1964, entrou em vigor o Estatuto da Terra através da Lei n. 4.504, de 30 de novembro, que assegurava a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social integralmente desempenhada quando, simultaneamente, favorecesse o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutassem, mantivesse níveis satisfatórios de produtividade, assegurasse a conservação dos recursos naturais e observasse as disposições legais que regulavam as justas relações de trabalho, sendo dever do Poder Público zelar para que a referida propriedade cumprisse essa função (art. 2º, caput c/c o § 1º, “a” a “d” e § 2º). 432 433 434 Cf. PETERS, Edson Luiz. Meio Ambiente e Propriedade Rural, 2006, p. 61. REZEK, Gustavo Elias Kallás. Imóvel Agrário – Agrariedade, Ruralidade e Rusticidade, 2007, p. 101. PETERS, Edson Luiz. Meio Ambiente e Propriedade Rural, 2006, p. 62. 160 O cumprimento da função social revela, ainda em 1964, o ensaio brasileiro daquilo que se convencionou chamar, em 1987, de discurso do desenvolvimento sustentável, conforme o Relatório de Brundtland. A produtividade, a conservação dos recursos naturais e a observância da legislação trabalhista correspondem exatamente ao tripé do desenvolvimento sustentável, o qual compreende as acepções econômica, ambiental e social, nesta ordem. O Estatuto da Terra conceituou, ainda, o imóvel agrário como prédio rústico, de área contínua, qualquer que fosse a sua localização, que se destinasse à exploração extrativa, agrícola, pecuária ou agroindustrial, quer através de planos públicos de valorização, quer através de iniciativa privada (art. 4º). No ano seguinte, o Decreto n. 55.891 que, com a mesma lógica do Estatuto da Terra, diploma que regulamentava, disse ser imóvel rural o prédio rústico, de área contínua, qualquer que fosse a sua localização em perímetros urbanos, suburbanos ou rurais dos Municípios, que se destinasse à exploração extrativa, agrícola, pecuária ou agroindustrial, quer através de planos públicos de valorização, quer através da iniciativa privada (art. 5º). Ainda em 1965, veio à tona o Código Florestal com a edição da Lei n. 4.771, de 15 de setembro, estabelecendo que as florestas e as demais formas de vegetação, reconhecidas de utilidade às terras que revestiam, eram bens de interesse comum de todos, exercendo-se o direito de propriedade com as limitações legais (art. 1º, caput). A mesma lei entendia por área de preservação permanente a área, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, o solo e o bem-estar das populações humanas (art. 1º, § 2º, II) situadas ao longo de rios e cursos d‟água; ao redor de lagoas, lagos ou reservatórios d‟água naturais ou artificiais; nas nascentes, ainda que intermitentes, e nos olhos d‟água; no topo de morros, montes, montanhas e serras; nas encostas; nas restingas; nas bordas dos tabuleiros ou chapadas ou em altitude superior a 1.800 (mil e oitocentos) metros; destinadas a atenuar erosão, fixar dunas, formar faixas de proteção ao longo de rodovias e ferrovias, auxiliar a defesa do território nacional a critérios das autoridades militares, proteger sítios de excepcional beleza 161 ou de valor científico ou histórico, asilar exemplares da fauna ou flora ameaçados de extinção, manter o ambiente necessário à vida das populações silvícolas e assegurar condições de bem-estar público (arts. 2º e 3º), sendo possível a supressão de sua vegetação somente em caso de utilidade pública ou interesse social (art. 4º). O mesmo diploma legal dispunha que reserva legal era a área localizada no interior de uma propriedade ou posse agrária, excetuada a de preservação permanente, necessária ao uso sustentável dos recursos naturais, à conservação e reabilitação dos processos ecológicos, à conservação da biodiversidade e ao abrigo e proteção da fauna e flora nativa (art. 1º, § 2º, III), podendo sua vegetação ser utilizada sob regime de manejo florestal sustentável (art. 16, § 2º), sendo dever do proprietário ou possuidor do imóvel conduzir à sua regeneração natural ou recompôla quando degradada (art. 44). O Código Florestal previu, ainda, que os estabelecimentos oficiais de crédito concederiam prioridades aos projetos de florestamento e reflorestamento (art. 41) e definiu como Amazônia Legal os estados do Acre, Pará, Amazonas, Roraima, Rondônia, Amapá e Mato Grosso e as regiões situadas ao norte do paralelo 13ºS, dos estados de Tocantins e Goiás, e ao oeste do meridiano de 44ºW do estado do Maranhão (art. 1º, § 2º, VI). No ano de 1966, o Decreto n. 59.428, ao regulamentar o Estatuto da Terra, com a mesma lógica definiu o imóvel rural como prédio rústico de área contínua, localizado em perímetro urbano ou rural dos Municípios, que se destinasse à exploração extrativa, agrícola, pecuária ou agroindustrial, através de planos públicos ou particulares de valorização (art. 93). Ainda em 1966, contrapôs-se a Lei n. 5.172 ou Código Tributário Nacional, que, ao dispor sobre a incidência do Imposto Territorial Rural (ITR), considerou imóvel rural aquele localizado fora da zona urbana do município (art. 29). No ano de 1967, a Constituição Federal, de 24 de janeiro, continuou garantindo o direito de propriedade atrelado ao cumprimento da função social, na medida em que dispôs que a ordem econômica tinha por fim realizar a justiça social com base na função social da propriedade (art. 157, III). A mesma razão seguiu a 162 Emenda Constitucional n. 01/1969 (art. 153, § 22 c/c art. 160, III).435 Em 1979, veio o Decreto n. 84.017, de 21 de setembro, aprovando o regulamento dos Parques Nacionais Brasileiros. Em 1980, a Lei n. 6.894, de 16 de dezembro, dispôs sobre a inspeção e fiscalização da produção e do comércio de fertilizantes, estimulantes ou biofertilizantes destinados à agricultura, e, em 1981, a Lei n. 6.902, de 27 de abril, dispôs sobre a criação de Estações Ecológicas e Áreas de Proteção Ambiental.436 No mesmo ano de 1981, a Lei n. 6.938, de 31 de agosto, ao dispor sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, tomou por princípios ação governamental na manutenção do equilíbrio ecológico, considerando o meio ambiente como um patrimônio público a ser protegido com vistas ao uso coletivo; racionalização do uso do ar; planejamento e fiscalização do uso dos recursos ambientais e recuperação de áreas degradadas (art. 2º, I, II, III e VIII), sendo seus objetivos a compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico; o estabelecimento de normas relativas ao uso e manejo de recursos ambientais; o desenvolvimento de pesquisas e tecnologias orientadas para o uso racional de recursos ambientais; a preservação e restauração dos recursos ambientais com vistas à sua utilização racional e disponibilidade permanente, concorrendo para a manutenção do equilíbrio ecológico propício à vida; e a imposição ao poluidor/predador da obrigação de recuperar as áreas degradadas (art. 4º, I, III, IV, VI e VII). A atual Constituição Brasileira, de 5 de outubro de 1988, dedicou atenção especial ao Direito Agrário e Ambiental. A Lei Fundamental concebeu a função social da propriedade como direito fundamental (art. 5º, XXIII) e princípio fundamental da atividade econômica no Brasil (art. 170, III), considerada cumprida quando atendesse, simultaneamente, o aproveitamento racional e adequado; a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores (art. 186), proibindo-se, contudo, a desapropriação 435 436 PETERS, Edson Luiz. Meio Ambiente e Propriedade Rural, 2006, p. 98. No mesmo sentido: FALCONI, Luiz Carlos. O uso inadequado das áreas de preservação permanente e reserva legal como causa de desapropriação da propriedade imobiliária rural no Brasil, 2005, p. 109. GUERRA, Sidney. Direito Ambiental – Legislação, 2007, p. 86-96. 163 da propriedade produtiva para fins de Reforma Agrária (art. 185, II). A Magna Carta ainda contemplou o meio ambiente ecologicamente equilibrado como bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, sendo sua defesa outro princípio da ordem econômica brasileira (art. 170, VI), impondo-se à coletividade e ao Poder Público o dever de preservá-lo para as gerações presentes e futuras, através da restauração de processos ecológicos essenciais e fomento de manejo ecológico das espécies e ecossistemas (art. 225, caput e § 1º, I) e se exigindo para a instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental (art. 225, § 1º, IV). Em seguida, em 1990, os Decretos n. 98.897, de 30 de janeiro, e n. 99.274, de 6 de junho, regulamentaram, respectivamente, as reservas extrativistas e a criação de Estações Ecológicas e Áreas de Proteção Ambiental e a Política Nacional do Meio Ambiente. Em 1991, a Lei n. 8.171, conhecida como Lei de Política Agrícola, entendeu por atividade agrícola a produção, o processamento e a comercialização dos produtos, subprodutos e derivados, serviços e insumos agrícolas, pecuários, pesqueiros e florestais (art. 1º), classificando o solo como patrimônio nacional (art. 102). No ano de 1993, o corte, a exploração e a supressão de vegetação primária ou nos estágios avançado e médio de regeneração da Mata Atlântica foram regulamentados pelo Decreto n. 750, de 10 de fevereiro. Naquele mesmo ano, a Lei n. 8.629, de 25 de fevereiro, que cuidou da regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária, considerou propriedade produtiva aquela que, explorada econômica e racionalmente, atingisse grau de utilização da terra (GUT) igual ou superior a 80%, calculado pela relação percentual entre a área utilizada e a aproveitável do imóvel, considerando-se efetivamente utilizada, por exemplo, a área plantada com produtos vegetais; a de exploração extrativa vegetal ou florestal e a de exploração de floresta nativa de acordo com plano de exploração (art. 6º, caput c/c §§ 1º e 3º, I, III e IV). Para os fins de produtividade, dever-se-ia atingir, ainda, grau de eficiência na exploração (GEE) igual ou superior a 100%, obtido da seguinte forma: para os produtos vegetais, dividindo-se a quantidade colhida de cada produto pelos 164 respectivos índices de rendimento, enquanto que para a pecuária, recomendava-se a divisão do número total de unidades animais (UA) do rebanho pelo índice de lotação correspondente, somando-se, posteriormente, os dois resultados, dividindose a soma pela área efetivamente utilizada e, ao final, multiplicando-se por 100 (cem) (art. 6º, caput c/c § 2º). O mesmo diploma legal também considerou caracterizada a função social quando, simultaneamente, fosse atendido o aproveitamento racional e adequado, entendido como aquele que atingisse 80% de GUT e 100% de GEE; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis, em observância à vocação natural da terra e ao potencial produtivo da propriedade; preservação do meio ambiente, mantendo-se as características próprias do meio natural e da qualidade dos recursos ambientais, na medida adequada à manutenção do equilíbrio ecológico da propriedade e da saúde e qualidade de vida das comunidades vizinhas; observância das condições que regulam as relações de trabalho, como leis trabalhistas, contratos coletivos de trabalho e disposições obre arrendamento e parceria rural; e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e trabalhadores rurais, como necessidades básicas e segurança do trabalho (art. 9º). Em 1994, a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, adotada pela ONU em Nova York, em 9 de maio de 1992, foi aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo n. 1, de 3 de fevereiro, e promulgada pelo Decreto n. 2.652, de 1º de julho de 1998. No ano de 1996, a Lei n. 9.393, na qualidade de atual legislação sobre o ITR, considerou, para seus efeitos, imóvel agrário a área contínua, formada de uma ou mais parcelas de terras, localizada na zona rural do Município (art. 1º, § 2º). Em 1998, os Decretos n. 2.661 e n. 2.662, ambos de 8 de julho, discorreram, respectivamente, sobre o emprego do fogo em práticas agropastoris e florestais e sobre medidas de monitoramento, prevenção, educação ambiental e combate a incêndios florestais na Amazônia Legal. No ano de 2002, o Novo Código Civil Brasileiro (Lei n. 10.406, de 10 de janeiro) dispôs que o direito de propriedade devia ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e de modo que fossem preservados a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas (art. 1.228, § 1º). 