José Sebastião Gonçalves A INTELIGIBILIDADE PRIMORDIAL: FUNDAMENTO TEOLÓGICO-ANTROPOLÓGICO DA FENOMENOLOGIA DA VIDA EM MICHEL HENRY Dissertação de Mestrado em Teologia Orientador: Prof. Dr. Geraldo De Mori BELO HRIZONTE FAJE- Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia 2014 José Sebastião Gonçalves A INTELIGIBILIDADE PRIMORDIAL FUNDAMENTO TEOLÓGICO-ANTROPOLÓGICO DA FENOMENOLOGIA DA VIDA EM MICHEL HENRY Dissertação de Mestrado em Teologia Orientador: Prof. Dr. Geraldo Luiz De Mori Apoio CAPES BELO HORIZONTE FAJE - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia 2014 José Sebastião Gonçalves A INTELIGIBILIDADE PRIMORDIAL FUNDAMENTO TEOLÓGICO-ANTROPOLÓGICO DA FENOMENOLOGIA DA VIDA EM MICHEL HENRY Dissertação apresentada ao Departamento de Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, como requisição parcial para a obtenção do título de Mestre em Teologia. Área de concentração: Teologia Sistemática Orientador: Prof. Dr. Geraldo Luiz De Mori. Apoio CAPS BELO HORIZONTE FAJE - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia 2014 Gonçalves, José Sebastião. G643i A Inteligibilidade Primordial: fundamento teológicoantropológico da Fenomenologia da Vida em Michel Henry/ José Sebastião Gonçalves. - Belo Horizonte, 2014. 163 p. Orientador: Prof. Dr. Geraldo Luiz De Mori Dissertação (mestrado) – Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, Departamento de Teologia. 1. Arqui-inteligibilidade. 2. Inteligibilidade primordial. 3. Fenomenologia da Vida. 4. Encarnação 5. Corporeidade 6. Antropologia 7. Teologia 8. Henry, Michel. I. De Mori, Geraldo Luiz II. Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia. Departamento de Teologia. III. Título CDU 121.4 DEDICATÓRIA "A fé é um modo de já possuir aquilo que se espera, é um meio de conhecer realidades que não se vêem". (Hb 11,1) Aos amores de minha vida, entre eles, Raimundo Gonçalves Pinto Garajau (In memoriam) e Jací Cândida Pinto, com os quais aprendi a amar. À Comunidade cristã, especialmente aos Escolápios, espaço vital da experiência de Deus. Aos poetas e músicos e aos que perderam o sabor de viver, para que percebam que a perda é também possibilidade de encontro. AGRADECIMENTOS Ao Deus que é Vida, ao Deus da minha vida. Amor primordial, Caminho e Verdade que nunca cessa de amar. Ao meu orientador, Prof. Dr. Geraldo Luiz De Mori, por ter acreditado no potencial desta pesquisa e reservado preciosos momentos para o acompanhamento, sempre manifestando carinho, paciência e competência. À comunidade Santa Dorotéia ( aos meus irmãos Fernando, Carmelo, Enivaldo, Maurício, Rogério), bem como à presença escolápia de GV. Por terem sido, muitas vezes, o clarão do raio em meio às tempestades. Aos outros irmãos escolápios com os quais tive a honra de conviver (juniores e prénoviços), e aos irmãos que possuem responsabilidade de Governo (a Pe. Fernando, ex Vice provincial que apoiou o início desta empreitada; a Pe. Juan Mari, atual Viceprovincial; a Pe. Mariano, Provincial, e a Pe. Pedro, Geral). Ao Jesuítas da comunidade acadêmica da FAJE (Caros colegas de mestrado, professores, funcionários da biblioteca e xérox, bem como ao CTP.). Responsáveis por aguçar ainda mais minha paixão pela pesquisa e vida intelectual. Aos meus amigos amores e Amores amigos: Cláudio Paul, Juliano, Natalino, Élio, Filipe, Taborda, Nilo, Daniel, Kleber, Cristiane, Amanda. E aos meus alunos pelo carinho brindado e intuições suscitadas. À minha família e aos meus afilhados (as), pelo carinho e confiança. Escola de amor e de vida. À Michel Henry ( in memoriam) e a todos que se dedicam ao árduo e nobre exercício do pensamento filosófico e teológico. À CAPS, pelo financiamento desta pesquisa. RESUMO O intuito desta pesquisa consiste em pensar a Arqui-inteligibilidade, haurida do prólogo joanino, como fundamento teológico-antropológico da Fenomenologia da Vida de Michel Henry. Partindo do pensamento deste autor, especificamente da perspectiva de seu discurso sobre a corporeidade, propomos a articulação entre Antropologia e Teologia. Nosso ponto de partida, tanto filosófico quanto teológico, é o fenômeno da Vida. Este tema, esboçado fantasticamente na reflexão do filósofo francês, pode ser pensado teologicamente, a partir do âmbito da Revelação-Encarnação-Salvação, através da noção de Inteligibilidade primordial do prólogo de São João. Além da fecundidade historicamente atestada do diálogo entre filosofia e teologia, as razões pelas quais pretendemos investigar o tema proposto tocam questões de caráter eminentemente existencial, no que se refere à reflexão teológica e à prática pastoral. A necessidade de repensar o corpo e a corporeidade, situando-os numa nova conjuntura em que seja superada a noção epistemológico-dualista segundo a qual todo conhecimento da realidade brota de um intelecto desencarnado, apresenta-se aqui como uma de nossas motivações explícitas. Neste sentido, consideramos a noção de Inteligibilidade primordial, Arqui-inteligibilidade Joanina, como uma intuição fundamental. Ela pode ressignificar nossa vivência da fé a partir da experiência de nossa corporeidade. Para tanto, propomos,de acordo com o pensamento henryriano, explicitar a Inteligibilidade primordial esboçada de forma especial no Prólogo joanino. Trata-se da tarefa de recordar a verdade fundamental de nossa existência encarnada, a saber: antes do pensamento, existimos enquanto carne afetada, participamos do mistério da Vida. A possibilidade de toda ação e reflexão emerge de nossa condição humana originária de sermos afetados na vida de Deus e por Deus. Pensar e, sobretudo, agir enquanto carne e a partir da carne, tendo como referência a humanidade do Verbo encarnado, eis nossa motivação existencial de fundo. Palavras-chave: Arqui-inteligibilidade; Inteligibilidade primordial; Fenomenologia da Vida; Encarnação; Corporeidade; Antropologia; Teologia ABSTRACT The goal of this research is to think the Arch- intelligibility, drawn from the Johannine prologue, as theological- anthropological foundation of the Phenomenology of Life in the Michel Henry's thought. Starting from his thought , specifically from the perspective of his speech on corporeality , we propose the relationship between anthropology and theology . Our starting-point , both philosophical and theological , is the phenomenon of Life . This matter, fantastically outlined in the reflection of the French philosopher , could be thought theologically , from the scope of Revelation - Incarnation - Salvation , concerning the notion of prime or main Intelligibility at the prologue of St. John. Beyond the fertility, historically attested, of the dialogue between philosophy and theology, there are other reasons which move us to begin this investigate. They touch existential questions, with regard to the theological reflection and pastoral practice . The need to rethink the body and embodiment , placing them in a new environment where exceeding the epistemological and dualistic notion that think that all knowledge of reality springs from a disembodied intellect , is presented here as one of our explicit motivations. In this sense we consider the notion of prime or main intelligibility, Arch Joanina intelligibility , as a fundamental insight . It can reframe our experience of faith from the experience of our corporeality . To this end, we propose , according Henry's thought, explaining the prime Intelligibility, outlined in a special way in the Johannine Prologue . We want do the task of recalling the fundamental truth of our embodied existence, namely, to affirm that before thought , we exist as flesh affected , partake of the mystery of Life . The possibility of all the action and reflection begins with our original conditional of being affected at the Life of God and by God. So, we can say that our main existential motivation, which moved us to do this work, it is think, and above all, act as flesh affected by God's life. Key words: Arch-intelligibility; Prime intelligibility; Phenomenology of Life, Incarnation, Embodiment, Anthropology, Theology. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 10 CAPÍTULO 1: A VIRADA FENOMENOLÓGICA: PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS DA FENOMENOLOGIA DA VIDA PARA UMA POSSÍVEL INVESTIGAÇÃO TEOLÓGICA ............................................................................ 18 1 O corpo de carne: distinção basilar e considerações preliminares.............................. 19 2 A questão da verdade como busca fundamental de uma inteligibilidade Primordial .. 25 2.1 A questão do aparecer e sua indigência ontológica ................................................ 26 2.2 A Verdade segundo a Fenomenologia do Mundo.................................................. 36 2.3 O esvaziamento do poder da impressão em sua auto-afecção ................................. 44 3 A virada fenomenológica: do aparecer do mundo à Fenomenologia da Vida ............ 47 3.1 A carne impressiva: O esquecimento da subjetividade e sua recordação no pathos da vida ........................................................................................................................ 50 3.2 A remissão da Fenomenologia da Carne (impressiva) à Fenomenologia da Vida ... 54 3.3 A Verdade segundo o Cristianismo....................................................................... 62 CAPÍTULO 2: FENOMENOLOGIA DA VIDA E CRISTIANISMO: A REVELAÇÃO SOBRE NOSSA HUMANIDADE ................................................... 69 1 Fenomenologia e ontologia: possíveis implicações teológicas .................................. 70 2 Fenomenologia de Cristo: função soteriológica ........................................................ 73 2.1 A autorrevelação da Vida Absoluta no Logos Primordial...................................... 81 2.2 A questão da Palavra viva de Deus ....................................................................... 92 2.3 O Deus relação: perspectiva trinitária ................................................................. 101 3 A condição Humana primordial: por uma antropologia fundamental ..................... 105 3.1 Filhos no Filho ................................................................................................... 107 3.2 Sobre o esquecimento da nossa condição de filho: Ilusão Transcendental do Ego 113 3.3 Por uma antropologia fundamental ...................................................................... 117 CAPÍTULO 3: INTELIGIBILIDADE PRIMORDIAL: O SENTIDO CRISTÃO DA SALVAÇÃO ..................................................................................................... 122 1 A fenomenologia da encarnação ............................................................................. 123 2 A inteligibilidade Primordial: o sentido cristão da salvação .................................... 132 3 Por uma teologia mistagógica da corporeidade e da ação: recordação da nossa condição de filhos e nossa incorporação ao Corpo místico de Cristo ......................... 144 CONCLUSÃO ......................................................................................................... 157 REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 160 A INTRODUÇÃO O escopo desta dissertação é pensar como a Inteligibilidade primordial, haurida do prólogo joanino, pode ser vislumbrada como fundamento teológico-antropológico da Fenomenologia da Vida de Michel Henry1. A partir do pensamento deste autor, mais especificamente da perspectiva de seu discurso sobre a corporeidade, que emerge de sua Fenomenologia da Vida, propomos a articulação entre Antropologia e Teologia. Nosso ponto de partida, tanto filosófico quanto teológico, é o fenômeno da Vida. Este, que se encontra esboçado na fantástica reflexão do filósofo francês, é pensado teologicamente a partir do âmbito da Revelação-Encarnação-Salvação, através da noção de Inteligibilidade primordial do prólogo de João. Apesar da impressão inicial, é importante ressaltar que este trabalho não se trata de uma dissertação bíblica centrada na investigação exegética do texto de João. Assumimos a perspectiva de nosso autor e procuramos torná-la explícita. Contudo, não adentraremos em um discurso analítico do texto bíblico. O mesmo se pode dizer em relação à fenomenologia. Apesar da relevância do discurso filosófico, concentrado, principalmente, no primeiro capítulo, nossa empreitada não constitui uma investigação filosófica sobre a fenomenologia enquanto escola. Desde já, assumimos então as possíveis lacunas referentes a tais disciplinas. Além da fecundidade historicamente atestada do diálogo entre filosofia e teologia, as razões pelas quais pretendemos trabalhar o tema proposto tocam questões de caráter eminentemente existencial, no que se refere à reflexão teológica pessoal e à 1 Cf. HENRY, Michel. Incarnation: une philosophie de la chair. Paris: Seuil, 2000, pp. 361-374 . O texto original de Henry fala de uma "Archi-intelligibilité johannique". Contudo, em diálogo com nosso orientador, pensamos que o termo Inteligibilidade Primordial traduziria com maior clareza a ideia do autor. Assim, sempre que quisermos nos referir ao conceito original utilizaremos o segundo termo. Aproveitamos a ocasião para informar que, embora tenhamos utilizado em nosso trabalho, majoritariamente, a tradução espanhola, optamos pela citação do original francês, exceto em duas obras que só tivemos acesso ao texto em língua espanhola. Assim mesmo, todas as citações literais foram conferidas em suas fontes primeiras. 10 prática pastoral. A primeira razão explícita é a necessidade de repensar o corpo e a corporeidade, situando-os numa nova conjuntura, em que seja superada a noção epistemológico-dualista segundo a qual todo conhecimento da realidade brota de um intelecto desencarnado. Aqui falamos do “saber ser carne”. É neste sentido que consideramos a noção de inteligibilidade ou arqui-inteligibilidade Joanina como uma intuição primordial para ressignificar nossa vivência da fé a partir da experiência de nossa corporeidade. Para tanto, propomos, com Henry, desvelar uma Inteligibilidade primordial esboçada de forma especial no Prólogo joanino. Não a inventamos absolutamente, apenas queremos fazer notar que, antes do pensamento, existimos enquanto carne afetada (participamos do mistério da Vida). Desta afecção brota a possibilidade de toda ação e reflexão. Pensar e, sobretudo, agir enquanto carne e a partir da carne, tendo como referência a humanidade do Verbo encarnado, eis nossa motivação existencial de fundo. A vastidão e a complexidade dos discursos produzidos até hoje sobre a nossa forma de aparecer no mundo, ou seja, nossa corporeidade, oferecem certa dificuldade no momento de situar e contextualizar a presente empreitada. Poderíamos nos perder em divagações antropológicas e cair numa mera descrição de fenômenos. Assim sendo, optamos por colocar como marco referencial, pano de fundo, duas características que nos parecem fundamentais na hora de empreender a pesquisa sobre o tema da encarnação como nossa forma de aparecer no mundo. A primeira se refere a uma espécie de renascimento ou despertar da corporeidade, característica da cultura contemporânea. O corpo escondido e reprimido outrora, agora se torna alvo de discursos de libertação e até mesmo de posturas de banalização. De fato, com frequência vemos nos meios de comunicação posturas paradoxais sobre a corporeidade: de um lado corpos estendidos no chão, vítimas de acidente, assassinados, desnutridos, são mostrados ou ignorados; do outro, outdoors com corpos belos convidando para academias, se tornaram tão comuns que chegam a fazer parte do cenário da poluição visual. Há toda uma produção e especialização de técnicas em favor da manutenção e cuidado com o corpo. A cultura somática é obsessiva com as questões de saúde e estética. A manipulação tecnológica do corpo abre por sua vez espaço para a “produção” de atletas saudáveis capazes de quebrar recordes. A manipulação genética é um dos temas mais empolgantes e controversos do cenário mundial. Ela também possui implicações antropológicas que nos levam a pensar em um corpo ideal, lançando-nos em campos complexos da eugenia, produção de embriões descartáveis com fins terapêuticos e 11 outros. Todo este cenário contribuiu para que se pudesse pensar, por exemplo, uma sociologia do corpo, como é o caso de David Le Breton e Sandro Spinsanti2. A segunda característica que auxilia a contextualização de uma atual pesquisa sobre nossa condição corpórea, pode nos ser dada pela perspectiva filosófica da fenomenologia. Neste sentido, tocamos o tema do 'aparecer' da Vida, ou seja, de sua manifestação, desde as vivências mais hodiernas até as mais elaboradas e complexas formas do existir humano. A reflexão sobre o fenômeno da vida e da existência foi acentuada pelas filosofias modernas que precederam a reflexão fenomenológica enquanto escola. A começar pela reflexão cartesiana, precursora de uma filosofia da consciência, passando pela reflexão do sujeito transcendental de Kant, atingindo o sistema hegeliano da manifestação do Espírito absoluto, como manifestação do sentido da vida na história. No limiar da crise da modernidade uma fenomenologia da vida3 foi esboçada pelo pensamento de Schopenhauer. Em sua obra intitulada "O mundo como vontade e representação4", o autor compreende a existência como consequência de uma vida cega e sem sentido. Esta perspectiva schopenhauriana será retomada pela filosofia de Nietzsche que anunciará, de forma assombrosa, a morte de Deus. Intuiremos, ao final de nosso discurso sobre a Fenomenologia da Vida, que o Deus morto do pensamento Nietzschiano, felizmente, não coincide com o Deus que é Vida da existência cristã. O anúncio da morte de Deus não é, efetivamente, o anúncio da morte da Vida. Ainda mais podemos dizer sobre isso. Na perspectiva do pensamento henryriano, em certo sentido, este anúncio nietzschiano sobre a morte de Deus é até mesmo vazio e sem sentido. Isto porque no horizonte fenomenológico do mundo não é possível nenhum Deus, sempre quando este é entendido como Vida. Assim então, constatamos que, segundo a fenomenologia henryriana, a proclamação da morte de Deus é inútil, pois este nunca existiu, eminentemente, no mundo, uma vez que este é vazio de toda Vida. A perspectiva Schopenhauriana, de uma vida cega e sem sentido, que se expressa como pura Vontade, haverá de ser retomada também por Freud. O médico de Viena confinará a existência humana ao mundo inconsciente, palco de ação desta vida cega proclamada 2 Cf. LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Petrópolis: vozes, 2006. - SPINSANTI, Sandro. Il corpo nella cultura contemporanea. Brescia: Queriniana, 1990. 3 Evidentemente esta fenomenologia da vida em minúscula, delineada por Schopenhauer, nada tem a ver com a Filosofia da Vida, em maiúscula, do pensamento henryriano. De fato, a perspectiva do filósofo do século XIX ainda permanece, como notaremos mais adiante, na perspectiva que Henry haverá de chamar de Fenomenologia do mundo. Assim sendo, ressaltamos, que a concepção do aparecer da vida no primeiro autor difere, radicalmente, da manifestação da Vida da perspectiva de Michel Henry. 4 Cf. SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro: contraponto, 2001. 431p. 12 por Schopenhauer. Os impulsos da dimensão dionisíaca, atestada pela filosofia nietzschiana, agem, segundo Freud, no inconsciente de cada ser humano que está fadado a uma existência inautêntica, uma vez que, como ser social, nunca poderá dar vazão à todas suas vontades. Este discurso tão truncado e, para muitos, de difícil intelecção ao início, haverá de ser elucidado aos poucos quando iniciarmos a narração da virada fenomenológica proposta por nosso autor. A fenomenologia, enquanto escola, esboça-se como um método de investigação tendo Edmund Husserl como seu precursor. Para muitos estudiosos, tal método constitui o centro de gravidade de grande parcela do pensamento filosófico do século XX. Ele influenciou grandes pensadores como Heidegger5. Posteriormente, a filosofia transcendental de Husserl foi retomada por exímios fenomenólogos como, por exemplo, Merleau-Ponty. Autores contemporâneos como Paul Ricoeur também levam em conta a reflexão proposta pela fenomenologia na hora de elaborar seu pensamento, como é o caso da abordagem hermenêutica ricoeuriana6. Pensar uma possível abordagem teológica sobre nosso corpo encarnado, a partir das descobertas do pensamento henryriano, na perspectiva de uma fenomenologia da carne, poderá nos ajudar a resgatar e a vivenciar melhor a verdade fundamental de nossa fé. Esta, encontra-se esboçada de forma “espantosa” no fenômeno Cristo, chamado também de fato Cristão, e poeticamente narrado no prólogo joanino: “O verbo se fez carne”. De fato, nosso propósito investigativo pode ser explicitado também da seguinte maneira: pensar nossa condição antropológica e teológica fundamental, nossa forma de aparecer no mundo enquanto carne afetada, tendo como ponto de partida a contribuição da Fenomenologia da Vida de Henry, à luz de nossa referência Teológica fundamental, a saber: a Revelação- Encarnação do Cristo. Para que pudéssemos oferecer condições práticas de factibilidade de nossa pesquisa, delimitamos nossa empreitada a partir do grande objetivo já explicitado no início desta introdução, a saber: pensar a noção de Arqui-inteligibilidade, anunciada no prólogo de João e esboçada pelo pensamento de Henry, como possível fundamento teológico-antropológico da Fenomenologia da Vida. Para pautar nossa reflexão delimitamos nosso estudo a duas obras do autor, a saber: Incarnation e C'est moi la 5 Cf. HUSSERL, E. Investigações lógicas- sexta investigação. In Os pensadores. São Paulo: Abril cultural, 1980, p. 6-14. 6 Cf. RICOEUR, Paul. Na escola da fenomenologia. Petrópolis, Vozes, 2009. 13 vérité7. Pensamos que, embora nossa questão tenha como ponto de partida o pensamento de um filósofo e fenomenólogo, as condições práticas de factibilidade da pesquisa se dão porque o tema, como se pode antever pelo mesmo título, leva-nos a um âmbito explicitamente teológico. A partir destas obras empreenderemos um diálogo com a Antropologia teológica. Modestamente, buscamos levar em consideração as reflexões da Teologia fundamental, esboçada pela tradição da Igreja através de grandes teólogos, desde a tradição dos padres (Irineu, Tertuliano) até o pensamento teológico contemporâneo evocado aqui através de teólogos como Xavier Lacroix, Karl Rahner e Adolph Gesché8. Quanto à delimitação do tema, pensamos que ela se esboça de forma bastante clara no mesmo título de nossa pesquisa. Ressaltamos, portanto, que não temos pretensão de abordar toda a reflexão sobre a Fenomenologia da Vida de Henry. Nossa empreitada visa somente indicar que a reflexão fenomenológica desenvolvida pelo autor recupera dimensões escondidas ou esquecidas no que se refere ao corpo e sua relação com a doutrina da Salvação. Parafraseando Tertuliano e mesmo Gesché, pretendemos elucidar que o corpo, segundo a sã tradição cristã, aparece como caminho de Deus e caminho para Deus. Neste sentido, enquanto opção metodológica, podemos dizer que nossa pesquisa se refere ao método hermenêutico enquanto reflexão dialógica que busca a comunicação entre as duas disciplinas, a saber: Fenomenologia e Teologia, tendo como centro a reflexão sobre nossa forma de aparecer e viver no mundo que se dá através de nossa “condição de seres encarnados – corporeidade". Desta forma, seguindo nosso objetivo primeiro (pensar a Inteligibilidade primordial como fundamento teológico da Fenomenologia da Vida), de acordo com nossa opção metodológica de colocar em diálogo Fenomenologia e Teologia, por meio de uma modesta hermenêutica, estruturamos nosso discurso a partir de três objetivos específicos. O primeiro deles gira em torno à tentativa de explicitar a Fenomenologia da Vida de Michel Henry como uma possível filosofia cristã. Em segunda instância, buscamos elucidar o vínculo entre Teologia e Fenomenologia da Vida, fazendo notar a 7 Cf. HENRY, Michel. C'est moi la vérite: pour une philosophie du christianisme. Paris: Seuil ,1996. A outra obra já se encontra citada em nossa primeira nota. Trabalhamos, majoritariamente, em nossa dissertação com a tradução espanhola das duas obras: Encarnación: una filosofia de la carne ; Yo soy la verdad: para uma filosofia do Cristianismo. Contudo, conferimos todas as notas com o texto original e, doravante, fizemos a opção por citar sempre o texto em sua versão de língua francesa. 8 Destacamos que a Teologia fundamental de Rahner foi o ponto de contato para que pudéssemos entravar o diálogo entre a teoria henryriana e a tradição teológica. Contudo atestamos nossa limitação e reconhecemos que, por questão de opção e delimitação, deixamos de fora a explicitação das concepções antropológicas clássicas expostas, por exemplo, na teologia de Tomás de Aquino. De qualquer forma, implicitamente, estas abordagens se encontram contempladas todas as vezes que nos referimos ao jogo dialético entre Fenomenologia do Mundo e Fenomenologia da Vida. 14 profunda intimidade entre Teologia e Antropologia. Por fim, no terceiro objetivo, propomos um pensamento teológico-mistagógico, que reforce a experiência ética vital da corporeidade na sua relação com a alteridade. Destaca-se aqui o tema de nossa incorporação ao Corpo místico de Cristo, através das nossas ações carnais, na relação com os outros corpos encarnados. A estrutura do presente texto segue, metodicamente, a elucidação dos três objetivos acima citados. Desta forma, nossa reflexão está elaborada a partir de três momentos, sendo que cada um deles corresponde estruturalmente a um capítulo. Sobre isso discorreremos brevemente a seguir. O primeiro capítulo desta dissertação, intitulado "A virada fenomenológica", busca expor os pressupostos filosóficos da Fenomenologia da Vida para uma possível investigação teológica. Nele ganha destaque especial a tese que provoca a investigação, a saber: a questão da encarnação. É a pergunta pela nossa condição carnal que conduz o autor a pensar uma Fenomenologia da Vida, operando assim, uma guinada no pensamento fenomenológico. Partindo da análise henryriana dos pressupostos infundados da Fenomenologia do mundo, construiremos a base para o desvelamento de uma Fenomenologia da Vida. O discurso, eminentemente filosófico, possui objetivo teológico. Analisando a epistemologia moderna, desde a chamada redução galileana, passando, brevemente, pela contra-redução cartesiana e a perspectiva husserliana, buscamos explicitar a gratidão crítica de Henry. Este, reconhecendo-se na esteira da fenomenologia tradicional, lança-nos para um novo modo de ver, a partir do qual, pretende-se superar a dualidade entre fenomenologia e ontologia, entre ser e aparecer. Emerge, neste contexto, a questão da verdade como busca fundamental por uma Inteligibilidade dita primordial. A partir do conceito das duas verdades esboçadas no pensamento de Henry, a saber: verdade do mundo e verdade do cristianismo, pretendese pensar a Fenomenologia da Vida como uma legítima filosofia do cristianismo. Na medida em que, segundo a perspectiva fenomenológica do autor, a verdade do cristianismo difere essencialmente da verdade do mundo, impõe-se como necessária a elucidação destas duas fenomenologias. Nossa reflexão será de cunho teológicoantropológico-fundamental. Trata-se de pensar a verdade do cristianismo e, assim mesmo, a cristologia desde a perspectiva da Fenomenologia da Vida. O discurso desta unidade haverá de gravitar em torno a conceitos centrais como: verdade do mundo, verdade do cristianismo, autorrevelação, fenomenologia da vida (e da carne). Nosso próximo passo, buscando ser fiel ao segundo objetivo traçado, tratará da relação entre Fenomenologia da Vida e Cristianismo. Aqui se coloca em pauta a questão 15 da Autorrevelação de Deus que nos abre o horizonte para pensar a revelação sobre nossa condição humana de seres encarnados. Esta reflexão gravitará em torno da função soteriológica da fenomenologia de Cristo, que nos lançará no campo de uma antropologia fundamental, a partir da qual será possível pensar nossa condição humana primordial. Uma vez elucidada a Fenomenologia da Vida, como verdade fundamental que legitima uma filosofia do cristianismo, propomos pensar nossa existência carnal a partir da Inteligibilidade primordial do prólogo joanino. A intuição que pretendemos elucidar pode ser encarada como uma virada hermenêutica na forma de compreender e pensar nossa forma de aparecer e ser no mundo. A Inteligibilidade primordial, pensada por Henry, está estritamente ligada à verdade do cristianismo e sua Fenomenologia da Vida. Nela ocorre uma revelação surpreendente sobre a nossa humanidade: na carne de Cristo, e misteriosamente, na nossa carne se faz presente a Inteligibilidade primordial, que ultrapassa toda pretensão racionalista de abordagem completa da verdade. Para vislumbrar algo da verdade, antes é preciso saber ser carne e saber-se carne. A fonte do pensar não parte, como advoga a tradição racionalista, de um nous desencarnado, mas da nossa realidade patológica de autoafecção. Com isto, pode-se verdadeiramente pensar o cristianismo e sua verdade como uma filosofia da carne. O derradeiro capítulo dessa dissertação, buscando aprofundar ainda mais o estreito vínculo entre Fenomenologia da Vida e Cristianismo, tomando como ponto de partida a questão da Inteligibilidade primordial, desenvolvida por Henry, a partir do anúncio do prólogo joanino, explicitará o horizonte do sentido cristão da salvação. Trata-se aqui de repensar nossa condição humano-corporal a partir do mistério da encarnação do Cristo. Segundo as reflexões anteriores sobre a verdade do mundo e a verdade do Cristianismo, buscamos propor uma Teologia mistagógica concernente à nossa corporeidade. Queremos pensar e viver nosso corpo de carne como lugar teológico da manifestação da verdade fundamental de Deus e do ser humano. O corpo como caminho de Deus e caminho para Deus. Retomaremos neste terceiro capítulo temas fundamentais e, portanto, estruturantes de toda investigação. Partindo da fenomenologia da encarnação, abordaremos especificamente, num segundo momento, a revelação no prólogo joanino de uma Inteligibilidade primordial. Encerraremos nosso discurso com a perspectiva sobre uma teologia mistagógica da corporeidade. A partir desta abordagem éticoteológica, vislumbramos, com esperança, o horizonte para uma possível investigação, na qual poderemos pensar uma espécie de catequese mistagógica sobre o corpo de Cristo e, 16 consequentemente, nossa incorporação a Cristo como lugar de encontro e revelação do próprio Deus. Deixamos, portanto, manifesto, que um dos objetivos deste capítulo, consiste em abrir horizontes através dos quais possamos pensar, a partir da Fenomenologia da Vida de Henry, uma possível Teologia do corpo. Esta, por sua vez, partiria do fundamento de nossa fé que está enraizada, no espantoso e bem aventurado anúncio, do prólogo joanino: “o Verbo se fez carne” (Jo 1,14). Por fim, dizemos que a relevância teológica desta dissertação pode ser explicitada no vínculo claro que existe entre a noção de Inteligibilidade primordial Joanina, proposta por Henry, e a mesma noção de Revelação atestada e vivenciada na comunidade judaico-cristã no que tange à Autocomunicação (Autorevelação) de Deus. O Cristianismo, como religião da encarnação, atesta que, a partir da experiência do Cristo, Deus se revela através da nossa carne (Encarnação - Cristo). Assim sendo, temos o vínculo explícito entre Antropologia e Teologia esboçado neste evento originário da Encarnação que, em Michel Henry, encontra-se expressado na dupla noção básica de Fenomenologia da Vida e Inteligibilidade primordial Joanina. Ambas as noções nos conduzem à elucidação teológica do verdadeiro sentido da corporeidade- humanidade, a saber, nossa destinação a participar da vida do próprio Deus. 17 CAPÍTULO 1: A VIRADA FENOMENOLÓGICA: PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS DA FENOMENOLOGIA DA VIDA PARA UMA POSSÍVEL INVESTIGAÇÃO TEOLÓGICA Sendo esta empreitada uma investigação eminentemente teológica, ao leitor poderia incomodar um capítulo exclusivamente filosófico. Contudo, para além de todo capricho intelectual, a reflexão fenomenológica encabeçada neste primeiro momento, situa-se como condição de possibilidade para o desenvolvimento sóbrio de nossa pesquisa. É neste sentido que propomos explicitar a virada fenomenológica henryriana, assim como os pressuposto filosóficos da Fenomenologia da Vida, afim de promover uma autêntica investigação Teológica. Nosso percurso contará com três momentos principais. Em primeiro lugar faremos uma contextualização da pesquisa, colocando a questão da distinção basilar entre 'corpo' e 'carne', assim como algumas considerações preliminares caras à nossa investigação. Neste momento situaremos Henry na esteira da fenomenologia e vislumbraremos, brevemente, como sua empreitada intelectual se insere no seio da tradição filosófica, mais bem, na escola fenomenológica. Em nosso segundo passo investigaremos a questão da verdade como busca fundamental de uma inteligibilidade Primordial. Abordaremos nesta ocasião a questão do aparecer e sua indigência ontológica, dando lugar à reflexão sobre a verdade segundo a Fenomenologia do mundo, e à crítica henryriana do esvaziamento do poder da impressão em sua autoafecção. Nosso derradeiro passo tratará explicitamente da virada fenomenológica e buscará explicitar a passagem de uma Fenomenologia do mundo à Fenomenologia da Vida. Emergirá de nosso discurso questões tais como: o esquecimento da subjetividade e sua recordação no pathos da vida ( a questão da carne impressiva); a remissão necessária de uma fenomenologia da carne à Fenomenologia da Vida; e, por fim, veremos como tudo isto nos conduz à perspectiva da Verdade segundo o cristianismo. Passemos pois à análise da questão que provoca a investigação (o corpo de carne), tais como a algumas considerações preliminares. 18 1 O corpo de carne: distinção basilar e considerações preliminares Como já explicitamos na introdução, a tarefa de nossa pesquisa consiste em pensar a fundamentação teológica do discurso Henryriano em sua Fenomenologia da Vida. Obviamente por se tratar da Vida absoluta na sua doação geradora desta vida singular que cada um de nós vivemos, o discurso também é antropológico. Temos então, que nosso trabalho traz como pano de fundo o tão mencionado binômio relacional: Teologia-Antropologia. Sendo, portanto, que o objetivo da investigação é teológico, o discurso filosófico, ou, no nosso caso específico, fenomenológico, encontra-se pautado por um propósito investigativo específico. Este diz respeito à explicitação necessária dos princípios filosóficos ou fenomenológicos que, doravante, permitir-nos-ão uma plausível empreitada Teológica. Por ousada que seja nossa postura, parece-nos conveniente afirmar que o tema do Cristianismo, abordado diretamente por M. Henry no último período da sua produção intelectual, não se desvincula, em absoluto, de sua empreitada fenomenológica. A busca pela verdade, seja como for, o conduziu até às portas do pensamento cristão. Caminhando por estas veredas, como bom fenomenólogo, homem empenhado em compreender o que há de mais fundamental na realidade, nosso autor se deparou com a questão central da fé cristã. Trata-se do tema da encarnação. Centrando nele seus últimos esforços intelectuais, dele também exauriu as forças necessárias para levar a cabo sua proposta de pensar a Fenomenologia da Vida a partir do ethos cristão. Afirmará Henry que a questão da encarnação, eixo central da fé cristã, também se coloca como questão central para todos os homens e mulheres viventes que existem sobre a terra. Isto ocorre simplesmente pelo fato de que todos esses viventes são seres encarnados9. Esta verdade, proclamada no cristianismo, através do evento Cristo, é também a verdade antropológica mais fundamental. De fato, diante da pergunta filosófica mais básica, aquela que se refere à diferença entre os corpos vivos10 e os 9 HENRY, Incarnation, p.7. Aproveitamos a oportunidade para comunicar que todos os fragmentos literais da obra do autor que se encontram neste texto possuem uma tradução livre (do espanhol ou francês ao português) de responsabilidade nossa. 10 Por se tratar de uma dissertação de mestrado, portanto, modesta, não entraremos aqui na discussão ampla sobre os corpos vivos que habitam a terra. Todas as vezes que utilizamos esta expressão estamos fazendo alusão diretamente ao corpo do homem, um corpo de carne, que se sabe carne, no sentido henryriano. 19 corpos inertes, objetos de estudo das ciência duras ( física, química, etc), dizemos que a encarnação se apresenta, de fato, como o marco diferencial entre o corpo humano e os corpos materiais. Agora, se esta é uma diferença fundamental, ela se impõe como questão basilar na hora de pensar a verdade da vida ou a verdade de como conhecemos esta vida. Para levar adiante sua investigação fenomenológica, Henry introduz no início de seu discurso, no livro Encarnação, uma distinção não só metodológica, mas de cunho fundamental. Esta diz respeito à definição ou circunscrição, por meio das diferenças, entre os dois corpos: por um lado, o corpo de carne, por outro, os corpos opacos que povoam o universo. De um lado, temos um corpo encarnado, capaz de sentir as interpelações do mundo. Este corpo, capaz de sentir, só o é, porque primeiro se sente. Assim sendo, desponta-se o tema da auto-afecção como raiz da distinção primordial entre o corpo sentido e o corpo que sente. Sendo que nosso corpo possui as duas características, já que é, ao mesmo tempo, corpo que sente e corpo sentido. A capacidade de sentir-se ou, como veremos adiante, de 'Poder sentir-se', capacidade esta que não possui seu fundamento em si mesmo, estabelece-se como condição de possibilidade de 'Poder sentir' os corpos exteriores. Afirmamos que aqui surge uma questão epistemológica de fundo, a saber: a pergunta pelo ponto de partida do conhecimento e o que se 'Pode' realmente conhecer. Esta questão, da teoria do conhecimento, tão antiga e tão nova, esteve presente no pensamento humano desde tempos imemoriais. Potencializada pela filosofia grega, continuou seu desenvolvimento a partir da teologia cristã. Retomada pela filosofia moderna, foi reformulada por Descartes, em seu Discurso do método, discutida pelos filósofos empiristas do séc. XVII, e sintetizada de forma magistral pelas duas críticas de Kant. A questão, obviamente, não se fecha em Kant, e continua a ser tematizada pelas filosofias posteriores (positivismo de Comte, a retomada da questão da vida por Schopenhauer). Despontam neste contexto duas personalidades que tratam da busca pela verdade utilizando, embora de forma diferente, diretamente o termo fenomenologia, a saber: Hegel (Fenomenologia do Espírito) e, posteriormente, Husserl. Este último, herdeiro da tradição cartesiana, fundará uma das escolas filosóficas mais fecundas no limiar do séc. XIX ao XX. O pensamento henryriano se insere, como antes afirmamos, neste contexto de investigação epistemológica. Herdeiro do pensamento de Husserl, ele o toma como terreno fecundo para a criação de seu caminho constante de busca pela verdade. 20 Esbarrando com a confissão cristã de um Verbo encarnado, percebe a fecundidade desta categoria para sua reflexão fenomenológica e para a própria teoria do conhecimento. Ao avançar em suas pesquisas sobre a encarnação, tomá-la-á como premissa epistemológica fundamental. Isto quer dizer: para Henry está clarividente que somente nossa carne nos permite conhecer, ela é, a partir de seus limites, a condição de possibilidade de todo conhecimento. Esta afirmação será elucidada mais adiante quando abordarmos diretamente a fenomenologia da carne, assim como o tema da impressão e dos seus "Poderes"11. Por agora, parece-nos indispensável aprofundar um pouco mais a distinção antropológica básica proposta por Henry, a saber: aquela que se refere ao corpo de carne e ao corpo inerte, objeto das ciências duras. Na distinção que opera entre os dois corpos: o corpo vivo, dos seres humanos, e o corpo opaco, dos objetos das ciências, o autor chamará carne o primeiro e corpo o segundo. Todas as vezes, portanto, que falarmos de uma carne, estamos falando deste corpo de carne, o nosso corpo vivo, encarnado e bem distinto dos outros corpos que nada podem sentir. Aqui se encontra a riqueza do pensamento henryriano tal como sua capacidade de fecundar o chão da teologia, ao abrir uma porta no seu pensamento fenomenológico para pensar o tema cristão da encarnação. O que mais nos impressiona é que ao pensá-lo, não o faz como uma questão marginal, como se fosse um acidente de percurso do seu pensar filosófico. Ao contrário, destaca este tema como algo fundamental na sua Fenomenologia da Vida, e o afirma como pivô da virada fenomenológica que propõe. Por isso, lançamos nosso olhar investigativo sobre este autor e nos propusemos buscar os fundamentos teológicos de sua fenomenologia da vida a partir de sua fenomenologia da carne e da encarnação. Para continuar nossa empreitada, passamos agora a pensar a definição de homem como carne12. Para avançarmos na distinção proposta por nosso fenomenólogo, temos que passar necessariamente pela abordagem das duas antropologias clássicas que subjazem à visão ocidental do homem. Trata-se da visão do ser humano propagada pelo pensamento grego e da visão propagada pelo pensamento semítico presente na tradição das Sagradas Escrituras. Pese sua importância, passaremos brevemente por esta análise por ser ela um lugar comum tanto na reflexão teológica quanto na filosófica. Henry percebe que a definição do homem como carne, por mais evidente que pareça, não é uma questão tão fácil de ser compreendida. A palavra encarnação, encruzilhada que pode proporcionar o 11 12 HENRY, Incarnation, pp. 69-74; 156-162. Cf. Ibid, pp. 16-20. 