Todos aqueles que não se alistaram em guerras

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« continuando da parte 2
A fonte da sabedoria
Ainda abaixo de uma das gigantescas raízes de Yggdrasil, a árvore cósmica
a sustentar todos os reinos míticos da mitologia nórdica, se encontra uma
nascente d’água muito especial: Mímisbrunnr. É neste pequeno lago que
vivia o Mímir, um reconhecido sábio (seu nome significa algo como “o
sábio”, ou ainda “aquele que se lembra”). Odin ficou sabendo da existência
desta fonte, que se acreditava dar “a sabedoria de todas as eras” aqueles
que a bebiam regularmente (daí a sabedoria do próprio Mímir, seu
guardião). Ora, como Odin era um deus que buscava a sabedoria, ele a
visitava regularmente para beber um pouco de sua água, assim também
ficando amigo de seu protetor.
O que ficou mais conhecido desta história, entretanto, foi o fato de Odin ter
arrancado um de seus olhos (não se sabe qual ao certo) e o mergulhado no
lago, onde jaz até hoje, oculto no lodo, onde talvez só ele e o Mímir saibam
localizar. Diz-se que Odin realizou tal sacrifício em troca da sabedoria do
Mímir, mas obviamente algo aqui não faz sentido: se Odin já conhecia a
localização do poço, se já era amigo do Mímir, qual seria a necessidade de
sacrificar um olho em troca de sabedoria (da qual ele já dispunha
gratuitamente)?
Este me parece mais um mito cuja interpretação exige que usemos os olhos
da alma, e não do corpo. Para mim, está muito clara a metáfora de “se ter
um olho no mundo espiritual, e um olho no mundo terreno”. Ora, por mais
que Odin pudesse galopar os céus em seu corcel de oito patas, ele
aparentemente não podia estar em todos os lugares ao mesmo tempo, ou
pelo menos não podia estar no plano terreno e no plano espiritual ao
mesmo tempo. Esta bela história nos aponta, portanto, para um fato
bastante conhecido do caminho espiritual, e até mesmo da própria prática
da magia ou da mediunidade: abre-se um olho lá, fecha-se um olho cá.
Mas, querer fazer ambas as coisas ao mesmo tempo pode nos levar a
loucura, a não ser, talvez, que sejamos também da raça dos deuses.
A cabeça perdida e encontrada
Infelizmente o destino do Mímir não foi dos mais agradáveis... Na
apocalíptica guerra entre os vanir e os æsir, o Mímir teve sua cabeça
cortada por um guerreiro vanir. Ora, os vanir eram um povo relativamente
pacífico e místico, que cultuava deuses da fertilidade e da sabedoria, e
também se dizia que muitos eram capazes de ver o futuro. Eles já
habitavam o norte europeu, mas foram invadidos pelos æsir (ou “meiodeuses”), um conglomerado de tribos guerreiras e expansionistas, que
vinham da Ásia e do sul europeu em busca de novos territórios. Como o
Mímir, juntamente com Odin, pertencia aos æsir, foram deles a iniciativa do
ataque.
Os vanir eventualmente foram conquistados e tornaram-se um subgrupo
dos æsir, até que as eras se passassem e todos fossem confundidos com
um só povo: o povo nórdico...
Mas, voltando a grande batalha: Odin, não se dando por rogado, encontrou
a cabeça perdida do Mímir após o final da chacina e, com sua magia,
manteve seu amigo vivo como uma peculiar (e, provavelmente,
assustadora) cabeça falante que ele carrega consigo para onde quer que vá
– pois o Mímir ainda é um grande e sábio conselheiro.
Esta épica batalha, que poderia ser lamentada como um fato trágico, na
realidade é festejada como o alvorecer da civilização – de qualquer
civilização, pois todas começaram assim, e todas tem mitos muito próximos
[1] –, quando tribos sedentárias e pacíficas, que já dominavam a
agricultura, são invadidas e quase dizimadas por tribos nômades guerreiras.
Mas, no fim, tudo se ajusta: a cultura das tribos nativas, geralmente mais
profunda e espiritual (por se tratar de gente “que tinha tempo de viver, e
não apenas caças e coletar”), é assimilada aos poucos pela cultura invasora,
e com o passar dos séculos é como se todas fossem uma só cultura – e, de
fato, já o são.
O próprio fato de Odin ainda hoje ser visto como um deus de sabedoria e
magia, e não apenas um grande guerreiro, demonstra que talvez, no fim, a
cultura dos vanir tenha se sobressaído à cultura dos æsir, e isso talvez
indique que ainda podemos ter a esperança de uma volta a este antigo
mundo pacífico: onde a fertilidade é mais exaltada do que a ferocidade.
Mas, e quanto à cabeça decepada e falante do Mímir, o que diabos isso
significa? Olha, não vou dizer que sei o que isso significa, mas este mito me
remete pelo menos a duas considerações: a primeira, é que os nórdicos já
sabiam valorizar a importância da cabeça em relação ao corpo, o que a
neurociência apenas confirmou; a segunda, é que eles tinham algum senso
de humor.