165 Ainda em 2002, as Resoluções CONAMA n. 302 e n. 303, ambas de 20 de março, estabeleceram os parâmetros, definições e limites das Áreas de Preservação Permanente. No mesmo ano, o Decreto Legislativo n. 144, de 20 de junho, aprovou no Brasil o Protocolo de Kyoto à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança Climática, adotado em 14 de dezembro de 1994 em Kyoto, Japão, por ocasião da COP3. Em 2003, o Decreto n. 4.854, de 8 de outubro, dispôs que o Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (CONDRAF) tinha, dentre suas finalidades, propor diretrizes para formulação e implementação de políticas públicas ativas para o desenvolvimento rural sustentável (art. 1º), através, por exemplo, de subsídios e monitoramento (art. 2º, I e III). Naquele mesmo ano, a Instrução Normativa n. 11 do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), de 4 de abril, definiu o imóvel agrário como o prédio rústico de área contínua qualquer que fosse a sua localização, que se destinasse ou pudesse se destinar à exploração agrícola, pecuária, extrativa vegetal, florestal ou agroindustrial (art. 3º, I). Para aquele ato normativo, considerava-se produtiva para fins do disposto no art. 6º da Lei n. 8.629/93 a propriedade que, explorada econômica e racionalmente, atingisse, simultaneamente, GUT igual ou superior a 80% e GEE igual ou superior a 100%. A instrução considerava, ainda, efetivamente utilizada, independentemente do índice de rendimento mínimo por hectare, a área coberta com floresta nativa, desde que explorada em conformidade com as condições estabelecidas no Plano de Manejo Florestal Sustentado de Uso Múltiplo (art. 5º, § 6º). A Lei n. 11.284, de 2 de março de 2006, ao discorrer sobre a gestão de florestas públicas para a produção sustentável, previu o manejo florestal sustentável como administração da floresta para a obtenção de benefícios econômicos, sociais e ambientais, respeitando-se os mecanismos de sustentação do ecossistema objeto do manejo e considerando-se, cumulativa ou alternativamente, a utilização de múltiplas espécies madeireiras, de múltiplos produtos e subprodutos não madeireiros, bem como a utilização de outros bens e serviços de natureza florestal 166 (art. 3º, VI). A lei de concessão de florestas públicas definiu que a concessão florestal teria como objeto a exploração de produtos e serviços florestais, afirmando que, no caso de reflorestamento de áreas degradadas ou convertidas para uso alternativo do solo, o direito de comercializar crédito de carbono poderia ser concedido no objeto da concessão (art. 14, caput c/c art. 16, § 2º). No ano de 2009, o Decreto n. 6.874, de 5 de junho, instituiu, no âmbito dos Ministérios do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Agrário, o Programa Federal de Manejo Florestal Comunitário e Familiar (PMCF), com o objetivo de organizar ações de gestão e fomento ao manejo sustentável em florestas objeto de utilização pelos agricultores familiares, assentados da reforma agrária e pelos povos e comunidades tradicionais, com vistas à obtenção de benefícios econômicos, sociais e ambientais, respeitando-se os mecanismos de sustentação do ecossistema (arts. 1º, 2º e 3º). Finalmente, em 2010, a Instrução Normativa do INCRA n. 61, de 7 de abril, entendeu por manejo florestal sustentável a administração da floresta para a obtenção de benefícios econômicos, sociais e ambientais, respeitando os mecanismos de sustentação do ecossistema objeto do manejo e considerando, cumulativa ou alternativamente, a utilização de múltiplas espécies madeireiras, de múltiplos produtos e subprodutos não madeireiros, bem como a utilização de outros bens e serviços de natureza florestal, compreendidos nestes últimos o turismo e outras ações ou benefícios decorrentes do manejo e conservação da floresta (art. 2º, I e IX). Para tanto, referido ato normativo previu, inclusive, inventário amostral e florestal contínuo, para levantamento de informações qualitativas e quantitativas sobre o crescimento e a produção de determinada floresta, inclusive em reserva legal, utilizando-se processo de amostragem, em parcelas permanentes instaladas e periodicamente medidas, e técnicas de impacto reduzido, isto é, que minimizam os impactos de uma exploração florestal ao ambiente natural, propiciando a manutenção da estrutura e composição de espécies da floresta, enquanto gera benefícios sociais e econômicos de forma contínua (art. 2º, XIII, XIV, XXIV e XXVII). Por esse breve relato histórico das fontes legislativas no Brasil sobre a flora, imóvel agrário e atividade agrária, viabiliza-se a compreensão da atual 167 concepção jurídica dos mesmos. 3.2 A CONCEPÇÃO JURÍDICA BRASILEIRA A atual concepção jurídica brasileira sobre a flora, o imóvel agrário e a atividade agrária, inclui os posicionamentos legais, jurisprudenciais e doutrinários acerca dos mesmos. No tocante ao imóvel agrário, o cenário legislativo tributário compreende o CTN e a Lei n. 9.393/96 que, segundo o critério topográfico ou da localização, consideram rural o imóvel localizado na zona rural, assim definida em lei municipal; enquanto o Estatuto da Terra e a Lei n. 8.629/93, segundo o critério da destinação efetiva ou potencial, consideram rural o imóvel efetiva ou potencialmente destinado à atividade agrária (qualquer que seja a localização). No âmbito do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF1) assim já decidiram: “CONSTITUCIONAL. REFORMA AGRÁRIA. DESAPROPRIAÇÃO. MANDADO DE SEGURANÇA. LEGITIMIDADE DO CO-HERDEIRO PARA IMPETRAÇÃO [ART. 1º, § 2º, DA LEI N. 1.533/51]. SAISINE. MÚLTIPLA TITULARIDADE. PROPRIEDADE ÚNICA ATÉ A PARTILHA. ART. 46, § 6º, DO ESTATUTO DA TERRA. FINALIDADE ESTRITAMENTE TRIBUTÁRIA. FINALIDADE DO CADASTRO NO SNCR-INCRA. CONDOMÍNIO. AUSÊNCIA DE REGISTRO IMOBILIÁRIO DE PARTES CERTAS. UNIDADE DE EXPLORAÇÃO ECONÔMICA DO IMÓVEL RURAL. ART. 4º, I, DO ESTATUTO DA TERRA. VIABILIDADE DA DESAPROPRIAÇÃO. ART. 184 DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. (...) 7. O conceito de imóvel rural do art. 4º, I, do Estatuto da Terra contempla a unidade da exploração econômica do prédio rústico, distanciando-se da noção de propriedade rural. Precedente [MS n. 24.488, Relator o Ministro EROS GRAU, DJ de 03.06.2005]. (...) Segurança denegada.”437 (destaquei) “CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. CIVIL. DESAPROPRIAÇÃO PARA REFORMA AGRÁRIA. NEGATIVA DE INSPEÇÃO JUDICIAL; NULIDADE; INOCORRÊNCIA, SEM PREJUÍZO DA POSSIBILIDADE DE AÇÃO DIRETA. CLASSIFICAÇÃO DO IMÓVEL. FORMA DA INDENIZAÇÃO: TERRA NUA; BENFEITORIAS. (...) 5. Imóvel que se classifica como rural, a despeito do loteamento urbano a que submetido, pois, distando aproximadamente setenta quilômetros da sede do município, inexiste conglomerado urbano apreciável em suas 437 STF, Tribunal Pleno, Mandado de Segurança n. 26.129/DF, Rel. Min. Eros Grau, DJ de 24/08/2007, DJe 87, de 24/08/2007. 168 imediações, é vizinho de propriedades rurais, está cadastrado como imóvel rural, não tem casas edificadas ou em construção, não possui meio-fio, pavimentação ou iluminação elétrica, não tendo, assim, passado de um projeto de cidade, desprovido de habitantes, uma vez que não deu origem à formação citadina para ele idealizada, tudo como se evidencia da prova dos autos, especialmente a pericial, demonstrando a sua realidade de propriedade rural improdutiva, uma vez que não logrou sucesso o empreendimento urbano que o expropriado nele tentou concretizar. (...) 9. Provimento parcial das apelações, mantendo-se a sentença no que com ele compatível. 10. Remessa prejudicada.”438 (destaquei) A doutrina capitaneada por Borges439 e corroborada por Marques440 entende por imóvel agrário o prédio rústico de área contínua, qualquer que seja a sua localização, que se destine ou possa se destinar à exploração de atividade agrária, ao passo que Rezek441 concebe o imóvel destinado à atividade agrária como imóvel agrário, relegando a expressão imóvel rural para designar o imóvel localizado no meio rural. Assim, a concepção de imóvel agrário compreende o prédio rústico, onde há a presença prevalecente dos elementos naturais terra, água, ar, vegetação e animais; qualquer que seja sua localização; de área contínua; que se destine ou possa se destinar à exploração de atividade agrária. No que pertine à atividade agrária, a legislação brasileira não apresenta uma relação exaustiva. O Estatuto da Terra a concebe como atividade de exploração extrativa, agrícola, pecuária ou agroindustrial. A Lei n. 8.171/91 a entende como a produção, o processamento e a comercialização dos produtos, subprodutos e derivados, serviços e insumos agrícolas, pecuários, pesqueiros e florestais. E a Lei n. 8.629/93 como atividade de exploração agrícola, pecuária, extrativa vegetal, florestal ou agroindustrial. Na doutrina, Rezek442 conclui pela existência de atividade agrária típica, de desenvolvimento e de produção dos vegetais e dos animais, e acessória ou de segunda hierarquia, que podem ser prévias, como a adubação, a aragem e a construção de benfeitorias necessárias para o desenvolvimento da atividade principal; concomitantes, como a compra contínua de insumos; ou posteriores, como 438 439 440 441 442 TRF1, Terceira Turma, Apelação Cível n. 1997.01.00.012000-2/GO, Rel. Juiz Hilton Queiroz, DJ p.97232, de 14/11/1997. Cf. BORGES, Paulo Torminn. Institutos Básicos do Direito Agrário, 1998, p. 27-30. Cf. MARQUES, Benedito Ferreira. Direito Agrário Brasileiro, 2009, p. 29-32. Cf. REZEK, Gustavo Elias Kallás. Imóvel Agrário – Agrariedade, Ruralidade e Rusticidade, 2007, p. 42. Cf. REZEK, Gustavo Elias Kallás. Imóvel Agrário – Agrariedade, Ruralidade e Rusticidade, 2007, p. 36. 169 o processamento primário dos produtos, transporte, colocação no mercado e negociações para a sua venda ou troca. Laranjeira443 e Marques444 classificam-na em exploração rural típica, como lavoura e pecuária; atípica, como a agroindústria; e complementar da exploração rural, como o transporte e a comercialização dos produtos. Ainda, Rezek faz o seguinte aparte: “Será agrária a silvicultura, entendida como a plantação e o acompanhamento do desenvolvimento de florestas para a obtenção de certos produtos de origem vegetal, integrando a noção geral de agricultura. Assim, será agrária a plantação de uma floresta de eucaliptos para extração da madeira – matéria-prima destinada à produção industrial de papel. Também a plantação florestal de seringueiras para a extração do látex, utilizado em inúmeros produtos, desde sandálias até a borracha empregada nos pneus de nossos veículos. Não serão agrários, por outro lado: a) o extrativismo florestal, a simples coleta de frutos, sementes, folhas, madeira ou cascas de árvores; b) a mera conservação florestal, reitere-se, como a que existe nos parques e nas reservas”.445 Scaff também não acolhe a ideia de a atividade extrativa representar espécie do gênero atividade agrária principal. Nas palavras do autor: “De fato, uma vez adotado o critério da agrariedade fundado na noção do ciclo agrobiológico, ou seja, daquele ciclo vegetal ou animal desenvolvido necessariamente através da intervenção humana, verifica-se que, no âmbito do extrativismo, esta intervenção efetivamente não ocorre. Com efeito, (...) a participação humana limita-se ao momento da mera obtenção do produto final daquele ciclo biológico, que se efetivou sem que qualquer forma de participação humana fosse decisiva na gênese e evolução daquele mesmo produto, restando assim até a efetiva conclusão deste processo. O fundamento da atividade agrária é, por outro lado, centrado na ideia de intervenção centrada do homem, no sentido da obtenção de um produto vegetal ou animal por ele desejado. (...) O extrativismo está fora do elenco de atividades agrárias principais, genericamente ligadas ao cultivo de vegetais ou à criação de animais, e que contam sempre com a necessária participação humana, na base de desenvolvimento deste ciclo. Por outro lado, nada impede que uma determinada atividade extrativa seja, no âmbito de uma determinada empresa, considerada agrária por conexão. Assim ocorre, sem dúvida, na medida em que, cumpridos os requisitos relativos à normalidade e acessoriedade, uma atividade extrativa esteja, naquele caso concreto, de alguma forma vinculada a uma atividade agrária 443 444 445 LARANJEIRA, Raymundo. Direito Agrário, 1984, p. 36. MARQUES, Benedito Ferreira. Direito Agrário Brasileiro, 2009, p. 7-10. REZEK, Gustavo Elias Kallás. Imóvel Agrário – Agrariedade, Ruralidade e Rusticidade, 2007, p. 33. 