21 fértil encontro entre Teologia e Filosofia, também suscita um ferrenho confronto entre aqueles que a tomam como fundamento da própria vida (cristãos) e aqueles que a rejeitam de forma, diz ele, "incondicional"13. Vejamos os traços principais das duas antropologias, para percebemos os seus confrontos e desencontros, assim como alguma possibilidade de aproximação da verdade proclamada pelo cristianismo. Que a antropologia grega seja dualista, isto é um conhecimento proclamado aos quatro ventos pela tradição filosófica e retomada pela reflexão teológica moderna. Lugar comum é também a percepção que temos de que este dualismo ultrapassou as fronteiras do mundo grego e penetrou na própria tradição cristã. Com certa razão se fala de uma helenização do cristianismo. Contudo, este não é nosso tema. Constatar o dualismo antropológico da filosofia grega deve nos levar a pensar concretamente a dificuldade encontrada pela tese cristã da encarnação para penetrar os corações e mentes helenizados. Com não menos razão, deve-nos fazer admirar a coragem dos primeiros convertidos e imaginar o impacto deste anúncio (Deus encarnado) em suas vidas. O dualismo grego encontra-se plasmado de forma brilhante em Platão, em uma de suas obras mais lidas. Trata-se do Fédon. Neste diálogo, Platão expõe aquilo que pode ser considerado como o duplo pilar do platonismo. Por um lado, desenvolve a Teoria das ideias, por outro, defende a tese da imortalidade da alma humana. Nesta visão platônica, o corpo é relegado ao mundo da ruína. Existe um logos imperecível que se situa para além da realidade sensível. A imortalidade da alma humana está na contemplação constante deste logos imperecível, a contemplação do nous: " (...) Nenhuma alma que não tenha praticado a filosofia e que não esteja absolutamente pura quando deixa o corpo pode alcançar a natureza divina; isso só se aplica ao que ama aprender."14. Vemos nessa citação elementos bastante interessantes para nossa análise. Primeiro, configura-se uma espécie de salvação no sentido grego da alma. A respeito disso Michel Henry traçará uma diferença fundamental, ao falar da possibilidade de uma salvação no sentido grego e da salvação em sentido cristão. Vemos, segundo o que Henry percebe da tradição filosófica, que se há alguma brecha para pensar algo como uma salvação no mundo grego, isto somente se daria pelo exercício da contemplação, via exercício filosófico do logos imutável, que habita em luz inacessível à carne. Contemplação, portanto, é a 13 14 Cf. Ibid, p. 10. Cf. ROBINSON, T. M. A psicologia de Platão, São Paulo: Loyola, 2007, p. 62. 22 palavra de ordem quando pensamos algo como uma soteriologia no mundo grego15. Obviamente, a salvação, em sentido cristão, difere radicalmente daquela proposta por Platão no Fédon. Isso porque, enquanto a primeira despreza o corpo e toda a realidade sensível, a segunda faz da carne o eixo da própria salvação, como afirmavam os padres da Igreja. Assim, já se pode vislumbrar a incompatibilidade do conceito de corpo no mundo grego e no cristianismo. Antes de passar ao olhar antropológico do mundo semita plasmado na tradição bíblica, queremos voltar à citação precedente para fazermos nossa última observação. Assim como podemos ver uma preocupação de fundo, no que se refere ao alcance da imortalidade pela alma humana na psicologia platônica, da mesma forma também é possível vislumbrar uma outra perspectiva cara à nossa pesquisa. Esta diz respeito àquela que aborda o tema da contemplação da verdade. É inegável que esse pequeno trecho do Fédon contém o princípio da teoria do conhecimento em Platão. Aqui, nenhum conhecimento verdadeiro se dá fora da contemplação das essências. Por outro lado, o corpo não contempla coisa alguma e, portanto, nada pode conhecer. Em Platão, a sensibilidade está relegada ao plano da ignorância e da perdição16. Como pode então um grego aceitar a afirmação de que o Logos se faz carne? A antropologia semita ou a noção do homem bíblico difundida por ela, apresenta traços bem distintos daquele apresentado pelo mundo grego. O homem criado por Deus aparece como um ser unitário, uma carne (basar) animada pelo sopro de vida (nichmat' haim)17 vindo de Deus. Não existe, portanto, separação entre alma e corpo, um princípio vital capaz de manter uma identidade separada do basar. A alma ou a psiché bíblica nada tem a ver com a psiché platônica. Existe, portanto, algo que poderíamos chamar de uma simpatia escriturística que une judaísmo e cristianismo em torno à concepção unitária do ser humano. Esta sintonia, porém, será colocada em questão quando se trata de pensar o tema da Encarnação. Também para a tradição bíblica a encarnação oferece problemas e dificuldades de ser aceita. E isso, segundo Henry, acontece por dois motivos: o primeiro deles tem a ver com a noção de um Deus criador, que, ao criar o 15 Cf. HENRY, Incarnation, p.12. Por uma questão de tempo e delimitação passaremos de largo sobre a questão do debate entre Platão e Aristóteles e a valorização que este último dá à sensibilidade. Ainda assim, a filosofia Aristotélica, herdeira de Platão, ao discordar de sua postura sobre a realidade sensível, não introduz uma ruptura com sua visão dualista. 17 Cf. LACROIX, Xavier. O corpo de Carne: dimensões ética, estética e espiritual do amor. São Paulo: Loyola, 2009, p. 151. Segundo este autor, o que o homem recebeu de Deus não foi diretamente a ruah, mas o nichmat' haim. Esta distinção é importante para que não se divinize o princípio de vida. A alma não é o Espírito. 16 23 mundo fora de si fica tão afastado dele como do homem. Esta ideia de um Deus transcendente, no sentido de separado, coloca sérios problemas na hora de pensar a Encarnação do Verbo. O segundo motivo tem a ver justamente, como diz nosso autor, com a mesma ideia de Encarnação. O Deus transcendente de Israel é um Deus ciumento, e entre as coisas das quais tem ciúmes está aquela que se refere ao seu caráter único: somente ele é transcendente, divino, e isto não partilha com ninguém. Trata-se de um ciúme ontológico18. Esse Deus ciumento da sua essência divina coloca em cheque a ideia cristã de um Verbo encarnado, e, aliás, coloca em questão, toda a doutrina sobre a Trindade. Acaso esse não é um dos conflitos patentes entre Cristianismo e Judaísmo? A dificuldade da cultura semita para pensar a encarnação a partir de sua antropologia e ideia de criação se apresenta de forma tão patente quanto ocorre no pensamento grego. Contudo, difere radicalmente deste último porque abre espaço para pensar o homem como um corpo de carne. Retomando a distinção basilar entre nosso corpo de carne e os outros corpos do universo, cientes da dificuldade que supõe avançar na análise, damos, com Henry, um passo a mais ao afirmarmos nossa carne como lugar epistemológico por excelência. Assim diz nosso autor: Não se trata de uma dificuldade técnica, mas de uma aporia metafísica [...]. Sem nossa carne a coisa da física, a coisa em si, o noumeno kantiano, permanecem desconhecidos. Longe de que a análise do corpo possa se converter no de nossa carne e no princípio, um dia, de sua explicação; a verdade é totalmente outra: somente nossa carne nos permite conhecer; nos limites prescritos por este suposto ineludível, algo assim como um corpo. Assim temos uma singular inversão: o homem que não sabe nada mais que não seja a experiência de todos os sofrimentos em sua carne ferida e pobre, provavelmente sabe mais que um espírito onisciente que tem seu lugar ao término do desenvolvimento ideal da ciência.19 Esta afirmação da carne como lugar epistemológico toma como ponto de partida o tema principal da investigação henryriana: a encarnação no seu sentido Cristão. Este, por sua 18 19 CF. HENRY, Incarnation, p.14. Cf. Ibid, p.10. 24 vez, tem seu fundamento naquilo que Henry chamará de alucinante proposição de João: "O Verbo se fez carne" (Jo 1, 14). Assim sendo, a fenomenologia da carne, tal como a elucidação sistemática da carne e do corpo e sua possível inter-relação, apresenta-se como pré-requisito para o desenvolvimento de nossa pesquisa. Pensando o tema da encarnação, Henry propõe uma inversão fenomenológica que resulta na suspensão da Fenomenologia do mundo e a adoção daquilo que chamaremos Fenomenologia da Vida. Trata-se aqui da busca por um ver originário, da construção de uma fenomenologia de cunho radical. Pensamos que, ao propor sua inversão fenomenológica, nosso autor opera também uma inversão epistemológica. Afirma assim que uma Fenomenologia do mundo não pode ser o princípio do conhecimento do homem e sua condição, uma vez que sob a luz do mundo somente aparecem corpos inertes, que nada sentem porque são desprovidos da capacidade de 'se sentir'. Desprovidos de carne, também esses corpos inertes e opacos permanecem alheios à questão do conhecimento. Somente uma Fenomenologia da Vida pode fornecer uma inteligibilidade que é, por sua vez, Primordial20. Esta Inteligibilidade primordial, ou Arqui-inteligibilidade, segundo a linguagem henryriana, levanta a questão de fundo não somente sobre o 'como' e o 'a partir de onde' se faz possível todo o conhecimento. Desponta-se também o tema de fundo de toda a Fenomenologia da Vida, a saber: a dimensão da Verdade e de sua constante busca. 2 A questão da verdade como busca fundamental de uma inteligibilidade Primordial A partir do conceito das duas verdades, esboçado no pensamento de Henry, a saber: verdade do mundo e verdade do cristianismo, pretende-se pensar a Fenomenologia da Vida como uma legítima filosofia do cristianismo (ou como uma genuína reflexão que toca o mundo do pensamento teológico). Na medida em que, segundo a perspectiva fenomenológica do autor, a verdade do cristianismo difere essencialmente da verdade do mundo, impõe-se como necessária a elucidação destas duas fenomenologias. Nossa reflexão tomará como ponto de partida as análises fenomenológicas de Henry. 20 Cf. Idem. 25 Partindo da questão concreta do aparecer do mundo, avançaremos por meio da fenomenologia da carne na compreensão da proposta concreta de uma Fenomenologia da Vida, através da qual, nos propomos a desenvolver a reflexão teológica sobre a encarnação e a salvação em sentido Cristão. Desta forma, afirmamos que nosso discurso será de cunho antropológico-fundamental. A partir desta perspectiva antropológica basilar (questionamento sobre a verdade do mundo e a fenomenologia da carne - a questão da impressão), trataremos de pensar a verdade do cristianismo (cristologiaantropologia) desde a perspectiva da Fenomenologia da Vida. Portanto, nosso discurso gravitará em torno de conceitos centrais como: Verdade do mundo, Verdade do cristianismo, Autorevelação, Fenomenologia da Vida (carne impressiva). 2.1 A questão do aparecer e sua indigência ontológica Antes de pensar concretamente a questão do aparecer, segundo a visão de nosso autor, convém relembrar ligeiramente a experiência fundamental da epistemologia platônica fundada a partir da teoria das ideias (Fédon). Na alegoria da caverna, Platão coloca em evidência a questão fenomenológica. A pergunta pela realidade do que aparece pode ser vislumbrada como o início de uma reflexão fenomenológica. Esta surge primeiramente do senso comum que se pergunta pela realidade do aparecer numa visão mais banal e, posteriormente, se estabelece enquanto disciplina que se pergunta pela origem do próprio aparecer ou pelas condições de possibilidade que fundam o aparecer. Seja como for, não se pode negar que a questão do aparecer se destaca como a reflexão básica da teoria do conhecimento de Platão. Há aí raízes de uma reflexão fenomenológica que haveria de florescer com maior vigor no nascimento da epistemologia moderna. A oposição platônica entre mundo inteligível e mundo sensível, o conflito latente entre verdade e aparência, tomando o último termo sempre em sentido negativo, coloca já em evidência a relação entre ser e aparecer, digo, entre ontologia e fenomenologia. No contexto da teoria das ideias de Platão, o fenômeno é relegado ao último plano, ao mundo das cópias, da irrealidade. A realidade não é o que aparece, verdade e realidade não se identificam com o fenômeno se este é pensado como sombra do mundo inteligível. Na epistemologia platônica, portanto, a ontologia funda a fenomenologia. Fazendo um enxerto em nossa reflexão, parece-nos conveniente explicitar rapidamente a ideia de fenomenologia que aparece em Paul Ricoeur. Definindo a 26 fenomenologia na sua obra Na escola da fenomenologia, este autor discute a questão da fenomenologia rigorosa. Afirma que, seguindo a etimologia da palavra, qualquer pessoa que trate do aparecer das coisas está fazendo fenomenologia. Assim, ele dirá que a fenomenologia nasce quando se coloca em suspenso o ser das coisas para tratar do seu aparecer. Contudo, Ricoeur faz uma observação, dizendo que uma fenomenologia profunda brota quando esta distinção (ser - aparecer) é refletida por si mesma. Ao contrário, uma fenomenologia se torna banal quando o ato de "nascimento", que faz surgir o aparecer, não é tematizado. No segundo caso, para o autor, a fenomenologia se torna simples apresentação de opiniões21. Ao iniciar sua reflexão fenomenológica sobre a tese que provoca sua investigação, a saber, a encarnação, Michel Henry o faz a partir de uma perspectiva que supõe, ela mesma, a análise fenomenológica do método, que, em si, leva este nome. Poderíamos dizer que faz antes uma reflexão fenomenológica sobre a fenomenologia e suas raízes. Assim sendo, a partir de Heidegger (§7 Ser e tempo), retoma a questão do objeto e do método da fenomenologia, através da análise semântica do próprio termo. Não nos interessa aqui reproduzir em detalhes o caminho de nosso autor. Exporemos somente as questões de cunho mais fundamental, exauridas por ele nesta empreitada. A conclusão imediata, tirada por Henry, ao se questionar, a partir de Husserl e Heidegger, sobre o objeto e o método da fenomenologia, será decisiva e diz respeito às bases sobre as quais se fundamenta a fenomenologia mesma, tal como a conhecemos. Trata-se da afirmação segundo a qual a fenomenologia tem a tarefa de estudar não o conteúdo dos diversos fenômenos, mas sua essência, o aparecer enquanto tal. Assim, temos a retomada da ideia de Husserl ao afirmar que a distinção entre o conteúdo do fenômeno e o modo no qual ele se nos dá, nos permite captar o verdadeiro objeto da fenomenologia. Com a afirmação de que o objeto da fenomenologia não é o fenômeno em si, mas o seu aparecer, funda-se a distinção basilar da fenomenologia em relação às outras disciplinas22. No percurso feito por Henry, deparamo-nos uma vez mais com a questão fundamental acerca da verdade. Isto porque afirma de forma categórica em seu texto que entre os vários termos que concerne ao campo da fenomenologia (doação, manifestação, revelação, termos utilizados também pela teologia), a palavra "verdade", 21 22 RICOEUR. Paul. Na escola da fenomenologia. Petrópolis: vozes, 2009, p. 149. CF. HENRY, Incarnation, P.35. 27 não somente remete ao verdadeiro objeto da fenomenologia, mas forma também seu núcleo principal. É a propósito disso que se falará de Verdade originária. Ao analisar fenomenologicamente a própria fenomenologia, o autor encontrará em seu caminho uma objeção quanto à forma da fenomenicidade daquilo que chamamos mundo. Tratase, em linguagem henryriana, do tema complexo do que aqui chamaremos, segundo o próprio autor, de indigência ontológica do aparecer do mundo. Para chegar a abordar esta temática, de caráter extremamente delicado, o autor jogará sempre com o binômio fundamental de seu pensamento, a saber: Verdade do mundo e Verdade da Vida. Constata-se simplesmente que existem, na linguagem fenomenológica, duas formas de se entender o que é verdadeiro. A primeira delas é pré-filosófica ou préfenomenológica e a segunda, diz respeito à questão da compreensão do "aparecer" daquilo que aparece, a fenomenização do fenômeno. Observemos a citação abaixo: Há duas formas de entender a verdade: uma pré-filosófica ou pré-fenomenológica na qual verdade designa aquilo que é verdadeiro ( ex.: o cachorro caminhando ou 2+5=7). Contudo, o que é verdadeiro desta forma deve primeiro aparecer. Assim sendo, não é verdadeiro mais que num sentido secundário e pressupõe uma verdade originária, uma manifestação primeira, um poder que funda o aparecer do cachorro ou da proposição aritmética23. Fica deste modo estabelecido que a primeira concepção de verdade, fundada na acepção mais popular da compreensão de fenômeno ou fenomenologia, depende de uma verdade mais originária sobre a qual se fundam todos esses fenômenos ou verdades préfilosóficas. Henry, obviamente, reconhece, como todo fenomenólogo, o impressionante esforço daqueles que o precederam na reflexão fenomenológica (de forma especial Husserl e Heidegger). Contudo, afirma que, apesar de seus esforços para buscar a fundamentação de tudo aquilo que aparece, a questão fundamental do modo como aparece, permanece ainda indeterminada nas suas reflexões. A isso Henry chamará dos pressupostos indeterminados da fenomenologia. Discorrendo sobre esta questão, nosso autor proporá a seguinte análise: 23 Cf. Ibid, p.37 28 Um problema permanece, apesar do caminho feito por Husserl e Heidegger para chegar à verdade como o fenômeno mais originário (ou ao fenômeno mais originário da verdade?). Este problema consiste em que o aparecer puro ou que a fenomenicidade pura seja a condição de todo fenômeno possível. Situa-se este aparecer no núcleo da reflexão fenomenológica como seu verdadeiro objeto, mas não diz em que consiste este aparecer puro. Isto se refere à uma indigência ontológica do aparecer puro ou originário na fenomenologia de Husserl e Heidegger. 24 Para Michel Henry, no caso de Heidegger, ao pensar o "aparecer puro", como o fenômeno mais originário da verdade, e, principalmente, ao classificá-lo a partir da mesma categoria de fenômeno, deixa-se uma lacuna ontológica no que se refere à fundamentação mesma deste "aparecer puro". Em uma formulação mais simples podemos perguntar: o que funda ou onde se funda o "aparecer puro", qual é, segundo Henry, sua substância fenomenológica? A questão crucial para Henry, ao tratar da indigência ontológica do aparecer se refere, pois, então à indeterminação inicial dos pressupostos fenomenológicos da mesma fenomenologia. Segundo Henry, esta indeterminação pode ser compreendida ao pensar a relação entre as duas verdades na filosofia de Heidegger. Assim temos, como descreve nosso autor, que na obra Ser e Tempo (§44), o filósofo alemão apresenta a verdade originária não somente como condição de possibilidade que funda a verdade segunda (o cachorro que vemos caminhar ou a proposição matemática), como também haverá de designar a verdade originária com o nome mesmo de fenômeno. Falar-nos-á, pois, então do fenômeno mais originário da verdade ou da verdade como o fenômeno mais originário. Em resumo, podemos dizer o mais originário é seu fenômeno. O que equivale a dizer que, segundo Henry, para Heidegger o aparecer não se limita somente a fazer "aparecer" o que aparece nele. Esta verdade originária, tem como o mais originário o fato de que ela mesma apareça. Assim, ele mesmo deve aparecer em qualidade de "aparecer puro". Daqui temos a proposição segundo a qual já não seria mais possível aparecer algo se, antes, seu "aparecer" não viesse ele mesmo, ou seja, não 24 Cf. Idem. O parêntese na citação é de responsabilidade nossa. 29 aparecesse, primordialmente, ele mesmo. A partir desta reflexão acerca do pensamento de Heidegger é que Michel Henry situa o problema da indigência ontológica do aparecer do mundo a partir da problemática da indeterminação inicial dos pressupostos fenomenológicos da fenomenologia. Assim temos a afirmação abaixo: Assim, o "aparecer" que brilha em todo fenômeno é o fato de 'aparecer' e somente ele. Este "aparecer puro" que aparece, um 'aparecer do aparecer mesmo', seu 'auto-aparecer'. Contudo, se nos perguntamos por aquilo que, nesse aparecer puro, constitui sua aparição, sua substância fenomenológica pura, damo-nos conta que estamos frente a dois momentos nos textos analisados: no primeiro momento nos encontramos com uma não resposta. A aparição, a verdade, a fenomenicidade, se afirmam sem que se diga em que consistem. Os supostos ou as bases da fenomenologia permanecem indeterminados.25 A não resposta frente à pergunta sobre o fundamento do "aparecer puro" constitui, como vimos a indeterminação inicial dos pressupostos fenomenológicos do "aparecer do mundo" que, por sua vez, refere-se diretamente à lacuna ontológica deste aparecer. Este é o primeiro dos momentos descritos por Henry ao analisar os textos heideggerianos. Fala-se contudo, na citação, de dois momentos relativos à esta constatação fundamental da indigência ontológica do mundo. Este segundo momento, não descrito na citação acima, refere-se, segundo nosso entendimento, àquilo que mais adiante nosso autor designará como a redução ruinosa de todo aparecer ao aparecer do mundo. Isto será tratado quando o autor se referir aos preconceitos ocultos dos princípios da fenomenologia.26 Por sinal, este é nosso próximo tema. Retomando o caminho, vamos recapitular os passos dados até agora por nossa reflexão. Lembramos que o propósito investigativo desta pesquisa tem como centro a explicitação do fundamento teológico presente na Fenomenologia da Vida de Michel Henry, que se encontra, ao nosso ver, resumida de forma magistral em suas últimas obras, que tratam de temas concretos do cristianismo. Para afrontar tal empreitada, pensamos ser indispensável a elucidação dos princípios filosóficos que levam o autor a propor aquilo que chamamos de guinada fenomenológica em seu pensamento. Dentro 25 26 Ibid, p.39. Cf. Idem, p. 47. 30 desta perspectiva, iniciamos centrando nossa atenção na tese que provoca a investigação, a saber: a questão da encarnação. Neste sentido, entendemos que o primeiro princípio filosófico acerca do qual devemos discorrer gira em torno do binômio fundamental no qual Henry sustenta toda sua tese da Fenomenologia da Vida. Este binômio se enuncia como a relação entre as duas verdades ou as duas formas de aparecer: Fenomenologia do mundo e Fenomenologia da Vida. Eis então, que a questão da verdade surge como o primeiro princípio filosófico objeto de nossa discussão nesta dissertação. Neste discurso, situamos a empreitada de nosso filósofo como uma constante busca pela verdade enquanto uma Inteligibilidade primordial, tema que trataremos mais tarde. Ao abordarmos o tema da verdade, não podemos deixar de fazer, como já sabemos, referência direta ao tema do como esta verdade se nos dá, como ela aparece. Eis aqui nossa posição discursiva atual. Analisando a questão do aparecer, desde a perspectiva henryriana, descobrimos uma falha ontológica nesta fenomenologia. Esta chamada indigência ontológica, como acima explicitamos, está naquilo que já denominamos, com nosso autor, de indeterminação das bases da fenomenologia. Esta significa a incapacidade de fundar a substância fenomenológica do "aparecer puro". Trata-se, por isso, da indeterminação dita "inicial" dos pressupostos fenomenológicos da própria fenomenologia. Dito de forma mais clara, poderíamos formular na seguinte questão: o que faz com que o aparecer apareça? Qual é o fundamento do "aparecer puro" já que ele, ao fundar as bases de um aparecer segundo, não se funda a si mesmo? Obviamente, se não se dá a si mesmo carece de algo, é um indigente. Passamos em seguida à análise mais detalhada da indeterminação das bases fenomenológicas da fenomenologia. Analisando os três princípios fundamentais da fenomenologia, Michel Henry demonstrará, em seu discurso, como neles mesmos se encontram a indeterminação das bases ou pressupostos fenomenológicos da própria fenomenologia. O primeiro destes princípios assim se enuncia: "tanta aparência, tanto ser". Na reformulação de Henry: " Tanto aparecer, tanto ser"27. Neste princípio, encontra-se destacada a relação fundamental entre ser-aparecer, entre ontologia e fenomenologia. Relação esta que não somente é cara à filosofia, mas que se encontra presente nos discursos mais basilares do senso comum. De fato, para o senso comum, o ser funda o aparecer, a coisa aparece 27 Cf. Ibid, p.41. Princípio tomado por Husserl da escola de Marburgo. O autor faz uma observação ao preferir em seu texto a reformulação deste primeiro princípio. Esta se deve ao caráter ambíguo da palavra "aparência" que, segundo Henry, pode levar-nos a entender tanto o conteúdo daquilo que aparece quanto ao modo como tal ou qual coisa aparece. 31 porque ela é; a ontologia funda a fenomenologia. A partir da pergunta estrategicamente situada sobre a possibilidade de existência desse mundo prévio. Pergunta que colocará em xeque sua capacidade de auto-sustentação. Dito de melhor forma, que indagará sua independência de uma verdade mais originária, em palavras heideggerianas, do parecer puro que, "aparecendo ele mesmo", funda todo aparecer possível deste mundo. Constatamos que a fenomenologia faz, de fato, o caminho oposto do senso comum. Afirma, portanto, que para que a "coisa seja" ela deve primeiro aparecer. Temos então, certa identidade entre aparecer e ser. Vejamos literalmente o texto: A fenomenologia está atenta, em primeiro lugar, ao poder desta correlação, e esta é a razão pela qual lerá a mesma no sentido oposto. Basta que alguma coisa me apareça para que, então, seja. Aparecer é o mesmo que ser [...] A aparição de uma imagem é certa, mas consegue esta certeza não do seu conteúdo particular, mas do fato que apareça. Assim, do aparecer depende toda existência, todo ser possível. 28 Ao fazer o caminho inverso do senso comum, afirmando a existência ou o ser das coisas a partir de sua fenomenicidade, de sua aparição, a fenomenologia funda a ontologia: tanto aparecer-tanto ser. Contudo, a respeito desta pretensa identidade entre ontologia e fenomenologia o autor mesmo afirmará de maneira categórica: Apesar desta suposta identidade de sua essência, aparecer e ser de modo algum se situam num mesmo plano; sua dignidade não é a mesma: o aparecer é tudo, o ser é nada. Ou melhor: o ser somente é porque o aparecer aparece enquanto tal. A identidade entre aparecer e ser se resume assim: o segundo se funda no primeiro.29 Temos então que o ser está fundado sobre o aparecer. Para Henry, está claro que existe somente um 'Poder'. Este, outra coisa não é que o 'Poder' do aparecer. Por isso, diz: "O ser só consegue sua essência no aparecer que previamente efetuou sua essência nele; a essência do aparecer que reside em sua aparição efetiva, em sua auto28 29 Ibid, p. 42. Idem. 32 aparição"30. Sobre a importância e o limite deste primeiro princípio, diremos o que se segue. Sua relevância está na subordinação da ontologia à fenomenologia. Contudo, vale a pena ressaltar que para Henry esta subordinação não significa em absoluto o menoscabo da ontologia. Pelo contrário, o que se quer é possibilitar-lhe um fundamento seguro. Por outro lado, o limite radica justamente na sua indeterminação fenomenológica fundamental. Esta ocorre quando tal princípio nomeia o aparecer sem dizer em que este consiste, no como aparece o aparecer. Ao não reconhecer a matéria fenomenológica pura da qual deve estar feito todo aparecer na medida que diz que é ele quem aparece, a pretensão de substituir uma ontologia especulativa por uma ontologia fenomenológica cai por terra. Assim, limita-se a designar o aparecer desde o exterior, ao invés de escrutar sua substância. Segundo Henry, dispomos, portanto, somente de um conceito formal do mesmo31. O segundo princípio da fenomenologia se enuncia da seguinte maneira: "ir às coisas mesmas". Ir à coisa mesma significa eliminar interpretações prévias, abordar os dados de forma imediata, ou, como diz Henry, em sua "imediatez". A partir deste enunciado se volta a discutir o objeto e o método da fenomenologia. Segundo nossa definição anterior, ao pensarmos o objeto da fenomenologia, nos daremos conta que "ir à coisa mesma" da fenomenologia significa ir ao aparecer puro, ir, não ao conteúdo do que aparece, mas à fenomenicidade pura. E, segundo Henry, ao pensarmos o percurso que devemos fazer para chegar a esta fenomenicidade pura, descobriremos que o caminho é esta mesma fenomenicidade, o caminho é o "aparecer mesmo", dito de outra forma, o auto-aparecer. Temos então uma identificação entre objeto e método na fenomenologia, já que, para ir ao 'aparecer puro', não temos outro caminho que este mesmo aparecer. O objeto constitui o método fenomenológico. Assim, podemos afirmar, neste contexto específico, que todo conhecimento ou toda forma de experiência remetem necessariamente ao a priori de um poder de conhecimento. Toda experiência traz em si mesma o método de acesso a ela. E Henry se pergunta se acaso não é esta condição a priori de toda experiência possível que Kant converteu no tema da sua filosofia. A partir desta concepção, ficaria excluída qualquer possibilidade de conceber então um inteligível que escapa a toda condição prévia, uma inteligibilidade situada ao princípio e condição de toda inteligibilidade, na linguagem henryriana, uma arqui- 30 31 Cf. Idem. Cf. Ibid, p. 44. 33 inteligibilidade, talvez análoga à de João32. Desde esta perspectiva, entende-se melhor o porquê de Kant pensar sua filosofia a partir de duas críticas. Na fenomenologia, pensada neste horizonte de redução, não há lugar para pensar uma Inteligibilidade Primordial que escape à fenomenicidade tal qual é concebida aqui. Parece-nos importante ressaltar que esta arqui-inteligibilidade (Inteligibilidade primordial) pensada por Henry, busca, no fundo, dar uma resposta à questão da indeterminação dos pressupostos fenomenológicos da fenomenologia. Por isso, pensamos que a inversão fenomenológica é também epistemológica. Por fim, chegamos ao terceiro princípio, dito o princípio dos princípios, assim ele é enunciado no §24 de Ideen I: "toda intuição em que se dá algo originalmente é um fundamento de direito do conhecimento"33. A partir daqui, Henry se pronuncia sobre o preconceito oculto que subjaz a estes três princípios da fenomenologia. Para ele, este preconceito oculto se refere à redução catastrófica de todo aparecer ao aparecer do mundo. Temos, pois, então, que, segundo Henry, a redução de todo aparecer ao aparecer do mundo traz duas conseqüências imediatas: a primeira delas se refere ao impedimento do acesso ao cristianismo. Isto porque, neste padrão de inteligibilidade, não é possível pensar nenhuma Inteligibilidade primordial tal como é proposta pelos cristãos. A segunda consequência é o obscurecimento da própria filosofia, diz ele: "antes mesmo de chegar à fenomenologia"34. Em Husserl esta redução se encontra esboçada neste terceiro princípio, chamado, como vimos, o princípio dos princípios. Nele, afirma-se a tese segundo a qual 'toda intuição em que se dá algo originariamente é um fundamento de direito do conhecimento'. Acontece que a intuição deve à intencionalidade seu 'poder' fenomenológico de instituir a condição de fenômeno. E esta intencionalidade, como estrutura da consciência, funda todo “ver” concebível pelo seu movimento em direção ao objeto transcendente (correlato intencional). Contudo, ela não se funda a si mesma, não se dá a si mesmo porque se dirige sempre para um "fora de si " . E é este “dirigir-se para um fora” o que constitui sua essência. Por não fundar-se a si mesma, a intencionalidade, ou esta Fenomenologia do mundo, cai numa indigência ontológica, o que prova então sua perspectiva reducionista ao conceber todo “veraparecer” como ver intencional, sendo somente o “ver-aparecer” do mundo. Isto é o que Henry denominará o preconceito oculto dos pressupostos da fenomenologia, esboçado 32 Cf. Ibid, p. 46. No fundo, este terceiro princípio explicita ainda mais a reflexão anterior que afirma que toda experiência traz em si mesma o método de acesso a ela. 34 Cf. Ibid, p. 49. 33 34 nos três princípios. É justamente esta indigência ontológica, oculta nos princípios reducionistas da fenomenologia, o que provocará a tese de uma Fenomenologia da Vida. Em outros termos, a percepção de uma Inteligibilidade primordial (Arquiinteligibilidade) que nos tire de tal indigência. É a partir deste contexto que se fala de uma Fenomenologia do mundo e de uma Fenomenologia da Vida35. Parece que chegamos ao limite essencial sobre a questão do aparecer. Para darmos o próximo passo necessitamos analisar aquilo que representa o "elo perdido" na temática epistemológica abordada pela filosofia. Este foi abordado por Descartes, sintetizado pela filosofia de Kant e reformulado magistralmente por Husserl, seguido de Heidegger. Por fim, torna-se tema da fenomenologia de Merleau-Ponty, sendo retomado também por Michel Henry. Consideramos, segundo o contexto fenomenológico apresentado acima, que o "elo perdido" da epistemologia, no que se refere ao tema do aparecer do mundo, pode ser pensado a partir da questão da Impressão, desenvolvida a partir do § 7 da obra de Henry (Encarnação). Contudo, disso não trataremos agora. Este tema merece uma análise especial que, desenvolveremos no último ponto da primeira parte deste capítulo. Ele servirá como pré-texto para pensarmos a guinada fenomenológica: de uma Fenomenologia do mundo à Fenomenologia da Vida. Constatamos, pois então, uma Indigência ontológica da fenomenologia (aparecer do mundo). Esta falha ontológica, que se encontra na indeterminação dos pressupostos fenomenológicos da fenomenologia e que é constatada a partir dos seus três princípios fundamentais, resulta na redução de toda fenomenologia (de toda possibilidade de aparecer) ao horizonte de visibilidade do mundo. Neste contexto, não há espaço para pensar outras verdades. A verdade fundamental da Vida que se revela, pensada pelo Cristianismo, fica de vez excluída. Contudo, veremos, a partir do início do segundo capítulo, que existe uma implicação teológica direta quando pensamos a tese do primeiro princípio segundo o qual a Fenomenologia funda a Ontologia. Aqui, coloca-se em foco a relação das duas categorias teológicas chaves de nossa reflexão (Criação - Revelação) que, por sinal, culminará no tema chave de nossa investigação, a saber: 'a salvação em sentido cristão'36. Porém, ainda não podemos desenvolver com acuidade tal questão sem antes continuar analisando aprimoradamente a questão referente à 'Verdade do mundo'. Passamos então ao segundo momento deste primeiro 35 36 Cf. Ibid, pp. 47-61. Cf. Ibid, p. 41. 35 capítulo, a partir do qual, depois de analisar, primariamente, a questão do aparecer, trataremos da Verdade segundo o horizonte de visibilidade deste nosso mundo, ou seja, da Verdade segundo a Fenomenologia do mundo. 2.2 A Verdade segundo a Fenomenologia do Mundo Na sua obra sobre a filosofia do cristianismo, intitulada, "Eu sou a Verdade" (C'est moi la vérité. Pour une philosophie du christianisme), Michel Henry dedica o primeiro capítulo ao tema da Verdade do mundo37. Antes, porém, na introdução, o autor lança para o leitor a empreitada que se propõe a fazer, a saber: apresentar aquilo que é a Verdade segundo a concepção do cristianismo. Ao fazê-lo, aborda de forma sintética o tema da falha na definição ontológica da realidade que, segundo ele, sustenta o conceito de verdade no sentido histórico. Segundo Henry, existe, evidentemente, uma falha na definição ontológica da realidade. Esta consiste no fato de que ao conceber a noção de verdade a partir somente dos fenômenos que foram testemunhados, deixa-se de fora os fenômenos que escapam a este critério de visão e testemunho. Assim sendo, eles estão excluídos do campo conceitual da verdade da história, mesmo que tenham existência real do ponto de vista ontológico, posto que de fato aconteceram. Levantando este problema, Henry discute as questões sobre as fontes e os critérios para o estabelecimento da verdade. A partir deste ponto de vista, ele constata mais uma vez a irredutibilidade da Verdade do cristianismo ao conceito de verdade histórica. Ao afirmar tal irredutibilidade, ele nos lança de volta à reflexão anteriormente elaborada, sobre a possibilidade de uma verdade que não seja a do mundo. Retomamos, pois, o pensamento segundo o qual existe uma verdade segunda (contingente) que se fundamenta numa 'Verdade primeira' (a priori). Segundo Michel Henry, a Verdade se define como puro ato de aparecer. Neste sentido, afirma-se que o simples fato de "se mostrar" se constitui como a própria essência da verdade tomando o sentido de uma revelação 'pura' a priori. Assim escreve nosso autor: Se o fato de se mostrar consiste na essência própria da verdade no sentido de uma manifestação pura, de uma revelação pura, 37 Cf. HENRY, Michel. C'est moi la vérite: pour une philosophie du christianisme. Paris: Seuil ,1996, pp. 21-31. 36 então tudo o que se mostra não é verdadeiro mais que em um segundo sentido.38 Temos então, como se pode notar, nesta obra anterior do autor (C'est moi la vérité, 1996) o germe da reflexão que haveria de desenvolver mais detalhadamente no seu trabalho posterior (Incarnation, 2000). Isto é: a remissão imediata de toda verdade que diz respeito aos entes (verdade ôntica) à 'Verdade fenomenológica'39. Contudo, no caso de Henry, não se trata da remissão a qualquer fenomenologia, mas a uma fenomenologia da Vida. Ao tratar o tema da verdade segundo a Fenomenologia do mundo, nosso fenomenólogo retoma de forma simples e direta a categoria mundo para defini-la fenomenologicamente. Convém, portanto, dizer que a definição de mundo em Michel Henry, a partir do seu trabalho supra citado, nada tem a ver com aquilo que ele mesmo chama de "o conjunto das coisas ou do ente". Este mundo, refere-se sempre "ao horizonte de luz no qual as coisas se mostram como fenômenos". O autor dirá, portanto, que, nessa visão fenomenológica, "o mundo jamais designa o que é verdadeiro, mas a verdade mesma". 40 E é por isso que tratamos aqui da verdade segundo a Fenomenologia do mundo ou segundo o horizonte de visibilidade do mesmo. Trata-se, então, de pensar as condições de possibilidade da verdade a partir das estruturas fenomenológicas daquilo que Henry conceitua como sendo o Mundo. Fazendo uma análise do conceito de fenomenologia (phainomenon-phanesthai) Henry destacará a centralidade da raiz (phôs -φοs). Sobre isso diz: Na Grécia as coisas são chamadas de 'fenômenos'. Phainomenon, vem do verbo phainesthai, que tem na sua raiz phos, que siginifica luz. Phainesthai quer dizer se mostrar vindo à luz. Então, fenômeno quer dizer: o que se mostra vindo à luz, saindo à luz do dia. A luz à qual saem as coisas para se mostrarem como fenômenos é a luz do mundo. O mundo não é o conjunto das coisas [...] nem designa o que é verdadeiro, mas a Verdade mesma. Na interpretação grega das coisas (dos entes) como 'fenômenos' está já implicada a intuição retomada pela 38 Ibid, p. 22. Cf. Idem. 40 Cf. Ibid, p.24. 39 37 fenomenologia contemporânea como seu princípio fundador, a saber: a ideia de que o que é [...] não 'é' senão enquanto se mostra como fenômeno. 41 A partir desta definição de mundo e fenômeno, segundo a etimologia e o pensamento grego, Henry retoma a compreensão de realidade e mundo da fenomenologia contemporânea. Como bem disse, esta se fundamenta na afirmação de uma verdade segunda que somente existe (o que é, não 'é' senão enquanto se mostra como fenômeno) na dependência de uma verdade originária, um "aparecer puro". A partir de então, o autor seguirá a exposição de sua tese, adentrando no tema complexo das estruturas do 'aparecer' do mundo. Dirá Henry que a interpretação daquilo que 'é' como aquilo que se mostra, ou seja, o vínculo entre ontologia e fenomenologia, haverá de dominar o pensamento ocidental. Afirma também que é falsa a ideia de que a passagem do pensamento da filosofia antiga e medieval para o pensamento moderno introduziu uma ruptura na relação entre fenomenologia e ontologia. Para isso o autor toma como exemplo a filosofia da consciência do séc XVII- XVIII (Descartes- Kant). Nesta filosofia as coisas são reduzidas àquilo que se mostra na consciência. Há portanto, um fortalecimento da compreensão das coisas como fenômenos diante de uma consciência. Este "diante de" designa uma dimensão fundamental para a compreensão da fenomenologia contemporânea. A consciência mesma se estabelece como o fenômeno puro. Henry dirá: "a consciência mesma não é nada mais que o ato de mostrar-se captado em si mesmo, a manifestação pura, a verdade"42. Esse "diante de" acusa a relação da consciência com o objeto que lhe aparece. A partir desta relação, compreender-se-á ainda mais a natureza de manifestação pura (verdade) concedida à consciência. A consciência, ao representar-se um objeto, o põe "ante si". Este 'colocar diante' significa também colocar 'afora'. Henry dirá que é "o 'fora' como tal". Agora, para o autor, esse "afora" não é outra coisa que a verdade do mundo. Por isso afirma que: "a consciência não designa em absoluto uma verdade de ordem distinta à verdade do mundo"43. Então, a fenomenologia contemporânea pode ser designada, inequivocamente, como uma Fenomenologia do mundo. Ao aparecer do mundo, porém, se impõe uma distinção. Esta se refere à ordem da própria verdade. Na luz do mundo, quanto à sua possibilidade de tornar manifestos 41 Ibid, pp.23-24. Cf. Ibid, p.24-25. 43 Idem. 42 38 os objetos, aquilo que se mostra ou que se "faz manifesto" neste horizonte do "afora", difere radicalmente deste mesmo horizonte que o faz aparecer. Surge daqui a não confusão entre dois conceitos: não se mistura o que é verdadeiro com a verdade mesma. Neste mesmo contexto, o autor destaca outro elemento relevante no que tange à Fenomenologia do mundo. Trata-se da indiferença da luz da verdade com relação a tudo aquilo que ela ilumina, ou seja, ao verdadeiro. Já entrevemos assim uma característica fundamental desta verdade do mundo: uma tremenda apatia em relação àquilo que ela ilumina. Como veremos adiante, todo phatos fica já de antemão excluído deste horizonte de verdade44. A auto-exteriorizaçao da exterioridade que, segundo Henry, não se confunde com nenhum horizonte da metafísica tradicional, refere-se, então, simplesmente à possibilidade da "manifestação" das coisas neste horizonte objetivo da luz do mundo. Este panorama de visibilidade do mundo, seu "afora", pode ser designado, segundo o autor, com o nome de tempo. Assim sendo, temos uma identidade estrita entre tempo e mundo. Ambos podem então designar aquele "processo único no qual o "afora" se auto-exterioriza constantemente"45. Este horizonte do mundo ocorre a partir das três dimensões temporais. Segundo Henry, elas formam as chamadas "praias de exterioridade designadas por Heidegger como ek-stasis ( futuro-presente-passado)"46. Dirá ainda o autor que: "sobre o fundo deste horizonte se faz visível, como temporal, tudo o que se mostra"47. O pensamento henryriano apresenta assim uma crítica sobre o esvaziamento das coisas provocado pela estrutura do aparecer do mundo48. Estruturas estas que possuem na noção de tempo um de seus pilares: Assim, sobre isso, dirá Henry: O tempo é o 'passar', o deslizamento, sob a forma de deslizamento em direção ao nada. [...] É porque a vinda à aparência é aqui a vinda ao 'afora', pelo qual, jogando tudo fora de si e o arrancando de si mesmo, precipita-o no nada. O aniquilamento é o modo de fazer aparecer enquanto toma sua essência do 'fora de si'. [...] O tempo não é um deslizamento do 44 Idem. Cf. Ibid, p. 27. 