O deus enforcado
Como já disse no início, Odin também é reverenciado por ter trazido ao
conhecimento dos homens as runas, que nada mais eram do que o primeiro
alfabeto do povo nórdico, o que possibilitou a origem da escrita entre eles.
O que eu não mencionei é o quão estranha é, a primeira vista, a história
que nos conta como Odin obteve tal conhecimento...
Diz-se que ele, desejando adentrar reinos ocultos do mundo espiritual,
enforcou-se na própria árvore cósmica, Yggdrasil, por nove dias e nove
noites (nove também são os reinos míticos da mitologia nórdica em geral),
enquanto era estocado por sua própria lança (não está claro quem o
“auxiliava” neste ritual, talvez fosse ainda o Mímir quanto tinha o corpo
inteiro)... Ao final de todo esse sacrifício, Odin acordou (se é que ele morreu
no processo, entende-se que após os nove dias ele ressuscitou [2]) e trouxe
consigo a memória do conhecimento da escrita rúnica.
Ora, sabe-se que todos os deuses inventores da escrita foram grandes, ou
ainda são: pois foi exatamente a escrita que possibilitou que o
conhecimento sobre eles fosse preservado de forma mais exata (o que não
necessariamente é algo sempre bom). No Egito antigo sabe-se que tal
tarefa coube ao deus Thoth. Posteriormente, na Grécia, existiu também
Hermes, que partilhava de tantas características em conjunto com Thoth,
que muitas vezes faziam referência a ambos os deuses sob o título de TothHermes. Entre os romanos, Hermes foi conhecido como o deus Mercúrio e,
de fato, muitos historiadores acreditam que os romanos também
confundiam Mercúrio com o próprio Odin, quando se referiam aos povos
nórdicos – assim, o ciclo se fecha...
Mas, o que me interessa aqui é que todos os deuses inventores da escrita
também eram reconhecidos como grandes intermediários entre o mundo
dos homens e o mundo dos deuses, ou seja: eram médiuns, ou xamãs [3].
E é exatamente daí que parte a compreensão do que diabos Odin foi tentar
fazer ao se enforcar numa árvore cósmica: ora, é claro que se trata de
ainda mais uma metáfora. A árvore Yggdrasil sustenta todo o Cosmos e,
dessa forma, o ato de “enforcar-se” nela nada mais é do que o ato de
“perder a consciência deste mundo, e viajar com ela alhures”... Além desta
referência mais clara ao xamanismo (ou a viagem astral) há ainda a
questão das “estocadas de lança”: uma imagem muito comum na arte das
cavernas, a arte rupestre, de nossa pré-história longínqua, e que também
está intimamente relacionada às práticas xamãnicas.
O ato simbólico de se cortar, espetar, estocar com lanças, ou até mesmo
destroçar o próprio corpo, significa, para o xamã, o abandono total do
apego ao corpo, para que ele possa se elevar mais facilmente, e mais
profundamente, aos reinos etéreos de sua própria alma, ou da Alma do
Mundo, ou de Yggdrasil. Estes sacrifícios foram necessários para que os
xamãs, os grandes heróis míticos de outrora, pudessem nos trazer
conhecimentos ocultos, que podiam variar desde “onde caçar amanhã”, a
“quais plantas e ervas coletar para fabricar este ou aquele remédio”, a até
mesmo a própria inspiração divina para algo totalmente novo, como a
escrita rúnica.
» Na última parte: finalmente, os corvos...
***
[1] No Mahabharata hindu temos histórias de batalhas muito parecidas, de
onde surgiram grandes reinos e, eventualmente, a própria civilização. Na
Europa não será diferente: mesmo a origem de Roma teve seu episódio de
brutalidade para com tribos pacíficas na região próxima. No Brasil,
poderíamos nos referir aos indígenas como os vanir, e aos colonizadores
europeus como os æsir (como já disse, a história é escrita pelos
vencedores).
[2] Avatares que morrem por “x dias” e ressuscitam com novos
conhecimentos místicos existem aos montes na mitologia em geral.
[3] Você pode achar estranho o termo “xamã” aparecer toda hora neste
relato, e tem toda razão: o termo surgiu do estudo antropológico dos
primeiros místicos tribais da Sibéria, mas acabou por ganhar o mundo num
significado bem mais amplo, referindo-se a todo e qualquer chefe espiritual
tribal de toda e qualquer cultura selvagem antiga. Dessa forma, obviamente
os índios do Brasil não chamam a seus xamãs como xamãs, mas sim como
pajés, e assim vai... É nesse sentido que os termos “xamã” e “xamanismo”
(a prática espiritual do xamã) são utilizados ao longo desta série.
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Crédito da imagem: Neal Preston/Corbis
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