170 (principal) de cultivo de vegetais ou de criação de animais. Tal possibilidade foi, com efeito, expressamente reconhecida por Galloni, destacando que „quando a colheita dos produtos espontâneos venha da parte do próprio empresário, que já exercite a atividade de cultivo do fundo,446 pode-se falar por atividade agrária por conexão à organização da empresa agrária se, por exemplo, a coleta de produtos espontâneos sobre o fundo entra na organização da empresa‟”.447 Nesse sentido, segue Scaff argumentando que “o fundamento da atividade agrária é, por outro lado, centrado na idéia de intervenção organizada do homem, no sentido da obtenção de um produto vegetal ou animal por ele desejado. Se aquele produto se formou independentemente desta intervenção, atividade agrária não há”.448 Com efeito, uma vez adotado o critério da agrariedade na noção do ciclo vegetal desenvolvido necessariamente pela intervenção do homem, verifica-se que na exploração florestal, num primeiro momento, a intervenção humana não ocorre, limitando-se, esta à obtenção do produto no final do ciclo biológico natural. Por essas doutrinas, vê-se uma breve exposição das Teorias Clássicas de caracterização da atividade agrária: “Dentre os estudiosos estrangeiros que sistematizaram critérios para a caracterização de uma atividade como agrária ou rural, destacam-se os argentinos Rodolfo Ricardo Carrera e Antonino Vivanco, bem como o italiano Antonio Carrozza. Tais jusagraristas formularam as chamadas „teorias clássicas‟ de caracterização da atividade rural. O primeiro (Carrera) desenvolveu a denominada Teoria Agrobiológica fazendo, em linhas gerais, uma simbiose das ciências agronômicas com a jurídica e elegendo a terra e o processo agrobiológico (ou a „vida‟) como fatores diferenciadores da atividade rural em relação às outras atividades humanas. (...) Atividade agrária é decorrente da produção da terra. Antonio Carrozza, por sua vez, apresentou a Teoria da Agrariedade, pela qual rejeitou a unilateralidade de fatores (ou a análise isolada de fatores) na caracterização da atividade rural. (...) Isto é, será agrária toda atividade cujo ciclo biológico estiver sujeito às 446 “a expressão cultivo de fundo resume em si a viticultura, a fruticultura, a horticultura, a floricultura etc.; engloba assim um vasto panorama de atividades particulares (ao menos tantas quantas são as principais variedades vegetais cultivadas) dominadas por um fato técnico que é peculiar a cada uma dessas. E na leitura, o acento deve cair sobre o termo cultivo, não sobre aquele (o fundo) que poderia parecer o objeto do cultivo e na realidade não o é: como se disse, se cultiva a planta e não o solo em que a planta é imersa ou no qual é sustentada. Cultivo é uma atividade humana a interpretar sempre como criação: o mero recolher dos frutos naturais do solo, seja esse formado pela terra arável ou pela terra recoberta de vegetação bosquiva, não basta. E cultivo-criação ocorre tanto os casos das culturas tradicionais sobre a terra, quanto nos casos de cultura sem terra, e assim fora do fundo, que não os casos mais evidentes, mas não também infreqüentes”. CARROZZA, Antonio apud SCAFF, Fernando Campos. Aspectos fundamentais da empresa agrária, 1997, p. 91. 447 SCAFF, Fernando Campos. Idem, p. 90-92. 448 SCAFF, Fernando Campos. Idem, p. 90. 171 intempéries da natureza que escapam do controle humano. (...) A terceira teoria tida como clássica é a Teoria da Acessoriedade, do argentino Antonino C. Vivanco, que entende como agrárias, além da atividade típica de produção rural, aquelas decorrentes, de índole econômico-social. A sua principal intenção foi verificar quando a atividade industrial ou comercial estão sob o manto da atividade agrária e quando são 449 independentes da mesma”. (destaques no original) Noutro giro, a perspectiva de Hironaka é de “a mera atividade de extração ou de captura ser considerada agrária, já que se trata, de qualquer forma, de uma produção da terra, do agro, de caráter indiscutivelmente rural”.450 A jurisprudência pátria não construiu paradigmas acerca do seu conceito e classificação, mas enfatizou que é pela atividade agrária que se garante o cumprimento da função social do imóvel agrário, se, quando da sua realização, os recursos naturais disponíveis forem utilizados de maneira adequada e o meio ambiente preservado, por exemplo, com a instituição de áreas de reserva legal: “ADMINISTRATIVO. AMBIENTAL. ARTS. 16 E 44 DA LEI Nº 4.771/65. MATRÍCULA DO IMÓVEL. AVERBAÇÃO DE ÁREA DE RESERVA FLORESTAL. NECESSIDADE. 1. Constituição Federal consagra em seu art. 186 que a função social da propriedade rural é cumprida quando atende, seguindo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, a requisitos certos, entre os quais o de 'utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente' 2. A obrigação de os proprietários rurais instituírem áreas de reservas legais, de no mínimo 20% de cada propriedade, atende ao interesse coletivo. 3. A averbação da reserva legal configura-se, portanto, como dever do proprietário ou adquirente do imóvel rural, independentemente da existência de florestas ou outras formas de vegetação nativa na gleba. 4. Essa legislação, ao determinar a separação de parte das propriedades rurais para constituição da reserva florestal legal, resultou de uma feliz e necessária consciência ecológica que vem tomando corpo na sociedade em razão dos efeitos dos desastres naturais ocorridos ao longo do tempo, resultado da degradação do meio ambiente efetuada sem limites pelo homem. Tais conseqüências nefastas, paulatinamente, levam à conscientização de que os recursos naturais devem ser utilizados com equilíbrio e preservados em intenção da boa qualidade de vida das gerações vindouras (RMS nº 18.301/MG, DJ de 03/10/2005). 5. A averbação da reserva legal, à margem da inscrição da matrícula da propriedade, é conseqüência imediata do preceito normativo e está colocada entre as medidas necessárias à proteção do meio ambiente, previstas tanto no Código Florestal como na Legislação extravagante. (REsp 927979/MG, DJ 31.05.2007) 6. Recurso Especial provido.”451 449 SCARDOELLI, Dimas Yamada. A atividade rural brasileira – análise das bases de uma teoria contemporânea de classificação, 2008, p. 27-33. 450 HIRONAKA, Giselda Novaes. Atividade Extrativa, 1985, p. 86. 451 STJ, Primeira Turma, REsp. 821083/MG, Recurso Especial 2006/0035266-2, Rel. Min. Luiz Fux, DJe de 09/04/2008. 172 Na legislação brasileira, a função social do imóvel agrário condicionada à conservação dos recursos naturais é expressa desde o Estatuto da Terra de 1964 (art. 2º, caput c/c §§ 1º, “c” e 2º). Com o Código Florestal de 1965, as florestas e demais formas de vegetação foram consideradas bens de interesse comum de todos, exercendo-se o direito de propriedade com as limitações legais, como a instituição de áreas de reserva legal e a conservação e/ou restauração de áreas de preservação permanente (art. 1º, caput). Com a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente de 1981, o meio ambiente foi considerado patrimônio público que desafiou a ação governamental na manutenção do equilíbrio ecológico; na racionalização do uso do ar; no planejamento e fiscalização do uso dos recursos ambientais e na recuperação de áreas degradadas (art. 2º, I, II, III e VIII). A Lei n. 7.347, de 1985, previu a Ação Civil Pública como instrumento, inclusive, para obrigar a reflorestar.452 A Constituição Federal de 1988 concebeu a função social da propriedade como direito fundamental (art. 5º, XXIII) e princípio da ordem econômica no Brasil (art. 170, III), condicionada, de igual modo, à utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e à preservação do meio ambiente (art. 186), entendido como bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, sendo sua defesa também princípio da ordem econômica brasileira (art. 170, VI c/c art. 225). A Lei da Política Agrícola (Lei n. 8.171/91) dispôs em seu art. 102 que o solo é patrimônio nacional. Com a Lei n. 8.629, de 1993, permitiu-se considerar para fins de produtividade do imóvel rural a exploração extrativa florestal e a exploração de floresta nativa (art. 6º), e para fins de cumprimento da função social, além da produtividade, a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis, em observância à vocação natural da terra e ao potencial produtivo da propriedade, e a preservação do meio ambiente, mantendo-se as características próprias do meio natural e da qualidade dos recursos ambientais na medida adequada à manutenção do equilíbrio ecológico da propriedade e da saúde e qualidade de vida das comunidades vizinhas (art. 9º). 452 PETERS, Edson Luiz. Meio Ambiente e Propriedade Rural, 2006, p. 108. 173 Em 1994, o Decreto Legislativo n. 1 aprovou no Brasil a ConvençãoQuadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, posteriormente promulgada pelo Decreto n. 2.652, de 1º de julho de 1998. O Novo Código Civil Brasileiro de 2002 estabeleceu a correspondência entre o direito de propriedade e o dever de evitar a poluição do ar e de preservar a flora e o equilíbrio ecológico (art. 1.228, § 1º). E o Decreto Legislativo n. 144, de 20 de junho de 2002, aprovou o Protocolo de Kyoto, assumindo o Brasil o compromisso de contribuir com a mitigação da mudança climática e com a preservação do meio ambiente. Nesse diapasão, a doutrina de Maniglia destaca que há de se compreender que o atendimento da função social no seu aspecto ambiental “se perfaz na certeza de que a natureza irá se firmar e corresponder aos anseios do homem quando for tratada com respeito, prudência, inteligência e previsão saudável”.453 Segundo Szezerbicki,454 a função social condicionada à defesa do meio ambiente compreende norma de conduta aos atores econômicos, que deve ser observada como ferramenta para gestão consciente dos recursos naturais, mas não como inibidora do desenvolvimento. Nesse sentido, as palavras de Brito e Câmara: “Não é de se admirar que a questão ambiental seja um dos pontos centrais dos planejamentos estratégicos das grandes empresas e indústrias, no Brasil, para controle da poluição gerada por suas atividades; (...) que desenvolvam projetos de produção com vários hectares destinados à conservação de matas nativas. (...) Se, por um lado, o governo brasileiro aplica sanções aos poluidores, o mercado externo internacional faz pressão para que as empresas exportadoras adquiram os selos ecológicos, como símbolo de qualidade ambiental e competitividade. Todo esforço nacional e internacional se dá com vistas a fazer com que o meio ambiente seja protegido, conservado e preservado, a partir de um desenvolvimento sustentável, forçando os empresários e os produtores que utilizam os recursos naturais a compatibilizarem harmonicamente suas atividades com a proteção ambiental. O Presidente da República Fernando Henrique Cardoso assinou, em abril de 1995, um decreto estabelecendo que os bancos oficiais só podem conceder financiamentos aos projetos que apresentarem garantias de preservação do meio ambiente, o Selo Verde, com diretrizes e mecanismos operacionais para incorporar a variável ambiente no processo de concessão e gestão de créditos e benefícios fiscais. Deste modo, a 453 454 MANIGLIA, Elisabete. Atendimento da função social pelo imóvel rural, 2006, p. 41. SZEZERBICKI, Arquimedes da Silva. Os princípios gerais da ordem econômica brasileira: avanços e efetividade desde a Constituição Federal de 1988, 2009, p. 18-20. 