46 Idem. 47 Idem. 48 Cf. HENRY, Incarnation, pp.65-69 45 39 presente ao passado, como se pensa no senso comum. No tempo não tem presente, nunca houve e nunca haverá.49 Ainda sobre a questão do esvaziamento ou aniquilamento do aparecer do mundo pela sua própria estrutura de 'ek-stasis', o autor afirma que: A verdade do mundo é a lei da aparição das coisas. Segundo esta lei, as coisas, esvaziando-se de si mesmas em sua aparição, não dão nunca sua realidade própria, mas somente a imagem desta realidade que se aniquila no momento em que se dá. [...] Por isso, não há presente no tempo. Porque esta vinda ao aparecer, que define o presente mesmo como presente fenomenológico, destrói a realidade desta coisa na apresentação mesma, fazendo dela um presente-imagem. 50 E prosseguindo a reflexão sobre o vazio deixado pelo aparecer do mundo, sobre a redução deste aparecer ao nada, pela própria estrutura temporal, o autor, de forma decisiva, conclui: "Desde o princípio isso passava [...] sem se deter no presente se dirigia até seu nada no passado. Em nenhum momento havia deixado de ser esse nada."51. Assim sendo, a questão colocada pela reflexão fenomenológica deste autor é de fato relevante. E isto não só no que tange ao que denuncia, a saber: a redução de todo aparecer ao aparecer do mundo e à ruinosa destruição (em direção ao nada) de tudo o que aparece neste horizonte da Fenomenologia do mundo; mas também no que tange ao que anuncia: como veremos, uma guinada fenomenológica e epistemológica centrada na questão, vale a redundância, vital da Vida, por uma Inteligibilidade Primordial. O que, de fato, provoca certo incômodo ao nosso autor é o pensamento reducionista de todo aparecer ao aparecer unívoco do mundo. Em verdade, se tudo nos aparecesse somente desta forma. Se, efetivamente, todo aparecer fosse, somente o aparecer do mundo, levando a sério a redução catastrófica de todo aparecer a este horizonte de ek-stasis. Então, se não existisse outra verdade que não fosse esta, considerada a análise sobre o esvaziamento da realidade ôntica provocada pelas praias de exterioridade, podemos 49 Cf. HENRY, C'est moi la vérite, pp. 28-29. Cf. Ibid, pp. 29-30. 51 Cf. Ibid, p.30. 50 40 afirmar que não haveria, em absoluto, realidade em nenhum lugar, mas somente morte por todas as partes, no fim, o nada52. A tradição intelectual inaugurada pela filosofia grega, representada tradicionalmente por Platão e Aristóteles, chega ao seu ápice com o advento da era moderna. Contudo, um evento no mundo pré-científico, conhecido como revolução copernicana, prepara o terreno para a introdução do elemento determinante que levará à guinada epistemológica, condição de possibilidade para a decolagem da tradição científica do Ocidente. Trata-se do deslocamento de uma razão nomotética heterônoma, ainda devedora de um logos submetido a uma força superiora que governa o cosmos, para uma razão instrumental, autônoma, profundamente hipotética e questionadora de toda realidade, inclusive do mundo metafísico53. Pensando a partir da passagem de uma Razão nomotética à razão instrumentalhipotética, evitando entrar nos pormenores dos germes das teorias do conhecimento desta época, queremos destacar aqui, segundo M. Henry, as três formas de concepção da realidade que fundamentam a Fenomenologia do mundo. Segundo nosso autor, o aparecer do mundo tem sido constituído diferentemente segundo três padrões de pensamento. O primeiro deles se refere ao mundo conhecido pela geometria ideal de Galileu, a isto se chamará redução galileana; em segunda instância, o mundo é percebido pela intuição intelectual de um entendimento puro como pensou Descartes e a filosofia kantiana; por último, temos a retomada da tradição cartesiana por Husserl, que pensa um mundo originalmente sensível, que brota da intencionalidade presente nos nossos sentidos54. Pensemos brevemente o alcance e os limites de cada uma dessas formas de ver (θεωρία-teoria55). No primeiro caso temos a crítica operada por Galileu a todo mundo sensível. Retomando a tradição do intelectualismo grego, ele propõe uma nova concepção de mundo que, por sua vez, desembocará numa inédita concepção do corpo: passa-se do corpo sensível, passível de ser tocado, mas subjetivo, ao corpo científico, idealizado, objetivo, contudo, vazio de toda sensação. Negando a realidade dos corpos sensíveis, Galileu afirma que o universo é formado de corpos materiais extensos. A partir desta 52 Idem. Cf. SOUZA, José Carlos Aguiar de. O projeto da Modernidade. Brasília-DF: Liber Livro, 2005, p.33. 54 Cf. HENRY, Incarnation, pp. 169-170. 55 Cf. θεωρία in URBINA, José M. Pabón S. De. DICCIONARIO MANUAL. Grieco-Espanhol. Barcelona: Vox, 1998. Vale lembrar que o verbete se refere diretamente ao ato mesmo de ver ou contemplar. Com mais razão, portanto, este termo se aplica ao conjunto de conhecimento designado na fenomenologia como uma "forma de ver". 53 41 constatação, deduz o que é acidental e o que é próprio de todo corpo. Dir-nos-á então que o próprio de uma substância material extensa é sua delimitação potencial por figuras. Assim, nasce uma ciência das figuras e formas puras à qual se denominará geometria. Este novo saber coloca as bases para um conhecimento universal, que se opõe ao conhecimento particular e limitado do mundo sensível. Temos então daí que se o essencial à matéria extensa é definido pela sua forma geométrica, todo outro horizonte pode ser subtraído do corpo geométrico. Neste contexto, as qualidades sensíveis de um corpo não são essenciais à matéria. Toda sensibilidade não passa de uma espécie de determinação acidental e contingente, que pode ser explicada segundo as particularidades dos vários corpos sensíveis, de acordo com sua organização biológica. De fato, um homem sente de forma diferente que um cão e este possui sensibilidade distinta da de um pássaro. Segundo o novo56 paradigma epistemológico, as figuras geométricas, situadas no tempo e espaço, são a condição de possibilidade para a leitura do livro da natureza. A linguagem matemática é a única capaz de decifrar os enigmas do universo. Para Michel Henry, a nova inteligibilidade proposta por Galileu opera uma redução quando substitui o corpo sensível pelo corpo científico definido pela matemática e a geometria. Esta redução possui consequências determinantes para a ordem da verdade e a realidade dos corpos no mundo. De fato, se pela análise eidética a matéria existe de forma independente em relação às qualidades sensíveis, então todo mundo sensível é jogado no campo da ilusão e da mentira. Este é justamente o limite da nova inteligibilidade de Galileu. Ao colocar as qualidades sensíveis no campo da contingência, que se opõe ao real e verdadeiro conhecimento, que só pode ser dado pela geometria, o mundo e a vida, tais como os experimentamos, se deslocam para o horizonte da irrealidade. Simplesmente não há verdade e realidade no 'mundo da Vida', já que este é essencialmente sensação. Vivemos no reino da ilusão. O movimento intelectual realizado por este grande cientista só pode ser considerado uma redução quando percebemos, com Henry, que as qualidades sensíveis não possuem sua realidade na ordem da res extensa, no mundo das formas puras da geometria, mas no 'mundo da Vida' (Lebenswelt). Assim sendo, sua matéria não é a do mundo, mas a matéria 56 Novo em relação à antiga ciência aristotélica. Contudo, é importante observar que não há ruptura radical entre o logos grego e a nascente ciência moderna. Podemos falar, portanto, de uma ruptura na continuidade. 42 fenomenológica da vida57. A filosofia cartesiana, como veremos, operará uma contraredução recuperando o que outrora fora descartado pela teoria galileana. O que não foi percebido como essencial por Galileu será captado por Descartes como a intuição intelectual primordial para o fundamento de todo conhecimento possível. Ao seguir as intuições de Galileu, Descartes não considera o mundo subjetivo (impressões) como algo que pertence ao mundo da ilusão. Segundo Michel Henry, a contra-redução cartesiana consiste em que Descartes não permite à verdade do corpo geométrico descartar a verdade da impressão e da subjetividade. Isto porque é a certeza absoluta da percepção subjetiva do corpo (que pensa e que "sente"), isto quer dizer, se a cogitatio está ou não correta, que garante a certeza do conhecimento do universo (Penso, logo existo). Isto implica afirmar que a verdade de um corpo só pode ser assim determinada se minha percepção do mesmo ou minha intuição intelectual da sua extensão for antes correta. O cogito cartesiano depende, pois, das aparições subjetivas. Estas se relacionam de forma concreta com o mundo da sensibilidade. Nenhuma intuição intelectual pode ser dada a partir do nada, mas somente a partir do apreendido pelos sentidos. Dito com mais propriedade, depende do 'mundo da Vida', das impressões. Michel Henry, estabelecendo a distinção entre a epistemologia proposta por Galileu e aquela levantada por Descartes, dirá que: enquanto a visão galileana se refere a uma análise ontológica do corpo (visa conhecer sua natureza), o horizonte delineado por Descartes, refere-se a um análise fenomenológica do corpo, que busca levantar a questão da possibilidade do conhecimento mesmo 58. Inserido ainda no horizonte metafísico, Descartes ver-se-á envolvido no dilema epistemológico fundamental de sua teoria. Este pode ser descrito como o problema da conexão entre a res cogitans e a res extensa. Em outras palavras, trata-se de saber como pode se passar de uma esfera à outra, como a alma toca o corpo. A esta questão incômoda, Descartes tenta responder com a hipótese da suposta glândula pineal. Mais adiante veremos que esta problemática será a mesma levantada por Maine de Biran, em sua crítica à análise dos movimentos à estátua de Condillac. A aparente problemática de Descartes é retomada por M. Henry, em sua Fenomenologia do corpo, mostrando que o paradigma da Fenomenologia da Vida pode oferecer uma interessante pista para pensar a questão. 57 58 Cf. HENRY, Incarnation, pp. 139-148. Cf. Ibid, p.151. 43 Retomando a filosofia cartesiana, Husserl voltará a analisar a redução galileana, não para colocar em xeque todo avanço científico que veio desta nova inteligibilidade, mas simplesmente para denunciar o esquecimento daquilo que parece ser seu fundamento último, a saber: a subjetividade. Assim sendo, Husserl, ao rejeitar a pretensão de universalidade da ciência galileana, simplesmente denuncia uma pretensão de autonomia que é vazia. Isto porque as figuras geométricas ideais não existem no mundo real. Elas nada mais são que frutos de uma operação intelectual da consciência, que abstrai, a partir do sentido no mundo real, figuras ideais. Esta operação é chamada transcendental porque se refere à possibilidade de formação deste conhecimento ideal. A consciência transcendental é condição de possibilidade para todo conhecimento do mundo. Ocorre que as operações de tal consciência estão localizadas na subjetividade da vida transcendental. Assim sendo, a pretensão de autonomia da ciência galileana, ao rejeitar toda intuição sensível, é vazia, porque tal ciência, conhecimento matemático das formas puras, permanece dependente das operações subjetivas da consciência intencional transcendental para formar seu conteúdo de mundo. Pensando que deveras as idealidades científicas se estabelecem como fruto de um processo de intelecção, que toma como ponto de partida os dados sensíveis deste mundo sensível, então, de fato, todo conhecimento, mesmo o matemático, mantém com a sensibilidade uma conexão essencial, como seu lugar de origem. De fato, como observa nosso autor, se toda teoria científica tem sua razão de ser enquanto princípio explicativo da realidade e por isso parte de um dado sensível passível de explicação, então, a ciência galileana tampouco pode abrir mão da experiência sensível. Os fenômenos sensíveis são, simultaneamente, ponto de partida e referência última de toda ciência. Existe, pois, uma sintonia obrigatória entre a análise ontológica proposta por Galileu e a análise fenomenológica inaugurada por Descartes. Havendo tocado indiretamente o tema essencial da 'impressão' pela redução galileana, sua valorização pelo cogito cartesiano e sua retomada pela fenomenologia de Husserl, parece-nos que chegou o momento de abordá-lo de forma mais direta. Os próximos passos da reflexão, introduzir-nos-ão ao tema da fenomenologia da carne. Pensaremos, com Henry, o caráter da nossa 'carne impressiva' e a 'auto-afecção' como condição de possibilidade para a compreensão da virada fenomenológica, que supõe a passagem de uma Fenomenologia do mundo à Fenomenologia da Vida. 2.3 O esvaziamento do poder da impressão em sua auto-afecção 44 A partir da redução galileana da realidade do mundo às puras formas geométricas, retomando a intuição cartesiana sobre o papel da sensação, que determina o conteúdo do mundo, chegamos a constatar a lacuna do aparecer do mundo ou sua indigência ontológica. Kant a reconhece, segundo Henry, quando afirma o fracasso da estrutura fenomenológica do mundo em relação ao conteúdo do que nele aparece. Assim, segundo Kant, o horizonte fenomenológico do mundo (os a priori da intuição pura do espaço e do tempo, tais como as categorias do entendimento) manifesta-se incapaz de colocar por si mesmo a realidade que forma o conteúdo do mundo. Deixa-se esta realidade à sensação. Para Henry, o mesmo acontece com Husserl. A consciência é de fato sempre 'consciência de algo', mas nunca é capaz de colocar este algo. Isto quer dizer que a intencionalidade não pode produzir o conteúdo que manifesta. Ela sempre e somente é o 'poder' de manifestação. Assim, Husserl, em sua análise fenomenológica de um objeto (por exemplo a cor de algo) falará de dois pólos de análise: de um lado a “cor” noemática apreendida sobre o objeto (noematische Farbe-forma) e do outro, a cor impressiva, vivenciada, invisível (Empfindungsfarbe-impressão). Contudo, a realidade da “cor” está unicamente ali onde é sentida por nós, na cor impressiva ou sensual, na empfindungsfarbe. Assim, o conteúdo real do mundo sensível não depende de sua estrutura fenomenológica (representação para Kant, intencionalidade para Husserl), mas da impressão59. A questão da Impressão fornece, pois, a condição de possibilidade para pensar uma Fenomenologia da carne e uma consequente Fenomenologia da Vida. A impressão deve ser pensada aqui como fundadora da realidade. Ao pensar o estatuto fenomenológico da impressão, ou sua relação com a consciência intencional, Husserl perceberá a realidade da consciência em dois momentos. De um lado, coloca o conteúdo noemático (visível-forma) como sendo externo à consciência, do outro, pensa o conteúdo impressivo hylético (invisível) como algo que pertence à consciência, assim como a intencionalidade. Pensa também o elemento sensual puro, a impressão original, como estranho à intencionalidade e, considerando que esta é a responsável última por mostrar tudo aquilo que se mostra, emerge a pergunta pelo como 'aparece' a impressão mesma. Se esta é desprovida de intencionalidade, então como pode se mostrar? Estaria ela perdida para sempre? Ao colocar esta questão, podemos também nos perguntar pelo 'aparecer' da própria intencionalidade; ela, que revela todas as coisas, 'como se revela a 59 Cf. Ibid, pp.65-69. 45 si mesma?'. Eis a solução husserliana. Evitando cair numa regressão ao infinito, na busca da intencionalidade que funda a intencionalidade, declara-se que toda consciência intencional é, por si mesma, impressiva. Impressionando-se a si mesma, nesta autoimpressão originária, a consciência intencional se revelaria a si mesma. Contudo, ao afirmar a tese de uma consciência intencional impressiva em si mesma, ocorre um deslocamento prejudicial à impressão mesma. Neste deslocamento, a hyle, matéria da consciência (impressão) perde seu ônus fenomenológico. Isto significa afirmar que deixa de ser pensada a partir de seu 'poder' de manifestação. Assim este poder de manifestação é bruscamente transferido para a intencionalidade, a forma que informa a matéria. Melhor dito, volta-se à antiga concepção onde a matéria somente existe para ser informada por uma forma. Para Henry, percebe-se aqui o círculo fechado da fenomenologia de Husserl: A este conceito não questionado de uma matéria em si fenomenológica, se superpõe o esquema vindo de longe, que quer que uma matéria não seja nunca mais que uma matéria para uma forma (...). Para Husserl, a intencionalidade é precisamente esta forma que faz ver uma matéria em si indeterminada e cega. Esta se torna um dado sensível, por meio de um olhar intencional, que atravessa esta matéria composta de impressões e sensações escuras e que ao fazê-lo a ilumina.60 Transferir o poder de manifestação à intencionalidade significa jogar na escuridão toda impressão, que somente existe agora como matéria cega a ser informada pelo olhar intencional que a define e ilumina. Ao esvaziar o poder de manifestação da impressão, transferindo-o para a intencionalidade que a deve manifestar na estrutura de ek-stasis do mundo, ocorre outro deslocamento absurdo. A impressão, ao perder seu ônus fenomenológico, é atirada aos objetos, como um de seus atributos, apenas uma qualidade. Voltamos a uma espécie de redução como em Galileu. Quando isso ocorre, manifesta-se a dupla ilusão do mundo sensível, respectivamente: a crença em que a verdade impressiva (sensível) encontra-se no mundo como qualidade dos objetos e a atribuição à intencionalidade da revelação originária da impressão. Então, para Henry 60 Cf. Ibid, pp. 71-72. 46 "ao aparecer do mundo é atribuído um 'poder' que não possui (o poder de revelar a impressão originária) e se oculta a revelação própria da impressão"61. Até agora, somente abordamos a supressão da impressão na sua realidade originária, ocorrida na fenomenologia de Husserl. Esta acontece quando se transfere seu 'poder de manifestação' à estrutura de manifestação do mundo, ou seja, à intencionalidade. Abandonando o esquema da Fenomenologia do mundo, a partir do qual toda matéria é informada por uma forma, na linguagem da fenomenologia, por um "ver" da consciência intencional, voltamos agora nosso olhar para a impressão em si mesma. Para Henry, a realidade mesma da impressão, sua essência, consiste numa espécie de auto-afecção, em sentir-se a si mesma. Por isso, ao ser pensada como simples qualidade de objeto, é destruída. A impressão só existe neste abraço consigo mesma, nesta auto-afecção impossível aos objetos, e a todo aparecer impassível deste mundo. Por isso, Henry afirma que no 'fora do mundo' nunca é possível nenhuma impressão. Se esta afirmação constitui uma verdade fundamental no pensamento do autor, então, restanos a pergunta pelo fundamento da impressão originária. Sua descoberta constitui a condição de possibilidade para pensar a virada fenomenológica, que nos conduz do aparecer do mundo à Fenomenologia da Vida. 3 A virada fenomenológica: do aparecer do mundo à Fenomenologia da Vida A virada ou inversão fenomenológica existe em função da superação de uma aporia. Qual seria, contudo, tal aporia? Para nosso filósofo, ela vem à tona diante da postura filosófica do 'pensar a vida'. Dito fenomenologicamente, quando o pensamento, a partir do ver deste mundo visível, tenta captar a vida invisível. Seguindo nosso discurso perguntamos: como esta inversão fenomenológica busca superar esta aporia? Segundo Michel Henry, a superação deste problema pode ser vislumbrada quando, ao aparecer ek-stático do mundo, acima exposto, se coloca como foco a reflexão sobre a auto-revelação da Vida absoluta. Diz o autor que: "ao fazer esta oposição, a Fenomenologia da Vida reconhece a auto-revelação da Vida absoluta como essência de toda revelação"62. Reconhecer algo como "essência" da revelação é colocá-lo como fundamento de tudo aquilo que se revela ou que pode ser revelado. Por isso, 61 62 Cf. Ibid, p.73. Cf. Ibid, p. 135. 47 consideramos o caráter revolucionário da Fenomenologia da Vida ao propor tal inversão. Contudo, resta-nos perguntar: o que de fato vem a ser tal inversão da fenomenologia no pensamento henryriano. Quais são seus matizes e exigências? O que de fato ela inverte? O mesmo Henry nos diz, no início de sua Fenomenologia da carne, que esta inversão fenomenológica outra coisa não é que o mesmo reconhecimento da primazia da Auto-revelação da Vida absoluta. Isto, em outras palavras, consiste em lançar o pensamento mesmo ou remetê-lo sempre ao processo de auto-doação da Vida absoluta fora do qual nada pode existir. Esta inversão fenomenológica, portanto, pode ser definida como o próprio movimento do pensamento que se humaniza, tornando-se humilde, reconhecendo e compreendendo que a auto-doação da Vida absoluta o precede. Isto quer ser a afirmação mais banal, por vezes esquecida de tanto trivial: simplesmente a nota filosófica mais essencial que afirma a primazia da vida em relação ao pensamento. Não se pensa primeiro para depois viver. O mais originário é a vida. Não é, de fato, como diz Henry, o pensamento que, partindo de si mesmo, corre em direção à vida, com a avidez de uma criança devoradora de doces, com intuito de decifrá-la e conhecê-la. Uma nota importante de nosso autor consiste na observação, muito clara, de que a mesma possibilidade de "pensar" a precedência da vida, somente é possível porque na ordem da realidade a Vida mesma já se revelou. A partir desta mesma afirmação é que Henry prosseguirá com a discussão sobre o método fenomenológico, a partir do qual é possível enfrentar a empreitada de pensar a vida. Para ele, portanto, todo método fenomenológico, que pensa a vida está irremediavelmente fundado sobre a doação prévia da Vida absoluta que, por sua vez, não depende em sua doação, do aparecer deste mundo. Consequentemente, existe independentemente da fenomenologia enquanto pensamento. A vida mesma se coloca, obviamente, como condição absoluta do pensar. De fato, o pensamento é antes vivo, o pensamento de um vivente que 'pode', mas não por si mesmo, pensar. Ao operar sua inversão fenomenológica, Henry se encontra com o problema de um esquecimento fundamental na ordem do próprio pensar. A Fenomenologia da Vida denuncia a usurpação, por parte da Fenomenologia do mundo, de um lugar que não lhe pertence. Ao colocar-se como fundamento último de todo conhecimento possível, de tudo aquilo que existe para nós enquanto fenômeno que pode ser vislumbrado e estudado, o pensamento opera uma falha decisiva. Esta se refere ao esquecimento desta precedência fenomenológica da vida em relação ao próprio ato de pensar. A recordação 48 desta precedência fenomenológica da vida é condição de possibilidade para o estudo de nossa tese central sobre a encarnação e os temas do seu entorno, tais como: autoafecção, impressividade, corpo e carne. Uma Fenomenologia do mundo, que desconsidera esta doação originária da vida, pensará estes temas de forma catastrófica. Como é possível pensar uma carne que só existe como imanência da própria Vida, a partir de um saber que ignora a precedência fenomenológica da Vida mesma? Não resta dúvidas que a virada fenomenológica supõe para nós uma oportunidade única de pensar tais temas a partir de novos pressupostos, tomando como referência a precedência da doação originária na Vida. Afirmar a virada fenomenológica supõe antever um giro epistemológico. Obviamente o modo de análise fenomenológica operado pelo ver do mundo, difere essencialmente daquele operado pela Fenomenologia da Vida. É importante recordar que o esquecimento pelo pensamento da precedência da Vida revela, no 'aparecer do mundo', aquilo que chamamos de carência ontológica radical. Recordemos, em forma de resumo, três características da Fenomenologia do mundo estritamente conectadas a este esquecimento da Vida. A primeira delas se refere à redução de tudo que aparece ao aparecer do mundo. Nesta perspectiva, está excluída toda possibilidade de verdade que não apareça neste horizonte ek-stático (de objetivação). A segunda diz respeito à apatia deste aparecer. No mundo não é possível nenhuma alegria, nenhuma tristeza, nenhum sentimento, sua estrutura fenomenológica é vazia de impressões, seu ver é vazio. Lembramos anteriormente o conceito de mundo exposto por Henry, mundo enquanto horizonte de visibilidade. A terceira característica nos revela que por trás de tal indiferença se oculta uma indigência radical, para a qual o aparecer do mundo não só é indiferente àquilo que revela, mas também incapaz de lhe conferir o ser (existência). Esta incapacidade (indigência ontológica na qual o aparecer do mundo lança o próprio mundo) explica sua indiferença para com tudo aquilo que faz aparecer. Esta indiferença é, por sua vez, uma impotência63. Uma observação simples, contudo, elucidativa nos é fornecida pelo mesmo Henry, quando afirma que por causa de suas propriedades sensíveis todos os corpos sensíveis que vislumbramos, definem-se sempre em relação à percepção sensível que temos deles. E aqui, encontramo-nos com o problema concreto da indigência ontológica e com a necessidade da virada fenomenológica que é, também, epistemológica. O 63 Cf. Ibid, pp. 59-61. 49 problema está em que nenhuma das qualidades sensíveis que admiramos ou percebemos tem seu fundamento no aparecer do mundo (intuições a priori de Kant, ou a consciência intencional de Husserl). O mundo, considerado no seu conteúdo concreto (hyle), deve este 'conteúdo sensível' à sensação, à Vida mesma. Nenhum sentimento é possível sem a Vida. Temos, portanto, segundo Henry, que a consideração do caráter sensível do mundo nos lança de uma Fenomenologia do mundo à Fenomenologia da Vida64. A propósito do esquecimento do pensamento, no que se refere à precedência fenomenológica da Vida, abordaremos no tópico seguinte o tema da carne impressiva e o esquecimento da subjetividade pela Fenomenologia do mundo e sua recordação no pathos da Vida. 3.1 A carne impressiva: O esquecimento da subjetividade e sua recordação no pathos da vida Ao pensar a questão das raízes da modernidade, Lima Vaz, propõe uma fenomenologia e uma axiologia da história intelectual do ocidente. Nestes termos, definem-se três grandes momentos ou eventos fundamentais, a saber: o primeiro diz respeito ao próprio nascimento da razão grega, a passagem do mito à filosofia, ou como já dissemos, a emergência da noção de Logos; o segundo diz respeito à assimilação da filosofia antiga pela teologia cristã, e o terceiro grande evento se refere ao advento da razão moderna65. Recordamos de propósito esta distinção histórico-metodológica para situar nossa questão neste último contexto. É nele que se insere propriamente dita a análise fenomenológica do mundo, no sentido científico tal qual se nos aparece hoje. O problema do esquecimento da subjetividade, como fundamento último do que nos aparece, é evocado aqui, metaforicamente, como o elo perdido. O passo de uma Fenomenologia do mundo a uma Fenomenologia da Vida, proposto por Henry, não pode prescindir da abordagem desta questão. Ela é quem prepara o terreno para a inversão fenomenológica operada pela filosofia henryriana. A fantástica descoberta do mundo da geometria, feita pela redução galileana, deixou de fora, como vimos, toda referência ao mundo sensível, subjetivo. A isto decidimos chamar, metaforicamente, de “elo perdido”. Assim o denominamos de acordo com aquela constatação segundo a qual todo conhecimento intelectual parte de 64 65 Cf. Ibid, p. 138. VAZ, Claudio de Lima. Raízes da modernidade. São Paulo: Loyola, 2012, p.11. 50 uma experiência sensível real e se refere, em último caso, como teoria explicativa, a ela. Neste sentido, o limite apontado à inteligibilidade proposta por Galileu foi ter ocultado a pergunta fundamental, a saber: como conhecemos? Em outras palavras, como chegamos à formação intelectual das figuras geométricas? A ciência galileana não questionou coisa alguma sobre aquele “modo do aparecer” que faz possível a inteligibilidade do inteligível. De fato, o que torna inteligível a intuição intelectual das figuras puras é sua referência concreta ao mundo da natureza. Como bem lembrou Husserl, não existe nenhum círculo ideal na natureza, este é deduzido a partir da percepção meio bruta da realidade dos corpos percebidos e sentidos no mundo66. Percebemos anteriormente que a visão cartesiana significa uma continuidade na ruptura com a tradição galileana. Isto porque Descartes recupera este elo perdido, colocando a ênfase nas intuições intelectuais, na própria subjetividade. A realidade só é realidade se a cogitatio que tenho dela também é real. Vimos também que o pensamento cartesiano desemboca no dualismo suposto pela assunção da teoria galileana. Esta dualidade entre res extensa e res cogitans levantará o problema complexo de como pode acontecer a passagem de uma à outra, como pode a alma tocar o corpo. A questão levantada por Descartes parece ser ignorada por muitos. Por ser uma questão aparentemente de ordem metafísica, não será foco de discussões, a não ser por alguns, como Maine de Biran. Com matiz diferente, podemos afirmar que Husserl recupera também este elo perdido, ao propor o corpo transcendental intencional como fundamento do conhecimento. Assim se diz que nosso corpo é transcendental porque é a condição de possibilidade de tudo aquilo que é sentido (do mundo sensível). Por isso, este corpo transcendental será definido pelo conjunto de nossos sentidos. Aqui aparece a questão fundamental que levará M. Henry a propor uma Fenomenologia da Vida. Esta se refere ao fato de que esta intencionalidade do corpo transcendental, sendo responsável pelo aparecer das coisas na nossa consciência, não se funda a si mesma, não pode ser responsável pela sua própria condição de possibilidade. Ela nos abre ao mundo, mas não funda sua própria manifestação. Dizemos então, com Henry, que ao constatar isto somos lançados da possibilidade transcendental do mundo sensível (que reside no corpo transcendental intencional que permite senti-lo) à possibilidade transcendental mesma do corpo intencional, que é a auto-revelação da intencionalidade no mundo da Vida. Passamos de uma possibilidade transcendental à outra. Aquilo que até agora 66 Cf. HENRY, Incarnation, p. 153. 51 pensávamos ser o mais originário, o corpo transcendental intencional de Husserl, parece se remeter a algo ainda mais originário, que veremos a seguir. O esquecimento da subjetividade, no sentido radical da imanência da Vida em nossa carne, lança-nos, irremediavelmente, de volta à questão da impressão. Ao afirmarmos que nossa carne é impressiva, fazemos referência a um 'Poder de sentir' cuja fonte vai para além da aparência deste mundo, de sua estrutura ek-stática. Perguntar pela origem desta condição de possibilidade de todo sentimento, é, no fundo, colocar-se a questão sobre a origem da impressão. Sobre a origem da impressão Henry afirma: Originário então, diferente de Husserl, designa aqui o que vem antes de toda intencionalidade. Aquilo que vem antes do mundo concebível, a-cósmico. O “antes” do originário não indica uma situação inicial, o começo de um processo. Mas se refere a uma condição permanente, interna, de possibilidade, uma essência. Assim, aquilo que vem antes do mundo, jamais virá a ele, e isso por uma razão essencial, a saber: nunca virá a ele porque não pode se mostrar nele, mas somente desaparecer nele. Assim, não se pode, como em Husserl, tomar a impressão originária como uma existência que cai por seu próprio peso, simples suposto não questionado em sua possibilidade interna 67. Percebemos, pela citação acima, que Henry fala da impressão originária no sentido radical, como aquilo que não pode ser justificado pela estrutura ek-stática do aparecer do mundo. Descarta então a acepção temporal de origem da impressão. Esta não pode ser pensada como sucessão de tempos, não se refere ao conteúdo que brota, sem ser explicado, constantemente, e que desliza para o passado em direção ao nada. Esta impressão originária, assim se designa porque se trata de uma condição de possibilidade, a que se refere ao próprio 'Poder de sentir'. Não obstante, este 'Poder de sentir, já tantas vezes mencionado, não possui sua origem nele mesmo. Isto implica afirmar que esta impressão Originária não possui, tampouco, sua origem nela mesma. E isto pode ser compreendido na filosofia de Henry através do argumento da possibilidade que possui uma impressão de se transformar em outra. De fato, segundo Henry, nenhuma impressão se funda a si mesma, caso contrário ela teria a capacidade de determinar o tipo de impressão que desejasse ser. Contudo, pelo contrário, todas nossas 67 Cf. Ibid, p. 82. 52 impressões se transformam constantemente, não no não ser do fluxo ek-stático, mas em outra e sempre nova impressão: a enfermidade em bem-estar, a fome em saciedade. A impressão não elegeu ser o que é: uma impressão que se experimenta em sua própria carne, em uma matéria impressiva que Husserl chamou com o termo grego de hylé. Então, qual é a origem da impressão?68 Ao perceber que, por mais originária que seja a impressão, ela não pode ser o fundamento de si mesma, passamos de uma fenomenologia da impressão, de uma fenomenologia da nossa carne impressiva a uma outra. A pergunta sobre a origem em fenomenologia, nos recorda Henry, nos remete à questão do ser. E como bem lembra o autor, ser, no âmbito fenomenológico, é o aparecer. Então a origem da impressão é o seu aparecer69. Contudo, onde a impressão originária aparece? Constatamos anteriormente, pelo estudo da redução galileana, da contra-redução cartesiana e da fenomenologia husserliana, que a impressão, no seu sentido originário, não pertence ao horizonte de fenomenalidade do mundo, independe da sua estrutura ek-stática. Por este motivo, Husserl, por exemplo, submete toda impressão ao olhar formatador da intencionalidade, renovando a noção hilemórfica na qual está inserido o pensamento ocidental. A impressão originária escapa a toda epistemologia que queira definir o ser a partir do pensamento, esquecendo a condição originária de que todo pensar é, antes, um 'Poder do vivente'. Afirma-se então que a impressão originária tem sua origem no aparecer da Vida e não no horizonte de visibilidade do mundo: A origem da impressão é seu aparecer: um aparecer tal que tudo o que se revela nele advém como momento sempre presente e real da carne impressiva da qual falamos. Não é o aparecer do mundo, mas o aparecer da Vida, que é a Vida em sua fenomenização originária.70 Passamos assim de uma fenomenologia da impressão para uma Fenomenologia da Vida. Não abordaremos aqui a questão do tempo, compreendido a partir da fenomenologia henryriana. Parece-nos apenas conveniente ressaltar que a noção de tempo nesta Fenomenologia inaugurada por Henry, difere essencialmente da ideia de tempo da 68 Cf. Ibid, p.83. Cf. Ibid, p.84. 70 Cf. Idem. 69 53 fenomenologia de Husserl (consciência interna do tempo: como deslizamento da realidade para a irrealidade do passado irrecuperável), ou o tempo na filosofia heideggeriana, como 'praias da exterioridade, como a condição de possibilidade de todo aparecer. A Fenomenologia da Vida fala de nossa impressão a partir de um presente sempre real de uma carne impressiva. Todo 'sentir' se insere neste horizonte da vida que nunca é passado, mas sempre presente, sob pena de, quando passado, deixar de ser vida. A impressividade de nossa carne pertence, portanto, ao aparecer da Vida na sua autorevelação originária, na sua autoafecção constante, que nunca cessa, que é sempre presente. A vida é aquela que sempre se sente, tendo a autoafecção, como aquilo que a define, como sua própria essência71. 3.2 A remissão da Fenomenologia da Carne (impressiva) à Fenomenologia da Vida Pensar a remissão da Fenomenologia da Carne impressiva à Fenomenologia da Vida é, no fundo, voltar à tese henryriana que provoca nossa investigação: encarnação. A análise fenomenológica da carne impressiva não é um capricho filosófico de Henry, mas condição de possibilidade para o desenvolvimento posterior do discurso sobre a salvação no sentido cristão, inserido no tema da encarnação. Assim sendo, a Fenomenologia da carne impressiva, metodologicamente, encontra-se, estrategicamente, situada antes da Fenomenologia da encarnação. A inversão fenomenológica proposta por M. Henry é ela mesma uma denúncia do esquecimento da Vida e de tudo aquilo que ela engendra. Esta inversão consiste precisamente em reconhecer a primazia da autorrevelação da Vida absoluta, situando o pensamento mesmo dentro do processo de auto-doação da Vida absoluta, fora do qual 71 Cf. FURTADO, José Luiz. Do ser à vida: fundamentos fenomenológicos da filosofia da vida e da práxis em Michel Henry. Belo Horizonte: UFMG, 1996, 711p. De acordo com o título deste tópico, falamos da nossa carne impressiva, da origem mesma da impressão, a partir do esquecimento da subjetividade, entendendo subjetividade em relação estreita com o 'Poder de sentir' ou 'Poder da impressão'. Falta, contudo, a explicitação da parte final, que se refere à recordação desta subjetividade no patos da vida. Este tema não será desenvolvido em detalhes aqui. Contudo, ele permanece fazendo parte desta secção, apenas como sinal que aponta para o horizonte necessário da nossa reflexão. Sendo esta teológica, não pode deixar de ser antropológica e, por isso mesmo, ética. Faz-se necessário lembrar a intuição presente na Fenomenologia da Vida de Henry. Intuição esta que afirma que a recordação da vida, de sua imanência radical em nossa carne, a recordação da própria subjetividade como fundamento daquilo que pensamos e sentimos, não pode ocorrer longe daquilo que se denomina práxis. Práxis entendida não como estratégia de transformação da realidade, mas como atualização e percepção de cada 'Poder' que habita nossa carne. Trata-se, na verdade, quando falamos da percepção, da recordação fundamental da origem destes 'Poderes' que chamamos inapropriadamente de nossos. Sobre isto sugerimos a leitura da tese doutoral supra citada. Aprofundaremos no tópico seguinte a remissão desta fenomenologia da carne impressiva à Fenomenologia do Vida. 54 nada pode existir. Quando se afirma que o pensamento não conhece a Vida ao pensá-la, ocorre então uma inversão fenomenológica que não é mais que o movimento do pensamento que compreende que a auto-doação da Vida absoluta o precede. Assim, se estabelece uma primazia da vida em relação ao pensamento (não se pensa primeiro para depois viver). De fato, não é o pensamento que, partindo de si mesmo, vai em direção à Vida para descobri-la e conhecê-la. Todo pensamento só é possível enquanto vida previamente dada72. A Fenomenologia da Vida reconhece os dois caminhos ou modos do aparecer: o primeiro deles diz respeito à Fenomenologia do mundo, a partir da qual o ver não pode se referir a outra coisa que não seja aquilo que pode ser visto pela estrutura ek-stática. Trata-se do fenômeno tal como foi compreendido pela filosofia e as concepções epistemológicas que fundam a ciência moderna. Neste aparecer do mundo os corpos são objetivos. As categorias de espaço-tempo fundam a condição de possibilidade para este “ver” fenomenológico. Este aparecer do mundo desemboca na, já citada, indigência ontológica, que consiste em sua incapacidade de dar por si mesmo o conteúdo do mundo. Este aparecer só manifesta aquilo que previamente já foi dado, e dado por quem? Responderá M. Henry, pela Vida. Desta constatação nasce a proposta de uma fenomenologia da Vida, que anuncia uma realidade fundamental para além de toda realidade objetiva apreendida pela estrutura ek-stática. Se a Fenomenologia do mundo não é suficiente para a compreensão da realidade, uma nova inteligibilidade surge. A Fenomenologia da Vida, portanto, propõe uma nova epistemologia, fundada sobre a Inteligibilidade primordial. Assim, mesmo a análise fenomenológica proposta a partir do corpo intencional transcendental de Husserl permanece relegada, segundo Henry, à esfera da Fenomenologia do mundo. Isto porque, apesar de colocar a pergunta sobre a relação entre o corpo sentido e o corpo transcendental, descortinando a questão da intencionalidade que nos abre ao mundo, esta análise ainda continua refém da noção tradicional de fenômeno. Este corpo transcendental intencional de Husserl participa também da indigência ontológica do aparecer do mundo, pois uma vez que nos abre a 72 Cf. HENRY, Incarnation, pp.135-139. A inversão fenomenológica , segundo Henry, assim se expressa: não é o pensamento que nos dá acesso à vida, é a vida que permite ao pensamento ter acesso a si mesmo, experimentar-se a si mesmo e, ser em cada caso o que é: a auto-revelação de uma cogitatio. Porque é em cada caso e necessariamente uma cogitatio, o pensamento designou indistintamente, sob um mesmo conceito falaz, dois apareceres tão diferentes como o ver intencional e aquele que permite a este ver advir a si em ausência de todo ver: sua auto-doação patética na Vida absoluta. 55 ele, tudo que permite sentir se situa no mundo, inevitavelmente, como objeto sentido. E ele mesmo enquanto corpo que nos abre ao mundo não pode fundar aquilo que ele é para nós, a saber: condição de possibilidade de abertura e do “ver” fenomenológico. Para pensar o tema da Encarnação na Fenomenologia da Vida, Henry parte da análise fenomenológica da condição de possibilidade do corpo transcendental, esboçado pela fenomenologia de Husserl. Isto diz respeito à própria análise do corpo sensível, a partir da qual se dará a remissão do corpo sentido ao corpo "que sente", denominado também corpo transcendental. Em sua Fenomenologia da carne, Henry colocará em oposição ao 'corpo opaco' do 'aparecer puro' do mundo o próprio 'corpo sensível'. Afirma, com propriedade, que este não deve sua existência ao aparecer do mundo, isto porque no 'corpo opaco' do aparecer do mundo não é possível nenhuma impressão, e, portanto, nenhuma sensibilidade ou sentimento. Denuncia-se neste contexto, todo realismo ingênuo73 que tende a classificar a impressão e o 'sentimento' como uma qualidade dos corpos 'mundanos'. No fundo, esta foi a operação realizada, como já dissemos, pela fenomenologia de Husserl, quando desloca o 'aparecer' mesmo das impressões para a intencionalidade. Ao falar de uma consciência impressiva, Husserl esvazia a fenomenicidade mesma da impressão, tornando-a apenas qualidade interna dos corpos no mundo. Assim, por exemplo, o vermelho, a dor, o sorriso, tudo pode ser pensado como simples qualidades dos corpos. Fica, portanto, estabelecido que, segundo a Fenomenologia da Vida, a condição sensível e afetiva dos corpos não provém da estrutura ek-stática do mundo, nada tem a ver com seu horizonte de visibilidade74. Nesta dinâmica de oposição entre 'corpo opaco' (horizonte fenomênico do mundo) ao 'corpo sensível' (alheio à estrutura do mundo), Henry procederá à sua análise da carne impressiva, explicitando o seguinte quiasma: 'todo 'corpo sentido' deve pressupor um 'corpo que o sente' e vice versa. Existe, pois então, um ´ Poder de sentir' . A atualização deste ' Poder' leva à passagem de um 'corpo mundano', considerado como objeto, para um 'corpo transcendental', condição de possibilidade do próprio 'corpo sentido'. Henry dirá: "Este corpo transcendental é dotado dos 'poderes' fundamentais do sentir, o que faz dele um corpo sujeito, subjetivo e a priori, um corpo originário e 73 Cf. LONERGAN. Bernard J. F. The way to Nicea: the dialectical development of trinitarian Theology. Philadelphia: The Westminster, 1964, 143p. Nesta obra, ao discutir a formação do dogma, o autor denuncia e esclarece, simultaneamente, o perigo do realismo ingênuo no discurso filosófico e teológico. Para a compreensão do pensamento henryriano também necessitamos nos situar a partir desta dinâmica da diferenciação da consciência, proposta por Lonergan. Somente a partir desta dinâmica poderemos compreender sua empreitada intelectual que propõe uma passagem radical da fenomenologia do mundo à fenomenologia da Vida. 74 Cf. HENRY, Incarnation, pp. 156-171. 