174 empresa que necessitar de empréstimo deve oferecer uma garantia de preservação do meio ambiente”.455 Na mesma linha de entendimento, a lição de Grau: “A admissão do princípio da função social (e ambiental) da propriedade tem como consequência básica fazer com que a propriedade seja efetivamente exercida para beneficiar a coletividade e o meio ambiente (aspecto positivo), não bastando apenas que não seja exercida em prejuízo de terceiros ou da qualidade ambiental (aspecto negativo). Por outras palavras, a função social e ambiental não constitui um simples limite ao exercício do direito de propriedade, como aquela restrição tradicional, por meio da qual se permite ao proprietário, no exercício do seu direito, fazer tudo o que não prejudique a coletividade e o meio ambiente. Diversamente, a função social e ambiental vai mais longe e autoriza até que se imponha ao proprietário comportamentos positivos, no exercício do seu direito, para que a sua 456 propriedade concretamente se adeque à preservação do meio ambiente”. Nesse propósito, a implantação, no Brasil, de Áreas de Preservação Ambiental (APAs), por exemplo, objetiva, segundo Brito e Câmara, “a proteção ambiental nos espaços geográficos, a partir de um disciplinamento do processo de ocupação para se alcançar a sustentabilidade do uso dos recursos naturais, sem coibir as atividades econômicas do homem”.457 As APAs, reguladas pelas Leis n. 6.902, de 27 de abril de 1981, e n. 6.938, de 31 de agosto de 1981, pelos Decretos n. 88.351, de 1º de junho de 1983, n. 99.274, de 6 de junho de 1990, e n. 1.205, de 1º de agosto de 1994, e pela Resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) n. 10, de 14 de dezembro de 1988, constituem instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente, na medida em que o Poder Executivo pode declarar determinada área, inclusive de particular, como de interesse para a proteção ambiental. Aqueles mesmos autores458 narram experiência de uso sustentável dos recursos naturais na APA Bacia do Rio São Bartolomeu, no Distrito Federal com Goiás: 455 456 457 458 BRITO, Francisco A. e CÂMARA, João B. D. Democratização e Gestão Ambiental – Em busca do desenvolvimento sustentável, 2002, p. 136-138. GRAU, Eros Roberto. Princípios fundamentais de direito ambiental apud ALMEIDA, Francisco Provázio Lara de. Recursos naturais renováveis na legislação brasileira: o respeito à tutela do meio ambiente como requisito para o cumprimento da função social do imóvel rural, 2009, p. 21. BRITO, Francisco A. e CÂMARA, João B. D. Democratização e Gestão Ambiental – Em busca do desenvolvimento sustentável, 2002, p. 145. BRITO, Francisco A. e CÂMARA, João B. D. Democratização e Gestão Ambiental – Em busca do desenvolvimento sustentável, 2002, p. 218-221. 175 O desafio da APA é, também, a gestão ambientalmente sustentável, consistente em: “proteger as florestas e ao mesmo tempo permitir o uso dos recursos naturais, conciliando a proteção e conservação ambiental com o rendimento econômico de modo racional e equilibrado. Ora, é sabido que a floresta fertiliza a terra, purifica o ar e protege os rios e nascentes que fornecem a água ao homem, animais e às plantas. O homem precisa da floresta para viver, pois ela fornece alimento para pessoas e animais, lenha, madeira, plantas medicinais que curam doenças e plantas que produzem frutos e sementes que vão brotar e crescer, tornando-se árvores no futuro. E desaparecendo a floresta, muitos habitats e animais vão também desaparecer. Por isso, é preciso racionalizar o uso e ocupação 459 dos espaços territoriais para não causar danos ambientais irreversíveis.” É esse o verdadeiro sentido da função social do imóvel agrário que, nas palavras de Rezek: “é um princípio especial que implica o dever, imposto ao titular de um poder de utilização sobre determinado bem agrário, de utilizar esse bem respeitando o seu peculiar potencial de ser empregado num uso agrário vantajoso em prol de todos os cidadãos, uso esse que é reconhecido e sancionado pelo Estado Democrático”.460 “Ora, é inegável que habitamos em uma sociedade nitidamente capitalista, que obedece claramente à economia de mercado”, 461 mobilizada pela vontade individual de obtenção de lucro, concorrência e crescimento da produção. Entretanto, essa economia de mercado não pode produzir estragos no meio ambiente necessário à sadia qualidade de vida. Sob o enfoque do conflito entre economia e meio ambiente, Derani 462 afirma que o direito econômico não pode se reduzir a mero instrumento de economia ambiental ao versar sobre a utilização sustentável dos recursos naturais. A concepção de desenvolvimento sustentável tem em vista conciliar a conservação dos recursos naturais e o desenvolvimento econômico. Ecologia e economia têm muito em comum, a começar pela mesma origem na palavra oikos, casa. E a simbiose segue, na medida em que “O Direito 459 460 461 462 BRITO, Francisco A. e CÂMARA, João B. D. Idem, p. 214. REZEK, Gustavo Elias Kallás. O princípio da função social da propriedade imobiliária agrária na Constituição Federal de 1988, 2001, p. 59. FERNANDES, Paulo Victor. Impacto Ambiental – Doutrina e Jurisprudência, 2005, p. 48. DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico, 1997, p. 94. 176 Econômico está intimamente ligado à intervenção do Estado sobre a ordem econômica que, em seus aspectos ambientais, se faz mediante a utilização de mecanismos jurídicos próprios e que pertencem ao campo do Direito Ambiental.”463 A esse respeito, explica Antunes: “A intervenção econômica, segundo Eros Roberto Grau, possui três modalidades principais: a) participação, absorção; b) direção; c) indução; A participação e a absorção indicam que o Estado ou está atuando como agente econômico através de suas entidades criadas especificamente para tal fim, ou está atuando mediante a atividade de empresas que, por um motivo ou por outro, foram incorporadas ao patrimônio público. Direção é o processo pelo qual o Estado dirige um determinado empreendimento econômico, assumindo as responsabilidades essenciais do mesmo. Indução é um mecanismo pelo qual o Estado cria incentivos ou punições para a adoção de determinados comportamentos econômicos ou cria condições favoráveis para que se desenvolvam empreendimentos privados em determinadas regiões, ou mesmo que determinadas atividades econômicas possam ser realizadas mediante medidas especiais de política econômica. Para o DA, a indução é o instrumento mais importante, haja vista que somente através dele se podem tomar medidas com vistas a impedir que danos ambientais significativos se concretizem”.464 (destaques no original) Entre os diversos instrumentos de indução previstos no ordenamento jurídico brasileiro no tocante ao meio ambiente, há também, além das APAs, as áreas de reserva legal e de preservação permanente, as quais, para Antunes, não são propriamente limitações ao direito de propriedade, mas um dos elementos constitutivos do próprio direito de propriedade florestal e, portanto, condição de sua existência: “O que existe é que o direito de propriedade somente tem existência dentro de um determinado contexto constitucional e somente é exercido dentro deste mesmo contexto. (...) O atual estágio de desenvolvimento do Direito brasileiro, com todo o arcabouço jurídico constitucional de proteção ao meio ambiente, não só permite, mas, principalmente, impõe, que a interpretação dos institutos previstos no CFlo se faça de forma cada vez mais voltada para a proteção do patrimônio florestal como um conjunto de bens que, simultaneamente, interessa à coletividade e ao titular do domínio. O proprietário deve respeitar os „direitos‟ da coletividade, utilizando-a dentro dos preceitos estabelecidos pelo CFlo.”465 (destaques no original) 463 464 465 ANTUNES, Paulo Bessa. Direito Ambiental, 2008, p. 13. ANTUNES, Paulo Bessa. Idem, p. 13-14. ANTUNES, Paulo Bessa. Idem, p. 524-525. 177 Relativamente às áreas de reserva legal e de preservação permanente, bem assim às florestas em outros domínios, foram previstas no ordenamento jurídico brasileiro, pela Lei n. 9.605/98, punições à adoção de determinados comportamentos: “Art. 38. Destruir ou danificar floresta considerada de preservação permanente, mesmo que em formação, ou utilizá-la com infringência das normas de proteção: Pena - detenção, de um a três anos, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente. Parágrafo único. Se o crime for culposo, a pena será reduzida à metade. Art. 39. Cortar árvores em floresta considerada de preservação permanente, sem permissão da autoridade competente: Pena - detenção, de um a três anos, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente. (...) Art. 41. Provocar incêndio em mata ou floresta: Pena - reclusão, de dois a quatro anos, e multa. Parágrafo único. Se o crime é culposo, a pena é de detenção de seis meses a um ano, e multa. (...) Art. 44. Extrair de florestas de domínio público ou consideradas de preservação permanente, sem prévia autorização, pedra, areia, cal ou qualquer espécie de minerais: Pena - detenção, de seis meses a um ano, e multa. (...) Art. 48. Impedir ou dificultar a regeneração natural de florestas e demais formas de vegetação: Pena - detenção, de seis meses a um ano, e multa.” (destaquei) Para Silveira,466 a criminalização de algumas condutas e a cominação de multas trouxe, com efeito, uma evolução, mas não a solução para os problemas ambientais. Nos dizeres de Nardini: “As dimensões continentais do País, a cultura da destruição, as dificuldades de direito material e processual que o aparato jurídico enfrenta para combater os crimes” 467 e as infrações administrativas ambientais “constituem as principais causas de impunidade que hoje existe no direito penal ambiental brasileiro”468 e no ordenamento jurídico do Brasil, como um todo. Segundo Sassine,469 as autuações da Agência Municipal do Meio Ambiente de Goiânia (AMMA), de 2006 a 2009, compreendem os crimes ambientais de poluição atmosférica, poluição sonora, poluição do solo e da água e atividades 466 467 468 469 Cf. SILVEIRA, Rodrigo apud RODRIGUES, Renato. A indústria goiana na era ambiental, 2008, p. 12. NARDINI, José Maurício. Ofensas Contra a Flora, 1997, p. 197. NARDINI, José Maurício. Idem. Cf. SASSINE, Vinicius Jorge. Órgão ambiental aplica multa e infrator faz de conta que paga, 2010, p. 4. 178 industriais poluidoras, correspondendo a 30,92 milhões de reais, dos quais somente 4,68 milhões de reais foram recebidos, ou seja, 15,1% das multas aplicadas. A Secretaria Estadual do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos (SEMARH), pela prática de desmatamento do Cerrado, carvoarias ilegais, pesca predatória, mineração não autorizada e atividades industriais sem licença ambiental, aplicou em torno de 5 milhões de reais em multa, em 2008 e 2009, dos quais apenas 349,65 mil reais foram recebidos de outubro de 2008 a março de 2010, ou seja, 3,48% das multas aplicadas em 2008 e 2009.470 E o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA), de 2006 a 2009, aplicou 74,53 milhões de reais em multa pela prática de desmatamento de áreas de reservas legais e de preservação permanente, queima da cana-de-açúcar e atividades de mineração, sendo que apenas 2,38 milhões de reais foram recebidos pelo órgão ambiental, isto é, 3,2% das multas aplicadas.471 A razão para tamanha inadimplência ganha coro nos seguintes dizeres de Abreu: “Quero fazer um desafio aos ministros do Trabalho, do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Agrário: que eles administrem uma fazenda de qualquer tamanho em uma região de nova fronteira agrícola e tentem aplicar as legislações trabalhistas, ambientais e agrárias completas na propriedade. Mas não podem fazer milagre, porque nós vamos acompanhar. Se, depois de três anos, eles conseguirem manter o emprego e a renda nessa propriedade, fazemos uma vaquinha, compramos a terra para eles e damos o braço a torcer, reconhecendo que estavam certos. (...) A ideia prevalente, e errada, é (...) a noção de que fazendeiro vive de destruir a natureza e escravizar trabalhadores. Obviamente, como em qualquer atividade, ocorrem alguns abusos no campo. Mas o jogo duro de nossos adversários isolou os produtores do debate e espalhou essa ideia terrorista sobre nossa atividade. Esses preconceitos precisam ser desfeitos.”472 Então, “nossas leis trazem penas que não são suficientes e nem necessárias a prevenir e reprimir o dano ambiental.”473 Como o direito continua sendo a ciência do dever ser, daquilo que esperamos que o nosso semelhante faça ou deixe de fazer, é cada vez mais comum o uso de técnicas de estímulo de 470 471 472 473 Cf. SASSINE, Vinicius Jorge. Idem. Cf. SASSINE, Vinicius Jorge. Idem. ABREU, Kátia. Contra os preconceitos, 2010, p. 21-25. NARDINI, José Maurício. Ofensas Contra a Flora, 1997, p. 205. 179 comportamento, de sorte que, paralelamente à concepção tradicional de direito (protetivo-repressivo), forma-se a concepção como ordenamento com função promocional. Nos dizeres de Bobbio: “Há, com isso, uma verdadeira mudança no modo de realizar o controle social: passa-se de um controle passivo, que se preocupa mais em desfavorecer as ações nocivas do que as ações vantajosas, a um controle ativo, que se preocupa em favorecer as ações vantajosas, mais do que 474 desfavorecer as ações nocivas”. Nesse sentido, na base de criação das Unidades de Conservação de Uso Sustentável, por exemplo, entendidas como as Áreas de Proteção Ambiental, as Áreas de Relevante Interesse Ecológico, as Florestas Nacionais, as Reservas Extrativistas, as Reservas de Fauna, as Reservas de Desenvolvimento Sustentável e as Reservas Particulares do Patrimônio Natural,475 está o que se chama de direito promocional através de manejo para o desenvolvimento sustentável: “É passível de autorização a exploração de produtos, subprodutos ou serviços inerentes às unidades de conservação, de acordo com os objetivos de cada categoria de unidade. Tais produtos, subprodutos ou serviços inerentes à unidade de conservação, conforme o decreto regulamentador, são os seguintes: (i) Aqueles destinados a dar suporte físico e logístico à sua administração e à implementação das atividades de uso comum do público, tais como visitação, recreação e turismo; (ii) a exploração de recursos florestais e outros recursos naturais em Unidades de Conservação de Uso Sustentável, nos limites estabelecidos em lei. Somente se admite a exploração dos produtos, subprodutos ou serviços, conforme previsto no 476 plano de manejo.” Na mesma linha da promocionalidade, a Proposta de Emenda à Constituição Federal n. 115/95, mais conhecida como PEC do Cerrado: “Há mais de 14 anos, Pedro Wilson elaborou a proposta a fim de transformar o bioma em patrimônio nacional. Como tal o Cerrado ganha proteção e força para não virar carvão. A ideia é regulamentar o bioma a fim de ter políticas públicas para uso adequado do mesmo, possibilitando desenvolvimento, produção de alimentos e energia, ecoturismo e lazer sem destruir o Cerrado. 474 475 476 BOBBIO, Norberto apud ANDERSON, Rogério Oliveira. Tributação no imóvel rural, 2009, p. 15. Cf. art. 40-A, § 1º da Lei n. 9.605/98. ANTUNES, Paulo Bessa. Direito Ambiental, 2008, p. 597. 180 A proposta enfrenta grande resistência, principalmente por parte da bancada ruralista. Apesar disso, especialistas garantem que a PEC não prejudica o agronegócio, a agricultura, o extrativismo, a pecuária e nenhuma outra atividade, tal qual o ecoturismo. „Aliás, vai trazer recursos, beneficiar‟, enfatiza Pedro Wilson. Segundo ele, Caatinga e Cerrado tiveram oferta em dinheiro pela ONU, para projetos de preservação, mas como não existia lei, não puderam repassar recursos, cerca de 5 milhões de dólares. (...) apesar de ter sido incluída, finalmente, em setembro de 2009 na pauta de votação 477 da Câmara, a PEC ainda não foi apreciada.” Nesse diapasão, o questionamento desenvolvimento ou meio ambiente deve ser respondido com a afirmação concreta desenvolvimento sustentável por um direito promocional. Se, por um lado, o crescimento econômico se vincula a parâmetro como mercado e energia, por outro, o desenvolvimento representa vetores como preservação de ecossistemas. Segundo Fernandes: “Vale dizer que a defesa do meio ambiente representa, realmente, parte integrante do conceito de desenvolvimento tal como previsto constitucionalmente, visto que o próprio desenvolvimento implica em crescimento da indústria, da cidade, da renda e da tecnologia, mas com a adequada qualidade do meio ambiente, necessária para a sadia qualidade de vida.”478 Com efeito, a defesa do meio ambiente como princípio constitucional da ordem econômica no Brasil vem incorporada na ideia de função social, contornando o próprio conceito de produtividade. O sistema proposto pela Constituição Federal de 1988 submeteu toda e qualquer relação de apropriação de qualquer espécie de espaço à defesa do meio ambiente, fazendo com que fosse integrada uma dimensão de apropriação ambiental à atividade econômica.479 É que, segundo Alvarenga,480 há na propriedade da terra 3 elementos: proprietário, objeto apropriado e conjunto dos fatores produção, estabilidade e desenvolvimento: 477 478 479 480 RADY, Karla. A salvação do Cerrado, 2010, p. 26-27. FERNANDES, Paulo Victor. Impacto Ambiental – Doutrina e Jurisprudência, 2005, p. 49. AYALA, Patryck de Araújo. Deveres ecológicos e regulamentação da atividade econômica na Constituição brasileira, 2007, p. 271. ALVARENGA, Octávio Mello. Política e Direito Agroambiental: comentários à nova lei de reforma agrária (Lei n. 8.629, de 25 de fevereiro de 1993), 1995, p. 131. 181 “O sujeito exerce seus direitos sobre o imóvel rural, de maneira dinâmica, e não estática, cujo ponto de destaque permeia pelos três fatores indicados. No que pertine à produção, a propriedade da terra tem por fim produzir alimentos, sendo estes uma das razões do Direito Agrário. Quanto à estabilidade, significa que as relações jurídico-sociais estabelecidas pela propriedade são meio de equilíbrio social, tanto para os produtores como para a sociedade em geral. E o desenvolvimento, diz respeito que a propriedade é fator de gerar outras riquezas, devendo estar ordenado em todos os seus elementos.”481 (destaquei) E o mesmo autor plasma tal conceito quando define o desenvolvimento sustentável como: “o manejo e a conservação da base dos recursos naturais e a orientação da alteração tecnológica e institucional, de tal maneira que se assegure a contínua satisfação das necessidades humanas para as gerações presentes e futuras. Este desenvolvimento viável (nos setores agrícola, florestal e pesqueiro) conserva a terra, a água e os recursos genéticos vegetais e animais, não degrada o meio ambiente e é tecnicamente apropriado, economicamente viável e socialmente aceitável.”482 Assim, a avaliação da sustentabilidade do imóvel agrário é feita pela análise do cumprimento da função social, segundo os seguintes critérios: atendimento das necessidades alimentícias das gerações presentes e futuras, oferta de qualidade de vida, incentivo da capacidade produtiva e regenerativa dos recursos naturais sem depredar o meio ambiente e redução da vulnerabilidade ante os riscos da natureza. Aliás, é nesse sentido a colaboração da COP3, de 1997, na confecção do Protocolo de Kyoto, considerado importante cartilha aprovada pela comunidade internacional, inclusive pelo Brasil, para dirimir a quase sempre tensa relação homem e meio ambiente, notadamente em sua dimensão mudança climática. A “espinha dorsal” do Protocolo de Kyoto é o conceito de sequestro de carbono para um desenvolvimento sustentável, e surge, na sua versão florestal, como oportunidade que busca integrar as aspirações dos países subdesenvolvidos do Não-Anexo I “com vistas a uma ordem econômica internacional mais justa, 481 482 MATTOS NETO, Antônio José de. O Direito Agrário na Amazônia e o Desenvolvimento Sustentável, 1999, p. 405-406. ALVARENGA, Octávio Mello. Política e Direito Agroambiental: comentários à nova lei de reforma agrária (Lei n. 8.629, de 25 de fevereiro de 1993), 1995, p. 124. 182 incorporando as preocupações ambientais, sociais, culturais e econômicas”, 483 na medida em que, ao remover o carbono atmosférico e, com isso, gerar crédito de carbono comercializável, combate “a miséria humana sem que a natureza seja repudiada ou que as especificidades locais sejam desconsideradas.” 484 Para o Brasil, país signatário do Protocolo e constituído em sua natureza por biomas que proporcionam muitas opções para projeto florestal, o sequestro de carbono pode representar a possibilidade de conservar efetivamente as áreas protegidas e de fomentar o uso sustentável da terra nas fronteiras agrícolas. Destarte, a UNFCCC determinou que os países dela signatários, dentre eles o Brasil, apresentassem anualmente inventário das fontes e sumidouros de GEE no seu território, o que compreende, respectivamente, as atividades antrópicas de desmatamento, florestamento e reflorestamento realizadas no período de 1º de janeiro de 1990 a 2012: "Art. 4º. (...) 1. Todas as Partes, tendo em consideração as suas responsabilidades comuns, mas diferenciadas, as suas prioridades específicas de desenvolvimento nacional e regional e os seus objetivos e circunstâncias, devem: a) Desenvolver, atualizar periodicamente, publicar e facultar à Conferência das Partes, de acordo com os termos do art. 12, os seus inventários nacionais de emissões antropogênicas por fontes, assim como da remoção pelos sumidouros de todos os gases com efeitos de estufa não controlados pelo Protocolo de Montreal, mediante a utilização de metodologias comparáveis, a acordar pela Conferência das Partes.”485 Nesse contexto é que a exploração de produtos e serviços florestais no Brasil está adstrita à realização de estudo de impacto ambiental (art. 225, IV, da Constituição Federal de 1988), consolidando-se sua necessidade inclusive em áreas de florestamento ou reflorestamento com fins empresariais, conforme já decidiu o STF: “AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 182, § 3º, DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE SANTA CATARINA. ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL. CONTRARIEDADE AO ARTIGO 225, § 1º, IV, DA 483 484 485 FERNANDES, Paulo Victor. Impacto Ambiental – Doutrina e Jurisprudência, 2005, p. 50. FERNANDES, Paulo Victor. Idem. Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. Disponível em: <http://www.mct.gov.br>. Acesso em: 1º mar 2010. 183 CARTA DA REPÚBLICA. A norma impugnada, ao dispensar a elaboração de estudo prévio de impacto ambiental no caso de áreas de florestamento ou reflorestamento para fins empresariais, cria exceção incompatível com o disposto no mencionado inciso IV do § 1º do artigo 225 da Constituição Federal. Ação julgada procedente, para declarar a inconstitucionalidade do dispositivo constitucional catarinense sob enfoque.”486 Destarte, restrições de capital, inexistência de financiamento de longo prazo e discussões sobre mudanças na Lei Florestal para atualizar defasagens ou corrigir dispositivos legais que emperrem a atividade agropecuária, além de acirrar a dicotomia entre homem e meio ambiente e criar mais incertezas, pode, também, muitas vezes limitar os projetos florestais no Cerrado. Nos dizeres de Guimarães: “Não é curioso como os jornais não se cansam de noticiar a depredação histórica do Cerrado, principalmente por causa da atividade agropecuária em Goiás (...) e ao mesmo tempo não param de enaltecer a vocação deste mesmo Cerrado à agricultura e à forte capacidade produtiva de bens primários do Estado O tema é universal, não está resolvido e deve contar com nossa participação, não por questão de equilíbrio entre grupos, de interesses, de tendências que se dividem. A nossa maior e última referência nesse debate, a COP15, não é um cenário firme e iluminado. Não se pode esperar de fóruns técnico-jurídicos soluções para um problema que não demanda apenas resultados, mas que antes exige conscientização e amplo envolvimento. Soluções práticas; leis, devem ser discutidas depois.”487 Nesse aspecto, o Governo do Estado de Goiás, ainda que seguindo uma das exigências do Banco Mundial (Bird) para financiamento da obra da barragem do João Leite, assinou, em abril de 2010, minuta da criação de um consórcio público que garantirá financiamentos do Fundo Estadual do Meio Ambiente a agropecuaristas de 11 municípios goianos da área abrangida pela Bacia Hidrográfica do Ribeirão João Leite, incentivando o reflorestamento na região para proteger os cursos d‟água na bacia, “além de contribuir para o controle da erosão e da sedimentação, o aumento da infiltração de água no solo, além de aumentar as vazões, que permanecerão na bacia do João Leite.”488 O consórcio envolverá, no mínimo, os municípios de Anápolis, Aparecida de Goiânia, Campo Limpo, Goianápolis, Goiânia, Nerópolis, Ouro Verde, Senador 486 487 488 STF, Tribunal Pleno, ADI 1086/SC, Rel. Min. Ilmar Galvão, Julgamento em 10/08/2001. GUIMARÃES, Wagner. Para discutir a Lei Florestal, 2010, p. 12. CÉSAR, Ricardo. Produtor ganha com projeto de água, 2010, p. 12. 