56 fundador"75. Ao pensar a corporeidade, via fenomenologia do mundo, a filosofia se depara com as duas grandes questões já antes delineadas: a primeira se refere justamente ao caráter sensível dos corpos, que não pode ser explicado pela estrutura de objetivação do aparecer do mundo. Por outro lado, ao pensar o 'corpo que sente', corpo transcendental como princípio de toda experiência do 'sentir', constata-se que este 'corpo' está dotado de ' Poderes' fundamentais imediatamente conectados aos sentidos tradicionais. O problema que se descortina neste horizonte se refere ao fato de que a estrutura de cada um dos nossos sentidos somente é compreendida a partir da estrutura ek-stática. Os sentidos são intencionalidades que se dirigem sempre para um 'afora de si', pressupõem, portanto, sempre um distanciar-se. Segundo Henry, todos os sentidos nos lançam para fora, tudo que sentimos se encontra fora de nós. Este corpo transcendental, portanto, enquanto subjetividade, não pode ser definido como outra coisa que não seja o conjunto das nossas intencionalidades, na linguagem henryriana: 'o fora de si que permite ver na luz desse fora de si que é o mundo'. O problema é que se entendemos o corpo transcendental a partir dos sentidos tradicionais, e estes, outra coisa não podem ser que intencionalidades, então, não podemos explicá-lo a partir da Fenomenologia do mundo fundamentada no próprio ver intencional. Segundo Henry, constitui um absurdo "explicar uma condição de possibilidade (corpo transcendental) a partir daquilo que ela mesma torna possível (intencionalidades)76". A questão precedente nos leva a perguntar com o autor: onde então estará a essência da corporeidade originária imanente? Vimos que, segundo Henry, nosso corpo é transcendental porque se coloca como condição de possibilidade de tudo aquilo que 'podemos sentir'. Por isso, este corpo transcendental é definido como o conjunto de nossos sentidos, sendo cada um deles uma intencionalidade. Contudo, a intencionalidade deste corpo transcendental não pode ser explicada, tampouco, pela estrutura do mundo, à qual ela mesma torna possível. Como bem diz Henry, é um contrassenso que uma condição de possibilidade seja justificada a partir daquilo que ela mesma torna possível, cairíamos no cúmulo da tautologia. Então, a intencionalidade constitutiva do corpo transcendental não pode fundar por si mesma sua própria condição de possibilidade ou existência. Ela, de fato, nos abre ao mundo, aos fenômenos, mas não se funda enquanto fenômeno, não coloca por si mesma o seu 'aparecer'. É aqui, nesta esfera, que teremos, como designa nosso autor, a passagem de uma possibilidade 75 76 Idem. Idem. Parênteses nosso. 57 transcendental a outra: somos lançados da possibilidade transcendental do mundo sensível (que reside no corpo transcendental intencional que permite senti-lo) à possibilidade transcendental do 'corpo intencional mesmo' (que é a auto-revelação da intencionalidade na Vida)77. Declara Henry que o 'corpo transcendental', considerado pela fenomenologia do mundo como o mais originário, repousa, todavia, sobre uma corporeidade ainda mais originária. Esta é transcendental, no sentido radical da palavra, no seu sentido último, segundo nosso autor. Nela não há intencionalidade, nenhum movimento para o 'afora'. A essência desta corporeidade originária imanente é a própria Vida na sua Autorevelação. Passamos, portanto, de uma Fenomenologia do mundo, via análise da Fenomenologia da carne impressiva, na sua 'possibilidade' de sentir, para uma Fenomenologia da Vida. Para Michel Henry, as análises do corpo e da realidade, realizadas pela fenomenologia contemporânea, podem ser classificadas a partir da fenomenologia do mundo. Para o autor, o Corpo Transcendental da fenomenologia contemporânea, definido como intencionalidade, que se coloca como condição de possibilidade do 'corpo sentido', pertence claramente à estrutura de visibilidade do mundo. Afirmará Henry: "Este novo corpo transcendental possui a mesma condição do corpo antigo que é 'sentido', a tal ponto que pode se deslocar para a antiga posição"78. Esta afirmação se refere à possibilidade inerente ao nosso corpo de ser ao mesmo tempo o que sente e o que pode ser sentido. Assim, pode-se voltar uma e outra vez à antiga posição de ser sentido (como objeto apreendido pela intencionalidade). Aproveitamos este tema para assinalar rapidamente a breve crítica dirigida por Henry, em seu livro Encarnação, a Merleau-Ponty. Pensando na dualidade insuperável dos dois corpos, como propriedade própria dos corpos vivos, neste caso o corpo humano (o que sente e o que é sentido), Henry defenderá a estrutura opositiva entre o que constitui e o que é constituído. Para ele, ao desqualificar esta estrutura opositiva, Merleau-Ponty "estende de maneira não legítima, ao mundo inteiro aquilo que é próprio do nosso corpo e que não pode ocorrer em outro lugar que nele, a saber: a relação tocante tocado"79. Somente nosso corpo pode tocar e ser tocado. A postura de Merleau-Ponty é, portanto, uma postura de absolutização do sensível. Com tal atitude, diz o autor : 77 Ibid, p.159. Idem 79 Cf.Ibid, p.163-166. 78 58 esmaga-se o 'poder' transcendental de constituição contra o constituído, que é reduzido e confundido com ele. Isto ocorre por não pensar o estatuto fenomenológico do poder de constituição. Absorvido pelo constituído, a teoria da constituição cede seu lugar a uma descrição literária dos fenômenos que beira ao realismo ingênuo.80 Portanto, para Henry, a extensão ao universo do quiasma tocante-tocado, não pode ser, de forma alguma possível dentro da perspectiva da Fenomenologia da Vida. Assim, quando o corpo é pensado a partir da Fenomenologia da Vida e não mais do mundo, ocorre uma inversão da própria concepção de corpo. Ele deixa seu estatuto de objeto para ser encarado como princípio de toda experiência, possuindo, então, um poder de doação. Pensando a Vida como aquela que revela o corpo, obrigatoriamente ocorre uma mudança radical, pois a ek-stasis não se aplica a ela, na Vida não há intencionalidade. Assim, o corpo pensado na Fenomenologia da Vida se refere a uma corporeidade originária, despojada do caráter mundano. Portanto, se é desprovida do caráter fenomenológico do mundo, é , como se deve prever, dotada de todas as propriedades fenomenológicas da Vida. Estas propriedades, que o corpo originário toma da Vida, provêm daquilo que ela revela. Em que consiste esta revelação da Vida? A revelação da Vida nada mais é que sua autorevelação. Esta é, por sua vez, o originário e o puro experimentar-se a si mesmo, sendo que o que experimenta e o experimentado são um só. Isto ocorre porque o modo fenomenológico da revelação da Vida consiste em um Phatos cuja matéria fenomenológica é a afetividade e a impressividade pura. Em outras palavras, o modo fenomenológico pelo qual a Vida se revela é a autoafecção radicalmente imanente que é nossa carne81. A indigência ontológica não existe na Fenomenologia da Vida, porque ao revelar a carne ela não se limita a revelá-la como na estrutura do mundo na qual o que revela não é o revelado. Assim, a Vida revela a carne ao engendrá-la, como aquilo que nasce com ela, da mesma substância dela. Esta carne revelada é uma carne afetiva e impressiva cujas características não provêm de outra coisa que não seja a impressividade e a afetividade da Vida mesma que a revela. Desta forma temos a seguinte constatação: o que revela e o revelado são um só. Portanto, na Fenomenologia 80 81 Idem. Cf. Ibid, pp. 172-179. 59 da Vida a carne é mais que mera realidade revelada pela Vida. Surpreendentemente, estabelece-se que a carne é a forma que tem a Vida de se fazer Vida. Então, a interioridade reciprocamente originária entre carne e Vida nos atinge porque, na Vida absoluta, esta carne constitui o modo fenomenológico segundo o qual a Vida vem eternamente a si no Arqui-patos da sua Arqui-carne. A partir de tudo que dissemos, insistimos em explicitar um pouco mais em que consiste a guinada epistemológica e como ela se relaciona com o que chamamos Inteligibilidade primordial. Para isso, deve-se reconhecer que a virada fenomenológica, a qual consiste na passagem de uma Fenomenologia do mundo a uma Fenomenologia da Vida, propor-nos-á um novo paradigma. Este é concebido por Henry como Arquiinteligibilidade, ou, como sugerimos, uma Inteligibilidade primordial. De fato, como se nota, a Fenomenologia da Vida, mais que ruptura, é uma descoberta fascinante de outra forma de “ver” radicalmente diferente do “aparecer” do mundo. Se a autorevelação da Vida é o que há de mais originário, a análise fenomenológica que parte dela deve fazer surgir uma nova concepção de mundo, de corpo e do próprio pensamento, diríamos, ousadamente, uma epistemologia primordial. Uma indagação pertinente, e mesmo necessária, deve ser formulada neste instante. Esta deve se referir ao nexo existente entre Fenomenologia da Vida (Inteligibilidade primordial) e a própria tradição cristã. Trata-se do possível impacto que a Fenomenologia da Vida pode exercer sobre o terreno teológico. Neste sentido, é surpreendente notar que o mesmo Henry parece não só se referir ao cristianismo, mas o toma como referência necessária para pensar sua Fenomenologia da Vida. O autor não tem receio de identificar a Vida com o Deus anunciado pelos cristãos82. A própria ideia de Inteligibilidade primordial é lançada pelo autor em referência direta ao prólogo do Evangelho de João. A partir de sua análise fenomenológica da vida, ao encontrá-la como auto-afecção que se revela revelando-se sempre numa carne, o autor estreita ainda mais o laço entre seu pensamento e a própria tradição cristã. Propor-nos-á, portanto, uma fenomenologia não só da carne, mas da encarnação, visando explicitar a relação primordial entre a Vida absoluta e sua vinda a nós83. O tema é, pois, inegavelmente teológico. 82 Idem Idem. O autor define que a fenomenologia da encarnação trata da relação da Archi-carne com a carne inscrita no prólogo joanino: “a vida se fez carne”. 83 60 Parece-nos, portanto, conveniente afirmar que o pensamento henryriano, no que se refere à sua inversão fenomenológica e à sua guinada epistemológica, traz uma rica possibilidade de fecundação do terreno teológico em suas várias vertentes. A Fenomenologia da Vida pode trazer grandes contribuições para o pensamento teológico. Seu alcance pode tocar tanto o nível de uma reflexão mais sistemático-fundamental (Antropologia e Cristologia) quanto a elaboração de um pensar ético-pastoral, e por que não dizer, também pode lançar luzes ao caminho espiritual. Aliás, se a Vida precede o pensamento, e a Vida é Deus, e Deus é unidade, como bem nos lembra Henry, não pode haver cisão epistemológica na nossa forma de conhecer a vida. Por isso, é necessário reafirmar que a análise ontológica de Galileu não deve existir separada da análise fenomenológica de Descartes. A via metodológica e a constatação das duas formas de aparecer, ressaltadas pelo autor, não querem desembocar no divórcio entre vida e pensamento, a proposta de Henry não é um neo-dualismo 84. A Fenomenologia da Vida, autenticamente referida à tradição cristã, traz, portanto, consequências para o fazer teológico. Aqui arriscamos apontar somente alguns horizontes para uma futura reflexão. O primeiro deles parte daquilo que é o cerne da reflexão henryriana, a saber: a autorevelação da Vida. Se a forma de revelação da Vida é em si mesma uma autorrevelação cuja matéria fenomenológica é a autoafecção pura, então, nosso Deus, identificado com a Vida por Henry, é também autoafecção pura. Isto nos faz retomar toda a reflexão cristológica e antropológica, para repensar o nexo entre Teologia e Antropologia. Em outras palavras, coloca-se em evidência a relação estreita entre a Vida de Deus ou o Deus que é Vida e a vida do homem. A partir deste mesmo dado, a Vida que se autorrevela a si mesma em uma carne, podemos atualizar a própria teologia da revelação escrita na Dei Verbum. O campo se abre ainda mais se considerarmos a fantástica categoria de transcendência anunciada por Henry. Segundo ele, transcendência, no sentido radical, segundo o próprio cristianismo, só pode significar a imanência da Vida em cada vivente85. A partir deste fantástico condensado de significado, que nos abre a Fenomenologia da Vida, podemos, por último, propor uma nova reflexão sobre o corpo no seu sentido teológico. Esta abordagem nos aponta para uma nova Teologia do Corpo, pensado não mais a partir dos pressupostos do corpo transcendental intencional, mas a partir da corporeidade originária, que tem sua raiz na Vida mesma enquanto Deus. Certamente, isto implica um mergulho profundo na 84 85 Cf. Ibid, p. 216. Henry fala de dois modos de aparecer, mas de um só processo. Idem. 61 abordagem metodológica da Fenomenologia da Vida, coisa que ainda não nos sentimos capazes de realizar. Por enquanto, parece-nos suficiente apontar o vasto horizonte do pensamento henryriano nos seus possíveis ponto de contato com a tradição cristã, o que nos pode levar a uma nova perspectiva do fazer teológico. 3.3 A Verdade segundo o Cristianismo A Verdade do cristianismo está estritamente conectada ao tema da Vida, e, como tal, difere totalmente da verdade do mundo. Desta constatação nasce a exigência henryriana de propor uma Fenomenologia da Vida para pensar com acuidade o tema cerne de nossa investigação: a vida dos seres encarnados. Sobre tal tema Henry declara: O cristianismo não dispõe por si mesmo dos conceitos adequados à sua verdade e isso não porque possui uma indigência intelectual, mas por outra razão, a saber: é que a verdade do cristianismo não pertence à ordem do pensamento. O gênio dos padres da Igreja foi captar a verdade do cristianismo em sua afirmação mais desconcertante: a encarnação, que é não uma afirmação do pensamento, mas daquilo que escapa a todo pensamento: um corpo e uma carne.86 Esta afirmação desconcertante do 'corpo de carne' possui a novidade mais fundamental e chocante anunciada pela Fenomenologia da Vida. Ela se refere àquela Inteligibilidade Primordial já antes citada e que posteriormente será retomada em nossa reflexão. Não obstante, se o autor afirma que o cristianismo não possui conceitos adequados para dizer sua verdade, cabe-nos perguntar a partir de que lugar tem falado até hoje todos os teólogos? A partir de quais pressupostos o discurso cristão tem se firmado? A interrogação nos lança em direção à crítica heideggeriana da ontoteologia. Esta perspectiva é retomada por Henry ao pensar a relação entre fenomenologia e ontologia. O vínculo entre estas duas disciplinas é pensado, na Fenomenologia da Vida, como a possibilidade de uma reflexão profunda sobre a própria vida, que tem sido esquecida por ser uma "noção vaga e de muitos significados87", como afirma o próprio autor. Assim, Henry dirá, como forma de provocação, que "viver significa ser". 86 87 Cf. Ibid, p. 16. Cf. HENRY, Michel. Fenomenología de la vida. Buenos Aires: Prometeo libros, 2010, p.19. 62 Contudo, esta afirmação, em seguida, é especificada por uma crítica radical sobre a filosofia (ontologia) na tradição do pensamento ocidental. Sigamos nosso autor: Viver significa ser. Mas o ser deve ser tal, deve estar compreendido de tal forma que signifique a mesma coisa que a vida. Contudo, o que caracteriza a filosofia ocidental, desde as origens gregas até Heidegger, é que pressupõe em geral um conceito de ser que, longe de acolher o conceito de vida, o exclui de um modo insuperável. Por isso, o conceito de vida continua suspeito diante dos olhos da filosofia; esta suspeita não ocorre porque a vida é algo vago e duvidoso. Ela é a mais certa de todas as coisas. Mas esta suspeita existe porque em sua essência mais própria a vida se encontra constituída em uma interioridade tão radical que, em verdade, apenas permite ser pensada. Pelo contrário, o que define o ser ocidental é a exterioridade. 88 Este é pois o choque entre a ontologia ou filosofia, concebida como Fenomenologia do mundo, e a Vida. Enquanto a primeira identifica ser com exterioridade, ou pensa o ser a partir desta objetivação, esquece a realidade da vida, ou simplesmente não percebe que a vida em si mesma, ou seja, essencialmente, está constituída de uma interioridade radical, quer dizer, que nunca poderá deixar de ser interioridade sob pena de deixar de ser vida. Por isso, a Fenomenologia da Vida é irredutível a uma Fenomenologia do mundo, e por isso mesmo se diz que na exterioridade do mundo nunca é possível encontrar nenhuma vida, pois esta é, como dissemos, radicalmente interioridade. Ainda sobre isso, em seu discurso sobre a Verdade do cristianismo, nosso fenomenólogo afirma que o conceito de "ser", tal como o percebemos no pensamento ocidental, referese exclusivamente à verdade do mundo. Por este motivo, não designa nada mais que sua aparição e se encontra impossibilitado de se referir à Verdade do Cristianismo, ou seja, a Deus mesmo 89. Neste sentido, como em Heidegger, Deus não se identifica com o ser da filosofia ocidental. A fenomenologia de Henry não é uma volta à metafísica tradicional. Ela expurga a confusão entre Vida e ser, sempre que esta for compreendida a partir da 88 89 Cf. Ibid, p. 20. Cf. HENRY, C'est moi la vérité, p. 41. 63 ontologia, que se fundamenta na perspectiva de uma Fenomenologia do mundo. Por isso, parece-nos que o sugestivo título da tese doutoral: "Do ser à vida", aplicado à reflexão da práxis no âmbito puramente filosófico, aplica-se também, e com maior razão a partir das últimas produções henryrianas, ao âmbito teológico. A reflexão teológica ainda precisa completar sua passagem do "ser" à Vida. Tal processo pressupõe a virada fenomenológica e epistemológica de uma Fenomenologia do Mundo à uma Fenomenologia da Vida. Não é novidade afirmar que a Fenomenologia da Vida é um dos frutos do pensamento contemporâneo que brota da crítica ao conceito de ser como exterioridade. Neste sentido, Henry se insere na tradição fenomenológica de Husserl e Heidegger. Retomamos, brevemente, a discussão sobre a análise das estruturas do aparecer do mundo. Tudo o que foi dito sobre o aparecer ek-stático, a noção de tempo e da própria consciência intencional como objetivização. Como dissemos, consciência de algo é representar este algo, objetivar este algo, isto é exteriorização. A consciência neste sentido é sempre, como diz Husserl, 'consciência de'. A consciência sempre se dirige para 'fora de si', a consciência intencional é sempre um lançar-se fora, é um 'ver' que sempre dirige seu olhar para o objeto e somente existe enquanto este movimento intencional constante, sempre se dirigindo para um 'afora'. Dito de outra forma por Henry: [...] a consciência é esta representação. O sujeito não é então diferente do objeto, mas designa a condição fenomenal do objeto, sua representação, sua objetividade mesma. Assim, a subjetividade do sujeito no Ocidente não é mais que a objetividade do objeto.90 Esta afirmação, certamente, soará como 'címbalo estridente' a muitos ouvidos. Contudo, percebe-se aqui a denúncia henryriana da perda da subjetividade enquanto ipseidade radical. A crítica de Henry a Merleau-Ponty, como dissemos, refere-se justamente à volta à indeterminação da vida, quando se estende ao mundo aquilo que é próprio do 'corpo de carne vivente', sua interioridade enquanto ipseidade radical, sua identidade consigo mesmo, irredutível a toda exterioridade. Por isso, o autor afirmará que, na perspectiva da Fenomenologia da Vida, passar do 'eu sinto' ao 'se sente' quer dizer 90 HENRY, Fenomenología de la vida, p. 21. 64 esvaziar a vida de si mesma, fazer dela o que a filosofia ocidental sempre fez, identificála com o ser enquanto exterioridade, e assim, como impessoalidade. Ainda na esteira da crítica à Verdade do mundo, o autor afirma que o processo pelo qual a subjetividade do sujeito se revela finalmente idêntica à exterioridade, inicia com o abandono, por parte de Descartes, de uma intuição valiosa: Em Descartes, a apreensão da subjetividade como experiência vivida, e portanto, como momento da vida sob o título de 'pensamento', apreensão que se evidencia na afirmação decisiva segundo a qual 'sentir é também pensar', não preocupa por muito tempo o filósofo. Descartes não se interroga sobre a essência da ipseidade nem sobre a estrutura interior da subjetividade, enquanto ela é idêntica à vida [...] na terceira meditação desloca o interesse da investigação para a relação problemática da consciência com seu correlato, do cogito ao cogitatum [...] a problemática se desloca para este mundo do pensado, e ao movimento em direção a este mundo, da consciência reduzida a este 'movimento em direção a', ou seja, reduzida à abertura da exterioridade.91 Ao citar este deslocamento do cogito ao cogitatum, do pensamento ao que é pensado, poderíamos dizer, da Vida ao que é vivido, o que o autor denuncia neste parágrafo é o abandono, por Descartes, de uma intuição valiosa e fundamental, a saber: aquela que afirma a identidade do cogito com a Vida ao dizer que 'sentir também é pensar' (Meditação segunda e princípios da filosofia, §9)92. Ao centrar sua atenção na relação problemática entre o pensamento e a realidade, ou entre a ideia de coisa e a realidade da coisa, Descartes abandona esta intuição primeira de grande utilidade para refundar a filosofia ocidental a partir da Vida e sua interioridade. Não investigando a estrutura interior da subjetividade, como diz Henry, Descartes coloca as bases para que a subjetividade seja interpretada como esta consciência intencional que só existe enquanto exterioridade, ou seja enquanto consciência de algo, enquanto movimento que se dirige sempre para um fora de si. 91 92 Ibid, p.22. Idem. Qualquer dúvida confira a citação do texto cartesiano no texto do próprio autor. 65 A Fenomenologia henryriana, não somente denuncia este esquecimento da Vida, mas anuncia, a partir de Descartes, esta revelação extraordinária da Vida enquanto interioridade. E apesar de estranha ao nosso mundo conceitual, a afirmação que identifica sentir e pensar, aponta para a vida enquanto interioridade radical na qual é impossível toda e qualquer exteriorização, toda e qualquer cisão entre vida e pensamento, na qual o pensamento somente pode ser compreendido na imanência radical da Vida impressiva a partir do 'corpo encarnado'. Ali, na Vida, todo pensamento brota enquanto sentimento de uma auto-afecção originária. Por isso, pensar é sentir. O autor afirma que a seguinte fase do processo pelo qual a subjetividade é transformada em exterioridade acontece na fenomenologia husserliana: A seguinte fase se refere a Husserl. Na grandiosa reafirmação husserliana do projeto cartesiano, assistimos a um idêntico deslocamento de interesse que vai da matéria da consciência (o que Husserl chamou de Hyle) à intencionalidade, ou seja, à triunfal irrupção da exterioridade.93 Não aprofundaremos aqui esta discussão, apenas situamos que a citação anterior se refere à toda temática já antes trabalhada sobre a impressividade e a redução de todo aparecer ao 'aparecer do mundo', tal como à volta do binômio tradicional matéria-forma. Completando sua discussão sobre o tema, Henry voltará a Kant para afirmar: Em Kant esse pensamento mostra seus limites mais evidentes. A incapacidade da problemática kantiana no que se refere à apreensão da vida, apareceu na famosa crítica do paralogismo da psicologia racional, que priva de toda legitimidade ao conceito de alma que é idêntico ao da vida. A crítica pretende subtrair ao ser real do Eu ao mesmo Eu com o pretexto de que somente conhecemos fenômenos e de que nosso Eu é um deles. Mas a reivindicação da fenomenicidade, onde Kant fundamenta sua argumentação, continua sendo tributária do conceito ocidental de ser. Ser quer dizer para Kant ser dado à intuição e representação, ou seja, projeção extática de um horizonte de visibilidade. O fato de que o ser real do Eu não possa se exibir 93 Ibid, p. 23. 66 em uma intuição mostra precisamente que é irrepresentável, que a essência da ipseidade é irredutível à exterioridade, que as pressuposições da ontologia kantiana permanecem fechadas ao ser da vida.94 Recordamos que todo nosso discurso filosófico se coloca em função de uma reflexão genuinamente teológica. Por isso, toda esta exposição deve nos levar à uma indagação teológica fundamental. Esta diz respeito à possibilidade da 'Revelação' propriamente dita. Portanto, com nosso autor perguntamos: se a 'Revelação de Deus' não somente não depende, como também se faz impossível que se dê a partir da estrutura de visibilidade (revelação - fenomenologia) do mundo, como então podemos, nós que vivemos e aprendemos a partir da Fenomenologia do mundo, ter acesso a ela? Na tentativa de lançar luzes sob este interrogante nosso autor afirmará que, excluída a possibilidade de se chegar à Verdade do cristianismo a partir da Verdade do mundo, resta-nos apenas pensar que a revelação desta Verdade do cristianismo, sendo ela mesma Deus, somente pode se dar: "ali onde se produz a auto-revelação mesma e do modo em que ela o faz. Ali onde Deus vem originalmente a si, na fenomenalização de sua fenomenicidade, como a auto-fenomenalização desta fenomenicidade"95. E ao perguntarmos pelo como é possível que isso aconteça e onde isto mesmo pode acontecer, temos a declaração que surpreende justamente por parecer banal: Na vida, como sua essência. A vida não é nada mais que o que se autorrevela, não algo que teria a propriedade de autorrevelarse, mas o fato mesmo de se autorrevelar, a autorrevelação enquanto tal. Sempre que se produz algo como uma autorrevelação, há vida. Sempre que existe vida se produz esta autorrevelação. Então, se a revelação de Deus é uma autorrevelação que não depende da verdade do mundo, e se perguntamos onde acontece tal revelação, a resposta só pode ser: na Vida e só nela. Aqui se dá a primeira equação fundamental do cristianismo: Deus é Vida, a essência da Vida é Deus. 96 94 Ibid, p.24. Cf. HENRY, C'est moi la vérité, p.39 96 Idem. 95 67 Eis aqui a estrita conexão entre Fenomenologia da Vida e Cristianismo. A esta temática, no auge da maturidade intelectual, Henry dedicou seus últimos anos de reflexão fenomenológica. Com modéstia, nossa dissertação pretende avançar nesta pesquisa, afim de elucidar os fundamentos Teológicos deste pensamento tão original e fascinante denominado Fenomenologia da Vida. Colocados os pressupostos filosóficos, passamos ao momento seguinte de nossa empreitada, a saber: o aprofundamento da reflexão entre Fenomenologia da Vida e Cristianismo a partir da categoria fenomenológica fundamental da 'Revelação'. 68 CAPÍTULO 2: FENOMENOLOGIA DA VIDA E CRISTIANISMO: A REVELAÇÃO SOBRE NOSSA HUMANIDADE Nosso segundo capítulo tem por objetivo elucidar ainda mais a possibilidade do fecundo diálogo entre o pensamento de Henry e a tradição cristã. Trataremos explicitamente da relação entre Fenomenologia da Vida e Cristianismo, visando tematizar a fantástica revelação sobre nossa humanidade. Faremos isto a partir de três momentos. Partindo do discurso anterior, no que se refere aos três pressupostos da fenomenologia, retomaremos, em um primeiro momento, a relação entre fenomenologia e ontologia com a perspectiva de vislumbrar possíveis implicações teológicas da tese fenomenológica. Questões teológicas de fundo, tais como, criação e revelação, começaram a emergir. A afirmação da opção henryriana, a de buscar a fundamentação de sua Fenomenologia da Vida na tradição cristã, remeter-nos-á ao segundo momento deste capítulo que terá como foco a questão da fenomenologia de Cristo e sua função soteriológica. O sabor teológico de nossa pesquisa começa a ganhar corpo neste momento quando entrarmos em questões clássicas da tradição cristã. A autorrevelação da Vida absoluta no Logos Primordial encabeça a discussão deste segundo passo. Em seguida trataremos também da dimensão da Palavra viva de Deus e do Deus relação, buscando destacar, no discurso henryriano, algo da perspectiva trinitária. Todas as três perspectivas deste segundo momento ( Autorrevelação da Vida no Logos, a Palavra e a perspectiva trinitária) são desdobramentos necessários da rica reflexão sobre a fenomenologia de Cristo e sua função soteriológica. Uma vez que Cristo se estabelece, a partir de sua fenomenologia, como condição de possibilidade para a compreensão de nossa realidade humana, podemos abordar com mais clareza nossa condição humana primordial. O terceiro passo de nosso discurso coloca em foco a reflexão acerca de uma antropologia fundamental. Esta discussão encontra seu ponto de partida na tematização de nossa condição primordial de filhos no Filho. Inseridos neste horizonte, abordaremos a questão da ilusão transcendental do ego 69 como consequência do esquecimento de nossa condição de filhos. Tudo isto nos conduzirá ao último tópico, no qual desenvolveremos com maior acuidade a questão de uma antropologia fundamental. 1 Fenomenologia e ontologia: possíveis implicações teológicas Retomando a Indeterminação dos pressupostos fenomenológicos da fenomenologia, reconhecida nos três princípios que ela se deu a si mesma, um deles, o primeiro especificamente, suscita-nos uma questão. Esta se refere à relação entre ontologia e fenomenologia. Nesta relação temos a primazia da segunda sobre a primeira, como se disse anteriormente: a fenomenologia funda a ontologia. Ao iniciarmos este capítulo, que tratará de forma específica a relação entre fenomenologia e teologia, e ainda mais diretamente, da relação entre Fenomenologia da Vida e Cristianismo, pensamos oportuno iniciar a reflexão desta parte da pesquisa com uma provocação, na verdade uma pergunta: considerando este primeiro princípio, olhando de frente nossa reflexão sobre a relação entre as duas disciplinas em questão (Fenomenologia da Vida e Teologia), perguntamo-nos, qual a implicação Teológica desta máxima ou princípio fenomenológico que subordina a ontologia à fenomenologia? Ressaltamos que existe de fato uma implicação Teológica da tese fenomenológica que propõe a Fenomenologia como fundamento da Ontologia. Pensando este princípio fenomenológico no campo teológico, podemos dizer que, na esfera do cristianismo, a Ontologia também aparece, de certa forma, subordinada à Fenomenologia. Em termos próprios isso significa dizer que a subordinação, em Teologia, de uma à outra está na afirmação da fé segundo a qual a Revelação de Deus que é Vida (no sentido absoluto), funda toda vida, toda existência. Neste sentido, faz-se possível afirmar um vínculo estreito entre Revelação e Criação. Uma auto-implicação, mas com privilégio da primeira sobre a segunda, a criação, o ser, a existência e o mundo só existem porque Deus se revela, porque a Vida vem a nós, se faz carne. Como anteriormente ressaltamos, Henry destaca a importância e o limite deste primeiro princípio. Afirma que, se por um lado, a relevância de tal princípio está na inversão ou subordinação da Ontologia à Fenomenologia, seu limite aparece justamente no que se chama de indeterminação fenomenológica fundamental. Isto é, o fato de que tal tese 70 nomeia o aparecer, mas não possibilita a compreensão da origem deste mesmo aparecer, não diz, em linguagem henryriana, "como aparece o aparecer"97. A brilhante intuição do supra citado trabalho sobre Michel Henry, mostra-nos a relevância deste primeiro princípio para o pensamento filosófico na sua complexa busca pela verdade. Na tese intitulada "Do ser à vida" o autor apresenta a crítica henryriana que afirma a fenomenologia como ponto de partida para a compreensão da existência98. A Fenomenologia da Vida, neste sentido, apresentar-se-á, como uma possibilidade de hermenêutica existencial. A presente dissertação consiste justamente em elucidar que a Fenomenologia da Vida, em todo seu potencial de hermenêutica existencial, lança mão de intuições fundamentais do cristianismo. Ousamos ainda dizer que, com base em nossas pesquisas, este pensamento fascinante de Henry, não somente se apropria de algumas intuições fundamentais do mundo cristão, mas que se fundamenta ele mesmo a partir do princípio dos princípios. Este, refere-se à equação cristã que identifica Vida e Verdade com o próprio Deus. Por isso, não nos parece absurdo propor que um dos capítulos deste trabalho acene como tema chave a complexa e fecunda relação entre Fenomenologia e Cristianismo. Nesta seção temos a oportunidade de atualizar e explicitar o título da própria dissertação cuja intuição consiste em pensar a Inteligibilidade Primordial a partir dos pressupostos teológicos e antropológicos da Fenomenologia da Vida. Portanto, nossa pesquisa se apresenta também como um rico diálogo entre Antropologia, Cristianismo e Fenomenologia. Para pensar a revelação sobre nossa humanidade, a partir da relação entre Cristianismo e Fenomenologia da Vida, precisamos ter em mente a questão da desqualificação do poder de 'revelação' próprio da fenomenologia do mundo. Isto quer dizer que nosso discurso trará sempre o binômio "aparecer do mundo" e 'invisibilidade da Vida'. Em outras palavras, permanece latente o conflito entre Fenomenologia do mundo e Fenomenologia da Vida. Sabemos que o pensamento henryriano, ao apontar a indigência ontológica do horizonte de visibilidade do mundo, opera uma inversão dos pressupostos que guiam a tradição do pensamento ocidental. Por isso, destacamos o quanto possível que a inversão fenomenológica operada por Henry, necessariamente, também se inscreve como guinada epistemológica. A interpretação da existência a partir da Fenomenologia da Vida conta com outro tipo de sabedoria que não é, efetivamente, a deste mundo. Contudo, não devemos pensar ingenuamente que a reflexão henryriana 97 98 Cf. HENRY, Incarnation, pp. 41-43. Cf. FURTADO, Do ser à vida, 711p. 71 introduz uma espécie de neomaniqueísmo que despreza radicalmente a epistemologia moderna, nomeada por ele como Fenomenologia do mundo. O que o autor propõe nesta jornada não pode ser entendido como desqualificação do poder de 'revelação' do mundo. Ainda que a comparação pareça infeliz, ousamos dizer que, como Kant pensou e sistematizou a teoria do conhecimento a partir da sua Crítica da razão pura e Crítica da razão prática; também Henry pensa a compreensão da existência a partir de dois modos de manifestação, que ele denomina Fenomenologia do mundo e Fenomenologia da Vida. Portanto, o objetivo da empreitada henryriana não consiste, de forma alguma, em excluir, abominar ou desprezar a fenomenologia do mundo, mas apenas em apontar para uma manifestação mais originária, a manifestação da Vida. Sobre a afirmação de que a inversão fenomenológica proposta por Henry não significa o desprezo pela Fenomenologia do mundo, mas possui a intenção de circunscrever de forma rigorosa sua competência e domínio, convém lembrar ainda sua genuína intuição. Esta se manifesta a partir do postulado de que existe uma Verdade original que se manifesta em uma forma Original de revelação. Verdade original e forma Original de revelação coincidem em Henry com a Vida e sua Autorrevelação originária. Ao propor sua Fenomenologia da Vida a partir deste postulado, consequentemente, Henry questiona os conceitos fenomenológicos que se encontram no fundamento de todo pensamento. Constatando que os mesmos pertencem a um modo secundário de revelação, que é a Fenomenologia do mundo, ou o ver ek-stático a partir do qual se funda a epistemologia moderna, Henry propõe a Fenomenologia da Vida como nova epistemologia. O fascinante para o discurso teológico é que ao fazer tal proposta, Henry retoma a tradição cristã afirmando, categoricamente, que as intuições do cristianismo são o ponto de partida para tal inversão99. Temos então que a empreitada henryriana aponta para a circunscrição rigorosa da Fenomenologia do mundo tal como seu domínio e competência. O aparecer do mundo, que tem dito, nos últimos tempos, através da mentalidade cientificista, a última palavra, precisa ser recolocado como um discurso, não como o discurso. Neste sentido, evocamos aqui a ajuda de William Desmond, com sua filosofia metaxológica100. Todos os discursos que aparecem nesta Fenomenologia do mundo: a arte, a religião, a filosofia, e principalmente, a ciência, precisam perceber que são vozes secundárias. 99 Cf. HENRY, C'est moi la vérité, pp.109-110. Cf. DESMOND, William. A filosofia e seus outros: modos do ser e do pensar. São Paulo: Edições Loyola, 2000. nota 1, p. 21. 100 72 Neste sentido, são vozes metaxológicas, ou seja, discursos intermediários, que se encontram em meio a outros discursos, outras experiências. Ainda mais, que possuem, na linguagem judeu-cristã, uma função profética, enquanto sua voz, seu "poder de expressão" somente se compreende como expressão de um "poder Primordial". Que toda sua inteligibilidade é reflexo de uma Inteligibilidade Primordial que nunca se mostra nesta estrutura ek-stática do aparecer do mundo. A tese defendida por Henry em suas últimas produções acadêmicas (Eu sou a Verdade- Encarnação- Palavras de Cristo), aponta para o Cristo como horizonte de compreensão de toda existência encarnada. Este pensamento possui profunda sintonia com a verdade fundamental professada pelo cristianismo. Esta, por sua vez, diz respeito à famosa formulação teológica que afirma a conexão profunda entre a Verdade em Deus e a Verdade do homem, a relação entre Antropologia e Teologia. Nossa humanidade, o ser humano como existência encarnada, encontra seu horizonte de compreensão a partir de Cristo. Ele é o critério hermenêutico de toda antropologia cristã. Pensando, portanto, a implicação teológica da tese que afirma a primazia da Fenomenologia sobre a Ontologia, parece-nos conveniente que, antes de qualquer palavra sobre o homem, digamos, com Henry, alguma palavra sobre a possibilidade de alguém como Cristo. Destarte, nosso próximo tópico diz respeito à fenomenologia de Cristo e sua função soteriológica. 2 Fenomenologia de Cristo: função soteriológica A fim de pensar a fenomenologia de Cristo traçamos neste tópico um caminho. Nele abordaremos a "presença" de Cristo a partir de três perspectivas. Cabe ressaltar que não devemos entendê-las em ordem lógica ou cronológica, isto seria um absurdo, visto que contradiria todo nosso discurso sobre a virada fenomenológica de Henry. Esforcemo-nos, pois então, por compreendê-las a partir do postulado da Teologia Fundamental, retomado pela Fenomenologia da Vida de Henry, ou seja, nosso ponto de partida é a Autorrevelação da Vida. Desde este horizonte, abordaremos, primeiro, o discurso henryriano sobre a geração do Arqui Filho na Vida. Trata-se da Autorrevelação da Vida absoluta no Logos Primordial. Aqui aparecerá a categoria fenomenológica fundamental que afirma a interioridade fenomenológica recíproca do Pai com o Filho (Jo14,6-10). Este jargão da Fenomenologia de Henry é facilmente identificado com a 73 expressão "comunicação de idiomas", cunhada no contexto da discussão cristológica sobre a identidade entre Pai e Filho. O importante é ressaltar aqui que, mesmo uma cristologia que parece descendente, no fundo, traz em si um movimento ascendente, uma vez que toda reflexão sobre a Vida do Pai e do Filho não é possível sem a manifestação do Espírito de Cristo encarnado no meio de nós. Jesus, de fato, é quem nos revela o Pai, ele é quem nos diz: "quem me viu, viu o Pai" (Jo14,6-10). O passo seguinte desta reflexão será pensar a fenomenologia de Cristo a partir da Palavra da Vida encarnada. Jesus, o Cristo, é a palavra da Vida proferida aos homens. O tema da palavra se conecta estritamente ao tema da encarnação, e portanto, à própria revelação. Nosso discurso contará aqui com a reflexão henryriana plasmada em seu livro "Palavras de Cristo", tal como com a luz da reflexão eclesial respaldada pela "Dei Verbum". A fenomenologia de Cristo, pensada a partir do rosto relacional de Deus revelado por Jesus, será o último tema a ser tratado nesse tópico. Tratar-se-á, aqui, da dimensão trinitária. A presença de Cristo, seu 'aparecer' controverso para a Fenomenologia do mundo, não é solitário. Cristo não vem só, ele vem em nome do Pai e toda sua ação acontece no Espírito. Portanto, a dimensão trinitária representa teologicamente o ápice da revelação em Cristo. Ele, ao se manifestar, nos mostra, pela ação do Espírito, o rosto do Pai. Revelação é relação. Antes, porém, de iniciarmos nosso caminho, convém ressaltar algumas questões preliminares. Elas são molduras que apontam o horizonte limite de nossa reflexão. Iniciamos pela questão da encarnação, como retomada da tese que provoca a investigação fenomenológica de Henry. A fenomenologia de Cristo, pensada a partir de sua função soteriológica, traz à tona a sempre atual sentença de Tertuliano que afirmara de maneira categórica: "caro salutis est cardo"- a carne é o eixo da salvação101. No seu discurso sobre a defesa da carne de Cristo, este autor haverá de haurir a impactante verdade da revelação cristã: a encarnação acontece em favor de nossa salvação. Deus se revela, e em sua autorrevelação na carne do Filho, opera a salvação da nossa humanidade. As controvérsias sobre a dupla natureza de Cristo, que, para Lonergan, inscrevem-se dentro do quadro de um realismo ingênuo102, no processo de evolução do dogma e diferenciação da consciência, haverá de nos fornecer intuições fundamentais para uma melhor percepção da fenomenologia de Cristo. A primeira destas intuições se 101 Cf. TERTULIANO. La carne de Cristo. Traducción Luigi Rusca. Apologeticum de carne Christi. Milano: Biblioteca Universale Rizzoli, 1984. 