184 Canedo, Teresópolis e Trindade, e “deverá ser responsável pela solução de problemas ambientais que atingem as propriedades do João Leite, como ocupação irregular e desmatamento para a formação de pastagem.” 489 Os sistemas agroflorestais podem também ser utilizados na recuperação de fragmentos florestais, “restauração de ecounidades degradadas, corredores de interligação, recuperação de Matas Ciliares e manejo das bordas dos fragmentos”, além da recuperação de áreas de reserva legal.490 O MDL nas florestas plantadas, não consideradas reserva legal ou de preservação permanente, encontra permissivo legal no próprio Código Florestal, segundo o qual naquelas é livre a extração de lenha e demais produtos florestais ou a fabricação de carvão (art. 12). Por sua vez, o uso de áreas de reserva legal e de preservação permanente em projetos hospedeiros de sequestro florestal de carbono, com a consequente conversão em RCE e comercialização no mercado, é uma questão bastante discutida, vez que são áreas protegidas pelo Código Florestal. A reserva legal consiste em uma área localizada no interior de um imóvel rural, necessária ao uso sustentável dos recursos naturais, à conservação e reabilitação dos processos ecológicos, à conservação da biodiversidade e ao abrigo e proteção de fauna e flora nativas (art. 1º, § 2º, III), de 80% na propriedade rural situada em área de floresta localizada na Amazônia Legal; 35% em área de Cerrado localizada na Amazônia legal; 20% nas demais regiões do País e 20% em área de campos gerais (art. 16, I a IV). A vegetação na reserva legal, conquanto não possa ser suprimida, pode ser utilizada sob regime de manejo sustentável e se a área de floresta nativa tiver extensão inferior àquela estabelecida no Código Florestal o proprietário ou o possuidor do imóvel rural tem o dever de recompô-la, com espécies nativas ou mediante o plantio temporário de espécies exóticas (art. 44, caput c/c I e § 2º). Nesse aspecto, na área de reserva legal, os requisitos de participação voluntária, benefícios reais e adicionalidade estabelecidos pelo Protocolo de Kyoto estão presentes, na medida em que o proprietário ou possuidor do imóvel rural seria 489 490 CÉSAR, Ricardo. Idem. DUBOC, Eny, MORAES NETO, Sebastião Pires de e MELO, José Teodoro de. Sistemas agroflorestais e Cerrado, 2008, p. 326. 185 compensado pela composição ou recomposição da área e, ainda, contribuiria para a diminuição de desmatamentos, resultando no acréscimo da manutenção de florestas nativas e no resgate de áreas degradadas, com melhorias no meio ambiente. Já a área de preservação permanente, coberta ou não por vegetação nativa, tem a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas (art. 1º, § 2º, II). Ademais, admite-se a supressão da vegetação em área de preservação permanente em caso de utilidade pública e interesse social, entendendo-se por uma das modalidades de interesse social a atividade de manejo agroflorestal sustentável praticada na pequena propriedade ou posse rural familiar, que não descaracterize a cobertura vegetal e não prejudique a função ambiental da área (art. 4º, caput c/c art. 1º, § 2º, V, “b”). Se se permite certa supressão da cobertura vegetal da área de preservação permanente para assegurar o bem-estar das populações humanas através do manejo sustentável, com muito maior razão deve-se permitir a sua recomposição por MDL florestal, quando o contexto é o da mudança climática ocasionada pela intensificação da concentração de GEEs na atmosfera e seus efeitos negativos globais, que impõem a todos o dever de ser sustentáveis, e o florestamento ou reflorestamento constituem atividades catalisadoras da preservação dos cursos d‟água, nascentes, topos e encostas de morros, e qualidade do solo e água, e funcionam como corredores de fauna. Destarte, já dizia Meirelles: “Em qualquer hipótese, porém, as limitações administrativas hão de corresponder às justas exigências do interesse público que as motiva sem produzir um total aniquilamento da propriedade ou das atividades reguladas. Essas limitações não são absolutas, nem arbitrárias. Encontram seus lindes nos direitos individuais assegurados pela Constituição e devem expressarse em forma legal. Só são legítimas quando representam razoáveis medidas de condicionamento do uso da propriedade, em benefício do bem-estar social (CF, art. 170, III), e não impedem a utilização da coisa segundo a sua 491 destinação natural.” Logo, as limitações administrativo-legais não podem impedir a utilização 491 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro, 2002. 186 econômica do bem, de maneira que tal patrimônio, fisicamente explorável, está vinculado à necessidade e proteção dos recursos naturais por determinação legal benéfica a toda a nação.492 Pelo histórico das fontes legislativas e análise da atual concepção jurídica sobre o imóvel rural, a atividade agrária e a flora no Brasil, foi oportunizado contato com o Protocolo de Kyoto e as normas brasileiras constitucionais, ambientais, civilistas, agrárias e outras esparsas acerca da matéria. Não se pode deixar escapar, todavia, a salutar lição de Barroso no sentido de que o constitucionalismo brasileiro vive “um momento sem precedentes, de vertiginosa ascensão científica e política”.493 Segundo o mesmo autor, “A paisagem é complexa e fragmentada. No plano internacional, vive-se a decadência do conceito tradicional de soberania.” 494 A globalização é a manchete que anunciou a chegada do século XXI, que, no campo econômico e social, pautou-se pela obsessão da eficiência, o que elevou a exigência de produtividade. Na política, o Estado neo-liberal passou a ser o guardião do lucro, enquanto que no Direito a fórmula abstrata da lei já não trouxe mais todas as respostas. Isso porque, a matéria-prima do Direito “é feita de normas, palavras, significantes e significados”,495 sendo sua objetividade possível alcançável pelas “possibilidades interpretativas que o relato da norma oferece.”496 Essas possibilidades podem decorrer da discricionariedade atribuída ao intérprete, da multiplicidade de significados das palavras ou da ponderação de interesses ante a existência de normas contrapostas. Daí a constatação de que a aplicação do Direito compreende ato de conhecimento e de vontade. O Direito Constitucional é que define os limites da atuação do intérprete, instituindo, para tanto, normas que orientam na escolha entre as alternativas possíveis: “princípios, fins públicos, programas de ação”,497 contando, para esse 492 493 494 495 496 497 MORAES, L.C.S. Código Florestal comentado: com as alterações da lei de crimes ambientais, Lei n. 9.605/98, 2002. BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito brasileiro (Pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo), 2001, p. 6. BARROSO, Luís Roberto. Idem. p. 7. BARROSO, Luís Roberto. Idem. p. 11. BARROSO, Luís Roberto. Idem. BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito brasileiro (Pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo), 2001, p. 11. 187 mister, com a fecunda colaboração da transdisciplinariedade. Nesse contexto, assistiu-se a superação do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo, abrindo espaço para o neo-positivismo, abaixo nominado pós-positivismo: “O advento do Estado liberal, a consolidação dos ideais constitucionais em textos escritos e o êxito do movimento de codificação simbolizaram a vitória do direito natural, o seu apogeu. Paradoxalmente, representaram, também, a sua superação histórica. No início do século XIX, os direitos naturais, cultivados e desenvolvidos ao longo de mais de dois milênios, haviam se incorporado de forma generalizada aos ordenamentos positivos. Já não traziam a revolução, mas a conservação. Considerado metafísico e anticientífico, o direito natural é empurrado para a margem da história pela onipotência positivista do século XIX. (...) Sem embargo da resistência filosófica de outros movimentos influentes nas primeiras décadas do século, a decadência do positivismo é emblematicamente associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha. Esses movimentos políticos e militares ascenderam ao poder dentro do quadro de legalidade vigente e promoveram a barbárie em nome da lei. Os principais acusados de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei e a obediência a ordens emanadas da autoridade competente. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, a idéia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da lei como uma estrutura meramente formal, uma embalagem para qualquer produto, já não tinha mais aceitação no pensamento esclarecido. (...) O pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica e a teoria dos direitos 498 fundamentais.” A Constituição passa a ser vista como um sistema aberto de princípios e regras, permeável por valores supralegais, onde a realização dos direitos fundamentais e a normatividade dos princípios desempenham papel central, centrando-se as regras sempre na finalidade que lhes dá suporte e nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes.499 Nas palavras de Ávila: “O ponto decisivo não é, portanto, a falta de ponderação na aplicação das regras, mas o tipo de ponderação que é feita e o modo como ela deverá ser validamente fundamentada”.500 No mesmo sentido, Pereira: 498 499 500 BARROSO, Luís Roberto. Idem, p. 20-23. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 2006, p. 167. ÁVILA, Humberto. Idem, p. 63. 188 “Assim, a responsabilidade dos operadores jurídicos traduz-se em um permanente debate público das razões de decidir, em um constante repensar os fundamentos da convivência política, pautada por um ato de respeito às distintas visões de mundo, como marca do caráter inclusivo da cidadania no postulado do Estado Democrático de Direito.”501 Nesse sentido, garante-se a integralidade do labor hermenêutico no Direito, sem olvidar as exigências para a sua validade: segurança jurídica e racionalidade: “A segurança jurídica ganha em importância, pois, conscientes da complexidade do processo, corre-se menos o risco da utopia dos resultados „óbvios‟, bem como passa-se a ressaltar a necessidade de fundamentação rigorosa e integral como requisito de validade da decisão, implicando assim a exigência de inclusão de todos os pontos de vista pertinentes. A racionalidade dessa passa a ser medida pela sua competência em superar argumentos contrários e realizar o dever de coerência normativa.”502 E é nesse diapasão que os princípios proporcionam arejamento ao sistema jurídico, evitando visões míopes que reduzem a regulamentação do caso concreto ao relato restrito da regra. Na doutrina estrangeira, Sanz Jarque503 propugna a existência de princípios universais que informam o Direito Agrário, entendidos como critérios de categoria universal, resultantes do próprio Direito por dedução da observação particular e da experiência jurídico-agrária, que informam, de maneira aberta, objetiva e real, a normativa agrária, inerentemente às suas finalidades e natureza. Enumera o jurista espanhol o princípio do caráter continuadamente renovador e finalista da normativa agrária; o da funcionalidade da propriedade e posse da terra como objetivo nos múltiplos fins desta; o da organização empresarial da agricultura, livre e racionalmente organizada, sobre o mais amplo âmbito das atividades agrárias e da matéria agrária e o da ação coordenada da atividade e legislação agrária com a ordenação do território. Oliveira precisa a explicação desses princípios: “Para explicar o primeiro princípio, de caráter continuadamente renovador e 501 502 503 PEREIRA, Rodolfo Viana. Hermenêutica filosófica e constitucional, 2001, p. 173. PEREIRA, Rodolfo Viana. Idem, p. 180-181. JARQUE, Juan Jose Sanz apud OLIVEIRA, Humberto Machado de. Princípios de Direito Agrário na Constituição vigente, 2006, p. 148-149. 189 finalista da normativa agrária, observa Sanz Jarque que o estudo da normativa agrária vigente, das instituições agrárias e da evolução da história da matéria agrária, deflui do caráter continuadamente renovador do Direito Agrário em um duplo sentido: primeiro, para que a terra sirva continuadamente às necessidades imediatas dos agricultores, dos titulares da propriedade e de todos os cidadãos; e segundo, para que o regime da propriedade e das instituições agrárias sirva aos fins e objetivos essenciais e próprios das mesmas. É, sem dúvida, continua Sanz Jarque, um princípio que se experimenta em seu triplo contorno: local, nacional e universal, e está implícito na realidade mesma da vida agrária, de modo que, onde não se obedece a ele, observa-se uma defasagem, incongruência e desconexão entre o que é e o que deve ser na vida real, que se deve corrigir e afeta sempre como objetivo finalista os agricultores, a produção agrária e o equilíbrio ecológico. O segundo princípio, o da funcionalidade da propriedade e posse da terra como objetivo os múltiplos fins desta, (...) inclui, na legislação agrária de cada país, junto ao jurídico, o técnico-econômico e o social, isto é, o relativo às múltiplas funções inerentes à propriedade da terra e da empresa agrária: a produção, a estabilidade e o desenvolvimento ao serviço harmônico de seus titulares e da comunidade, com profunda significação social. O (...) princípio da organização empresarial da agricultura, livre e racionalmente organizada, sobre o mais amplo âmbito das atividades agrárias, e da matéria agrária, indica que a elevação, como se pretende e é de justiça para o campo, da produção, da produtividade e das rendas agrárias ao nível dos demais setores econômicos, não pode ser alcançada pelos agricultores individualmente, senão organizados livre e racionalmente de modo empresarial. (...) A ação coordenada da atividade e legislação agrária com ordenação do território, (...), traduz a universal preocupação, pela ordenação global do território a todos os níveis e âmbitos, de caráter local, regional e universal, com o objetivo de utilização da terra de acordo com sua vocação e características. Nessa direção há um decidido movimento em prol do ordenamento e do cuidado e conservação da natureza, pois não se justifica a atividade, a exploração nem a autêntica ação empresarial agrária à margem do cuidado e conservação da natureza e do habitat em que se vive. O aproveitamento racional dos recursos naturais e a conservação e renovação destes – água, flora e fauna – é uma constante da vida agrária. A agricultura deve organizar-se, pois, em harmonia com o planejamento e a ordenação racional do território. Por outro lado, o autêntico agricultor tem sido sempre, e deverá sê-lo cada vez mais, não somente o produtor de alimentos, senão guardião da natureza em seu próprio meio ambiente.”504 (destaquei) Por esses princípios universais do Direito Agrário, Sanz Jarque contribuiu para uma melhor compreensão da realidade constitucional brasileira, auxiliando na identificação de 2 princípios basilares de Direito Agrário na Constituição ora vigente: produtividade do imóvel agrário e preservação do meio ambiente. O imóvel agrário produtivo e preservado ambientalmente é ordem que emana do art. 186, I e II (aproveitamento racional e adequado e utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente), do art. 170, VI 504 OLIVEIRA, Humberto Machado de. Princípios de Direito Agrário na Constituição vigente, 2006, p. 151154. 190 (a ordem econômica tem por fim assegurar a todos existência digna, observada a defesa do meio ambiente) e do art. 225 (todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações), todos da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 3.3 A PRODUTIVIDADE E A NECESSIDADE DO MANDADO DE INJUNÇÃO Para os fins de produtividade, a Lei n. 8.629, de 1993, estabeleceu que o imóvel agrário atingisse GUT ≥ 80%, calculado pela relação percentual entre a área utilizada e a aproveitável do imóvel, considerando-se efetivamente utilizada, por exemplo, a área de exploração florestal e a de exploração de floresta nativa de acordo com plano de exploração (art. 6º, caput c/c §§ 1º e 3º, I, III e IV), bem como GEE ≥ 100%, obtido, para os produtos vegetais, pela divisão da quantidade colhida de cada produto pelos respectivos índices de rendimento (art. 6º, caput c/c § 2º). A mesma orientação é encontrada na Instrução Normativa n. 11, de 4 de abril de 2003, do INCRA (art. 5º, § 6º). O mesmo diploma legal firmou entendimento, ainda, pela utilização adequada dos recursos naturais disponíveis, em observância à vocação natural da terra e ao potencial produtivo da propriedade; e pela preservação do meio ambiente, mantendo-se as características próprias do meio natural e da qualidade dos recursos ambientais, na medida adequada à manutenção do equilíbrio ecológico da propriedade e da saúde e qualidade de vida das comunidades vizinhas (art. 9º). Nesse mister, imprescindível solidificar a concepção da atividade florestal como modalidade de atividade agrária. Sobre a questão, a própria Lei n. 8.629/93 já direcionou que se considera área efetivamente utilizada a área de exploração de floresta plantada ou nativa. De igual modo, a Resolução Especial INCRA n. 05a, de 06 de junho de 1973, considera tipo de exploração rural a atividade enquadrada na classe florestal 191 (art. 3º). Diante dessa diversidade de opiniões doutrinárias, que de certo modo se embasam nas Teorias Clássicas da atividade agrária, diante da insuficiência legislativa nacional que pela técnica de elencar o que é atividade agrária engessa o ordenamento jurídico, e diante da realidade brasileira permeada por atividades que, em constante desenvolvimento, apresentam-se sob novos modelos de exploração, como o sequestro florestal de carbono, é que: “Arriscando nessa seara, partindo-se de novas constatações da realidade e daquilo que têm em comum as atividades agrárias já tradicionais e reconhecidas pela legislação, pode-se afirmar que a atividade agrária ou rural, para fins econômicos, é aquela desenvolvida intencionalmente pela pessoa junto ao meio rural enquanto substrato (terra, água ou outro que propicie vida, visando valer-se da produção orgânica (simples ou derivada), da vida animal ou do próprio meio rural (em si ou modificado) para inserir-se na sociedade.”505 (destaques no original) Por esse conceito aberto de atividade agrária, resta mais fácil a inserção de alguns expoentes da realidade brasileira, cuja caracterização suscita dúvidas, sem, contudo, comprometer a segurança jurídica, vez que a verificação, caso a caso, rege-se, a um só tempo, pelos princípios universais de Direito Agrário e pelos princípios constitucionais agrários brasileiros da produtividade do imóvel rural e preservação do meio ambiente. No contexto da exploração florestal, inclui-se, além da atividade extrativa de produtos, o serviço florestal, isto é, o serviço prestado pela floresta, sendo a purificação do ar pelo sequestro de carbono um de seus serviços mais importantes. Malgrado a remoção de carbono atmosférico se dê pela árvore enraizada na terra, esse serviço florestal tem relação direta com o ar, o que o caracteriza como atividade agrária típica. É que a atividade agrária, segundo um critério objetivo, desenvolve-se em relação aos elementos da natureza: água, como na aquicultura ou nas “Fazendas do Mar”; solo, onde a atividade agrária se desenvolve com maior intensidade; sendo em relação ao ar, notadamente no tocante à sua composição (CO 2, por exemplo), que o sequestro florestal de carbono ganha vazão. Destarte, conquanto a remoção de carbono por uma árvore ocorra pelo 505 SCARDOELLI, Dimas Yamada. Idem, p. 47-48. 192 processo da fotossíntese, no âmbito de um MDL florestal esse importante serviço se realiza de maneira adicional e intencional, na medida em que a participação humana, no florestamento ou reflorestamento de uma área e no esforço em manter atendidos os requisitos exigidos pelo Protocolo de Kyoto, é decisiva na gênese e evolução daquele mesmo serviço, restando assim até a efetiva conclusão do projeto. Assim, o sequestro florestal de carbono não seria considerado atividade agrária apenas por conexão, conforme cogitado outrora por um segmento da doutrina. É atividade agrária típica, conforme uma hermenêutica contemporânea de classificação506 e em observância aos princípios universais e constitucionais agrários do aumento da produtividade e preservação do meio ambiente, pois, ao passo que mitiga a mudança do clima e os efeitos negativos dela decorrentes, garante, com o crédito de carbono e demais produtos florestais, alimento para o proprietário ou possuidor agrário executor do projeto, garantindo-o também às pessoas não envolvidas diretamente na atividade na medida em que, em sistema agroflorestal ou agrissilvipastoril, aumenta a produção agropecuária ao estocar o carbono atmosférico removido no solo, fertilizando-o. Nesse diapasão, a atividade agrária de sequestro florestal de carbono pode ser computada no cálculo do GUT e do GEE para fins de produtividade do imóvel agrário. Inobstante a Instrução Normativa n. 11 do Instituto Nacional de Reforma Agrária (INCRA) relacione parâmetros médios de produtividade para cômputo do Grau de Eficiência na Exploração (GEE), inexiste, no ordenamento jurídico brasileiro, um parâmetro próprio da atividade agrária de sequestro florestal de carbono. A omissão legislativa e a aferição da produtividade podem ser supridas pelo manejo do mandado de injunção, nos termos do art. 5°, inc. LXXI, da CF/88, de modo que o Governo Federal, com apoio em equipe técnica de agrônomos, engenheiros florestais e outras profissões correlatas, estabeleça os parâmetros específicos e de eficácia geral para o cálculo do GEE em imóvel agrário onde haja exploração da atividade agrária de sequestro florestal de carbono. 506 SCARDOELLI, Dimas Yamada. A atividade rural brasileira – análise das bases de uma teoria contemporânea de classificação, 2008, p. 25. 193 Esses parâmetros devem se diferenciar conforme as características próprias dos biomas nas diversas regiões do País, variando em consequência das condições do clima, solo e disponibilidade de água, bem como da espécie de árvore, nativa ou exótica, na medida em que representam fatores influenciáveis na quantidade de carbono atmosférico removido durante o processo da fotossíntese. A adicionalidade, por si, já indica o caminho, pois demonstra que na área degradada que abriga o projeto florestal sequestra-se mais carbono do que na ausência da atividade de (re) florestamento, apresentando-se a ação declaratória de produtividade, nesse sentido, outra opção para o reconhecimento do imóvel agrário como produtivo, sendo tal declaração um precedente jurisprudencial e de eficácia inter partes. “Com relação aos ecossistemas sob proteção constitucional direta, pode-se argumentar que não se encontram excluídos do exercício de atividade econômica, no que concerne aos seus recursos e aos próprios espaços”, 507 conforme já entendeu o Supremo Tribunal Federal (STF): “É certo que o Pantanal Mato-Grossense – área em que situado o imóvel do impetrante – constitui patrimônio nacional, devendo a sua utilização fazer-se, na forma da lei – consoante prescreve o art. 225, § 4º, da Carta Política – dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, notadamente quanto ao uso dos recursos naturais, sob pena de descaracterização, para os efeitos já referidos, da função social da propriedade. Isso significa que o próprio ordenamento constitucional reconhece a possibilidade de serem desenvolvidas atividades de caráter econômico nas áreas qualificadas como integrantes do patrimônio nacional (CF, art. 225, § 4º). Essa norma não inibe, em consequência, inclusive para o efeito de execução de projetos de reforma agrária, a utilização dos imóveis rurais situados no Pantanal Mato-Grossense, desde que sejam respeitadas as condições impostas pela lei como necessárias à preservação do meio ambiente (JOSÉ AFONSO DA SILVA, 'Curso de Direito Constitucional Positivo', p. 773, 10. ed., 1995, Malheiros). Vê-se daí, que o preceito constitucional em questão não impede – uma vez observadas as exigências fixadas em lei e respeitadas as condições necessárias à preservação ambiental – a utilização, pela União Federal, dos mecanismos de expropriação para fins de reforma agrária, não obstante os imóveis rurais atingidos estejam situados na Serra do Mar, ou na Floresta Amazônica Brasileira, ou na Mata Atlântica, ou na Zona Costeira, ou ainda, no Pantanal Mato-Grossense, como no caso.” 508 Em suma, o ordenamento jurídico brasileiro, inclusive a Constituição 507 508 AYALA, Patryck de Araújo. Deveres ecológicos e regulamentação da atividade econômica na Constituição brasileira, 2007, p. 279-280. STF, Mandado de Segurança n. 22.164-0/SP, razões de voto do Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 17/11/95. 