102 Cf. LONERGAN, The way to Nicea, 143p. 74 encontra no debate sobre a virgindade de Maria. Segundo Henry, a discussão da Theotokos (mãe de Deus), ou os conflitos gerados em torno desta temática, devem nos levar a pensar uma fenomenologia do nascimento. Esta, só pode ser elaborada a partir do discurso de Cristo sobre si mesmo. Neste sentido, parece-nos conveniente dizer que o pensamento henryriano possui uma simpatia com a tese de Lonergan sobre a diferenciação da consciência no processo de elaboração dogmática. Isto porque, Henry também afirma que uma vez lançada a possibilidade de uma Fenomenologia da Vida, a discussão sobre as duas naturezas de Cristo pode cair num "sem sentido", uma vez que não pode existir uma natureza humana vivente, separada da Vida. Esta discussão ficará mais clara quando abordarmos o nascimento do Ego transcendental e pensarmos o homem na sua condição de filho no Filho. De todas as maneiras, para nosso autor, parece claro que a questão da virgindade de Maria representa somente o reflexo da essência da verdade revelada segundo o cristianismo. Para onde aponta o discurso sobre a virgindade de Maria? Aponta para a questão crucial da possibilidade de alguém como Cristo, para a possibilidade do Verbo encarnado. E ao apontar para este horizonte provoca uma fenomenologia da encarnação que, pensando a geração do Verbo da Vida, pensa também a condição do homem como vivente, nascido da Vida. É neste sentido que Henry afirma que a verdadeira mensagem captada da controvérsia mariológica diz respeito à nossa condição de filhos e propõe uma ressignificação do conceito mesmo de nascimento, pois: "O nascimento não consiste nesta sucessão de viventes que pressupõe a vida em si, mas consiste na vinda à vida de cada vivente a partir da Vida mesma."103. Está, pois, lançada a ressignificação não somente do conceito de nascimento, mas também do conceito de filiação. Veremos porque Jesus insiste em dizer que na terra ninguém pode ser chamado de Pai, pois um só é o Pai (Mt 23,9). Assim mesmo, perceberemos porque ele faz questão de romper com a genealogia humana, desvinculando a maternidade e os laços de fraternidade da questão sanguínea e vinculando-os à vontade do Pai (Mc 3,33-35). Intuímos, portanto, que como em outros assuntos, sobre a compreensão do nascimento, também a Fenomenologia da Vida apresenta um horizonte radicalmente diferente daquele defendido pela Fenomenologia do mundo. Enquanto esta pensa o nascimento como sucessão de viventes que pressupõem a vida em si, a Fenomenologia da Vida pensará a fenomenologia do 103 Cf. HENRY, C'est moi la vérité, p.91. 75 nascimento a partir da Arquigeração transcendental do Arqui-Filho (Jo 1,13). É importante, porém, pensar que ao recusar a questão da filiação do homem ou de seu nascimento a partir do próprio homem, não se faz isto em razão de um maniqueísmo que advoga o sangue e a carne como maldade. A única razão de se propor uma fenomenologia do nascimento, a partir da Fenomenologia da Vida, radica no fato de que este sangue e esta carne são viventes, mas não são a Vida. Como tal, portanto, nossa carne não pode gerar vida, sendo ela mesma gerada pela Vida. Por isso, afirmar-se-á de maneira inequívoca que filho e nascimento somente existem na Vida: Situar os conceitos de nascimento e de Filho sob a salvaguarda do Arqui-Filho transcendental é, de fato, referir-se necessariamente à Vida absoluta cujo Arqui-Filho não é mais que o autocumprimento sob a forma de sua autorevelação. Trata-se de apelar inevitavelmente a outra verdade distinta daquela do mundo, a essa verdade da Vida fora da qual não existe, de forma alguma, nascimento, filho, nenhuma possibilidade de vivente.104 Dizemos, portanto, que a incompreensão das palavras de Cristo se dá porque os homens somente percebem sua condição humana a partir do horizonte de visibilidade do mundo. Por isso mesmo, a palavra de Deus, ao se revelar com Cristo e como Cristo, causa estranhamento. Insuportável aos ouvidos dos homens, o é, por ser também incompreensível. Sua incompreensibilidade se deve ao fato de que tal palavra possui outra origem, se inscreve em outro horizonte que nada tem a ver com o campo de visão deste mundo (Jo, 6,60). Perceber que estas duras palavras possuem o segredo da Vida eterna é um dom inexplicável, mas em Cristo, faz-se possível a todos os homens. Contudo, deste tema trataremos mais adiante. Quanto à relação entre a Fenomenologia de Cristo e sua função soteriológica, Henry afirma que João formula fenomenologicamente a tese da soteriologia cristã em três versículos105, a saber: Jo 1,14.18; 1Jo 1,1. O primeiro deles, refere-se à tese que provoca nossa investigação. Nela se afirma que o Verbo se fez carne e nos manifestou sua glória ou, segundo o postulado de Tertuliano, fez-se carne para manifestar a sua glória. O segundo versículo diz respeito a Jo 1,18 e por sua vez nos diz que ninguém 104 105 Ibid, p.94. Cf. Ibid, p.104. 76 jamais viu a Deus e que a possibilidade de sua revelação somente pode se dar via seu Filho único que, habitando no seu seio, no-lo dá a conhecer. O último versículo é da carta de João (1Jo 1,1). Trata-se de um discurso da comunidade cristã que testemunha o mistério inefável do Verbo da Vida. Curioso é que nesta narrativa o evangelista fala da revelação a partir dos sentidos: "o que viram nossos olhos, o que nós escutamos, o que nossas mãos tocaram". Somente depois ele conclui: "Isso vos anunciamos". Tudo isso se diz do Verbo da Vida, todas as coisas ditas se referem à manifestação da Vida: "Porque a Vida se manifestou' (1Jo 1,2). O conteúdo e o próprio anúncio coincidem. A vida se anuncia a si mesma ao se Autorrevelar no seu Filho. Anunciam a própria Vida. A finalidade do anúncio é, como vemos, a comunhão entre os homens que, por sua vez, acontece na comunhão com o próprio Pai e com o seu Filho. É belo perceber que tudo acontece para que nossa alegria seja plena, completa. É dizer, tudo ocorre em vista da bem aventurança, a alegria aqui, não resta dúvida, só pode ser pensada como salvação. Estes três textos, portanto, revelam definitivamente a fenomenologia de Cristo a partir de sua função soteriológica. Cristo realmente é a Alegria dos homens como bem expressou Sebastian Bach em sua magnífica arte musical. Então, com Henry podemos dizer: A fenomenologia de Cristo se elabora como segue: ao não se mostrar no mundo nenhum Pai verdadeiro (a Vida), a vinda de Cristo a este mundo, segundo a tese do cristianismo, tem por finalidade revelar para os homens o Pai verdadeiro e assim salvá-los [...] A significação religiosa do cristianismo, que é a de propor aos homens uma salvação, pode ser compreendida como uma fenomenologia, porque se trata de tornar manifesto o Pai ao mundo.106 A fenomenologia de Cristo nos lança ainda em direção a outro tema igualmente instigante, tanto quanto fundamental para nossa vida de fé. Referimo-nos à questão da visibilidade do mundo e do olhar da própria fé. A fé se nos propõe nas Escrituras como um modo de ver totalmente diferente. Assim, a carta aos Hebreus afirma que: " A fé é um modo de possuir o que ainda se espera, a convicção acerca de realidades que não se veem" (Hb 11,1). A partir da exegese de (Jo 9,35-38) Henry reafirma a tese cristã segundo a qual o ato de crer independe da fenomenologia do mundo. De fato, é curioso 106 Ibid, pp. 103-104. E diz o autor que ao mesmo tempo que esta fenomenologia da salvação revela o Pai aos homens no mundo, também revela os homens a si mesmos, ou seja, torna manifesto aos homens aquilo que todo homem é, a saber: filho no Filho. 77 notar que o homem outrora cego, mesmo curado, permanece cego a ponto de perguntar, olhando para Jesus, "quem é, Senhor, para que eu nele creia?". Esta permanência na cegueira, segundo Henry, é a afirmação de que mesmo a inteireza da possibilidade fenomenológica do 'ver' deste mundo, representa nada mais que a cegueira para a verdade da Vida, que jamais se mostra na estrutura ek-stática do mundo. Assim mesmo, dirá Henry, que o "mostra-nos o pai", dito por Filipe (Jo 14,6-10), representa a típica petição de quem está preso às estruturas da fenomenologia do mundo107. Rahner, em seu discurso sobre a fenomenologia da nossa relação com o Cristo, como reflexão que precede o pensamento sobre a cristologia transcendental, dir-nos-á que o ponto de partida para tal encontro radica na relação de fé existente de fato. Afirma com convicção que a fé precede a teologia enquanto reflexão. E, numa conexão extraordinária com o pensamento henryriano sobre a Fenomenologia da Vida, o teólogo alemão afirma que isso assim ocorre porque "em nenhuma parte da existência do homem a reflexão teórica consegue abranger exaustivamente o ato originário da Vida"108. Podemos afirmar contundentemente que o vivido é sempre mais rico que o formulado. Esta afirmação teológica de Rahner possui para nós valor inestimável. Uma vez que com tal sentença podemos vislumbrar a aproximação do ato existencial da fé, em Rahner, da Fenomenologia da Vida, em Henry. Neste sentido, ousamos dizer que a fé faz parte deste velho e sempre novo olhar, ela se opõe à Fenomenologia do mundo enquanto horizonte de visibilidade ek-stática. E diríamos, numa sentença paradoxal e incompreensível para os homens deste mundo, que a fé é a possibilidade de ver o invisível. O olhar da fé funda o horizonte teológico, mas não se reduz a ele. Ela ultrapassa a esfera da reflexão. Sendo um "poder" que encontra suas raízes no próprio mundo da Vida (Deus), ela nos conduz, reconduz, até Ele. A fé, adiantando aqui parte do nosso discurso, é o que nos permite recordar nossa condição de filhos. Gerados na fé, em Cristo, somos inseridos no seio da Vida. Nesta perspectiva, ouçamos uma vez mais a voz de nosso autor: Ver o Pai se transforma na interioridade fenomenológica recíproca do Pai e do Filho e esta interioridade [...] conecta-se ao conceito de crença [...] Crer não significa um saber menor, homogêneo ao mundo, mas ainda irrealizado ou imperfeito, de 107 Cf. Ibid, pp.107-108. RAHNER, Karl. Curso fundamental da fé: introdução ao conceito de cristianismo. São Paulo: Paulinas, 1989, pp. 243-244. 108 78 modo que aquilo no qual se crê necessitaria ainda provar sua realidade ou sua verdade se mostrando de verdade. Crer não é a substituição de um ver ainda ausente, não designa uma espera daquilo que ainda não vi, mas que um dia verei na verdade do mundo. 109 O ato de crer e, portanto, a Fé, segundo Henry, deve ser entendida como um outro tipo de ver. Trata-se de uma outra fenomenologia, distinta radicalmente daquela do mundo. Nesta perspectiva, o "ver face a face" de 1Cor 13,12-13 precisa ser pensado a partir de um novo horizonte. A interação mesma entre Fé, Esperança e Caridade toma outro matiz. Isto porque, como bem diz o autor, a Fé ou o ato de crer, na perspectiva da Fenomenologia da Vida, não pode ser interpretada como ausência de visão, mas como outro modo de ver, completamente distinto do ver deste mundo. O "ver de maneira confusa e limitada" é uma característica daquele "ver" próprio da Fenomenologia do mundo. O conceito teológico de visão beatífica precisa ser reconsiderado e purificado no nosso imaginário. Esta visão, em se tratando de Deus, não é conveniente que seja pensada a partir da Fenomenologia do mundo. Nossa fé, neste sentido, paradoxalmente, não deve esperar ver nada mais que aquilo que agora vê, nenhum outro ver será possível. Não haverá substituição, nem visão mais completa daquilo que agora vemos a partir da Autorrevelação do Verbo. De fato, deveríamos fazer sempre nossas as palavras de Simeão "meus olhos já contemplaram a salvação", por isso mesmo posso partir em paz, já tudo tenho visto (Lc 2,29-32). A Esperança, enquanto virtude teologal, segundo a perspectiva henryriana, não é conveniente que seja pensada como espera de uma nova visibilidade110. Por isso, nossa fé afirma a plenitude da revelação em Jesus Cristo111. A partir da Fenomenologia da Vida esta asserção, tantas vezes questionada como possibilidade de fechamento por parte dos cristãos, agora se faz mais compreensível. Somente quem está preso ao paradigma da Fenomenologia do mundo, a este ver que nada vê, espera outra visão, ou compreende a fé como ausência de visão. Em Jo 14,19 Jesus afirma que o mundo não mais o verá, mas que seus discípulos o seguirão vendo. Justifica que esta contemplação (visão) somente é possível porque ele vive e porque nós também viveremos. O mundo, ausente de vida, os corpos opacos da redução galileana, a 109 HENRY, C'est moi la vérité, p.108. Ao longo da pesquisa notamos que esta perspectiva henryriana pode nos lançar numa controvérsia sobre a escatologia. Poderíamos supor que sua teoria dá pé para afirmar uma escatologia realizada. Contudo, por não ser este o tema desta dissertação, não desenvolvemos o tema. Deixamo-lo apenas como intuição para uma futura pesquisa. 111 Cf. DEI VERBUM sobre a revelação divina ( n.3-4). In Compêndio do vaticano II constituições, decretos e declarações, Petrópolis: Vozes, 1969, pp122-123. 110 79 ciência objetiva que esquece e despreza o postulado da Inteligibilidade primordial, que nada mais é que a Vida geradora de todo vivente, não poderão, de fato, ver a Cristo. Prosseguindo na mesma esfera da reflexão sobre a fé, parece-nos plausível a exegese realizada por Henry, no que diz respeito à ruptura, no Prólogo joanino, do nexo entre verdade e mundo. Na Fenomenologia do mundo, Luz, que é igual à verdade, ou horizonte a partir do qual se dá todo aparecer, se conecta intimamente ao conceito de mundo. Somente existe um mundo, porque existem coisas que aparecem neste mundo. Agora, as coisas aparecem neste mundo somente porque elas se mostram através de sua luz, sem luz (que é igual à verdade) não existe mundo, ou melhor, não existe nenhuma possibilidade de aparição de coisa alguma. Segue-se, portanto, como bem lembra Henry, que quando o evangelista anuncia que a Luz verdadeira veio a este mundo, ocorre uma ruptura. A mesma se esboça como segue: se a Luz verdadeira veio a este mundo é porque não pertencia ao mesmo. No prólogo de João se fala, então, de outra luz. De fato, se a luz do mundo pertence à própria estrutura do aparecer do mundo, esta não pode vir a ele, pois já constitui a sua essência. A luz que veio ao mundo, por conseguinte, é outra luz, uma Luz que deve ser, então, Primordial. E se, como dissemos, a luz se conecta fenomenologicamente à categoria de verdade, ao dizer que a Luz Primordial veio ao mundo, João afirma que a Verdade Primordial veio ao mundo. Segundo nosso autor, da ruptura do nexo entre verdade e mundo no Prólogo de João, nasce a inversão dos conceitos fundamentais da fenomenalidade, da qual o cristianismo é somente consequência. 112 De forma admirável a Fenomenologia de Cristo nos lança em uma aporia fenomenológica radical. Esta se refere à impossibilidade de Cristo se mostrar neste mundo. Assim, a tese não somente aponta o limite de conhecimento do ser humano, mas também pode ser percebida como a afirmação da impossibilidade do acesso a Cristo pelo ver fenomenológico do mundo. Contudo, esta aporia desaparece do pensamento henryriano quando, ao avançarmos em seu raciocínio, deparamo-nos com o conceito de "Nascimento transcendental do homem na Vida". De fato, sob a visão do mundo, nenhum acesso a Cristo é possível. Por isso, Ele não é reconhecido, como afirma João em seu Prólogo (Jo1,10-11): "o mundo não o reconheceu". Porém, ao percebermos o homem a partir de seu 'Nascimento transcendental', veremos que ele, efetivamente, tem 112 Cf. HENRY, C'est moi la vérité, pp.110-111. 80 acesso a Cristo e assim, à Vida, pois nasceu dela e está feito nela e para ela. Aprofundaremos este tema no segundo momento deste capítulo113. Temos visto que, indubitavelmente, a Fenomenologia de Cristo descortina a relação da Vida com o vivente. Este é o tema central do cristianismo. A partir desta reflexão surge a possibilidade de compreensão da distinção entre geração e nascimento. Estamos seguros que o discurso fenomenológico acerca de Cristo se elabora a partir da afirmação da geração do Primeiro vivente na Vida114. Cristo é o ArquiFilho ou o Filho Primordial da Vida. Ele é o único gerado não criado. A tese henryriana afirma também que a Fenomenologia de Cristo descortina o horizonte para uma fenomenologia do ser humano como filho no Filho. Somente a partir daqui podemos ressignificar o conceito de nascimento. Por tudo que temos pensado, parece-nos conveniente concluir este tópico abrindo uma nova perspectiva através do seguinte pensamento: a Fenomenologia de Cristo nos remete sempre à questão da Arquigeração do Verbo na Autogeração da Vida absoluta. Portanto, no esboço mais aprofundado desta fenomenologia, nosso primeiro passo consiste em abordar, a partir do pensamento henryriano, a reflexão cristã acerca da Autorrevelação da Vida Absoluta no Logos primordial. 2.1 A autorrevelação da Vida Absoluta no Logos Primordial A Fenomenologia de Cristo não pode ser pensada fora da dinâmica da autorrevelação de Deus no Logos Primordial. Por outro lado, a questão da Autorrevelação da Vida absoluta apenas permite ser ideada a partir do evento Cristo. Por isso mesmo, situamos esta temática dentro da seção da Fenomenologia de Cristo. A partir da cristologia percebemos a graça de Deus que se autorrevela no Filho, e que, ao fazê-lo, abre também caminho para a compreensão da nossa humanidade. Segundo Rahner, o homem é percebido neste processo como "evento da livre e indulgente autocomunicação de Deus". Chamamos a atenção para o ponto de conexão entre Rahner e Michel Henry ao abordar um tema que somente pode ser tocado no despojo de todo orgulho intelectual e da pretensão de compreensão daquilo que, por nós mesmos, não poderíamos compreender. Rahner dirá que o homem, como evento da livre e indulgente autocomunicação de Deus, pode ser pensado a partir de três perspectivas: como ouvinte da palavra, como ser diante do mistério absoluto e como ser radicalmente 113 114 Cf. Ibid, p.119. Cf. Ibid, p.73. 81 ameaçado pela culpa115. Em seu Curso Fundamental da Fé, o teólogo situa didaticamente esses três temas como passos prévios para a abordagem daquilo que constitui a mensagem cristã por excelência. Embora não utilize as mesmas palavras e metodologia, Henry oferece, em seu pensamento, destaque especial a estes três temas: o homem situado frente ao mistério do absoluto, constitui, no fundo, o tema de toda a produção de uma Fenomenologia da Vida; o homem como ouvinte da Palavra, tratado especificamente em seu livro Palavras de Cristo 116; por fim, a ilusão transcendental do ego, pode ser pensada como o homem frente ao mistério do esquecimento da sua condição de filho, fonte também de culpabilidade. A impossibilidade de se aceder à Vida (Deus) pelo pensamento ou pelo horizonte de visibilidade do mundo constitui o cerne da reflexão fenomenológica henryriana. Porque o cristianismo possui seu centro de gravidade na relação da Vida com o vivente, Henry propõe uma Fenomenologia da Vida como condição de possibilidade para a compreensão da mensagem cristã117. A Vida será pensada sempre como Verdade a partir da autorrevelação. Segundo o cristianismo, não existe mais que uma só Vida, a única essência de tudo o que vive. Não se trata de uma essência imóvel ao modo de um arquétipo ideal como o de um círculo presente em todos os círculos, mas de uma essência atuante que se atualiza com uma força invencível, fonte de potência, potência de geração imanente a tudo o que vive e que não cessa de lhe dar a vida.118 Sobre a impossibilidade de acesso à Vida pelo pensamento, já tratamos em nosso primeiro capítulo. Sabemos que tal situação ocorre porque existe uma distinção fundamental entre a Fenomenologia do Mundo e a Fenomenologia da Vida. Trata-se de dois modos de 'visibilidade' radicalmente distintos. De tudo isto surge, segundo Henry, a primeira aproximação fenomenológica da Vida, que deve ser pensada então como autorrevelação. Afirma-se, desta forma, categoricamente que, se temos acesso à Vida, isto não ocorre pelo esforço do pensamento que se encontra compreendido a partir da estrutura ek-stática do mundo. A respeito disto, propõe-se uma espécie de 'purificação' 115 Cf. RAHNER, Curso fundamental da fé, p. 145. Dedica três seções, por separado, para cada um dos temas em questão. 116 CF. HENRY, Michel. Paroles du Christ. Paris: Seuil ,2002, 155p. 117 Cf. HENRY, C'est moi la vérité, p.71. 118 Ibid, p.72. 82 da linguagem sobre a Vida. Realiza-se tal empreitada minimizando os efeitos da categoria 'ser', tão cara à filosofia tradicional, pois ela sempre nos remete, segundo o autor, à ontologia ou ao ver ek-stático do mundo119. Como ocorre, então, o acesso à Vida? Se temos acesso à Vida é porque ela se nos dá a si mesma em si mesma, isto é: o acesso à vida está em sua autorrevelação. Para o cristianismo e a fenomenologia henryriana, não existe afirmação mais plausível. Respondendo à questão sobre a independência da Fenomenologia da Vida ou da revelação de Deus com relação à estrutura de visibilidade do mundo, Henry afirma: Onde acontece uma autorrevelação deste tipo? Na Vida, como sua essência. A Vida não é nada mais que o que se autorrevela, não algo que teria a propriedade de se autorrevelar, mas o fato mesmo de se autorrevelar, a autorrevelação enquanto tal. Sempre que se produz algo como uma autorrevelação, existe vida. Sempre que existe vida se produz esta autorrevelação. Então, se a revelação de Deus é uma autorrevelação que não depende da verdade do mundo, e se perguntamos onde acontece tal revelação, a resposta só pode ser: na Vida e só nela. Aqui se dá a primeira equação fundamental do cristianismo: Deus é Vida, a essência da Vida é Deus. 120 A equação fundamental do cristianismo, segundo Henry, pode ser vislumbrada na autorrevelação como atualização necessária da Vida, como sendo ela mesma Vida. Não se trata de uma possibilidade interna como qualquer outra, mas da identidade consigo mesma. A Vida se compreende como autorrevelação e a vida de cada vivente está ligada visceralmente à Vida fenomenológica absoluta. Se pensamos a Vida a partir desta fenomenologia radical, e se afirmamos, com o autor, que a essência da Vida é Deus, então temos que, se a Vida é autorrevelação enquanto tal, o mesmo pode se dizer de Deus. A criação, nestes termos, pode ser pensada licitamente como autorrevelação de Deus. Isto traz consequências teológicas complexas. A 'criação-salvação' não pode jamais ser entendida como acaso, plano divino casual, mas uma espécie de 'cumprimento essencial' daquilo mesmo que Deus 'é'. E ele 'é' visceralmente Vida que 119 120 Cf. Ibid, p.72-73. Ibid, pp.39-40. 83 se autorrevela, uma fenomenologia radical. Mundo e salvação nada mais são que a expressão da graça intrínseca da Vida que por ser Vida se autorrevela, gerando viventes. O Deus amigo que se revela aos homens e com eles se entretém121, não é um horizonte de luz que lança claridade sobre uma realidade totalmente separada, como acontece na estrutura ek-stática do mundo. Este Deus, ao se revelar, autorrevela-se como aquilo que ele é, a saber: Vida, vida corrente e presente nos viventes. Isto quer dizer que não há oposição entre o conteúdo da revelação e aquele que revela, por isso mesmo, por tal coincidência dos termos, chamamos a revelação de Deus de uma autorrevelação. Sobre a autorrevelação da Vida, Henry afirma que nela não há nenhuma estrutura opositiva. Isto quer dizer que não existe uma realidade que revela outra realidade. Então: o que revela é também o revelado122. De fato, diz Jesus: "Eu e o Pai somos um" (Jo 10,30). Esta asserção espantosa se torna compreensível diante da afirmação precedente. A Fenomenologia da Vida, a partir do texto evangélico (Jo 14,610), afirmará decisivamente a interioridade fenomenológica recíproca do Pai com o Filho. Cabe-nos aqui destacar a possível conexão entre a glória e a fenomenalização original da Vida. A glória do Pai é a glória do Filho, isso é o que Henry chama de interioridade recíproca do Pai e do Filho. Esta categoria henryriana, remete-nos a um tema teologicamente relevante do evangelho de João. Trata-se do tema da manifestação da glória de Deus em seu Cristo. Em João, esta glória de Deus, shekiná, manifesta-se não somente no Filho, mas como sendo o próprio Filho. Cristo manifesta a glória do Pai porque ele mesmo é a glória de Deus, sendo ele mesmo um com Ele (Jo 10,30). A partir da unção em Betânia (Cap 12) Jesus anuncia sua glorificação. Os capítulos 13-20 formam a segunda parte do evangelho, sendo considerados como livro da glória, pois tratam da manifestação da glória do Pai em Jesus. O cap. 17 é o ponto cume desta manifestação da glória de Deus no seu ungido (Cristo). Sobre a reciprocidade do Pai e do Filho, pode-se dizer, com Konings, que "Jesus é a Shekiná de Deus, a inabitação salvadora junto ao povo"123. A partir desta mesma perspectiva, o discurso henryriano descortina outras duas categorias teológicas caras à sua Fenomenologia da Vida. A primeira delas diz respeito à humildade ontológica. Esta, outra coisa não é que o reconhecimento, por parte de Cristo, de que o Filho não poder ser compreendido sem o 121 Cf. DEI VERBUM sobre a revelação divina ( n.2). In Compêndio do vaticano II constituições, decretos e declarações, Petrópolis: Vozes, 1969, p.122. 122 Cf. HENRY, Incarnation, p. 172. 123 Cf. KONINGS, Johan. Evangelho segundo João: amor e fidelidade. São Paulo: Loyola, 2005, p.275 84 Pai. A humildade ontológica é a porta de entrada para pensar, em termos clássicos, a doutrina trinitária. Conectada ainda à questão da interioridade fenomenológica recíproca do Pai com o Filho, desponta-se uma segunda categoria teológica. Esta diz respeito à questão da autogeração da Vida e da geração do Arqui-Filho, ou Filho Primordial124. Discursando sobre a autogeração da Vida como geração do Primeiro Vivente, diz o autor: A vida não é, ela advém e não pára de advir. Este advento incessante da vida é seu eterno chegar a si, um processo sem fim, um movimento. No cumprimento eterno deste processo, a vida se joga em si, se esmaga contra si, se experimenta a si mesma, goza de si, produzindo sua própria essência, posto que consiste neste gozo de si e se esgota nele. Assim, a vida se engendra continuamente a si mesma. [...] A essência da vida é o movimento pelo qual a vida não deixa de vir a si, chamamos de auto-geração.125 A afirmação segundo a qual a vida se identifica consigo mesma, enquanto advento incessante que se experimenta continuamente a si mesma e, em experimentando-se, produz sua própria essência, que é o eterno gozo de si, coloca-nos em contato com duas ideias preciosas para a reflexão fenomenológica henryriana. A primeira delas é a noção de auto-afecção ou de uma arqui-passibilidade essencial da Vida126. Esta ideia de que a Vida se experimenta a si mesma constantemente, que goza de si incessantemente e, neste gozo, se auto-engendra, lançar-nos-á, por sua vez, em direção à segunda ideia, a saber: a questão das tautologia essenciais da vida. Este pensamento se conecta com as outras duas categorias acima citadas: a que se refere à interioridade fenomenológica recíproca do Pai e do Filho que, por sua vez, lança-nos frente à ideia de humildade ontológica127. Nenhuma dessas categorias são abordadas por acaso na teoria henryriana. Elas são as membranas de um núcleo duro da sua fenomenologia. No centro se encontra uma rede de relações classificadas a partir daquilo que é o mais originário. A relação mais primordial na Fenomenologia da Vida diz respeito justamente à auto-geração da Vida que engendra, ao engendrar-se a si 124 Cf. HENRY, C'est moi la vérité, pp.102-114. Ibid, pp.74-75. 126 Cf. HENRY, Incarnation, p. 176. 127 Cf. HENRY, C'est moi la vérité, pp.100-101. 125 85 mesma, o Primeiro vivente, chamado também de Arqui-Filho. Desta relação primordial do Pai com o Filho, da Vida com o Primeiro vivente, depreende-se uma rede de relações: a relação da Vida com todos os viventes, a relação do Arqui-Filho com os outros filhos, e, por último, a relação dos filhos entre si, o que se denomina, no campo filosófico, da relação intersubjetiva128. Observemos o seguinte texto: A Vida absoluta se experimenta a si mesma em uma ipseidade efetiva que é, como tal, um Si ele mesmo efetivo e, como tal, Si singular. Deste modo, a auto-geração do Pai implica nela a geração do Filho e constitui um com ele. A geração do Filho, inclusive, consiste na auto-geração do Pai e se faz um com ele. Não há vida sem um vivente. Não há vivente sem vida. Não se pode dizer: gerando-se a si mesma a Vida gera o Vivente [...] mas que a Vida se engendra a si mesma como esse Vivente, que é ela mesma em seu auto-engendramento. E é por isso que este Vivente em concreto é o Único e o Primeiro como disse João.129 A Fenomenologia da Vida introduz uma distinção radical no que se refere à compreensão da geração deste "Si" primordial chamado também de Arqui-Filho ou Primeiro Vivente. De fato, a sentença segundo a qual a Vida se engendra a si mesma como esse "Si" vivente difere radicalmente da afirmação segundo a qual a geração deste "Si" vivente, como Arqui-Filho, ocorre como consequência da auto-geração da Vida. A sutileza está em que no segundo caso introduzimos discretamente a noção ek-stática espaço-temporal, ao sugerir o nascimento do Primeiro Vivente como consequência da auto-geração da Vida absoluta. Sem querer pode-se cair na estrutura opositiva da Fenomenologia do mundo, o que seria um absurdo para a Fenomenologia da Vida. Isto porque na Vida não há espaço-tempo, uma vez que não existe nenhuma distância entre o que revela e aquilo que é revelado. Aqui se expressa uma vez mais a tautologia essencial da Vida. Ainda no contexto do que Henry chama de interioridade fenomenológica recíproca entre a Vida e o Primeiro vivente, parece-nos relevante a citação que segue: 128 129 Cf. Ibid, pp.80-81. Ibid, pp.79-80. 86 No entanto, a Vida não necessita ter terminado sua obra em Cristo, como em qualquer outro vivente, para que o Primeiro vivente seja vivente, se a geração do Filho co-pertence à autogeração da Vida como aquele sem o qual esta auto-geração não teria acontecido. E isto porque a Vida não se dá a si mesma mais que se abraçando a si mesma na ipseidade essencial, cuja efetividade fenomenológica não é outra que o Verbo.130 Efetivamente, a geração do Primeiro Vivente na Vida traz uma revelação decisiva em relação aos outros viventes. Retoma-se aqui, na linguagem teológica, o vínculo outrora esboçado entre Cristologia e Antropologia. Esta discussão é proposta por Henry ao tratar do homem em qualidade de filho de Deus131. O autor retoma em seu texto a crítica à cristologia das duas naturezas, que, segundo ele, constitui um verdadeiro impedimento para a intelecção do cristianismo. Parece-nos, de fato, que para Henry está clarividente que a ideia de uma natureza humana autônoma contradiz a verdade essencial do cristianismo. Esta afirma que o nascimento transcendental do homem se dá na Vida, por meio do Primeiro Vivente. Assim sendo, constitui um absurdo e uma verdadeira aporia antropológica afirmar a possibilidade de existir uma natureza humana que seja radicalmente diferente da essência na qual ele foi engendrado (Vida). Portanto, Henry advoga que a vida deve ter um único sentido, tanto para Deus quanto para o Cristo, e, assim mesmo, para o homem. Diz o autor: Se o homem é filho engendrado na Vida e a partir dela, não pode haver nele nada mais que essa essência da Vida, não pode haver uma outra natureza [...] Compreender o homem a partir de Cristo, compreendido Cristo a partir de Deus, radica a intuição decisiva da fenomenologia radical da Vida que é precisamente a do cristianismo: que a Vida tem o mesmo sentido para Deus, para Cristo e para o homem. 132 A crítica henryriana à linguagem cristológica convida à reflexão sobre algumas categorias-chave da teologia. Como é o caso, por exemplo, daquela que afirma a encarnação do Verbo como assunção da nossa carne. Uma pergunta fundamental 130 Ibid, p.102. Cf. Ibid, pp.120-141. 132 Ibid, pp. 127-128. 131 87 emerge neste contexto: pode a Vida assumir algo fora daquilo que ela é em si mesma? A resposta afirmativa à esta questão, segundo a fenomenologia henryriana, constituiria o maior dos contrassensos, uma verdadeira agressão à Fenomenologia da Vida. Esta afirma categoricamente que nossa vida é a mesma vida de Deus e de Cristo. Existe, pois, uma cumplicidade existencial entre a Vida de Deus e a vida dos homens. Portanto, se o Verbo enquanto Vida não pode assumir outra coisa que não sejam as propriedades da própria Vida, e isto pela simples razão de que não existe nada fora desta Vida absoluta que é a de Deus e a do seu Verbo, então, o que dizer sobre a questão da vida do homem enquanto corpo de carne, o que dizer sobre a encarnação? Se tudo que vivemos provém da Vida, então não é lícito sustentar nenhuma espécie de dualismo, como outrora ocorreu nas visões antropológicas que separaram definitivamente o ser humano em duas realidades inconciliáveis. Assim mesmo, toda epistemologia que concebe o conhecimento a partir desta cisão radical é digna de suspeita. Quando a vida revela a carne, não se limita a revelá-la como se estivesse em presença de dois termos, um que revela e o outro que é revelado [...] a vida revela a carne ao engendrá-la, como aquilo que nasce nela, que se forma e se edifica nela, tomando sua substância fenomenológica pura, da substância mesma da vida. Uma carne impressiva e afetiva, cuja impressividade e afetividade não provém de algo distinto à impressividade e afetividade da vida mesma.133 Como compreender nosso corpo de carne segundo a afirmação primordial do cristianismo, que revela o homem a partir da sua solidariedade existencial com a Vida, que é Deus, revelando-o como filho da própria Vida? Aqui desponta uma questão crucial: segundo a fenomenologia henryriana, a carne não pode ser entendida como um anexo da vida. Trata-se de uma questão complexa que urge ser pensada com mística e devoção, pois toca a tese que provoca nossa investigação, a saber: o tema da encarnação. A Fenomenologia da Vida, inspirada no ethos cristão, aborda a questão da carne como condição interna de possibilidade da vida. Advoga que a Vida, enquanto arqui-passibilidade, autoafecção, engendra-se enquanto carne. Contudo, exige-se que a categoria 'carne' seja decantada do contexto de nossa linguagem dualista e demasiado 133 HENRY, Incarnation, pp..173-174. 88 materialista. Para a Fenomenologia da Vida, carne não significa outra coisa que o "Poder de auto-afecção Primordial". Trata-se do poder de se sentir, sua origem é a arqui-passibilidade, na arqui-carne. Seu contexto vital é o abraço patético da Vida em si mesma. Este abraço patético, que nunca cessa e que é a constante auto-geração da Vida enquanto autorrevelação de si mesma. Assim diz o autor: A única razão pela qual, necessariamente, onde quer que uma vida vem a si, tal vinda é idêntica à vinda de uma carne, a vinda a si desta carne na Arqui-Carne da Vida [...] reside no fato que esta vinda originária a si mesma se cumpre no patos originário de seu gozo de si, no Arqui-Patos de uma Arqui-Carne. A carne é justamente a forma que tem a vida de se fazer Vida [...] Esta conexão entre Carne e Vida, somente diz respeito a uma vida como a nossa porque, antes do tempo, estabeleceu-se na Vida absoluta como o modo fenomenológico segundo o qual esta Vida vem eternamente a si no Arqui-Patos de sua ArquiCarne. 134 O que significa dizer, com Tertuliano, que a carne é o eixo da salvação? Se pensamos a carne como algo fora de Deus, uma coisa de outra natureza que ele precisa assumir para se tornar um de nós, então esta sentença carece de sentido. Isto porque, a partir desta premissa, a salvação seria pensada e compreendida fora de Deus. Dizer que a carne é o eixo da salvação significa dizer que somos salvos pela e na carne. Por mais absurdo que pareça à nossa mente dualista, isso significa afirmar que a carne vem de Deus. Nossa carne é deífera, não só porque pode ser salva, mas porque nela se encontra o princípio mesmo de salvação, já que se trata de uma carne viva. Posto que a carne, como diz Henry, é justamente a forma que tem a Vida de se fazer Vida. Nesta sentença, afirma-se a intuição de que o vínculo entre a vida do ser humano e a Vida que é Deus se dá justamente nesta carne que é pura autoafecção e que pode afetar e ser afetada. O vínculo da salvação significa, pois, autoafecção. A categoria carne deve fugir da sua significação hodierna, que a entende como matéria que perece, imanência fadada ao fracasso. Assumindo, portanto, seu verdadeiro sentido como carne fenomenológica, que 134 Ibid, p.174. 89 se autorevela como 'poder de sentir', como autoafecção que pode afetar e ser afetada, primeiro em si mesma. Aqui se desponta uma das mais surpreendentes teses da Fenomenologia da Vida. Trata-se da questão da carne como condição interna de possibilidade da vida. Esta tese henryriana lançar-nos-á em direção a um surpreendente conceito de transcendência. O autor afirma que transcendência, no sentido cristão, e segundo a Fenomenologia da Vida, outra coisa não pode ser que a imanência da vida na carne. 135 Afirma, então, que a substância fenomenológica patética do viver é a carne entendida como lugar de afecção pura. Nela se dá, segundo a teoria henryriana, a essência mesma do viver que é a autoafecção, ou seja, o sentir-se a si mesmo. A partir de então podemos fazer uma afirmação eminentemente teológica, que possui caráter revolucionário: o Deus que é Vida é um Deus que sente, é autoafecção radical. E por isso mesmo, é um Deus carnal, é um Deus de carne, posto que ele mesmo é, em si mesmo, autoafecção pura, o puro poder de sentir, ele é Vida atualizada. Este Deus, que Cirilo de Alexandria identifica com a Vida, revela-se a si mesmo como carne, revela-se a si mesmo na sua Arquipassibilidade. Temos daí que o Deus cristão não é um Deus impassível, mas um Deus afetuoso, ele mesmo pode ser compreendido como pura afetividade. Não é por acaso que é apresentado na história de Israel como aquele capaz de "escutar" (Ex 3,7) e de se "comover" com a situação de seu povo (Os 11,8). Segundo Henry, Irineu, diferente de Tertuliano, que ainda se encontra preso no paradigma dualista, dá um passo ao pensar a carne de Cristo não mais pela matéria fenomenológica do mundo, mas pelo sofrimento. Ao destacar o sofrimento e a paixão da carne de Cristo, Irineu nos lança na matéria fenomenológica da Vida, que é o 'poder de sentir'. Discorrendo sobre o que denomina de 'cogito cristão' em Irineu, Henry dirnos-á: Longe de ser a vida incapaz de tomar carne, é sua condição de possibilidade. Longe de ser incapaz de receber a vida, a carne é sua efetuação fenomenológica [...] A imanência da Vida na carne não somente funda a substância fenomenológica de toda carne concebível; faz ao mesmo tempo possível cada uma das 135 Cf. Ibid, p176. 90 estruturas fenomenológicas fundamentais do que chamamos corporeidade originária.136 Pode-se dizer, com Henry, que em Irineu a ligação da carne à Vida se aprofunda. A Vida aqui é a Vida fenomenológica absoluta. É esta vida de Deus auto-revelada no Verbo que se faz carne. A carne, à qual vem o Verbo, vem do Verbo mesmo, vem da Vida. No final de seu discurso sobre o cogito cristão, o autor, citando Irineu, diz: O testemunho da Vida em toda carne [...] consiste em que a Vida está presente em toda carne como aquilo que a revela a si mesma, fazendo dela uma carne e lhe dando a Vida. Tal é o conteúdo do extraordinário cogito da carne, próprio do cristianismo, que Irineu formula em uma proposição muito densa: que a carne seja capaz de receber a Vida, se prova por esta mesma Vida na qual [a carne] vive já no presente.137 Henry destaca que o cristianismo inaugura uma nova tese no pensamento humano. Esta diz respeito à compreensão da carne como aquela que traz em si uma Inteligibilidade primordial. Mais que destacar a presença da Vida na carne, o cogito cristão afirma a Vida mesma enquanto carne. Por isso, esta é portadora do princípio de compreensão da Vida, que chamamos de Inteligibilidade primordial. Não é possível nenhuma revelação na Vida que não parta da auto-auto afecção da carne. Não é por acaso que a tese cristã, por excelência, diz explicitamente que: "o verbo se fez carne" (Jo 1,14). Então, podemos dizer que a transcendência, no sentido cristão, funda a substância fenomenológica de toda carne e torna possível cada uma das estruturas fenomenológicas fundamentais daquilo que chamamos nossa corporeidade originária. De fato, segundo nosso autor, ao dizer que a carne é capaz de receber o poder de Deus, Irineu reconhece em cada uma das estruturas do corpo transcendental a imanência da Vida absoluta como constitutiva de sua realidade fenomenológica e de sua possibilidade para exercer seu 'poder'. Nossa carne viva manifesta o 'poder originário' da Vida. Por isso, todo movimento ou ato carnal, ao ser atualizado, se dá enquanto a vida mesma. Temos assim que nosso olhar é vivo, nosso toque é vivo, nossa palavra é viva. 136 137 Ibid, pp.191-192. Ibid, p.195. O destaque na citação de Irineu é nosso. 91 2.2 A questão da Palavra viva de Deus A Fenomenologia de Cristo se dá essencialmente em Jesus como palavra encarnada. Ele é a palavra da Vida que se manifesta para a salvação dos homens. Antes de prosseguir nosso discurso, pensamos por bem fazer duas considerações. A primeira se refere a uma opção que consideramos importante. Seguindo Konings, em seu livro Evangelho segundo João, também queremos manifestar nossa preferência pela categoria 'Palavra' em vez de 'Verbo'. Parece-nos, não somente sensata, mas também fundamental a opção deste exímio teólogo. De fato, como ele mesmo lembra, o termo 'verbo' nos remete ao contexto das discussões e especulações da filosofia grega acerca do Verbo divino 138. Enquanto a categoria "Palavra" nos aparece como possibilidade autêntica de nos aproximar da fonte religiosa e cultural do cristianismo, a saber: a tradição judaica. A segunda consideração, trata-se, na verdade, de um justificação. Sobre o tema da linguagem enquanto reflexão filosófica, abordá-lo-emos circunstancialmente e de forma muito limitada. Apesar de sua relevância fundamental para nossa investigação, ele não constitui o objetivo de nosso estudo. No capítulo 12 do livro Eu sou a verdade, Henry aborda o tema da Palavra de Deus e as Escrituras, o qual retomará mais tarde em sua obra intitulada: Palavras de Cristo. Ao discorrer sobre o assunto, uma constatação pertinente vem à tona. Ela diz respeito ao Cristianismo. Uma vez que ele se nos apresenta sempre sob a forma de um texto, e mais ainda, como palavra performativa (a Palavra se fez carne), então, deveras, a questão da 'palavra' surgirá como fundamental desde nosso primeiro contato com ele. Segundo nosso autor, o texto do Novo Testamento se apresenta de maneira inédita porque é de proveniência Divina. Isso se nota ao perceber que os narradores param a narrativa para que o próprio Cristo, Filho de Deus, diga sua palavra139. Partindo da exegese do evangelho de João, principalmente do Prólogo, o autor encontrará, segundo Miguel García, "que os paradoxos da linguagem evangélica acerca da vida representam a mais acabada expressão da verdade do Fundamento: fragmentos de uma autêntica ontologia fenomenológica"140. Daí procede o grande encanto de Henry pelo cristianismo e suas Escrituras, ao ponto de afirmar sem medo que "longe de se opor a 138 Cf. KONINGS, Evangelho segundo João, p. 76. Cf. HENRY, C'est moi la vérité, p. 269. 