194 vigente, não excluiu do poder de apropriação privada as áreas protegidas, como as do Patrimônio Nacional, as de Reserva Legal ou as de Preservação Permanente. Inobstante as tenha considerado, a princípio, áreas não aproveitáveis (art. 10, IV da Lei n. 8.629, de 1993), excluiu, na verdade, o uso predatório e degradante sobre esses espaços, a utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção, de tal sorte que, mesmo em área de preservação permanente, permite-se o manejo sustentável com vistas a atender interesse social que, nas circunstâncias atuais, consiste na necessidade urgente de mitigação da mudança climática e seus efeitos negativos, ambos de dimensões globais. Ademais, o TRF1 inclusive já decidiu que atividade agrária em áreas protegidas influencia no cálculo da produtividade, por exemplo, quando a reserva, formada de vegetação nativa do tipo cerrado ou capoeira, é utilizada como pastagens na exploração da pecuária: “ADMINISTRATIVO. DESAPROPRIAÇÃO. IMÓVEIS RURAIS. FAZENDAS SÃO FRANCISCO I E SÃO FRANCISCO II. REFORMA AGRÁRIA. FIXAÇÃO DA INDENIZAÇÃO. LAUDO OFICIAL. PRODUTIVIDADE. LIVRE CONVENCIMENTO. RESERVA LEGAL. AVERBAÇÃO. PASTAGENS NATURAIS. IMÓVEIS PRODUTIVOS. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. 1. Merece prestígio a sentença agravada no ponto relativo à declaração de produtividade das Fazendas São Francisco I e São Francisco II. O Magistrado bem analisou o conjunto probatório e corretamente convenceuse da produtividade dos imóveis. 2. Os cálculos da produtividade dos imóveis foram bem efetuados, pois a vegetação nativa (cerrado e capoeira) pode ser utilizada como pastagens. 3. Há, na hipótese, proteção ao interesse público concernente à obediência à Constituição Federal. 4. Inexiste afronta aos arts. 5º, XXIII; 170, III; 186, todos da Constituição, e ao art. 9º da Lei 8.629/93, ao inciso V do § 3º do art. 6º da Lei 8.629/93, alterada pela MP. 2.183-56/2001. 5. A área de reserva, ao contrário do que afirma o INCRA, influencia no cálculo da produtividade. 6. A Constituição não autoriza que a propriedade produtiva seja desapropriada por interesse social para fins de reforma agrária. 7. Em se tratando de condenação contra a Fazenda Pública, os honorários advocatícios devem ser fixados em consonância com o disposto no art. 20, §§ 3º e 4º, do Código de Processo Civil. De toda forma, afigura-se justo, no caso, o percentual de 5% (cinco por cento) sobre o valor da condenação. 8. Improvimento do apelo do Ministério Público e parcial provimento da 509 apelação do INCRA e da remessa.” A viabilização da atividade agrária de sequestro de carbono por um MDL florestal pode se dar com apoio da esfera pública ou privada. 509 TRF1, Quarta Turma, Apelação Cível n. 2005.43.00.003127-0/TO, Rel. Des. Federal Hilton Queiroz, DJF1 de 10/07/2008. 195 No primeiro, o instrumento é a Política Agrícola, entendida como o conjunto de providências de amparo à propriedade da terra, que se destinem a orientar, no interesse da economia rural, as atividades agrárias, inclusive no sentido de harmonizá-las com o processo de industrialização do País (art. 1º, § 2º do Estatuto da Terra). Segundo Furtado, do conceito legal extraem-se os seguintes elementos: “1. é uma ação do Poder Público; 2. é uma ação principalmente de planejamento; 3. dirigida às atividades econômicas do meio rural; 4. natureza transitória; 5. melhoria contínua; 6. fins: aumento da produtividade, preservação do meio ambiente e bem estar de trabalhadores e proprietários rurais.”510 E é no objetivo específico de proteção do meio ambiente e conservação e recuperação dos recursos naturais que o crédito rural pode ser concedido (art. 50, da Lei n. 8.171, de 1991) e as atividades florestais amparadas pelo seguro agrícola (art. 56, parágrafo único, da Lei n. 8.171, de 1991). O crédito rural é suprido pelos agentes financeiros sem discriminação entre eles, mediante aplicação compulsória, recursos próprios livres, dotações das operações oficiais de crédito, fundos e quaisquer outros recursos (art. 48, da Lei n. 8.171, de 1991), sendo suas fontes usuais os programas oficiais de fomento; a caderneta de poupança rural operadas por instituições públicas e privadas; os recursos financeiros de origem externa, decorrentes de empréstimos, acordos ou convênios, especialmente reservados para aplicações em crédito rural; os recursos captados pelas cooperativas de crédito rural; as multas aplicadas a instituições do sistema financeiro pelo descumprimento de leis e normas de crédito rural; recursos orçamentários da União; e outros recursos que venham a ser alocados pelo Poder Público (art. 81, da Lei n. 8.171, de 1991). O seguro agrícola, por sua vez, tem por fontes os recursos provenientes da participação dos produtores rurais, pessoa física e jurídica, de suas cooperativas e associações; as multas aplicadas a instituições seguradoras pelo descumprimento de leis e normas do seguro rural; os recursos previstos no art. 17 do Decreto-Lei n° 73, de 21 de novembro de 1966; dotações orçamentárias e outros recursos alocados 510 FURTADO, Fabrício Ribeiro dos Santos. Política Agrícola, 2009, p. 5-6. 196 pela União (art. 82, da Lei n. 8.171, de 1991). Já na esfera privada, o MDL florestal pode ser financiado por empresas nacionais ou estrangeiras das Partes Anexo I, que assumiram o compromisso de redução de emissão e/ou remoção de GEE. É em todo esse contexto que o sequestro florestal de carbono insere o Direito Agrário na ordem do discurso do desenvolvimento sustentável, na medida em que, na qualidade de atividade agrária típica, contribui para a formação de um novo conceito de produtividade do imóvel rural em consonância com a preservação ambiental, que começa pela mitigação da mudança climática. 197 CONCLUSÃO 1 Conquanto inexista consenso sobre a origem antrópica ou não da mudança climática, uma análise histórica dos fatos, a partir da Segunda Guerra Mundial, revelou que o modelo de industrialização pautado nos supostos do tipo ascético da ética protestante, do fordismo e do pensamento cepalino, intensificou a concentração de gás de efeito estufa (GEE), dentre eles o CO2, na atmosfera e, de consequência, o aquecimento global, o que resultou na emergência da questão ambiental como problema global. 2 A problemática ambiental global inseriu o desenvolvimento sustentável na ordem do discurso, com vistas à promoção de um desenvolvimento que satisfizesse as necessidades do presente sem comprometer a capacidade de as futuras gerações satisfazerem suas próprias necessidades. 3 Um corpus juris de proteção internacional do meio ambiente para o desenvolvimento sustentável e mitigação da mudança do clima foi formado, tendo por “espinha dorsal” o Protocolo de Kyoto, que quantificou as metas dos Países Anexo I, em geral nações desenvolvidas, de redução de emissão e de remoção de GEE da atmosfera, prevendo, para tanto, o sequestro florestal de carbono como instrumento de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) que deve satisfazer, simultaneamente, os requisitos de participação voluntária, adicionalidade e benefícios reais, mensuráveis e de longo prazo. 4 No âmbito de um MDL florestal, as atividades elegíveis são o florestamento e o reflorestamento para áreas que, respectivamente, por um período mínimo de 50 anos ou em 31 de dezembro de 1989 não eram cobertas por floresta, entendida como a formação vegetal com cobertura mínima de 30% e árvores com altura mínima de 2-5 metros. 5 A definição de floresta restringe as áreas elegíveis no Cerrado para implantação do projeto florestal, dada a predominância das formações savânicas na região, mas permite a recuperação e o enriquecimento da cobertura florestal em áreas degradadas de Mata Ciliar, Mata de Galeria, Mata Seca, Cerradão, Cerrado sentido restrito e Parque de Cerrado. 6 Uma agropecuária produtiva e sustentável passa, inevitavelmente, pela 198 restauração de áreas degradadas, manutenção de processos ecológicos e proteção da água e do solo através, por exemplo, do cultivo de florestas, hábeis à produção de produtos florestais e à prestação do serviço ambiental de sequestrar carbono florestal. 7 O projeto florestal pode ser implantado em áreas de reserva legal e de preservação permanente, na medida em que o ordenamento jurídico brasileiro não excluiu do poder de apropriação privada essas áreas protegidas. Exclui, na verdade, o uso predatório e degradante sobre esses espaços, isto é, a utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção, permitindo-se, inclusive, o manejo florestal sustentável em caso de interesse social. 8 O sequestro florestal de carbono é atividade agrária típica, na medida em que, por meio do elemento natural ar, contribui para o aumento da produtividade de alimentos, para o proprietário ou possuidor do imóvel agrário executor do projeto ao gerar crédito de carbono comercializável, e para a população em geral ao melhorar as condições climáticas da região, com o estoque de carbono na biomassa aérea da árvore, e fertilizar o solo com o estoque de carbono na biomassa subterrânea, de modo a catalisar a produção agropecuária desenvolvida na área do projeto no sistema integrado agroflorestal ou agrissilvipastoril. 9 A atividade agrária de sequestro florestal de carbono pode ser computada no cálculo do GUT e do GEE para fins de produtividade do imóvel agrário, definindo-se os parâmetros próprios da atividade pelo manejo de mandado de injunção, diferenciando-se conforme as características próprias dos biomas nas diversas regiões do País, variando em consequência das condições do clima, solo e disponibilidade de água, bem como da espécie de árvore, nativa ou exótica, na medida em que representam fatores influenciáveis na quantidade de carbono atmosférico removido durante o processo da fotossíntese. 10 A adicionalidade, por si, já indica o caminho, pois demonstra que na área degradada que abriga o projeto florestal sequestra-se mais carbono do que na ausência da atividade de (re) florestamento, apresentando-se a ação declaratória de produtividade, nesse sentido, outra opção para o reconhecimento do imóvel agrário como produtivo, sendo tal declaração um precedente jurisprudencial e de eficácia inter partes. 11 O financiamento do MDL florestal pode ocorrer na esfera pública, através dos 199 instrumentos de Política Agrícola, crédito rural e seguro agrícola, ou na seara particular, onde os recursos provêm de empresas nacionais e estrangeiras de Países Anexo I. 12 Com apoio nos supostos do neo-positivismo, notadamente no que diz respeito ao caráter continuadamente renovador da norma, o sequestro florestal de carbono é atividade agrária que promove o desenvolvimento sustentável e contribui para um novo conceito de produtividade do imóvel rural. 200 REFERÊNCIAS ABREU, Kátia. 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