140 HENRY, Michel. Palabras de Cristo. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2004, p.11 Expressão dita por Miguel García na apresentação desta obra na tradução espanhola. 139 92 uma reflexão verdadeiramente livre, o Cristianismo situaria a filosofia tradicional ante seus limites, por não dizer sua cegueira"141. No livro Palavras de Cristo, o propósito investigativo do autor está imbuído da convicção de que existe outra ordem de palavra diferente daquele modo ordinário de se comunicar dos homens. A matriz hermenêutica para a compreensão das palavras de Cristo, como Palavra viva de Deus, dá-se a partir da oposição metodológica realizada pelo pensamento do autor, a saber: Fenomenologia do mundo - Fenomenologia da Vida. Esta abordagem nos reconduzirá à questão da Verdade segundo o Cristianismo. Aqui se estabelece uma afirmação decisiva, a de que a Palavra de Deus pertence à Verdade da Vida. Contudo, esta asserção faz surgir uma pergunta fundamental. Uma vez que as palavras de Cristo chegam a nós na comum linguagem dos homens, em termos fenomenológicos, na linguagem do mundo: como podem elam então dizer a mensagem da Vida que não se manifesta no mundo? Como esta palavra da Vida, expressa na linguagem do mundo, pode ser ouvida e compreendida como palavra da Vida e não do mundo? A possibilidade de compreensão deste paradoxo somente pode ser estabelecida partindo da tese que estabelece duas ordens de palavras : a dos homens e a de Deus142. Esta tese, como bem sabemos, refere-se aos dois modos de manifestação descrito pelo pensamento henryriano. Sobre os dois modos de manifestação e a categoria da verdade, segundo o ethos cristão, é importante recordar o pensamento segundo o qual: Chamamos verdadeiro ao fenômeno, ao que se mostra, ao ente no 'afora' do mundo e do tempo; mas também chamamos verdadeiro ao fato de que todos os entes se mostram. E este fato não é ele mesmo um ente entre os entes. Não é uma verdade particular, mas a verdade original. A qual não se mostra aparecendo no mundo, mas no fato mesmo de fazer com que o mundo apareça. [...] A vida é uma 'substância cuja essência toda é aparecer, revelar-se. E o 'cristianismo', outra coisa não é que a teoria, rigorosa, de que se dá aos homens, como sua porção, esta autorrevelação do Absoluto. Pois o amor pelo qual são João define a natureza de Deus não é outra coisa que o gozo de si mesmo da Vida absoluta143. 141 HENRY, Paroles du Christ, p.87. Cf. HENRY, C'est moi la vérité, pp. 270-271. 143 HENRY, Michel. Palabras de Cristo, pp.11-12. Apresentação do livro em espanhol. 142 93 Partindo desta elucidação dos dois modos de manifestação, Henry prosseguirá em sua nota sobre a palavra do mundo e a palavra da Vida144. Afirma a necessidade da distinção de duas ordens de palavras: as dos evangelistas, que narram a vida de Cristo, e as do próprio Cristo, que irrompem surpreendentemente nos textos. Contudo, estas palavras de Cristo estão formuladas na linguagem dos homens, que chamamos, também, de linguagem do mundo, por duas razões: primeiro porque designam as coisas deste mundo (coisas inertes, animais, objetos culturais); segundo, trata-se de palavras do mundo porque só podemos falar das coisas que se nos mostram. Sobre isso, afirma o autor: Se unicamente podemos falar do que se nos mostra, e se tudo o que se nos mostra nos é mostrado no mundo, então toda palavra está vinculada ao mundo por uma relação inegociável. Unicamente podemos falar do que se nos mostra no mundo [...] Palavra do mundo quer dizer uma palavra que fala do que se nos mostra nessa exterioridade que o mundo é. Assim o aparecer se propõe como a condição de possibilidade de toda palavra145. Notaremos a seguir, que esta constatação henryriana traz uma série de implicações para a palavra do mundo. Segundo o autor, se a fenomenologia do mundo se coloca como condição de possibilidade para que haja uma linguagem humana, então esta, se fundamenta necessariamente nas características fundamentais deste aparecer do mundo. Sendo o horizonte de visibilidade deste mundo exterioridade pura, indiferente àquilo que ilumina, constituído de uma carência ontológica, como descrevemos no primeiro capítulo, então, a palavra do mundo, também se compreende situada a partir destas três notas. De fato, ela fala de uma realidade outra que não é a de si mesma, e por isso mesmo, lhe é indiferente. Tudo isto haverá de culminar numa indigência ontológica da linguagem, expressa, segundo Henry, no caráter referencial da linguagem. Trata-se, neste último caso, de que a palavra do mundo sempre se refere a um conteúdo exterior que foge ao seu domínio porque se situa em um nível radicalmente diferente dela mesma. Em outros termos, a palavra do mundo não funda a realidade à qual se refere. O autor denuncia ainda a carência das teorias da linguagem que radicam na 144 145 Cf. HENRY, Paroles du Christ, pp.87-99. Ibid, p.90. 94 "crença ingênua" de que somente o aparecer do mundo constitui o objeto unívoco da linguagem. Assim, esquece-se e se oculta a possibilidade mesma de outra palavra mais originária, mais essencial que a do mundo146. Ao tratar deste tema, nosso fenomenólogo nos lança novamente em direção à sua reflexão fundamental, a saber: sobre a Inteligibilidade primordial ou a questão da Verdade. Sobre a vinculação entre linguagem e Fenomenologia do mundo, afirma que o caráter referencial da linguagem traz em si a possibilidade sempre patente da falsidade ou da mentira. Sobre este tema delicado diz o próprio autor: Mesmo impotente para estabelecer a realidade da qual fala, conserva (a palavra do mundo) um poder: o de afirmar esta realidade quando não existe, o poder de mentir. Esta é a razão pela qual afirma São João que o testemunho que traz em si esta palavra é potencialmente um falso testemunho147. Retomando a reflexão cristológica sobre a natureza de Cristo, Henry dirá que se esta é dupla, podemos pensar que sua palavra também está constituída de uma autêntica duplicidade. Esta não se encontra marcada pelo caráter da mentira. Ela não é dupla no sentido de verdadeiro ou falso, mas no sentido de que algumas vezes se trata da palavra humana e em outras da palavra de Deus. Neste contexto, o autor introduzirá a distinção entre o ato de falar (a maneira que alguém tem de falar) do conteúdo da fala. Esta observação marca a diferença entre a forma de Deus e a forma dos homens falarem. A palavra de Deus, neste sentido, não poderia ser abordada positivamente por uma análise do discurso, ou por uma filosofia da linguagem que possua como objeto a linguagem humana148. Sem entrar diretamente no tema, apontamos somente o fantástico horizonte aberto por Henry ao propor a discussão sobre a questão da possibilidade da mentira e o discurso sobre a incapacidade das palavras da lei humana para produzir seu efeito. Reflexão abordada por Henry no capítulo 12 de seu livro Eu sou a verdade149. Passamos direto à questão da Palavra de Deus na Fenomenologia da Vida. Assim como a palavra do mundo assume as características do aparecer do mundo, as palavras da 146 Cf. Ibid, pp.91-92. Ibid, p.95. O conteúdo entre parênteses é uma elucidação nossa. 148 Cf. Ibid, p.10 149 Cf. HENRY, C'est moi la vérité, pp. 269-291. 147 95 Vida assumem também as características da Fenomenologia da Vida. Retomando brevemente as notas essenciais da fenomenologia henryriana, é possível pensar agora a relação Palavra-Vida, como condição de possibilidade da escuta da palavra que é Cristo.Temos, pois então, que se a palavra do mundo traz em si a possibilidade da mentira, a palavra da Vida (palavra de Deus) exclui definitivamente a mentira, sendo, portanto, uma palavra de Verdade. Isto só é possível porque existe uma identificação entre Verdade e Vida. Segundo a fenomenologia henryriana, "a Vida é verdade porque se revela a si mesma e esta autorrevelação constitui o fundamento de toda verdade concebível"150. Juntamente a esta primeira nota, vislumbramos uma segunda perspectiva. Esta se refere ao fato de que a palavra da Vida é uma palavra afetiva, pois não pode ser indiferente ao que diz. Isto acontece porque está extremamente implicada naquilo que diz, uma vez que ao dizer, também se diz. A palavra da Vida, segundo Henry, "fala em um sentimento". Aqui se vislumbra a imanência radical da Vida que não pode escapar de si mesma. Assim sendo, não pode revelar ou anunciar outra coisa que não seja ela mesma neste abraço patético consigo mesma. Concluirá o autor: "A Vida é uma palavra e uma palavra que fala de si mesma unicamente porque se experimenta a si mesma e se revela a si de forma patética, na imanência desta Afetividade primitiva"151. Compreendendo Deus a partir da noção de auto-afecção da Vida, ou a Vida como experiência de si, Henry abordará o tema da Palavra de Deus como radicalmente diferente, uma vez que nela não há distância entre o que é dito e aquele que diz. Deus, ao dizer, se diz em sua Palavra. Sobre a possibilidade do conhecimento de Deus por parte do homem Henry dirá: Se Deus é Vida, disso resultam duas consequências: primeira, algo sabemos sobre Deus. Segunda, não o sabemos por causa de nosso pensamento. Sabemo-lo porque somos viventes e porque nenhum vivente está vivo se não porta consigo a Vida, não como um segredo desconhecido por ele, mas como isso mesmo que experimenta sem cessar, como aquilo no qual ele se experimenta sem cessar, como sua própria essência e realidade 150 151 HENRY, Paroles du Christ, 98. Ibid, p. 99. 96 mesma. Se Deus é Vida então [...] o homem (como este vivente que é e que se experimenta) conhece e ( experimenta) a Deus.152 Contudo, este conhecimento de Deus não se dá de outra forma a não ser pela escuta 'atenta' da sua Palavra. Assim, a ideia henryriana, que abre o discurso sobre a possibilidade humana de escutar a Palavra de Deus e que afirma a inteligibilidade da humanidade como possível somente na sua relação interior com esse absoluto de Verdade e Amor que é o próprio Deus153, encontra-se novamente respaldada no fim do seu discurso sobre a Palavra encarnada: Já que só aquele que dispor em seu coração da Palavra original da Vida seria capaz de ouvi-la, escutá-la, ser-lhe fiel e, assim, ser salvo, não era pois plausível que esta palavra viesse entre nós para se dar ela mesma a nós? A Encarnação do Verbo, na carne de Cristo, é esta vinda da Palavra da Vida em uma carne semelhante à nossa. Então, para que essa Palavra de Deus seja efetivamente recebida por nós, não reside sua condição em que Cristo nos dê sua própria carne, que é a do Verbo, que se dê a nós em sua carne, unindo sua carne à nossa, de modo que esteja em nós e nós nele, assim como ele está no Pai e o Pai nele?154 Temos então a encarnação da Palavra como condição de possibilidade para que o homem possa ouvir em plenitude a voz da Vida. Sobre os filhos da Vida, como potenciais ouvintes da Palavra, Henry dirá que é a geração do homem na Palavra de Deus, como Primeiro vivente, que permite a escuta daquilo que a Vida diz. Podemos escutar a Palavra da Vida, porque viemos dela155. Contudo, se as palavras de Cristo são palavras de um homem como nós, por que muitos não a compreendem , como dizem as Escrituras, possuem ouvidos e não ouvem (Jo 9, 27)? Isto ocorre "Porque eles somente captam o sentido humano destas palavras reduzindo-as a preceitos morais"156. O centro de gravidade deste discurso se resume em pensar a seguinte questão: poderia o homem ouvir a partir da sua própria língua uma palavra que fosse dita em outra linguagem que 152 Ibid, pp.104-105. Os parênteses são nosso. Cf. Ibid, p.15. 154 Ibid, pp154-155. 155 Cf. Ibid, pp.149-150. 156 Ibid, p.11. 153 97 não a sua, que se tratasse da linguagem de Deus, ou da sua Palavra eterna? Henry não vê outra alternativa para pensar o tema a não ser a de tomar como ponto de partida as mesmas Palavras de Cristo. Ressaltando que a pretensão destas não é a de simplesmente transmitir uma revelação divina, mas a de ser em si mesma esta revelação, ou seja, a Palavra de Deus157. De fato, quando fala aos homens, como bem observa o autor, Jesus não se refere sempre a eles. Existe um discurso de Cristo sobre si no qual ele não fala de si mesmo como homem, mas como Filho de Deus. Esta forma de falar constituiu, inclusive, o motivo máximo de sua condenação: "Nós temos uma Lei, e conforme esta Lei, ele deve morrer, porque se fez Filho de Deus" (Jo 19,7). Sobre as condições de possibilidade de ser ou não um ouvinte da palavra existe uma aproximação entre a reflexão de Rahner e Henry. Para o teólogo alemão, o sujeito, entendido como evento da livre e gratuita autocomunicação de Deus, pode, a partir da Graça, ouvir esta palavra de vida. Isto porque possui em si mesmo a graça da vida, condição de possibilidade para a própria transcendência. Ao se colocar analiticamente em questão e abrir-se para o horizonte ilimitado de semelhante questionamento, o homem já transcendeu a si mesmo, bem como todas as dimensões pensáveis dessa análise ou de auto-reconstrução empírica de si.158 No que diz respeito à peculiaridade da experiência da pessoa, o que caracteriza o homem como sujeito enquanto condição de possibilidade de ouvinte da palavra é justamente sua postura de abertura frente ao horizonte ilimitado do mistério da vida, colocando-se em questão. Este 'colocar-se em questão' exige do sujeito uma certa 'possessão de si', tal como nos indica a seguir o próprio autor: Ser pessoa significa, então, a autoposse de um sujeito como tal em relação consciente e livre para com o todo. Essa relação é a condição de possibilidade e o horizonte prévio para que o homem [...] possa haver-se consigo mesmo em sua unidade e totalidade. 159 157 Cf. Ibid, pp.13-14. RAHNER, Curso fundamental da fé, p.43. 159 Ibid, p.44. 158 98 Este tema tocado pelo teólogo alemão, em seu Curso fundamental da fé, encontra-se magistralmente desenvolvido em uma de suas obras intitulada O ouvinte da palavra160. A ideia de pessoa como autoposse, ou mesmo de "existencial sobrenatural"161 em Rahner nos remete à noção henryriana de "possessão" dos poderes oriundos da Vida. Neste sentido, estabelece-se uma conexão instigante entre as duas noções de sujeito. Por um lado, em Rahner, sujeito é aquele que, conscientemente, sabese possuidor de si mesmo enquanto evento gratuito e livre da autocomunicação de Deus. Por outro, em Henry, sujeito é aquele que se reconhece como filho no Filho e que exerce conscientemente os "poderes" da sua corporeidade, sabendo que estes mesmos significam a imanência da Vida absoluta na sua vida particular. Assim, em ambos os casos, o "poder" de ouvir a palavra se manifesta como possibilidade antropológica fundamental que não encontra sua raiz numa capacidade egocêntrica. De fato, este "poder" de ouvir advém da própria Graça que nos foi concedida pela Vida. No caso de Rahner, trata-se de um "poder" constitutivo da nossa humanidade enquanto somos evento livre e gratuito da autocomunicação de Deus. Não obstante, em Henry, refere-se a um "poder" transcendental, recuperando o sentido de transcendência como imanência da Vida em nossa carne. Outro tema extremamente relevante emerge da reflexão henryriana na hora de pensar o homem como ouvinte desta Palavra da Vida. Trata-se da geração da humanidade na Palavra Primordial, que é Cristo. Esta concepção do homem no seio mesmo da Vida, através de sua Palavra, coloca-se, portanto, como a principal condição de possibilidade de ouvinte do mistério da Vida. Como os discípulos de Emaús, nosso coração se reaviva em um ardor de outro mundo e somos gerados enquanto ouvimos a Palavra da Vida. Diz Henry: O princípio que permite compreender as Escrituras, é portanto, o mesmo que legitima as palavras de Cristo sobre si mesmo: a Palavra do Verbo em nós [...] A Palavra de Cristo em qualidade da do Verbo é a única fonte que nos dá acesso à intelecção dos textos sagrados, ela é o Espírito que, por vezes, produziu estes 160 Cf. RAHNER, Karl. Horer des wortes: zur grundlegung einer religionsphilosophie. Muchen: Kosel, 1963, 220p. 161 Cf. RAHNER, Karl. Curso fundamental da fé, p.157. 99 textos e que funda sua inteligibilidade. Somente o Espírito nos permite conhecer o Espírito162. Esta "Palavra do Verbo em nós" fundará o princípio de inteligibilidade de toda compreensão das palavras de Cristo, em suas três dimensões: sobre nós, sobre o mundo e sobre ele mesmo. No que se refere à proposta concreta de uma inteligibilidade primordial, a partir da exegese henryriana do prólogo de João, este será um dos temas do nosso próximo capítulo. Convém terminar este tópico destacando algumas ideias valiosas encontradas na já referida obra de Konings, sobre o evangelho de João. A Primeira delas tem a ver com a interpretação de Jo 1,18. Destaca-se aqui o verbo "narrar - descrever". Neste sentido, tal versículo poderia ser entendido como segue: "ninguém conhece a Deus, mas o filho unigênito que lhe é íntimo no-lo narrou". Assim, Jesus aparece como a Palavra de Deus que narra o próprio Deus. A manifestação de Deus no cristianismo, que é autêntica fenomenologia da Vida, acontece, por excelência, por meio da Palavra encarnada, que nos conta sua vida, que é a vida de Deus. Ao nos narrar esta Vida através de sua existência encarnada, Jesus nos mostra, ao se revelar, o próprio Deus. Uma Fenomenologia da Vida não se faz possível sem esta narratividade da Palavra viva, ou da palavra que é, ela mesma, Vida. Destaca-se ainda a questão do nosso Deus que, ao se manifestar em seu Filho como Palavra encarnada, faz-nos intuir que podemos compreendê-lo, sobretudo, como comunicação. Deus é diálogo, e diálogo tem a ver com relação, e a base de toda relação deve ser o amor. Daí que a manifestação de Deus, em seu Filho unigênito, como Palavra que está voltada para o seio do Pai, e que se encarnando, narra a Vida de Deus, dando-nos a conhecê-lo, manifesta Deus mesmo como amor. E a essência do amor é a comunicação. O que fazem os enamorados? comunicam-se, declaram-se, cantam hinos, e ao cantar, também contam sua história de amor163. A reflexão apresentada pelo autor sobre o poder originário da palavra que nos chama à vida, parece-nos igualmente fascinante. De fato, existimos porque Deus pronunciou nosso nome. Assim, dirá Konings, que "somos porque outros nos chamam pelo nome, nos dirigem a palavra" 164. A tradição da nossa fé afirma que somos criados na Palavra de Deus, pois "tudo foi feito por meio dela, e sem ela coisa alguma pode ser 162 HENRY, Paroles du Christ, pp.150-151. KONINGS, Evangelho segundo João, pp. 73-83. 164 Ibid, p.83. 163 100 feita" (Jo 1,3). Gerados na Palavra e por ela, também participamos da sua glória na carne165. Este tema é retomado por Konings com maestria ao tocar a questão da glorificação de Cristo. Assim diz o autor: A carne e a glória estão mútua e inseparavelmente imbricadas. O tipo de glória que João vai descrever só pode manifestar-se em carne. A carne não serve para esconder a glória, mas para manifestá-la166. Esta percepção valiosa da carne como shekiná, morada do próprio Deus em nós, acaso não coincide com a definição espetacular de transcendência em Henry: a imanência da Vida em nossa carne, condição de possibilidade de todos os nossos poderes (poder sentir, poder ouvir)? E assim mesmo, tal perspectiva se insere na tradição da nossa fé que afirma, com santo Irineu, contra os gnósticos de outrora e de hoje, que "a glória de Deus é o homem vivo". Acrescentaríamos, e não existe Vida que não seja esta vislumbrada na nossa carne, não como matéria opaca, incapaz de sentir, mas como pura sensibilidade, como pura afecção. Esta é a vida de Deus, aquele que sente, que ouve os clamores do seu povo (Ex 3,7-8), e que se abaixa para alimentá-lo (Os 11,4), o amado que bate à nossa porta, numa súplica para entrar (Ct 5,2), que falara pelos profetas, e nos últimos tempos se encarnou167, e encarnado se narrou (Jo 1,18). E nós vimos sua Glória (Jo 1,14)! 2.3 O Deus relação: perspectiva trinitária Nosso discurso cairia num vazio de sentido teológico se a Fenomenologia de Cristo não nos conduzisse a pensar, necessariamente, uma perspectiva trinitária. Contudo, este panorama fundamental, que não deve ser negligenciado, tampouco pode ser compreendido apenas como um tópico importante. A doutrina trinitária emerge da profundidade da contemplação do mistério da encarnação168. Trata-se, portanto, da mesma Fenomenologia de Cristo, que ao se manifestar, revela-nos um Deus que se dá como Pai-Filho-Espírito. Neste sentido, Jesus se nos faz presente ou se manifesta como 165 Mais adiante trabalharemos a polêmica questão da distinção fenomenológica entre geração-criação e nascimento em Michel Henry. 166 Ibid, p.80. 167 Cf. DEI VERBUM, n.4, p.123. 168 Cf. RAHNER, Curso Fundamental da fé, p.255. 101 sendo, por excelência, a relação. Pela conjuntura e objetivo da mesma pesquisa, não temos possibilidades de tratar com profundidade nesta dissertação este tema. Assim sendo, justificamos que apenas visamos ressaltar que, do nosso ponto de vista, o discurso henryriano sobre a perspectiva trinitária, embora não seja explícito, efetivamente se faz patente. Observemos a citação abaixo: Alheio à verdade do mundo, o conteúdo do cristianismo consiste numa rede de relações transcendentes que podemos formular assim: relação da Vida absoluta com o Primeiro vivente (do Pai com o Filho-de-Deus, com Cristo), relação da Vida absoluta com todos os viventes (Deus com todos os homens), relação do Filho com os filhos (Cristo com os homens), relação dos filhos (homens entre si) que chamamos em filosofia de intersubjetividade169. Esta "rede de relações transcendentes", da qual nos fala o autor, que é elemento fundamental em nossa fé, acaso não constitui apenas outra forma de discurso sobre a Fenomenologia de Cristo que nos conduz necessariamente à revelação de um Deus relação? Em linguagem mais dogmática, tudo isto não pode ser compreendido como outra forma de anunciar o mistério da Trindade? Como em outra ocasião dissemos, Michel Henry não desenvolve explicitamente uma reflexão sobre a Trindade. Não obstante, as palavras de Miguel García-Baró, em sua apresentação do livro "Palavras de Cristo", manifestam-se cheias de sentido ao anunciar: "A teologia de Henry está tão cheia do Espírito que apenas se refere ao Pai e ao Filho"170. De fato, mesmo não desenvolvendo uma reflexão sistemática sobre o tema, ousamos dizer que se existe uma teologia em Henry (o que efetivamente para nós aparece de forma indubitável), esta se encontra irremediavelmente imbuída da fé trinitária. Todo seu discurso sobre a geração da Vida em si mesma, enquanto Primeiro vivente, remete-nos ao pensamento teológico sobre a pericorese. De forma magistral, através de categorias próprias, como por exemplo, a da interioridade recíproca ou aquela que se refere à ilusão transcendental do ego, o autor apalpa temas clássicos da discussão teológica como a questão da noção de tempo-eternidade ou mesmo o tema da Graça. Alias, o pensamento henryriano é realmente gracioso, é ele mesmo uma dádiva. 169 170 HENRY, C'est moi la vérité, pp. 80-81. HENRY, Palabras de Cristo, p.12 102 A partir da Fenomenologia da Vida, como reflexão que se apoia definitivamente no anúncio cristão, faz-se possível repensar categorias clássicas tais como: a de natureza, pessoa, communicatio idiomatum (comunicação de idiomas) etc. Todavia, este não é o foco de nossa empreitada. Dizemos, pois então, que a Fenomenologia de Cristo é, por excelência, Fenomenologia da Vida. De fato, entre Cristo e Vida não existe nenhuma alteridade (Jo 1,4; 14,6). A identificação entre estas duas fenomenologias, Cristo-Vida, lançar-nos-á ao campo da revelação sobre nossa humanidade. Isto significa dizer que as duas fenomenologias revelam, concretamente, algo sobre nossa condição humana. Porém, o que exatamente dizem? Elas se referem à natureza da nossa relação com o mistério inefável de Deus, ou seja, da Vida e de Cristo. Rahner compreende isto quando aborda o tema da possibilidade da divinização. Daí brota a afirmação absurda, para a Fenomenologia do mundo, de que o doador, sendo ele mesmo o próprio dom, se coloca, também, como o fundamento da acolhida deste dom. Esta autocomunicação da Vida de Deus possui, para Rahner, "efeitos divinizantes". Diríamos, esta autocomunicação possui efeito soteriológico. Não é por acaso que o título dessa seção trata da Fenomenologia de Cristo enquanto função soteriológica. Pois, na percepção da Vida que se manifesta em nós, enquanto atualização dos poderes de nossa carne, encontra-se a possibilidade da nossa salvação em Cristo, a Arqui-carne, o Filho primordial, o salvador171. Pensando um pouco mais a partir de Rahner, em diálogo com Henry, chamamos a atenção para a dupla observação que o teólogo alemão faz em sua introdução sobre a doutrina trinitária. A primeira diz respeito à linguagem. Neste sentido afirma: O vocabulário que a Igreja utilizou nos inícios em uma teologia extraordinariamente vigorosa e no esforço de compreensão conceitual continuou tendo sua história [...] pode muito bem ocorrer de determinada palavra vir a assumir conteúdo que no mínimo acarreta o risco de que insira um sentido falso e mitológico não mais aceitável. 172 171 172 Cf. RAHNER. Curso fundamental da fé, pp. 147-157. Ibid, p.166. 103 Com tal afirmação Rahner aponta o limite da linguagem teológica que, situada sempre nas coordenadas culturais de um tempo-espaço, não pode dizer, definitivamente, aquilo que pretende dizer. Isto quer significar também que a reflexão sobre o dogma não realizou a atualização linguística necessária. Assim, somos lançados em direção à seguinte situação: ao tentarmos comunicar a mensagem cristã nos deparamos com o paradoxo de que nossa linguagem corre o risco de ser incapaz de apontar sequer a direção da mensagem que queremos comunicar. A segunda observação diz respeito à teoria psicológica da explicação trinitária. Aqui se expressa a famosa asserção que afirma: a "Trindade econômica é a Trindade imanente". A preocupação do autor é resgatar um fazer teológico que tenha seu ponto de partida na revelação de Deus em Jesus Cristo. Neste sentido, advoga-se que a doutrina trinitária, entendida a partir de Cristo, é uma consequência da própria história da salvação. Portanto, partindo de um movimento ascendente, da nossa experiência do Cristo, percebemos que Deus se revela em seu Filho, pela ação do Espírito, como Pai173. Diríamos, como que em metáfora, através deste movimento ascendente, da fé em Cristo, percebemos o movimento condescendente de Deus que se nos dá como Pai, em seu Filho, mediante a ação do Espírito. Tudo isto que é afirmado por Rahner é dito também pela Fenomenologia da Vida de Henry, ainda que não possua efetivamente uma abordagem direta sobre a doutrina trinitária. Talvez não o tenha feito por falta de tempo, ou simplesmente para fugir ao tema da linguagem dogmática tradicional. Para Henry, a Vida disse tudo ao se dizer no Filho. Ao se dizer em sua Palavra encarnada, a Vida disse mesmo uma Palavra cheia de Espírito. O "Eu sou a Verdade", dito pelo Cristo, não pode ser entendido sem a ação do Paráclito, aludido no v. 17 do mesmo capítulo 14 de João. O Espírito da Verdade, e ressaltamos aqui a identificação entre Verdade e Cristo, é enviado pelo Pai a pedido do Filho: "eu rogarei ao Pai e ele vos dará outro Paráclito, para que convosco permaneça para sempre, o Espírito da Verdade, que o mundo não pode acolher, porque não o vê nem o conhece. Vós o conheceis, porque permanece convosco. (Jo 14,16-17). O que permanece conosco que o mundo não pode conhecer? Aquilo que é alheio ao mundo, a própria Vida de Deus, imanente em nossa carne. Este texto de São João se apresenta, simultaneamente, como introdução e conclusão magistral da Fenomenologia da Vida. Trata-se de uma narração, efetivamente trinitária, tal como o pensamento sobre a manifestação da Vida de nosso 173 Cf. Ibid, pp. 165-170. 104 fenomenólogo. Visto que toda autorrevelação de Deus descortina o horizonte para a própria revelação sobre o homem, passamos agora ao discurso sobre nossa condição humana primordial, na tentativa de vislumbrar uma antropologia fundamental. 3 A condição Humana primordial: por uma antropologia fundamental A Fenomenologia de Cristo, revela-nos a condição humana primordial. Por isso, cabe-nos agora pensar, à luz da humanidade de Jesus, o estatuto do próprio ser humano. Nosso discurso desembocará, necessariamente, numa antropologia fundamental. De fato, ao fim da sua secção sobre a Fenomenologia de Cristo, antes de nos lançar à reflexão do ser humano como "Filho de Deus", Henry aponta a desconstruçãoconstrução frutuosa da concepção cristã acerca do homem. Assim, dirá: Esta concepção do homem como ser do mundo é a que o cristianismo faz em pedaços. E o faz porque entende o homem a partir de seu nascimento transcendental como um Filho da Vida.174 O cristianismo provoca, efetivamente, um esfacelamento da imagem do homem como ser do mundo ao entendê-lo a partir da categoria da transcendência, imanência da Vida na carne. Compreendendo o ser humano a partir do seu nascimento transcendental como um filho da Vida e, se de fato, a Vida é Deus, compreende-o também como filho de Deus. Esta concepção cristã da humanidade faz emergir uma novidade antropológica que produz duas consequências imediatas segundo Henry: de um lado, transtorna a concepção antropológica tradicional, que afirma o homem como Dasein, como ser no mundo (do mundo); do outro lado, introduz o homem no sistema autárquico da Vida fenomenológica absoluta e de seu Verbo, possibilitando assim seu acesso a Cristo, sua salvação. Introduzir o homem no sistema autárquico da vida, significa, na linguagem teológica oriental, divinizá-lo, introduzi-lo no seio do Deus trino, Deus relação. De fato, mesmo não sendo deste mundo, sentimos, inelutavelmente, o peso do mesmo, a carga de existir aqui e agora, neste tempo-espaço determinado. Isto nos remete à questão existencial fundamental. Trata-se do Paradoxo de ter nascido sem ter 174 HENRY, C'est moi la vérité, p.119. 105 pedido: o peso existencial de ter que se suportar a si mesmo. Este tema é abordado por Henry na sua fenomenologia da carne, ao descrever a corporeidade original, a partir de sua auto-afecção radical, e ao propor a analítica do "eu posso". Toda esta questão, desenvolvida na segunda parte da obra Encarnação, já se encontrava presente no livro Eu sou a Verdade. Pensando os "paradoxos do cristianismo", Henry enfatizará a narrativa do fardo ligeiro da Vida absoluta, contraposto ao peso do vivente de ter que se tolerar como existente nesta carne em que se encontra dado originalmente sem o haver desejado. Sobre Isso, diz o autor: Esse sentimento de estar carregado de si para sempre sem havêlo querido, não é precisamente o ego quem o dá a si mesmo, não é ele quem determina as condições, tampouco é ele quem o leva: só o dá no ego a autodoação da Vida absoluta, só o traz e o suporta nele aquilo que o faz se suportar a si mesmo, o sofrer da Vida absoluta na qual esta chega a si na ebriedade de sua Ipseidade original.175 Suportar-se, irremediavelmente, sem o haver desejado constitui, de fato, um paradoxo existencial. Assim, a desventura de viver consistiria em que o ego afetado por um conteúdo que não escolheu carrega um pesado fardo. Este é a Vida que veio a mim sem que eu a escolhesse. Contudo, como pode a vida ser um fardo? Antes não devíamos aceitá-la como uma dádiva? A respeito disso, parece-nos interessante a interpretação de Henry sobre a passagem de São Mateus (11,28-30). Por que diz Cristo que seu jugo é suave e leve enquanto o nosso é pesado, duro de suportar? Porque na Vida, que é Cristo, não existe outro sentir que não seja aquele do gozo eterno da Vida, que se engendra e se ama eternamente. Assim, na Vida não existe outro padecer que não seja sua alegria e seu amor sem limites. Para Henry, a transformação da carga pesada em fardo leve, acontece somente quando o ser humano se experimenta a si mesmo como filho no Filho. Ao se perceber nesta experiência radical, a de estar dado em uma Vida que é puro dom, ocorre um segundo nascimento. Este se faz condição de possibilidade para viver a vida não mais a partir da angústia de uma existência pesada e sem sentido, mas como pura 175 Ibid, p.261. O termo "carregado de si" pode ser entendido através de um neologismo, tradução radical do termo ipseidade, em que entendemos a nós mesmos enquanto esta mesmidade. Este sentimento radical de estar sempre dado a mim mesmo, nesta auto-afecção radical, porém secundária, que provém da autoafecção primordial da Vida em si mesma. 106 gratuidade. Não mais se vive a partir da fraqueza e da impotência de ter que ser sem têlo escolhido, mas sim a partir da esperança e da alegria de existir neste hiper-poder da Vida que, como diz Paulo (2Cor 12,10), paradoxalmente me faz forte quando pareço fraco176. 3.1 Filhos no Filho Esta seção visa abordar uma fantástica afirmação teológica haurida da fé cristã, retomada, por sua vez, pelo discurso henryriano. Trata-se da asserção que defende a condição de filho como uma verdade originária. O homem não se torna filho da Vida ou filho de Deus numa posteridade devido à sua conduta existencial mais ou menos adequada. Ele nasce da Vida e, portanto, deve ser compreendido como Filho da Vida. Sendo o ser humano um partícipe da vida, ele não se dá a si mesmo enquanto vivente. Seu nascimento é uma dádiva. Segundo a fé cristã, nossa condição de vivente, deve ser percebida como um dom que recebemos da Vida, mediante a mesma Vida que é Cristo. A fenomenologia henryriana apresenta uma visão antropológica que destoa daquela desvelada pelo realismo ingênuo, que pensa o homem como um ser a mais no mundo. De fato, nossa presença se dá de uma forma bem distinta dos outros corpos que habitam o universo. Primeiro, porque somos um corpo de carne, somos seres encarnados. Segundo, estamos presentes de uma forma diferente, porque conscientes desta presença, podemos agir efetivamente sobre nós mesmos e o mundo à nossa volta. Percebemos então, que a própria tradição filosófica, concebida a partir das reflexões de Descartes, Kant e Husserl, já contradiz, como bem nos lembra Henry, a noção do realismo ingênuo. Fazendo emergir, portanto, o homem em sua condição epistemológica, em sua possibilidade transcendental, como sujeito capaz de conhecer e dominar a realidade. Contudo, a fenomenologia henryriana propõe, a partir da tradição cristã, outra visão do ser humano177. A concepção cristã do homem como Filho introduz, segundo Henry, um caráter antropológico - filosófico revolucionário, ao afirmar que ele não é um ser-domundo como os outros corpos. Trata-se de uma virada antropológica que anuncia a passagem de uma Fenomenologia do mundo a uma Fenomenologia da Vida. 176 177 Cf. Ibid, p. 263. Cf. Ibid, pp. 121-123. 107 A inversão da concepção do homem, realizada de uma vez por todas pelo cristianismo, não consiste na modificação dos elementos incluídos na concepção reinante. Consiste em sua exclusão. Outra essência fenomenológica define ao homem transcendental cristão, outra verdade. Outro modo de fenomenalização da fenomenalidade constitui sua realidade substancial, a carne fenomenológica que constitui sua carne. O cristianismo procede a esta substituição radical de um modo de verdade por outro quando apresenta o homem como filho.178 A concepção reinante, referida no texto acima, diz respeito ao realismo ingênuo ou à filosofia transcendental, ambas partícipes da Fenomenologia do mundo. Este outro modo de fenomenalização da fenomenalidade se refere à nossa condição de viventes no seio da Vida. A outra essência fenomenológica que define ao homem é justamente sua condição de filho gerado no Filho. Com isto, o autor pretende afirmar que a existência encarnada, que somos cada um de nós, difere-se, radicalmente, do conceito de criação presente na Fenomenologia do mundo. Ao afirmar que o homem não é um ser do mundo como os outros corpos, afirmase que o ser humano possui origem distinta. Ele não foi criado do mesmo modo como todas as outras coisas, mas foi criado à imagem e semelhança de Deus (Gn1). Esta criação à imagem e semelhança é interpretada por Henry a partir da categoria, até então teologicamente reservada à vida intra-trinitária, de geração dos filhos no Filho. Sabemos o quão problemático se faz esta hermenêutica henryriana. Afirmar que o homem é gerado no Filho como filho destoa da clássica tradição teológica que afirma o homem como criação ordinária, somente o Filho de Deus é gerado eternamente. Somos conscientes do risco hermenêutico da interpretação henryriana no que diz respeito à origem da vida do ser humano. Contudo, depois de nossa pesquisa, afirmamos que não nos parece que a reta intenção do autor possa ser colocada em questão. Isto significa afirmar que não conseguimos detectar em sua teoria, filosofia do cristianismo, a intenção de derrubar a tese teológica da criação do homem como marca da sua radical alteridade em relação a Deus. Na teoria do autor, o homem, apenas não deve ser considerado como uma criatura ordinária, ele é de ordem extraordinária porque pertence à esfera da Vida do próprio Deus, isto significa ser feito à imagem e semelhança. 178 Ibid, p.124. 108 Portanto, pensamos que a palavra geração, no discurso henryriano, sempre que se refere ao ser humano, para evitar cair na interpretação que acarreta possível lesão à ortodoxia, deve ser pensada em dois sentidos. No primeiro, geração significa o mesmo que nascimento transcendental do homem que tem sua origem no seio da Vida, mais propriamente dito, criado no Filho. No segundo sentido, pode-se pensar que o homem é gerado enquanto é criado de forma distinta das outras realidades. Neste sentido, a geração do homem no Filho, significa o mesmo que sua criação à imagem e semelhança da Vida, que é Deus. Isto porque recebe de Deus a Deus mesmo, ou seja a Vida. Devemos colocar o acento no verbo 'receber', que aponta para a dimensão de passividade do homem em relação à Vida absoluta. Retomaremos este tema no nosso terceiro capítulo, quando trataremos da Inteligibilidade primordial e o sentido cristão da salvação. Para prosseguir nosso discurso, urge retomar a distinção basilar operada no pensamento henryriano entre geração e nascimento. Esta reflexão colocará em xeque a concepção filosófica clássica do nascimento, segundo a qual nascer significa vir a ser, entrar na existência. Se a fenomenologia funda a ontologia, poderíamos dizer que nascer, segundo uma compreensão fenomenológica, pode ser entendido como vir a aparecer neste horizonte de visibilidade do mundo. Não obstante, tal visão nos lança num profundo dilema, quando compreendemos, segundo Henry, que neste horizonte do aparecer do mundo nenhum nascimento é possível, pois a Vida não se manifesta no aparecer do mundo. Desta forma, a concepção clássica, que concebe todo nascimento como o "vir a aparecer neste mundo", fica relegada à ilusão. No mundo não é possível nenhum nascimento. Não somente dizemos que muitas coisas vêm ao mundo sem por ele ter nascido, senão, mais radicalmente, que a vinda ao mundo proíbe de antemão todo nascimento concebível se é verdade que, no "afora de si" do mundo, o abraço da vida consigo estava quebrado antes de se produzir, se a Verdade da Vida é irredutível à do mundo.179 A distinção entre geração e nascimento, a partir do mundo da Vida (Lebenswelt), já foi tratada tangencialmente quando abordamos a questão da autorrevelação da Vida absoluta no seu Logos primordial, e haverá de ser retomada, no terceiro capítulo, 179 Ibid, p.78. 109 quando abordarmos os temas da Protologia e da Soteriologia. Vimos, contudo, que o termo geração encontra-se reservado, teologicamente, para a relação de mistério e amor que ocorre na Vida que se autoengendra como Pai-Filho no Espírito. Ao se engendrar, no abraço patético de si mesmo a si mesmo, a vida se engendra como Filho. A geração do Primeiro vivente ou do Arqui-Filho é o ponto de partida para a compreensão do nascimento transcendental de cada homem e mulher como filhos e filhas da Vida. Portanto, esta questão primeira da geração e nascimento nos lança no terreno teológico da ressignificação do conceito de filiação. Já observamos que, segundo a Fenomenologia do mundo, nascer significa aparecer sob esta estrutura de visibilidade ek-stática. Todavia, segundo a Fenomenologia da Vida, o nascimento se refere a uma fenomenologia mais radical e não pode ser reduzida ao aparecer do mundo. Vale a pena ressaltar uma vez mais este pensamento: Pois o nascimento não consiste nesta sucessão de viventes que pressupõe em si a vida, mas consiste na vinda à vida de cada vivente a partir da Vida mesma. Tampouco se pode compreender a não ser a partir desta e de sua essência própria, a partir da autogeração da Vida como sua autorrevelação na Ipseidade essencial do Primeiro Vivente. 180 Ao advogar o nascimento como algo distinto desta sucessão de viventes, o autor nos remete ao versículo 13 do prólogo de São João : "eles, que não foram gerados nem do sangue, nem de uma vontade da carne, nem de uma vontade do homem, mas de Deus". Contudo, faz-se importante perceber que, segundo o próprio Henry, ao se recusar a fundamentação radical da filiação no homem, não se procede assim por razão semelhante ao maniqueísmo, que advoga que o sangue e a carne são maus. A tese que fundamenta esta recusa de que não chamemos "Pai" a nenhum homem sobre a terra, ancora-se em algo que outrora já fora explicitado em nosso discurso (Mt, 23, 9). Tratase da indigência ontológica que a todos assola. Assim sendo, o ponto nevrálgico é que este sangue e esta carne são viventes, mas não são, em si mesmos a Vida. Portanto, como tal, não existe possibilidade que sejam geradores autônomos da vida. Assim, fica demonstrada a absurdidade que constitui a pretensa paternidade do mundo. Se cada um que se deixa chamar de pai não é a vida, mas somente vivente, então esta autotitulação 180 Ibid, p.100. 110 não pode ser lícita. Isto porque, como vivente, também se coloca como receptor deste dom primordial de "ser encarnado na Vida", não sendo a vida em si, não pode também dá-la, não deve, portanto, ser considerado ou chamado, originalmente, de pai. Como diz Henry: Situar os conceitos de nascimento e de Filho sob a salvaguarda do Arqui-Filho transcendental e, de fato, referir-se necessariamente à Vida absoluta cujo Arqui-Filho não é senão o autocumprimento sob a forma de sua autorrevelação. Trata-se de apelar inevitavelmente a outra Verdade distinta daquela do mundo, a essa Verdade da Vida fora da qual não existe, efetivamente, nem nascimento nem filho, nenhum tipo de vivente.181 Ao pensar o homem na qualidade de filho, o pensamento henryriano lança um olhar crítico sobre a Cristologia das duas naturezas. Como antes dissemos, para o autor esta reflexão cristológica apresenta problemas por gerar preconceitos que impedem a intelecção do cristianismo. O primeiro se relaciona com a ideia de que, ao pensar em Cristo a união entre duas naturezas (humana e divina), pode-se pressupor que exista uma natureza humana preexistente, posteriormente assumida pelo Verbo. Diante disso, surge o desafio de "explicar Cristo a partir de uma natureza humana que não existia quando Cristo foi engendrado no autoengendramento da Vida absoluta"182. Onde fica a afirmação de João 8,58 (eu sou antes de Abraão)? Segundo o pensamento henryriano, se o homem foi engendrado na Vida, não pode haver nele outra "matéria fenomenológica" que não seja aquela da Vida. Conceber uma natureza humana separada daquela própria na qual foi gerada, constitui uma aberração para o cristianismo, e coloca em xeque a afirmação capital do homem enquanto filho no Filho. Prosseguindo ainda sua análise, o autor dirá, com relação à significação negativa e positiva da afirmação do homem como filho da Vida, que no primeiro momento, esta asserção arranca o homem da compreensão ordinária dos seres inseridos no mundo natural. Negando, portanto, sua existência como ser do mundo. O homem não é um corpo qualquer perdido no espaço e no tempo. Não é o corpo opaco, objeto de análise das ciências duras. Por isso, é inconcebível reduzi-lo ao ponto de vista da filosofia 181 182 Ibid, p. 94. Ibid, p.126. 111 transcendental. Isto porque ele não pertence a este mundo, enquanto horizonte de visibilidade. Sua essência não pode ser captada pela Fenomenologia do mundo. Exigese uma outra epistemologia para sua compreensão, uma Inteligibilidade primordial. Trata-se de um outro modo de manifestação mais radical, o do mundo da vida (Lebenswelt). A significação positiva nos lança uma pergunta crucial, ponto de crítica da própria fenomenologia henryriana. Partindo da afirmação de que o homem possui em si a essência divina, por ser ele filho da Vida, pergunta-se, com toda propriedade: em que ele se diferencia do próprio Deus? Aqui desponta a questão da individuação, que segundo Miguel García-Baró, fica sem resposta consistente na teoria da fenomenologia da Vida de Henry183. Contudo, ousamos dizer, que desde nosso ponto de vista, este problema pode ser compreendido, como bem afirma o autor, a partir da análise do nascimento transcendental do Filho na Vida. O conceito chave é o de autoafecção. O que diferencia a Vida absoluta de todo vivente, o que constitui o marco do princípio de individuação é a forma com que ocorre a afecção. No caso da Vida ela é a autoafecção primordial. O própria da Vida é que ela é esse eterno abraço patético a si mesma, sem nunca se distanciar de si. Isso constitui o que Henry chama de sentido forte da autoafecção. O sentido fraco da autoafecção se refere ao vivente que se experimenta a si mesmo, mas em um segundo sentido, devido à indigência ontológica que acusa o fato de não ser ele o responsável último desta autoafecção, uma vez que não se deu a si mesmo a Vida. Assim, segundo Henry, "existe, portanto, nesta autoafecção do "eu" uma passividade, uma vez que não sou "eu" a fonte desta experiência"184. Ao final desta secção retomamos o tema do nascimento com uma interrogação profundamente evangélica. O que será que Jesus quis dizer a Nicodemos quando afirmou que ele precisava nascer de novo? O "bom homem" entendeu isto no sentido do realismo ingênuo pensando que deveria voltar ao ventre materno. Contudo este nascimento dito por Jesus, refere-se ao segundo nascimento na Vida, que espiritualmente pode ser compreendido como o caminho de conversão, ou simplesmente, a percepção da Graça de sermos um vivente no seio da Vida. A tradição espiritual, especificamente cristã, sempre advogou esta possibilidade de nascer de novo. O sacramento do Batismo é entendido, tradicionalmente na comunidade cristã, como um segundo nascimento. Esta morte para o mundo, pode ser interpretada, segundo Henry, não como um abandono da nossa condição carnal, mas como assunção da 183 184 Cf. HENRY, Palabras de Cristo, p.12. Cf. HENRY, C'est moi la vérité, pp.128-137. 112 condição humana primordial, a de sermos, filhos no Filho. Isto exige uma nova condição epistemológica, uma nova inteligibilidade. Exige-se o êxodo da ilusão transcendental do ego para a percepção da nossa condição de irmanados na vida. De fato, "agora vemos como em espelho, de maneira confusa, mas depois veremos face a face. Agora meu conhecimento é limitado, mas. depois, conhecerei como sou conhecido" (1Cor. 13,12). Não é possível conhecer como sou conhecido a não ser no seio da Vida. 3.2 Sobre o esquecimento da nossa condição de filho: Ilusão Transcendental do Ego Este tópico traz como reflexão o drama existencial do esquecimento da nossa condição de Filho. Toca, portanto, temas clássicos da teologia cristã, tais como: nossa condição de labilidade e a possibilidade da salvação. Desde já salientamos que a questão destacada por nós, segundo o pensamento de Henry, não é a demonstração de como os homens que vivem uma vida que não se fundamenta neles mesmos poderiam, por uma espécie de mutação em sua própria natureza, transformarem-se em algo distinto do que outrora foram. O homem, como dissemos, não se torna filho de Deus, por uma espécie de mutação espiritual, abandonando assim um velho casco e assumindo um novo. Há de se entender muito bem o "novo nascimento" sempre anunciado pelo cristianismo. Nosso propósito gravita em torno da indagação de como nós homens, filhos de Deus, podemos perder nossa condição e, ao perdê-la, se nos é possível voltar a encontrá-la. À guisa desta problemática gravitará a tarefa de pensar as duas causas deste esquecimento da condição de filho 185. As causas que provocam o esquecimento da nossa condição de filhos serão determinadas respectivamente pelo pensamento henryriano como Ilusão transcendental do ego e dissimulação da Vida. Para entendermos estas duas causas, precisamos retomar o tema da geração transcendental de cada vivente na Vida. Abordar o processo de nascimento transcendental de cada vivente, a partir do Arqui-Filho, na Ipseidade da Vida absoluta, equivale a levar a cabo uma interrogação capital para a Fenomenologia da Vida. Trata-se de se perguntar pela mesma possibilidade de que nós sejamos este "ego" capaz de pronunciar a cada instante um "eu". Então, previamente ao tema do 185 Cf. Ibid, p. 205. 113 esquecimento da condição de filhos, destaca-se o tema da extraordinária possibilidade de sermos este filho particular que pode a cada instante pronunciar "eu". Todo vivente, gerado na Ipseidade da Vida absoluta, é gerado como um "si", um "eu". E não é possível que se estabeleça nenhum "eu" fora deste processo de geração da Vida. Parece-nos interessante a afirmação henryriana segundo a qual, ao dizer "eu", este "si" o diz de forma acusativa para ressaltar que este "poder" de dizer "eu" é ele mesmo uma dádiva, uma vez que não lhe foi conferido senão pela Vida. Ao abordar a geração de cada vivente na Ipseidade da Vida absoluta, Henry introduzirá uma distinção complexa entre o que ele denominará "eu" e "ego". Não faz parte do nosso objetivo aprofundar ou discutir este instigante tema. Apenas o tocamos tangencialmente, porque constitui condição de possibilidade para que possamos entender o que segue. Para Henry o "eu" gerado na Ipseidade da Vida absoluta, no instante mesmo em que nasce, entra em possessão deste "poder viver". Assim, dir-se-á que pronunciar "Eu" é o mesmo que pronunciar "Eu Posso". Desta forma é que a fenomenologia henryriana distinguirá dois tipos fundamentais de "Poder": primeiro, o"poder" deste ego, colocado em "possessão" de si mesmo; em seguida, o poder de dizer "eu", contraposto ao "não poder". Este último é mais decisivo e importante que o primeiro e significa "a impotência absoluta do Eu no que se refere ao fato de se encontrar em posse deste poder, com capacidade de exercê-lo"186. A expressão "se encontrar" em posse de um poder é capital para entendermos o raciocínio do autor. O "Eu", de fato, "se encontra" em posse de um poder que lhe foi "dado". Assim, todo "poder" do ego está baseado na gratuidade radical da Vida que, ao engendrar o vivente no seu seio, engendra-o como este "poder" de ser um "si" que sente. Na possessão de si mesmo, experimentando-se constantemente neste ato sempre novo de dizer "eu posso" (correr, amar, viver), o ego se toma como fonte e origem deste "poder". Assim nasce a primeira causa do esquecimento da condição de filho, denominada por Henry de Ilusão transcendental do ego. Antes de abordar a segunda causa, parece-nos necessário ponderar algo essencial na teoria henryriana da geração transcendental do "eu". Trata-se da afirmação de que esta primeira causa do esquecimento da condição de filho, porta em si, uma verdade necessária. Esta é que a doação do poder ao eu gerado na Vida é verdade e não uma ilusão. Ilusório constitui somente o fato de que o "ego" se tome como fonte destes "poderes". Contudo, o "ego" 186 Ibid, p.173. 114 se encontra, efetivamente, em "posse" de si mesmo de uma vez por todas. O ego, encantado e fixado na doação efetiva do poder, esquece a fonte e a possibilidade de todo poder, a Vida geradora de todo vivente, a autodoação da Vida fenomenológica absoluta no Filho Primordial. Ocorre então, um velamento da verdade sobre ele mesmo, pela empolgação do exercício do seu 'eu' que se encontra em possessão dos "poderes" a ele doados pela Vida187. Partindo da afirmação espantosa de que o esquecimento da nossa condição de filhos não ocorre devido a fatores externos, mas que constitui parte do próprio processo da geração do "eu" transcendental na Vida fenomenológica absoluta, buscaremos abordar a segunda causa deste ocultamento da nossa condição primordial. A dissimulação da Vida favorece a compreensão do paradoxo, aparentemente insuperável, de que estamos fadados, pelo próprio processo da geração dos viventes na Vida, a cairmos no esquecimento da fonte de nós mesmos. Como se a Ilusão transcendental do ego fosse o destino de todo "si" transcendental gerado na Vida. A dissimulação da vida afeta diretamente a noção de tempo que temos segundo a estrutura da Fenomenologia do mundo. Resulta que a vida é imemorial porque nela não há temporalidade. Não esta temporalidade das "praias de exterioridade" da estrutura ek-stática do mundo, onde tudo desliza para um passado, para o vazio e o nada. Assim, este esquecimento da Vida é inevitável, visto que faz parte de seu estatuto fenomenológico. O 'Si' da vida se deixa esquecer. Se o esquecimento é entendido como pensamento, então concluímos, com Henry, que esquecemos aquilo no qual não pensamos mais. Pensar em algo, dizemos com o autor, é lançar um olhar intencional para a coisa do mundo. Esta relação intencional, "aquilo no qual pensamos surge então diante deste olhar , esse 'fora' que é a verdade do mundo"188. Portanto, se na vida não há nenhum "fora", se não há as praias de exterioridade, ou a estrutura ek-stática a partir da qual o olhar possa se deslizar, esse raciocínio não se aplica. A Vida, na sua autoafecção, nunca se separa de si mesma, não há nenhuma distância nela, e por isso mesmo, a vida é incapaz de pensar em si mesma, não há recordação, não há o que recordar, porque na vida não existe passado, ela é sempre presente. Assim diz Henry: A vida é esquecimento, esquecimento de si no sentido radical. Enquanto o esquecimento da vida é definitivo, insuperável, a vida carece de memória. A vida carece de memória porque 187 188 Cf. Ibid, pp.177-179. Ibid, p.186. 115 nenhuma intencionalidade, nenhuma menção de nenhum objectum é capaz de se situar nela, de se interpor entre ela e ela mesma. [...] A vida é imemorial. O homem esquece sua condição de filho porque a Vida escapa de toda memória possível. 189 A dissimulação da Vida no "ego" pelas causas fenomenológicas acima explicitadas, abre espaço para que este possa mergulhar no mundo. Assim, segundo Henry, quanto mais se oculta a Vida no ego, mais disponível permanece o mundo. A partir daqui brota uma espécie de "egoísmo transcendental". Este se baseia na desmedida preocupação do homem pelo mundo, que na verdade se resvala constantemente na preocupação por si mesmo. Temos, então, duas maneiras de relacionamento do ego: a relação consigo na preocupação com o mundo, que leva ao egoísmo, e a relação do ego consigo na Vida. A denúncia, por parte de Jesus, das vãs preocupações, aparece-nos aqui como sugestiva (Mt 6,25-33) sobre o abandono à providência) e (Lc 10,41) "Marta, Marta, tu te inquietas e te agitas por muitas coisas; no entanto pouca coisa é necessária, até mesmo uma só. Maria, com efeito, escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada". O que havia escolhido Maria, senão o ficar jogada aos pés da Vida, escutando suas Palavras, sentindo-se a si mesma, neste sentir maior que é o próprio Cristo? Voltemos à questão angustiante de como pensar a saída do ego do esquecimento da sua condição primordial se este é provocado pelo próprio processo de autogeração da Vida. Não existe outra saída senão aquela oferecida pela tese cristã do segundo nascimento. Este se instala como possibilidade do homem de superar este esquecimento radical. Esta possibilidade é o que se entende na tradição espiritual do cristianismo como salvação. Para Henry, este segundo nascimento é o reencontro daquela condição original de todo vivente. Assim, a possibilidade da superação do esquecimento e da salvação está na condição de filho. O retorno do filho se dá pela própria condição de filho. Então, segundo o autor: Unicamente porque, no automovimento de sua temporalidade imanente, esta Vida nunca se separa de si, o ego, dado a si 189 Idem. 116 mesmo na autodoação desta Vida absoluta, não está separado dela nem dele mesmo. 190 Isto equivale a dizer que o filho não se separa da Vida. Mesmo perdido na ilusão transcendental, tomando-se a si mesmo como fonte de todos os seus poderes, sempre existe a possibilidade de recordar a condição primordial de filho. Acaso não é isto o que nos narra a parábola do "filho pródigo e do Pai misericordioso" (Lc15,11-32)? Aquele filho, mesmo distante, havia esquecido de sua condição primordial, mas não perdido. Segundo Henry, "a imanência da Vida absoluta na vida própria e singular do ego é o que faz teoricamente possível a salvação."191. É o que faz possível a volta do filho para a casa paterna. Ao se lembrar da dádiva que significa ser um filho, não há outro caminho, colocamo-nos em marcha para a casa do Pai. Para o cristianismo, no entanto, dir-nos-á o próprio autor, o segundo nascimento que faz escapar da morte e recuperar a condição de filho ocorre devido a uma mutação que se leva a cabo no interior da vida mesma. Esta mutação se refere à "autotransformação da vida que consiste em um fazer que reconduz à sua essência verdadeira, é a ética cristã."192. A ética cristã religa as duas vidas: a do ego e a de Deus. Contudo, disto agora não trataremos, pois este é o tema a ser desenvolvido com acuidade no nosso próximo capítulo, quando abordarmos o sentido cristão da salvação. 3.3 Por uma antropologia fundamental Pensar uma antropologia fundamental supõe, no fundo, fazer ecoar uma pergunta, radicalmente fenomenológica sobre o ser humano, a saber: quem é este que aparece como corpo e que a todo instante pronuncia um "eu"? Não há nada que se inventar neste tópico. De fato, todo nosso discurso até agora se encontra imbuído de uma reflexão fundamental sobre a realidade humana a partir da Fenomenologia da Vida. Simplesmente destacamos que a concepção antropológica presente no pensamento henryriano parte de seu entendimento da geração do "Si" transcendental na Ipseidade da Vida absoluta. Este vivente que aparece constantemente pronunciando um "eu", para Henry, não pode ser compreendido senão a partir de sua geração no seio da Vida. Gerado na dinâmica do eterno abraço da Vida a si mesma, o vivente é um corpo de 190 Ibid, p.202. Ibid, p.208. 192 Ibid, p.209. 191 117 carne. Este constitui o atributo principal da fenomenologia henryriana. Antes de qualquer coisa, somos carne, porque viventes. Este termo, como sabemos, possui, no pensamento do autor, o significado radical de autoafecção. O homem é portanto, primordialmente, um ser afetado pela Vida fenomenológica absoluta. E só é um vivente, enquanto compreendido nesta doação essencial da Vida na qual ele é gerado ou, na linguagem teológica tradicional, criado à imagem e semelhança. O pensamento henryriano, segundo Lacroix, permite pensar uma antropologia fundamental, na medida em que colabora na reflexão da ontologia do corpo-sujeito. Assim, merece atenção as três acepções de corpo haurida da fenomenologia de Henry. Em primeiro lugar, o ser humano, deve ser compreendido a partir do seu "arquicorpo", chamado o corpo originário, ou como prefere Lacroix, o corpo de carne. Este pode ser definido como o "lugar de nossa presença no mundo e em nós mesmos (...) o alfa e o ômega de nossa experiência do mundo"193. O arquicorpo nos remete uma vez mais ao nascimento transcendental do homem na Ipseidade da Vida absoluta, a partir da qual, recebe seu "poder de sentir", tal como abordamos anteriormente. De fato, uma nota antropológica essencial é aquela que se refere ao homem como este "Eu posso" visceral narrado tantas vezes na Fenomenologia da Vida pelo autor. A segunda acepção de corpo é o corpo orgânico, que aparece como um corpo metaxológico194. Quer dizer, como aquele que se situa no meio e se constitui a partir de uma dupla relação: por um lado, a relação interorgânica que os órgãos mantêm entre si; por outro, a conexão necessária que deve existir entre cada órgão e sua referência última, a saber: o corpo originário. É a partir deste que se dá a compreensão dos "poderes" particulares conferidos a cada órgão. Lacroix destaca que não existe um dualismo entre o corpo originário e o corpo orgânico, afirmando que a diferença entre eles se instaura na ordem ontológica e não ôntica. Trata-se, especificamente, da diferença entre o corpo doação (corpo originário) e o corpo dado (corpo orgânico). Assim temos que: O corpo orgânico possui um estatuto intermediário entre imanência e transcendência: de uma parte, ' o ego é a substância de seu organismo'; de outra, ele é chamado 'corpo 193 LACROIX, O corpo de carne, p. 143. Cf. DESMOND, William. Being Between. Clio: journal of literature, History and the Philosophy of History 204 (1991), p.315. 194 118 transcendente, que não é outra coisa senão a fronteira desta vida'.195 O corpo objetivo constitui a terceira acepção destacada por Lacroix e pertence definitivamente ao mundo transcendente. Isto porque, de fato, pode ser tomado como objeto exterior, passível de ser analisado pela ciência. Contudo, mesmo assim, este corpo não pode ser situado no mundo como qualquer outro corpo dado no horizonte de visibilidade ek-stática. Nosso corpo objetivo, não é puramente um ob-jecto, um ser lançado no fora deste mundo. Ele é dado e constituído a partir de uma matéria fenomenológica distinta da matéria fenomenológica dos corpos opacos que nada sentem. Uma abordagem mais aprofundada sobre o tema pode ser feita a partir da obra " Philosophie et phénoménologie du corps"196, na qual Henry aprofundará a análise de Maine de Biran. Por questão de objetivo e tempo, não nos detemos nesta análise, embora a consideremos de extrema importância para a compreensão deste tema. Cabe ressaltar ainda, que as três acepções de corpo que acabamos de vislumbrar, a partir do pensamento henryriano, não introduzem, em absoluto, uma espécie de esfacelamento de sua visão sobre o homem. A antropologia henryriana não se destaca da sua compreensão da Fenomenologia da Vida, e por isso mesmo, constitui uma unidade. A distinção ressaltada por Lacroix se insere numa descrição metodologicamente fenomenológica visando a melhor compreensão da realidade fundamental do ser humano, refletida magistralmente pela análise henryriana do mundo da Vida. A intelecção do conceito cristão de homem, para Henry, encontra-se fascinantemente narrada no Prólogo de São João. É a partir deste texto fundacional que poderá ser pensada uma antropologia fundamental, compreendida a partir da Inteligibilidade primordial. A tese da encarnação, tantas vezes recordada como princípio investigativo de nossa empreitada, emerge novamente como o ponto nevrálgico do nosso discurso antropológico, que, por sua vez, necessariamente se instaura como cristológico. A relação dialética entre antropologia e cristologia se reacende quando nos damos conta que, segundo a fenomenologia henryriana, o Primeiro vivente ou o ArquiFilho se estabelece, tanto no cristianismo como no pensamento do autor, como 195 LACROIX, O corpo de carne, p.144. Cf. HENRY, Michel. Philosophie et phénoménologie du corps. Essai sur l'ontologie biranienne. Paris: PUF, 1965. 308p. ( Filosofia y Fenomenologia del Cuerpo: Ensayo sobre la ontología de Maine de Biran. Ediciones Sígueme, Salamanca, 2007. 302p.) Não tivemos acesso ao texto francês, por isso a citação desta obra ocorrerá sempre a partir da versão espanhola). 196 119 chave hermenêutica para a compreensão de nossa condição humana. Portanto, toda antropologia que se pretende pensar o ser humano a partir de sua condição originária, passa necessariamente, pela tematização da nossa condição de seres encarnados. A compreensão do homem como vivente gerado na Arquicarne da Vida, estabelece-se como viés antropológico necessário para toda reflexão que se pretende fundamental. No ocaso deste segundo capítulo, parece-nos relevante destacar a possibilidade de uma antropologia fundamental a partir da conexão entre a categoria de "autocomunicação" em Rahner e a "Fenomenologia da Vida" em Henry. Sobre a Autocomunicação de Deus, Rahner afirma que ela não pode ser confundida com um discurso objetivante sobre esta realidade. Trata-se de uma autocomunicação ontológica de Deus, que, por sua vez, pode ser pensada da seguinte forma: "O termo 'autocomunicação' visa propriamente a significar que Deus se torna ele mesmo em sua realidade mais própria como que um constitutivo interno do homem". Ora, esta definição rahneriana vai ao encontro do pensamento henryriano que defende uma Fenomenologia da Vida. Neste sentido, não nos parece absurdo pensar que existe, de fato, uma coincidência feliz entre a reflexão sobre a 'autocomunicação de Deus', desenvolvida pelo teólogo alemão, e a 'Fenomenologia da Vida', do filósofo francês. Em Henry, este "Deus que se torna ele mesmo em sua realidade mais própria como que um constitutivo interno do homem", outra coisa não é que a Vida absoluta em sua carne patética. E o se tornar "um constitutivo interno do homem", pode ser pensado, segundo o mesmo autor, a partir da Fenomenologia da Vida, como a autogeração do vivente na Vida. A Vida que possibilita o vivente ser ele mesmo um "Si", é, para nosso autor, o constitutivo interno do homem, o dom revelado pela Vida é a vida mesma de Deus imanente no nosso corpo encarnado, nosso corpo originário197. Ao abordar o tema da Autocomunicação de Deus e a permanência do mistério, Rahner fala dos existenciais fundamentais do homem que são percebidos a partir da experiência que este faz de si mesmo como ser finito e categorial. A partir daí o ser humano se encontra com o seguinte paradoxo existencial: ao mesmo tempo que ele provém permanentemente de Deus, também se encontra na radical distinção com respeito a Deus mesmo 198. Estes existenciais fundamentais de Rahner encontram na Fenomenologia da Vida de Henry uma elaboração diferente, mas que nos aproxima da mesma mensagem. O vivente também se reconhece, a partir do seu 'si' transcendental, 197 198 Cf. RAHNER, Curso fundamental da fé, pp. 145-146. Cf. Ibid, pp.148-149. 120 como fundamentado na Vida, provém permanentemente dela. Contudo, apesar de ser vivente, ele mesmo não é a Vida e se distingue radicalmente dela enquanto não pode se dar a si mesmo e nem gerar outros viventes. A denúncia dos homens que, absurdamente, equiparam-se a Deus na teologia cristã, corresponde à insatisfação henryriana de pensar que há viventes que, esquecendo sua condição primeira de 'jogados na vida' como um 'si' transcendental contingente, se colocam como fundamento da própria condição de vivente. Isto foi do que tratamos no tópico anterior ao abordarmos o tema do esquecimento da nossa condição de filhos ao cairmos no egoísmo gerado pela ilusão transcendental do ego. A antropologia henryriana nos lança sempre, como uma espécie de efeito bumerangue, à questão da encarnação. Esta, por sua vez, nos descortina o desafio de refletir sobre o sentido cristão da salvação. Pensar o homem como um corpo de carne, não pode ser feito negligenciando o fenômeno universal de que somos seres encarnados, e o fenômeno culturalmente restrito da profissão de fé em um Deus encarnado. Toda esta reflexão não se faz possível a não ser a partir de um pressuposto fenomenológico radicalmente distinto. Este pressuposto gera uma nova inteligibilidade, dita Primordial, que permite ver o invisível. Aqui nos encontramos no âmbito da nossa profissão de fé em um Deus encarnado, que veio a nós para nossa salvação. Este vir de Deus em uma carne não é acidental, mas fundamental. Destarte, a encarnação revela uma Arquiinteligibilidade. Uma Inteligibilidade primordial que se estabelece como condição hermenêutica da compreensão do sentido cristão da salvação. Este é o preâmbulo do derradeiro capítulo de nossa dissertação. 121 CAPÍTULO 3: INTELIGIBILIDADE PRIMORDIAL: O SENTIDO CRISTÃO DA SALVAÇÃO Por que escolher este título para nosso derradeiro capítulo? Qual a conexão entre o sentido cristão da salvação e a inteligibilidade dita primordial? O ponto de partida para a compreensão desta questão coincide, definitivamente, com o tema crucial abordado durante toda a dissertação, a saber, a tese da encarnação. Nesta última empreitada daremos três passos decisivos visando proporcionar uma melhor compreensão do conjunto de nosso trabalho. Partiremos em um primeiro momento da reflexão sobre a fenomenologia da encarnação, que se faz condição de possibilidade para a abordagem do nosso segundo momento. Este, por sua vez, tratará da compreensão da salvação em seu sentido cristão, a partir da Inteligibilidade primordial anunciada no prólogo de são João. Por último, haveremos de propor uma reflexão de cunho ético-teológico sobre o sentido e a possibilidade das nossas ações carnais, apontando para o horizonte de uma teologia mistagógica da corporeidade. Tema que pretendemos continuar desenvolvendo numa futura pesquisa. A partir da compreensão cristã do evento da vinda da Vida a uma carne, especificamente, daquilo que o prólogo joanino proclama no seu versículo 14, surge o horizonte hermenêutico a partir do qual podemos conceber o sentido cristão da salvação. Este horizonte hermenêutico, possibilitado pela encarnação do Verbo, é o que Henry denomina Arqui-inteligibilidade. O sentido cristão da salvação somente pode ser vislumbrado a partir da inteligibilidade primordial desvelada pelo que nosso autor classifica, com Irineu, como cogito cristão da carne. Veremos que esta inteligibilidade original outra coisa não é que a vinda da Vida à uma carne que, dando-se previamente a qualquer inteligibilidade, estabelece-se como Arqui-inteligibilidade. Outra vez caímos na reflexão profunda da geração da Vida em si mesma a partir do seu abraço patético. 122 Propor uma reflexão de cunho ético-teológico sobre o sentido e a possibilidade das nossas ações carnais, apontando o possível horizonte de uma teologia mistagógica da corporeidade, constitui o intuito de nosso último passo. Contudo, destacamos desde já a importância do verbo "propor" e o aliamos ao verbo "apontar". De fato, coisa alguma faremos a não ser apontar para o horizonte de tal reflexão, expondo com modéstia aquilo que nos parece relevante. Outra coisa no momento não podemos oferecer. Consideramos fundamental repensar nossa condição humano-corporal a partir do mistério da encarnação do Cristo. Segundo as reflexões anteriores sobre a verdade do mundo e a verdade do Cristianismo é possível vislumbrar inicialmente a possibilidade de construir, numa investigação futura, uma Teologia mistagógica concernente à nossa corporeidade. Pensar e viver o corpo de carne como lugar teológico da manifestação desta verdade fundamental sobre Deus e sobre o ser humano199. O corpo como caminho de Deus e caminho para Deus200. Isto apenas será possível se partirmos de uma catequese mistagógica sobre o corpo de Cristo e, consequentemente, sobre nossa incorporação a Cristo como lugar de encontro e revelação do próprio Deus. O objeto desta última empreitada consiste em descortinar, a partir da Fenomenologia da Vida de Henry, a possibilidade de uma Teologia do corpo fundamentada no espantoso enunciado do prólogo joanino: “o Verbo se fez carne” (Jo 1,14). Descortinar uma possibilidade significa, em outros termos, apontar para um horizonte a ser contemplado. 1 A fenomenologia da encarnação Ao expor sua análise da filosofia e fenomenologia do corpo como um ensaio sobre a ontologia de Maine de Biran, Michel Henry tocará o tema da encarnação na conclusão do seu trabalho, ao propor uma identificação entre carne e espírito. O tema é abordado no contexto em que o autor discute a dialética entre corpo-objetivo e corpo absoluto, ou de outro modo, corpo transcendente e corpo transcendental. Assim dirá: Se somos capazes de dizer que, em nossa representação, nosso corpo-objetivo se relaciona com as coisas circundantes de diferentes formas é porque temos um corpo absoluto no qual estas diversas intencionalidades acontecem de um modo 199 200 Cf. LACROIX, O corpo de carne, pp.149-172 Cf. GESCHÉ, Adolphe. O corpo: caminho de Deus. São Paulo: Ed Loyola, 2009. 123 originário, antes de ser representadas por meio de nosso corpo transcendente objetivo.201 O corpo transcendente objetivo, encontra-se situado no mundo não a partir da estrutura ek-stática, como qualquer outro objeto, mas possui referência última no corpo originário transcendental, cuja matéria fenomenológica é o pathos da Vida. O que então quer dizer a encarnação senão a imanência desta Vida na carne? Ser encarnados é estar situados no mundo a partir da estrutura fenomenológica da Vida. Ser encarnados significa estar situados no mundo a partir destas diversas intencionalidades que acontecem em um modo mais originário no mundo da vida (lebenswelt). Assim, o estarsituado do corpo objetivo transcendente depende, e só pode ser compreendido, a partir do estar-situado primordial do corpo originário (subjetivo) transcendental. Este, a partir da sua condição transcendental, portanto, segundo Henry, não contingente, já se encontra situado enquanto subjetividade em relação transcendental com o mundo. Esta percepção henryriana da situação do corpo transcendente a partir da corporeidade originária transcendental, subverte as noções antropológicas do realismo ingênuo que povoaram até recentemente o mundo da filosofia. Tais noções pensavam uma subjetividade abstrata que se situava a partir do corpo objetivo. Este, por fim, era tomado como o corpo real, fonte última da nossa situação no mundo. A partir deste paradigma ingênuo, a noção de encarnação assume então significado bem distinto de como é pensado por Henry. A encarnação, segundo este pensamento ingênuo, pode ser entendida como o movimento de uma subjetividade abstrata que procura um corpo objeto a partir do qual pode se situar no mundo. Neste sentido, temos então que: encarnar é estar situados no mundo a partir do corpo objeto transcendente. Foi assim inclusive que se entendeu a questão da individuação nas teorias da encarnação das almas pré-existentes. O próprio platonismo, juntamente com uma falsa antropologia pretensamente cristã, fomentou esta visão durante séculos, sendo ela que determinou a noção de encarnação corriqueira. A questão da encarnação, pensada a partir da teoria ontológica do corpo desenvolvida por Henry, é justamente inversa. Encarnação significará, pois então, estar situados no corpo objetivo transcendente a partir da experiência na Vida do corpo originário transcendental. Somos, assim, situados (considerados seres encarnados) porque tomamos nossa carne, enquanto sentir da vida, da própria Vida fenomenológica 201 HENRY, Filosofía y fenomenología del Cuerpo, pp.265-266. 124 absoluta. Encarnados significa, irmanados na Vida, partícipes dela da forma mais radical possível. Encarnação é imanência da Vida em nós. Desta forma, nossa transcendência situada, não é radicalmente contingente porque encontra sua fundamentação última na experiência transcendental do mundo da Vida. Saber-se situado enquanto corpo transcendente a partir de uma corporeidade transcendental é sempre vislumbrar o horizonte originário do lugar onde a Vida se dá. E a Vida se dá a si mesma em si mesma. É justamente esta olhadela que nos permite compreender o necessário passo de uma fenomenologia da impressão à fenomenologia da carne que nos conduz, por sua vez, à fenomenologia da encarnação. Sobre isso nos diz o autor: É a forma em que a Vida absoluta vem a si numa Arquipassibilidade própria da autoafecção patética de todo "viver" concebível, é o arquipatos desta arquicarne o que se encontra suposto em toda fenomenalização da vida e, assim, em todo vivente - já que este não possui a capacidade de se trazer a si mesmo à vida [...] Toda carne é passível na Arquipassibilidade da Vida absoluta. É possível nela. Uma carne que pode ser definida como: a passibilidade de uma vida finita que toma sua possibilidade da Arquipassibilidade da Vida infinita. Se algo como a carne não pode ser concebido mais que a partir desta vinda originária à carne, vinda que não depende desta mesma carne, então a fenomenologia da carne remete a uma fenomenologia da En-carnação.202 Parece-nos plausível afirmar que é justamente a constatação da nossa indigência ontológica radical, exaustivamente tratada nessa dissertação, que aponta a passagem necessária de uma fenomenologia da carne à fenomenologia da encarnação. A Fenomenologia da Vida se constitui, na verdade, como este movimento dialético das análises fenomenológicas da impressão, da carne e, agora, da encarnação. Como vimos no trecho acima, a categoria da passividade da nossa carne, remetida sempre à Arquipassibilidade da Vida em si mesma, toma dimensão de referencial do discurso. Ao tratar da fenomenologia da carne e sua geração na Vida absoluta, Henry destacará as características fenomenológicas originárias da carne que brotam desta 202 HENRY, Incarnation, pp.242-243. 125 geração. Neste sentido, a autoafecção do Si transcendental, fundamentada na Arquipassibilidade da Vida absoluta, coloca-se como viés para a compreensão da fenomenologia da encarnação. Como já sabemos, neste contexto, o nascimento toma significação radicalmente diferente daquele de uma Fenomenologia do mundo. Pois todo nascimento deve ser compreendido como uma situação do corpo transcendente a partir da corporeidade transcendental do mundo da Vida. Numa fenomenologia do nascimento, Henry afirmará que o "nascer", compreendido como encarnação, somente pode ser vislumbrado na Fenomenologia da Vida como a vinda à vida de um si transcendental vivente que experimenta a si mesmo na sua condição carnal, e acrescenta: "segundo o modo que toda carne tem de se experimentar"203. E o modo que toda carne possui de se experimentar radica na passividade em relação à Vida fenomenológica absoluta que se experimenta a si mesma numa Arquicarne. Assim se estabelece que a fenomenologia da encarnação tem como objeto a compreensão da relação da Arquicarne com a carne anunciada no prólogo de João (1,14). Esta encarnação se cumpre no interior da Vida fenomenológica absoluta, longe do aparecer do mundo. Por isto, a fenomenologia da encarnação é mais complexa que a análise dos poderes da carne, assumindo assim o estatuto de uma fenomenologia radical. Em sua fenomenologia da encarnação o autor acenará para três temas caros à tradição cristã. A partir da analítica dos "poderes" da carne, podemos vislumbrar o primeiro tema como aquele que se refere à possibilidade do pecado, o qual se encontra conectado à mesma possibilidade da idolatria. Tudo isto haverá de nos remeter ao tema da ilusão transcendental do ego, explorado no segundo capítulo. Percebemos uma extraordinária coerência no discurso henryriano no que se refere às conexões entre suas categorias-chave. O segundo tema se refere à natureza de Cristo. Trata-se da possibilidade de alguém como Cristo, da sua encarnação. O que o autor visa ressaltar é a relação entre Antropologia e Teologia a partir da Cristologia. A possibilidade de alguém como Cristo funda, na Fenomenologia da Vida, a possibilidade de alguém como o Ser humano. A terceira questão é aquela que se encontra assinalada no título do próprio capítulo e se refere ao sentido cristão da salvação descortinado pelo fascinante anúncio de João204. Este último tema será tratado com mais acuidade a partir da segunda parte deste capítulo. 203 204 Ibid, p.145. Cf. Ibid, p.247. 126 A passagem necessária da fenomenologia da carne à fenomenologia da encarnação se encontra inserida, portanto, no contexto da ilusão transcendental do ego. Trata-se da tentativa de se mostrar que nenhum dos nossos poderes possuem sua fonte em nós mesmos. Por isso, ao propor uma fenomenologia da encarnação, Henry retomará a questão da analítica do "eu posso", que nos conduzirá da percepção do corpo transcendente à corporeidade transcendental dada no seio da Vida. Nesta sua empreitada, o autor narra aquele trágico encontro do "eu posso" com um não poder absoluto que se refere justamente à sua incapacidade de se fundar a si mesmo. Esta indigência ontológica, tratada no primeiro capítulo, constitui a impotência radical do "eu posso", o qual, em realidade, nada pode, fora do poder no qual está dado a posteriori. A posteriori significa que se encontrar enquanto dado em uma realidade que lhe é anterior. Assim, nosso Si transcendental se estabelece como um "eu posso" somente enquanto dado em um poder absoluto que funda toda possibilidade de "poder". Veremos, na última parte deste capítulo, que o discurso ético no cristianismo se dá nesta recordação primordial do nosso "não poder" frente ao poder definitivo que vem da Vida. A este respeito tocaremos no tema do esquecimento da vida e sua recordação através do patos da práxis cotidiana e da recordação patética da vida através da angústia. Angústia de saber que sou " um si transcendental incapaz de me livrar de mim".205 Sobre a questão do "eu posso" e da possibilidade do pecado ou da idolatria, o autor retornará ao conceito chave de ilusão transcendental do ego para, a partir de uma analítica dos "poderes" do corpo transcendente objetivo, tratar da possibilidade da labilidade. Situando as "ações do eu" num fenomenologia da encarnação, Henry retomará a delicada questão do limite existencial de um "ego" que se encontra com o seu limite radical do "não poder" ao se perceber como alguém jogado numa existência que ele mesmo não escolheu. Assim, nosso autor tratará do limite do "eu posso". Este limite, como antes tratamos, é de ordem ontológica e se refere ao fato de que este "ego agente" não tem o poder de agir em si e, tampouco, de se trazer a si mesmo. Assim sendo, paradoxalmente, ao agir, ele se encontra com um não poder absoluto no qual se encontra fundamentado todo seu poder efetivo. Esta é sua impotência radical. Tudo isto que agora acabamos de relatar se refere ao tema, já antes tratado, da indigência ontológica dos "poderes" deste "eu posso" que somos todos nós. 205 Ibid, p.278 127 O tema do limite radical do "eu posso" nos remete a outro tema clássico da reflexão teológica cristã. Trata-se da ambiguidade de nossa condição carnal. Henry retomará de forma fascinante a reflexão de Irineu, que pensa a carne a partir de sua situação paradoxal. De fato, ela traz em si, simultaneamente, a possibilidade da salvação e da perdição. Assim, a análise do "eu posso", numa fenomenologia da encarnação, remeter-nos-á à questão da possibilidade do pecado e da idolatria como perdição. Esta possibilidade se funda na ilusão transcendental do ego que se toma como fonte de seus poderes. Desta forma, o ser humano, perdido neste devaneio transcendental, passa a adorar a si mesmo, julgando-se como fonte de todos seus poderes, esquecendo a passividade radical na qual se encontra206. Ousamos pensar que, segundo a Fenomenologia da Vida, a categoria do pecado original poderia ser ressignificada a partir deste movimento existencial que ocorre quando o "ego" esquece da Graça originária sobre a qual se funda e estão dados todos seus poderes. Neste sentido, esquecer ou evitar recordar nossa condição primordial de viventes no seio da Vida, constitui toda fonte de pecado e idolatria. O encontro com este limite radical, denominado ilusão transcendental do ego, poderia nos levar a adotar posturas filosóficas como aquela de Schopenhauer, na qual se advoga uma vida cega, pura vontade que arrasta a todos para o mar da indeterminação individual. Visto que não possuímos nenhum poder em nós mesmos, seríamos remetidos diretamente ao sem sentido de uma vida indeterminada que nos faz brotar do acaso constante. A questão do princípio de individuação, criticada por alguns autores em Henry, vem à tona. Ainda que possamos concordar que tal tema não se encontra definitivamente bem resolvido no pensamento henryriano, não resta dúvidas de que constitui uma das preocupações de nosso autor. Notamos que, segundo Henry, existe um conflito entre a visão dita "devastadora" de Schopenhauer (a dissolução de toda vida individual à uma vida cega e indeterminada que resultaria na supressão da individualidade) e a identificação cristã entre Verdade e Vida. Esta pensa a autorrevelação da Vida na Ipseidade de um Si originário como o modo fenomenológico de seu cumprimento (revelação de Deus - Verdade sobre a Vida). Em outras palavras, a Verdade da Vida e de Deus está conectada justamente à revelação de Deus em sua Palavra, identificada no cristianismo como o ArquiFilho, o Primeiro Vivente, no qual todas as vidas singulares foram dadas. Portanto, no pensamento cristão, a imanência da 206 Cf. Ibid, pp. 245-246. 128 Vida em cada vivente não supõe a supressão de sua individualidade. Isto porque no processo imanente da Vida absoluta a geração da Ipseidade de um Si originário (o ArquiFilho) se estabelece como condição interna da autorrevelação, condição interna de toda vida. A beleza da antropologia cristã aparece com toda claridade na seguinte constatação: o fato de que não subsiste por si mesmo não tira do indivíduo sua singularidade. Entregado a si na Ipseidade da Vida absoluta, ele mesmo é gerado (criado) como um Si singular para sempre207. A autorrevelação da Vida na Ipseidade de um Si originário, que se estabelece como o modo fenomenológico do cumprimento desta mesma autorrevelação, aponta para a possibilidade de alguém como Cristo. A teologia sobre a autorrevelação de Deus em seu Cristo haverá de tirar a existência humana da indeterminação do pensamento panteísta. Este tema já foi de algum modo tratado por nós ao abordarmos a fenomenologia de Cristo no primeiro ponto de nosso segundo capítulo. Naquela ocasião viabilizamos justamente a afirmação de que a fenomenologia de Cristo, ou a possibilidade de alguém como Cristo, aponta efetivamente para a possibilidade da nossa salvação. Por este motivo, abordamos a questão a partir do viés soteriológico. Retomaremos brevemente este tema no próximo passo de nosso discurso. Então haveremos de pensar o cogito cristão da carne que, defendido por Irineu, no contexto da proposta de uma Inteligibilidade primordial, lança-nos para a possibilidade da salvação em sentido cristão. Seja como for, as querelas filosóficas sobre o sentido da nossa vida singular, e no que se refere a ela, sobre nossa identidade pessoal, assim como o dom que constitui a singularidade de cada vivente, apontam sempre para o mistério inefável da Vida. Este mistério insondável da Vida constitui igualmente o mistério insondável do ser humano, que, segundo Henry, é tão invisível como Deus. De fato, se ninguém nunca viu a Deus, tampouco viu a um homem em sua verdade fundamental constitutiva. Nenhum de nós, diz o autor, jamais viu um Si transcendental vivo. A partir daqui se fazem inteligíveis aquelas palavras proferidas pelo homem Jesus diante de Pilatos; "meu reino não é deste mundo" (Jo 18,36). De fato, nenhum homem transcendental gerado na Ipseidade no seio da Vida, criado em Cristo no seio de Deus, pode ser vislumbrado a partir da fenomenologia deste mundo. Interessante são as palavras de Rahner que, ao pensar a encarnação de Deus, na sexta seção do Curso fundamental da fé, sobre Jesus Cristo, 207 Cf. Ibid, p. 260. 129 retoma, em uma frase muito sugestiva, a intuição da sua segunda seção sobre o homem perante o mistério absoluto. Assim dirá o teólogo: Quando terminarmos de dizer tudo o que se pode dizer de observável e definível sobre nós, não teremos ainda dito nada de nós, se no que afirmamos não dissemos implicitamente que somos os referidos ao Deus incompreensível208. Esta asserção de Rahner faz referência a uma espécie de solidariedade no mistério entre Deus e homem. A existência humana, para a teologia, encontra seu horizonte de compreensão no mistério inefável do próprio Deus. Para Rahner, o mistério, como horizonte de possibilidade de compreensão do homem, não pode ser compreendido como uma realidade paralela a ser descoberta. O mistério é o que existe e, paradoxalmente, se coloca como o "horizonte que sem ser dominado domina todo o compreensível". Impressiona-nos a similitude entre o pensamento de Rahner sobre o mistério, e a narrativa henryriana sobre a Fenomenologia da Vida. Pois esta também se coloca como o horizonte ou o mistério, que antes de ser compreendido a partir da objetivação da Fenomenologia do mundo, coloca-se como a possibilidade transcendental de compreensão de toda realidade vivente, aparentemente tangível. Ainda nesta perspectiva, Rahner compreenderá o mistério da encarnação a partir do horizonte kenótico de abandono radical, por parte do ser humano, neste mistério absoluto, que outra coisa não pode ser senão o mistério da Vida fenomenológica absoluta. Citamos novamente o teólogo alemão: A encarnação de Deus é, nesta perspectiva, o caso singular e supremo da realização essencial da realidade humana, realização que consiste no fato de que o homem é à medida que se desfaz de si abandonando-se e entregando-se ao mistério absoluto, que chamamos Deus.209 Parece-nos fascinante a compreensão rahneriana acerca da encarnação que se dá a partir da compreensão do homem na sua solidariedade radical com o mistério. A afirmação de que o homem existe à medida que se desfaz de si, abandonando-se ao 208 209 RAHNER, Curso fundamental da fé, p. 259. Ibid, p.260. 130 mistério, constitui o ponto de partida para a compreensão da encarnação enquanto Kenosis. Assim, a encarnação do Verbo significa esta entrega primordialmente radical do Filho nas mãos do Pai. "Sendo ele Deus, não se apegou à sua condição divina, mas se despojou" (Fl 2,6-7). Ao se encarnar, o Filho de Deus realiza definitivamente a essência da condição humana. Esta, segundo Rahner, somente pode ser entendida a partir da opção radical de cada ser humano de, abrindo mão de si mesmo, fazer-se entrega radical no mistério inefável de Deus, horizonte hermenêutico último de sua existência. Por isso, diz o teólogo, a encarnação de Deus se constitui como "o caso singular e supremo da realização essencial da realidade humana". O Verbo, ao se fazer homem, manifesta sua entrega radical ao mistério que ele mesmo é. Encarnar-se significa, então, entregar-se a este horizonte incompreensível que funda toda compreensão. Se pensamos, com Henry, que a vinda a uma carne somente pode acontecer no movimento da autodoação da Vida absoluta, que o ser passível da carne não é outra coisa que o dom inefável da Vida imanente nela, então percebemos que existe uma similitude fascinante entre o discurso rahneriano e a fenomenologia da encarnação descrita na Fenomenologia da Vida. Em ambas, a encarnação se conecta à categoria de doação. Em Rahner, a encarnação pode ser compreendida como entrega e imersão radical no mistério de Deus pelo próprio homem-Deus. Em Henry, a encarnação é a geração gratuita e necessária da carne na Vida, visto que toda Vida somente existe enquanto doação em uma carne. Recordando que o conceito de carne em Henry se refere sempre à possibilidade da autoafecção radical, dada no abraço patético da Vida a si mesma210. O mistério abraça o mistério, que é sempre gratuidade. Deus como Vida se doa ao homem. E nesta doação faz dele sua imagem e semelhança, um vivente. O ser humano, situado nesta passividade radical da Vida enquanto dom, existe como dado para se dar a Deus. Em linguagem teológica, podemos dizer que sua existência criada, enquanto gerada e dada a partir da Vida, constitui já a possibilidade de sua salvação. Não obstante, como outrora vimos, este ser dado na Vida não ocorre de qualquer forma, mas implica a própria doação dos caracteres fenomenológicos fundamentais da Vida absoluta ao ser humano. Esta doação de tais 210 Cabe-nos apenas relembrar que esta autoafecção radical, que determina a compreensão da categoria "carne" no pensamento henryriano, estabelece-se como algo constitutivo da Vida fenomenológica absoluta, sendo assim, sua matéria fenomenológica. Somente desde este ponto de vista podemos compreender que a geração da carne na Vida se dê de forma necessária. Assim acontece porque a Vida é necessariamente carne, se entendemos carne como autoafecção e esta como constitutiva daquilo que a Vida é em si mesma: a eterna presença que sente incessantemente a si mesma. Aqui se manifesta a profundidade fenomenológica da categoria carne e encarnação da Fenomenologia da Vida de Henry. 131 caracteres fenomenológicos nada mais é que a criação do homem à imagem e semelhança de Deus. Portanto, temos então que criar à imagem e semelhança significa, como vimos em Henry, a geração de cada "eu" transcendental na Arqui-carne do ArquiFilho. Aos nos criar à sua imagem e semelhança, ao promover nosso nascimento transcendental no seio do seu Verbo, a Vida, que é Deus, constitui-nos a partir daquilo que ela mesma é, a saber: uma carne que "pode sentir e ser sentida". Por isso, a criação de cada ser humano significa sua encarnação na carne da Vida, na carne de Deus. Esta encarnação, na carne de Deus, funda toda inteligibilidade de nossa existência, uma Arqui-Inteligibilidade, bem como a possibilidade de nossa salvação. Este constitui o tema do nosso próximo passo. 2 A inteligibilidade Primordial: o sentido cristão da salvação O sentido cristão da salvação, em Henry, somente pode ser compreendido a partir da inteligibilidade primordial anunciada no prólogo joanino. Uma vez abordada a Fenomenologia da Vida como verdade fundamental que legitima uma filosofia do cristianismo, propomos pensar nossa existência carnal a partir da inteligibilidade primordial. A intuição que pretendemos elucidar neste momento pode ser encarada como uma virada hermenêutica na forma de compreender e pensar nossa forma de aparecer e ser no mundo. A inteligibilidade primordial, pensada por Henry, encontra-se estritamente conectada à Verdade do cristianismo e sua Fenomenologia da Vida. Assim diz o autor: Esta definição muito simples de Deus a partir da definição da Vida como pura "experiência de si", funda a intuição que conduz a investigação e que é precisamente a Arquiinteligibilidade (inteligibilidade primordial) da qual falamos.211 Este conceito henryriano traz a revelação surpreendente sobre nossa humanidade: na carne de Cristo, e misteriosamente, na nossa carne se faz presente uma inteligibilidade primordial, que ultrapassa toda pretensão racionalista de abordagem completa da verdade. Para vislumbrar algo da verdade, antes é preciso saber ser carne e saber-se carne. A fonte do pensar não parte, como advoga a tradição racionalista, de um nous 211 HENRY, Incarnation, p.29. O parêntese é nosso. 132 desencarnado, mas da nossa realidade patológica de autoafecção. Com isto, para o espanto de muitos, pode-se verdadeiramente pensar o cristianismo e sua verdade como uma filosofia da carne. O experimentar-se da Vida a si mesma, em outras palavras, a categoria de autoafecção aparece aqui com toda sua força: A Arqui-inteligibilidade pertence ao movimento interno da Vida absoluta que se engendra a si mesma, não sendo outra coisa que a forma segundo a qual se cumpre este processo de auto-engendramento. A Vida se engendra a si mesma ao vir a si, à sua condição, que é a de se experimentar a si mesma.212 Ao percebermos a centralidade da inteligibilidade primordial no pensamento henryriano intuímos que, a partir desta categoria, ser-nos-ia possível pensá-la como fundamento teológico-antropológico da Fenomenologia da Vida em Michel Henry. Daqui surge a justificativa do título dessa dissertação. Ao afirmar que o prólogo joanino pode ser entendido como uma espécie de releitura da narrativa da criação em Gêneses (um midrash), o autor tocará uma discussão clássica da teologia. Esta diz respeito ao vínculo entre Antropologia e Cristologia, situada na discussão da compreensão da escatologia e soteriologia a partir da protologia. Ao pensar Deus como Vida e ao definir esta como autoafecção radical a partir do processo de auto-engendramento, surge em Henry uma nova releitura antropológica que pensa o ser humano não mais a partir do conceito de criação da Fenomenologia do mundo, mas a partir da categoria de geração própria da Fenomenologia da Vida. Segundo as palavras do próprio autor: Conhecemos as proposições fundamentais do prólogo de João que nos permitem compreender a unidade do ponto de vista transcendental das Escrituras. Esta unidade se manifesta claramente quando a ideia de criação dá lugar à de geração. O homem somente pode ser compreendido a partir da ideia de geração. A geração do homem no Verbo repete a geração do Verbo em Deus como sua autorrevelação.213 212 213 Idem. Ibid, p.328. 133 Esta tese henryriana causa, certamente, desconforto aos ouvidos teológicos. Isto porque parece introduzir o princípio de não diferenciação entre o ser humano e Deus. Uma vez mais recordamos que esta constitui, justamente, uma das críticas elaboradas ao pensamento henryriano. Contudo, pensamos que não se pode afirmar qualquer intenção no autor em deturpar a doutrina da criação-salvação no cristianismo. Ao contrário, notamos e citamos várias vezes sua semelhança de pensamento com reflexões teológicas como, por exemplo, as de Rahner. Este mesmo, em um dos seus textos, que aborda a temática das reflexões fundamentais sobre a antropologia e a protologia no conjunto da teologia, afirma: Se o Logos se torna homem, tal afirmação não se entende, se a encarnação se toma simplesmente como <assunção> duma realidade que não tem relação interna com aquele que a assume e poderia da mesma forma substituir-se por outra realidade. Somente se entende corretamente o que seja a encarnação, quando a humanidade de Cristo não se considera afinal como instrumento externo, pelo qual um Deus invisível faz ouvir sua voz, mas precisamente como aquilo que Deus se torna (permanecendo Deus), quando ele próprio se exterioriza na dimensão do outro-que-ele-mesmo, do não divino.214 Isto é justamente o que Henry procura defender em sua fenomenologia da encarnação. O autor quer pensar que a possibilidade de alguém como Cristo, e logo, de alguém como o ser humano, não pode ser entendida sem que se compreenda a encarnação a partir desta "relação interna com aquele que a assume". Ao pensar o ser humano como gerado no Verbo da Vida, a intenção primeira não é, de forma alguma, estabelecer uma indiferenciação entre Deus e o homem criado. Consiste, pelo contrário, em afirmar que este homem não foi criado, posto fora, como se entende na Fenomenologia do mundo, mas gerado (criado à imagem e semelhança) na mesma carne (afetividade transcendental) do Verbo. E por isso mesmo, ao se fazer carne, o Verbo não assume outra coisa senão aquilo que desde sempre foi: passividade que sente. Não é por acaso que a possibilidade da "paixão de Cristo" assuste e encante todo 214 FEINER, Johannes; LÖHRER, Magnus. Mysterium salutis: Compêndio de dogmática histótico salvífica II. Petrópolis: Vozes, 1972, p.15. ( Neste artigo Rahner escreve as Reflexões fundamentais sobre a antropologia e a protologia no conjunto da teologia, Cf. pp.5-19) 134 homem e mulher que se vê jogado neste fantástico mundo da Vida. A afirmação rahneriana de que "a possibilidade da criação se funda na possibilidade mais radical da auto-exteriorização de Deus", de forma alguma é contestada por Henry quando ele propõe pensar a criação à imagem e semelhança ou como "geração" do homem no Verbo. Rahner dirá que o homem se constitui primordialmente como a "possível alteridade da auto-exteriorização de Deus e o possível irmão de Cristo"215. Em relação a isso, com certo atrevimento, ousamos dizer que o problema talvez esteja na concepção ou conceito de exteriorização de Deus. Caso esta categoria seja utilizada teologicamente a partir da Fenomenologia do mundo, certamente será problemática em relação ao pensamento henryriano, que propõe justamente a inversão dos pressupostos fenomenológicos para pensar o homem como ser encarnado. Percebemos então que sem levar a sério a inversão fenomenológica que funda a Fenomenologia da Vida em Henry, faz-se impossível compreender teologicamente o conceito de geração proposto pelo autor. A inversão da fenomenologia em Henry é a chave hermenêutica para a compreensão das realidades fundamentais constitutivas do ser humano, e portanto, das categorias-chave a partir das quais podemos abordá-lo. Na Fenomenologia da Vida, como vimos, nenhuma exteriorização é possível no sentido ek-stático da fenomenologia do mundo. A autorevelação da Vida é a Vida mesma. Ela não revela outra coisa que não seja a si mesma. Se existe algo como a exteriorização da Vida, esta não pode exteriorizar coisa diferente que não seja a Vida mesma. Por isso, o homem como exteriorização da Vida, ou de Deus, na linguagem de Rahner, outra coisa não pode ser senão um vivente, um filho no Filho, por isso, um filho de Deus. Não é por acaso que, para a Fenomenologia da Vida, a transcendência é a imanência da Vida em nossa carne. Sobre a geração do homem no Verbo, o autor seguirá dizendo: Esta homogeneidade entre a geração do Verbo e a do homem explica porque o Verbo, ao se encarnar para se fazer homem, não veio ao mundo senão em uma carne, <aos seus>- entre aqueles que foram gerados Nele e lhe pertencem desde sempre [...] O conceito de geração dá seu sentido exaustivo e adequado à criação; o Prólogo de João nos permite compreender o Gênesis. 216 215 216 Ibid, p.16 HENRY, Incarnation, p.328. 135 Para Henry, a partir da Fenomenologia da Vida, o conceito de criação pode encontrar seu sentido mais genuíno no de geração. Não há substituição do segundo pelo primeiro, mas explicitação. Frisamos, contudo, que, sem levar a sério a substituição de uma Fenomenologia do mundo pela Fenomenologia da Vida, ser-nos-á impossível compreender a reflexão henryriana não somente sobre o que ele chama de geração do homem no Verbo, mas também no que diz respeito à própria Inteligibilidade Primordial. O conceito de geração se encontra, por sua vez, conectado ao de nascimento transcendental, que é diferente do nascimento transcendente da Fenomenologia do mundo. No mundo não é possível nenhum nascimento, mas só criação-exteriorização. Então, se o homem não é um ser deste mundo, no sentido fenomenológico, não aparece neste mundo da mesma forma que todas as outras criaturas aparecem, então seu nascimento, diferente de uma criação ou exteriorização, significa uma geração. Surge então o comunicado espantoso e polêmico da Fenomenologia da Vida de Henry que proclama o homem não como uma criatura, mas como um filho gerado no Filho. O problema do conceito de criação, segundo a fenomenologia henryriana, é que criação se refere sempre ao horizonte da Fenomenologia do mundo, pressupõe aquela separação radical que não existe no mundo da Vida. Nossa vida é uma vida diferente da Vida de Deus, ou da Vida que é Deus. Contudo, não radicalmente separada. Não nos parece verdadeiro advogar um abismo intransponível entre a vida do ser humano e a Vida de Deus. Esta cisão radical parece descartar toda possibilidade de salvação. O tema que se refere à separação da vida singular da Vida fenomenológica absoluta constitui, como notamos, uma das lacunas do pensamento henryriano. Isto ocorre porque o autor não explicitou, de forma satisfatória, a teoria da individuação da vida em seu pensamento fenomenológico. Então falar que o homem é criado significa, para Henry, dizer que o homem pertence ao mundo como qualquer outro corpo inerte da natureza. As coisas podem ter sido criadas, mas o homem foi gerado na Vida, e não se separa dela, pois o dom de Deus não tem volta. Uma vez dado na Vida, permanece um vivente, em outras palavras, um corpo de carne, possui uma dignidade irrevogável de filho gerado no Filho. Assim, o criado à imagem e semelhança é traduzido na Fenomenologia da Vida como gerado no Arquifilho. Esta imagem e semelhança, obviamente, exprime a singularidade do ser humano em relação às demais criaturas. Mas de que singularidade se trata? Justamente do fato de que o homem não foi criado como as outras criaturas, não é um corpo como 136 qualquer outro corpo, mas um corpo de carne, que porta em si a Vida invisível, e assim o é porque foi gerado nela, na Ipseidade do primeiro vivente. Poderíamos dizer que a teoria henryriana é um arianismo às avessas? Enquanto Ário proclamava o Filho como uma criatura, a fenomenologia henryriana proclama toda criatura Filho? Algo poderia ser dito neste sentido, mas não com tanta radicalidade. O discurso henryriano é muito mais complexo e muito mais sensível do que o do arianismo. Neste sentido, Henry não pode ser pensado, ingenuamente, como um filósofo que inverte o arianismo. De fato, apesar da polêmica que pode gerar seu conceito de geração e criação, o autor toca a essência da fé cristã quando propõe a ressignificação do termo criação, ou, no caso do ser humano, sua substituição pelo termo geração. Acaso não cremos que saímos de Deus e para Deus haveremos de voltar? A encarnação do Verbo, pensada em seu fim soteriológico, não significa a recordação constante de nossa origem divina? Acaso Irineu se equivocou quando proclamou que nossa carne é deífera (capax Dei); toda a teologia da divinização estaria equivocada? Com modéstia, o que devemos ressaltar é que a profundidade da teoria henryriana causa desconforto e nos convida a ressignificar categorias até então repetidas na teologia, já calcificadas hermeneuticamente. Pensar nossa carne como deífera, proclamar, como Rahner, que o mistério do homem somente pode ser inteligível a partir do mistério da Vida que é Deus, acaso soa diferente do que pensar o ser humano enquanto gerado no Verbo? Apesar do desconforto, pensamos que o conceito de geração em Henry, pode nos proporcionar uma possibilidade exuberante de compreensão do mistério da encarnação do Verbo e deste corpo de carne que somos nós. A encarnação do Verbo, sua presença em nosso meio como um de nós, segundo Henry, para outra coisa não aponta senão para a extraordinária revelação de que nós somos um Si carnal vivo, gerado transcendentalmente na Arquicarne desse Verbo da Vida. Assim, sobre essa verdade transcendental do homem nosso autor dirá: Quando se encarnou, mostrou-se aos homens em qualidade de homem que é imagem de Deus, mostrou-lhes nesse homem que ele era a Imagem original, a imagem da qual o homem havia sido feito, mostrou-lhes nele ao Verbo. Disse-lhes que como Ele, gerados Nele, eles também eram portadores desse Verbo que era ele mesmo, que eram de origem divina. Assim foi como 137 o homem foi devolvido, graças à encarnação, à sua dignidade de filho de Deus.217 A verdade transcendental do homem, gerado no Verbo, levanta a questão fundamental do ato de fé naquilo que somos. Assim, Henry lançará a pergunta sobre o que significa crer, quando este ato de fé envolve o crer no Cristo. Aqui joga um papel definitivo a Inteligibilidade Primordial. Diferente a todo pensamento, ela o precede e fundamenta o ato de fé. Assim se estabelece que a verdade da fé nunca pode ser tratada como um modo do pensamento. Dirá o autor: Posta em relação com o pensamento e tratado como um modo deste, a crença não é mais que uma forma inferior do pensamento, já que nunca chega a ter uma evidência clara daquilo que crê. 218 Pensar o sentido cristão da salvação, a partir da Inteligibilidade primordial proclamada no prólogo de João, supõe proclamar a Verdade da Vida que habita cada Si transcendental vivente. Esta é uma proclamação de fé que somente pode ser proferida pelo ser humano que venceu a ilusão transcendental do ego e que voltou a escutar "o ruído de seu nascimento", de sua geração, no seio da Vida. Esta capacidade de escuta radical (primordial) da voz da Vida em nós é o que constitui a Inteligibilidade primordial, proclamada também por Henry como uma Arqui-gnose. Esta espécie de arquiescuta pode ser pensada teologicamente como a obediência da fé proclamada pela comunidade judaico-cristã desde tempos imemoriais. Contudo, esta escuta só se torna possível porque nossa carne porta em si, pela graça de Deus, uma inteligibilidade dita primordial. Assim diz magistralmente Henry: Nossa carne porta em si o princípio da sua manifestação, e esta manifestação não é o aparecer do mundo. Em sua autoimpressividade patética, em sua mesma carne, dada a si na Arqui-passividade da Vida absoluta, ela revela Aquele que a revela a si, ela é em seu pathos a Arqui-revelação da Vida, a 217 218 Ibid, p.370. Ibid, p.371. 138 parusia do Absoluto. No fundo da sua noite, nossa carne é Deus. 219 Isto tem a ver com a extraordinária notícia de que nossa carne traz em si o princípio fenomenológico, por excelência, ela é em si revelação, revela nossa condição primordial de viventes na Vida, de filhos no Filho. Nossa carne porta em si a Arquiinteligibilidade, a inteligibilidade primordial. Isto de fato deve assustar aos sábios deste mundo. Poderíamos dizer, para a desventura do gnosticismo, que "a pedra que foi rejeitada tornou-se a pedra angular"(Sl 118,22; Mt 21,42). A carne, interpretada pela Fenomenologia do mundo, como obscuridade, aparece na revelação cristã como arquignose, como Inteligibilidade primordial. Agora se entende com espanto a extraordinária asserção do prólogo sobre a qual se fundamenta a revelação cristã: é porque a carne porta em si a arqui-Inteligibilidade que o Verbo se fez carne para explicitar nossa condição humana. Recordemos que o tema da encarnação exigiu do pensamento henryriano uma nova visão dos pressupostos fenomenológicos que resultou na efetiva migração de uma Fenomenologia do mundo à Fenomenologia da Vida. Assim, operou-se uma radical inversão da fenomenologia para que esta pudesse servir como método para a investigação em questão. No contexto desta inversão, em nosso primeiro capítulo, antecipamos algo sobre o tema da salvação. Naquela ocasião, estabeleceu-se com clarividência a diferença entre a possibilidade da salvação a partir da teoria grega, e a salvação em seu sentido cristão. No sentido grego, a salvação é efetivamente teórica. Sendo que teoria (θηωρια)220, em nosso discurso, assume seu sentido original de contemplação como visão a partir do intelecto. Dizer, então, que a salvação é teórica, significa que ela não pode ocorrer senão a partir do ato da contemplação. Esta visão se situa na contramão da salvação em seu sentido cristão. Neste, proclama-se aos quatro ventos que tal possibilidade somente se faz possível porque a Palavra de Deus se encarnou221. 219 Ibid, p.373. Se de algo tivéssemos que acusar a Henry, não poderia ser de um panteísmo. Não conseguimos ver em sua teoria razão para isso. Se de fato, alguma acusação cabe a este autor, seria a de uma espécie de antropoteísmo, ou melhor, a de um teoantropologismo. Isto porque, em sua filosofia do cristianismo, Deus, que é a Vida, constitui-se como horizonte primordial de toda hermenêutica sobre o ser humano. 220 Cf. URBINA, José M. Pabón S. de. Diccionário Manual Griego-Espanho. Madrid: Vox, p. 296. 221 Cf. HENRY, Incarnation, 11-32. 139 Sobre o tema da encarnação já dissemos muitas coisas. Contudo, parece-nos pertinente recordá-lo, no contexto da discussão henryriana sobre a ontologia do corpo, citada no início deste capítulo. Neste sentido, o autor traça a diferença radical entre a compreensão da encarnação como a situação de uma subjetividade abstrata num corpo transcendente ou seu entendimento a partir da nossa condição de viventes situados numa corporeidade transcendental gerada no seio da Vida. Aqui ocorre a denúncia de uma exegese equivocada do prólogo de João (1,14) que, segundo Henry, pode ter a seguinte lógica: o significado de que o Verbo tenha se feito carne é que este Verbo veio a um corpo, sendo, portanto, que o corpo pertence ao mundo, o Verbo veio ao mundo por vir a um corpo. E já que vir ao mundo por um corpo significa tomar a condição humana, então temos a conclusão de que os homens são seres do mundo e, portanto, compreendidos a partir dele. Entretanto, não é isso que diz João. O evangelho de Jesus Cristo proclama que a humanidade é filha de Deus. Portanto, precisa ser compreendida a partir de uma inteligibilidade radicalmente distinta daquela que fundamenta o conhecimento dos corpos objetivos deste mundo. Isso significa dizer que a condição de possibilidade para a compreensão do fenômeno humano radica numa Inteligibilidade primordial própria do mundo da Vida. Esta diz respeito ao mesmo Deus, e por isso, é relativa ao homem que de Deus nasce. Sobre uma exegese autêntica do prólogo de João Henry dirá: Somente no caso de que a encarnação do Verbo - sua vinda à uma carne - signifique sua vinda à condição humana, podemos perceber que da afirmação espantosa de João advém ainda outra tese, a saber, uma definição do homem como carne. Isto porque a palavra não diz que o Verbo tomou a condição humana e que por isso se encontra em possessão de uma carne como de outros atributos desta condição. Ao contrário, a palavra diz que o Verbo se fez carne e que, nesta carne e por ela, fez-se homem. 222 O sentido cristão da salvação se encontra, irremediavelmente, pautado pelo horizonte hermenêutico do que compreendemos por encarnação. Em sua fenomenologia da encarnação Henry retomará a teologia de Santo Irineu a propósito daquilo que 222 Ibid, p.18. 140 denomina o cogito cristão da carne. Assim, ele pensa a salvação tal como é proclamada pelo cristianismo. Na interpretação dos textos de Irineu, o autor perceberá a verdade essencial da encarnação. Esta afirma que longe da Vida ser incompatível com a carne, ela se estabelece, pelo contrário, como sua condição. Uma carne viva é uma carne de Deus. Já dissemos mais de uma vez que transcendência, para o autor, é a imanência da Vida na nossa carne. Sobre a possibilidade da encarnação, diz-nos o autor: Irineu declara que a Encarnação do Verbo em nossa carne finita deve nos permitir recuperar nossa relação inicial com Deus e, ainda mais, deificar-nos [...] De maneira verdadeiramente genial a propósito do que denominamos o cogito cristão da carne, Irineu se referia à condição en-carnada do homem mesmo para mostrar como a vida, longe de ser incompatível com a carne é, pelo contrário, sua condição.223 O cogito cristão da carne é aquilo que chamamos desde o início de Inteligibilidade primordial. Trata-se da afirmação espantosa de que o homem feito à imagem e semelhança de Deus, outra coisa não é, que o ser humano gerado na Ipseidade originária da Vida absoluta. Esta geração coincide, teologicamente, com a criação do homem na Palavra eterna de Deus. Assim temos que: Uma Vida suscetível de dar vida a um corpo para fazer dele uma carne é aquela que é capaz de se dar primeiro a vida a si mesma no eterno processo de sua autorrevelação no seu Verbo. Toda carne, assim, provém do Verbo. "Tudo foi criado nele, sem Ele, nada do que está feito foi feito". A proximidade de Irineu com relação às palavras iniciais do Prólogo lhe comunica a intuição fulgurante de João, a de uma afinidade essencial entre a criação original do homem e a Encarnação do Verbo, de maneira que somente a segunda nos permite entender a primeira. Existe em Irineu uma espécie de retro-inteligibilidade fundante. 224 223 224 Ibid, pp. .330-331. Ibid, p.331. 141 Esta retro-inteligibilidade fundante em Irineu, chamada originalmente por Henry de Arqui-inteligibilidade e traduzida em nosso texto como Inteligibilidade Primordial, funda a compreensão da salvação no sentido cristão. Nosso corpo é caminho para Deus, porque nossa carne, no sentido da fenomenologia radical proposta pelo autor, constitui a expressão do modo fenomenológico pelo qual a Vida se autorrevela em sua arquipassividade radical, que funda a possibilidade transcendental de uma carne como a nossa. Podemos dizer isto de uma forma mais narrativa, talvez mais poética, interligando, a partir da teologia bíblica, a categoria de shekiná à ideia henryriana da transcendência como imanência da Vida na carne. Fazendo então um paralelo entre a interpretação da encarnação do Verbo como shekiná, ou seja, como Deus que arma sua tenda para morar em nós, e a ideia henryriana da transcendência como imanência da vida na carne, podemos compreender a carne, no sentido henryriano, como shekiná de Deus. É na carne que Deus se manifesta ao manifestar sua glória. Pois é nela que Deus se manifesta a si mesmo ao manifestar sua Vida, ou ao se manifestar como Vida. Não é por acaso que, sabiamente, a tradição da Igreja afirma que a glória de Deus é o homem vivo. Através dos "poderes" da carne é que Deus faz morada na humanidade, e esta somente existe enquanto morada de Deus. Neste sentido, faz-se impossível, como diz Henry, a existência de uma carne sem que esta seja imanência da Vida de Deus em nós. Para os cristãos, como bem lembra Johan Konings, o lugar da morada de Deus, por excelência, é a palavra de Deus encarnada225. A proclamação do prólogo joanino 1,14, funda uma Inteligibilidade primordial, marco hermenêutico da compreensão da existência humana sempre referida à possibilidade da salvação. Neste âmbito se atesta o vínculo definitivo entre antropologia e teologia, sendo que o ponto de intercessão, encontra-se pautado pela beleza do mistério da cristologia, em outras palavras: a encarnação do Verbo. Assim diz Henry: A carne é capaz de receber a vida por uma razão essencial: porque provém da Vida. A leitura joânica do Gn permitiu a Irineu a percepção da criação, não como exposição fora de si de uma coisa mundana, mas como geração de uma carne por insuflação da vida em um corpo de terra - por este alento da Vida que é seu Espírito. Aquilo que Paulo fala: vosso corpo é templo do Espírito Santo (1Cor 7,19). Porque esta vinda da 225 Cf. KONINGS, Evangelho segundo João, p.81. 142 Vida a uma carne define a criação do homem em qualidade de seu nascimento transcendental, nesta se estabelece uma conaturalidade entre a essência divina e a nossa, como o afirma Irineu: "posto que pertencemos a Deus por nossa natureza.226 Assim, a salvação no sentido cristão, proclama a possibilidade, via carne, da divinização do ser humano. Evocamos três ideias básicas que nos ajudarão a sintetizar esta seção. A primeira delas diz respeito à questão da passividade radical, própria do corpo de carne, que nos abre à via da salvação. Isto se refere à questão já discutida da encarnação entendida como esta situação primordial da nossa existência numa corporeidade transcendental gerada na Arquicarne da Vida onde somos dados a nós mesmos aos nossos "poderes". Assim, todo ser encarnado se encontra situado nesta afetividade transcendental que funda toda possibilidade do "poder sentir". A paixão de Cristo, e assim, nossa salvação, não aconteceria fora desta afetividade transcendental. Em segundo lugar, dizemos que esta passividade radical, situada numa afetividade transcendental, funda aquilo que denominamos o cogito cristão da carne ou Inteligibilidade primordial. O cogito cristão da carne dirá que a possibilidade da salvação se dá porque toda carne provém do Verbo. Aqui se insere toda a dinâmica da discussão anteriormente apresentada de identificação entre criação e salvação (protologia e soteriologia); o Gêneses, quando submetido a uma releitura a partir do prólogo de João, permite-nos compreender o ser humano a partir da polêmica categoria de geração da Fenomenologia da Vida de Henry. A terceira ideia concerne aos dois pressupostos fenomenológicos básicos citados na fenomenologia da encarnação. O primeiro deles diz respeito ao axioma a partir do qual se diz que é a Vida, em sua materialidade fenomenológica carnal, que define a realidade e, ao mesmo tempo, a da sua ação já que se trata de uma ação real. Aqui se colhe o fascinante fruto da virada fenomenológica proposta por Henry: a radical substituição da Fenomenologia do mundo pela Fenomenologia da Vida confere a esta última a responsabilidade pela Verdade fundamental daquilo que ela mesma revela. Surge uma nova epistemologia a partir da Inteligibilidade primordial responsável pela compreensão de tudo aquilo que se manifesta no mundo da Vida. Contudo, em Henry, a Fenomenologia do mundo, como anteriormente dissemos, não se encontra desqualificada de forma radical, apenas desautorizada a falar uma palavra definitiva 226 HENRY, Incarnation, p.331 143 sobre realidades que dizem respeito ao nosso corpo encarnado. Retomando neste momento o tema da ruptura do nexo entre Verdade e Mundo, exposto na fenomenologia de Cristo, recordamos a afirmação importante de que a Luz do mundo em si mesma não é definitivamente trevas, pois sua luminosidade mostra de fato o mundo em sua concretude. Contudo, esta se torna trevas quando percebe sua impotência radical ao não poder revelar o mais primordial, a saber: a Vida. A Fenomenologia da Vida não pretende descartar ou desconhecer o poder de manifestação da Fenomenologia do mundo, mas, apenas "circunscrever de modo rigoroso seu domínio e competência"227. O segundo pressuposto fenomenológico, encontra-se estabelecido a partir da tese, genuinamente teológica, segundo a qual a carne define o lugar da salvação porque constitui o lugar de toda ação real. Isto se é verdade que a salvação não consiste em um dizer, mas em um fazer a Vontade do Pai228: "Nem todo aquele que me diz Senhor, Senhor, entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a Vontade do Pai" (Mt 7,21). Por isso, a última parte deste derradeiro capítulo, quer pensar a salvação no sentido cristão, a partir de uma perspectiva que aponta para uma teologia mistagógica da corporeidade e da ação. Trata-se da parte de nosso discurso em que nos propomos a vislumbrar algo bem modesto sobre o horizonte ético da teoria henryriana. 3 Por uma teologia mistagógica da corporeidade e da ação: recordação da nossa condição de filhos e nossa incorporação ao Corpo místico de Cristo Tendo presente os dois pressupostos fenomenológicos básicos acima citados, percebemos que o ponto de partida da ética cristã se estabelecerá a partir do sentido cristão da salvação, o qual afirma que a destinação do ser humano passa, necessariamente, pela recordação da nossa condição de filhos, na práxis cotidiana. Portanto, como condição de possibilidade do prosseguimento deste discurso, faz-se necessário esboçar o pensamento sobre a fenomenologia da ação a partir da virada fenomenológica proposta por Henry. De fato, uma teologia mistagógica da corporeidade e da ação somente se faz possível, na teoria henryriana, se situarmos toda e qualquer ação no mundo da Vida. Nosso autor pensa a situação da práxis na Vida a partir da análise das duas formas básicas da manifestação: Verdade da Vida -Verdade do mundo. Partindo da Fenomenologia do mundo, podemos perceber, a partir da análise do próprio 227 228 HENRY, C'est moi la vérité, pp.109. Cf. HENRY, Incarnation, pp. 333-334. 144 verbo produzir, que a práxis é compreendida neste âmbito como mera exteriorização de um projeto subjetivo, situando-se então numa esfera totalmente transcendente em relação àquele que a realiza. De fato, o próprio verbo produzir (pro-ducere = conduzir ante) traz a marca da exteriorização. Assim, em relação ao entendimento da práxis ou da ação na verdade do mundo, dirá Henry: O que chamamos resultado exterior da ação não é mais que a representação global na verdade do mundo daquilo que possui seu foco original na verdade da Vida [...] Pois o homem é um "eu transcendental" invisível, é esse "eu" que atua.229 Resulta então que a ação não é tão somente, no seu sentido fenomenológico radical, uma exteriorização dos nossos projetos subjetivos. Proclama-se assim que, segundo a Fenomenologia da Vida, nosso atuar é o atuar em Deus porque é o atuar na Vida e a partir da Vida. A reflexão henryriana sobre nossa doação originária no mundo da Vida, conduz ao pensamento de que cada uma de nossas ações revela a Vida de Deus em nós. Portanto, a ação compreendida primordialmente como práxis na Vida não possui caráter objetivante. Este constitui o drama do comportamento ético-cristão, pois segundo a fé, a práxis não pertence à ordem do mundo. Sendo assim, nossas obras são ocultas, visíveis somente aos olhos de Deus, ou seja, da Vida (Mt 6,17-18). A situação da práxis, a partir da Fenomenologia da Vida, causa um desconforto e um efetivo confronto diante do mundo e sua normatividade. Isto ocorre porque o modo de ver ekstático, como antes acenamos a partir do verbo "produzir", situa toda práxis a partir da estrutura fenomenológica do mundo. Assim sendo, toda ação deve obedecer às leis do mundo que não se referem somente ao espaço-tempo, como horizonte de visibilidade própria do mundo, mas também, segundo Henry, às leis das coisas no seu sentido não físico, tais como a normatividade social e moral. Acontece que, segundo a fenomenologia radical, a práxis pertence originalmente à Verdade da Vida. Portanto, torna-se inconcebível, e mesmo impossível, que ela obedeça às leis transcendentes da Verdade do mundo. Assim, diz nosso autor: O cristianismo joga em uma subjetividade abissal todo o sistema mundano das ações, ação arrancada da Verdade do 229 HENRY, C'est moi la vérité, pp.218-219. 145 mundo, para ser submergida ao Patos da Vida. No que concerne à ação mesma, seu caráter objetivo é recusado - não é mais que uma aparência. Toda ação não se revela mais que se revelando a si na autorrevelação da Vida.230 O conflito está posto e manifesto quando se observa efetivamente a impotência da lei para produzir em si o atuar. Esta impotência está estritamente conectada à problemática da ilusão transcendental do ego, trabalhada no segundo capítulo. Esta ilusão transcendental, recordemos, diz respeito, por sua vez, ao esquecimento de nossa doação original na Vida. Dito de outra forma, refere-se ao esquecimento de nossa condição de filhos no Filho. Daí que a reflexão ética do cristianismo difere radicalmente das outras por se dirigir a todos os homens em sua condição originária de filhos da Vida. A analítica do eu "posso" denuncia, como vimos, a ilusão transcendental do ego, e situa o ser humano diante da impotência radical que consiste, paradoxalmente, na sua doação originária a si mesmo a partir da afetividade transcendental da Vida. Afetados radicalmente na autorrevelação da Vida, em sua autoafecção radical, somos contagiados visceralmente com seu "poder" . Daí que constitui a pior das idolatrias o esquecimento desta doação radical da Vida a todo vivente e uma verdadeira ilusão a situação da práxis em nós mesmos. A partir desta reflexão nos é possível compreender a ineficácia da lei. Esta, situada a partir da Fenomenologia do mundo, é transcendente à vida e, assim sendo, não possui poder efetivo para cumprir aquilo que promete. A lei padece de uma impotência radical, vinda do mundo partilha com ele sua indigência ontológica. Esta impotência é proclamada pela teologia paulina, no drama existencial do homem que não pratica o bem que deseja, mas o mal que não deseja (Rm 7,19). Assim mesmo, no evangelho esta lei é ignorada por ser radicalmente diferente do "Poder originário" que funda todo poder. De fato, o homem "pode" trabalhar (curar) em dia de sábado porque este está em função daquele e não aquele em função deste (Mc 2,27). Também porque a Vida (meu Pai) trabalha sempre, a Vida não pára (Jo 5,17). O shabat não é ausência de Vida, ela continua se manifestando sempre, ela nunca tira férias de si mesma, nunca escapa da sua constante autoafecção radical231. 230 231 Ibid, p.222. Cf. Ibid, pp. 225-227. 146 Evidenciamos então uma guinada radical. O mandamento situado na Vida nos conduz a uma compreensão radicalmente diferente da lei. Passa-se, segundo Henry, de um mandamento transcendente, situado fora, para um mandamento radicalmente imanente na Vida. Assim desaparece a lei tal como a entendemos, em seu sentido de uma determinação objetiva, portanto, transcendente. O mandamento agora é interior à Vida. E a Vida é, fenomenologicamente falando, auto-afecção pura, gerada eternamente no abraço amoroso a si mesma. Não é por acaso que o mandamento novo, o mandamento da Vida, consiste no surpreendente apelo: amar-nos como a Vida, em sua Palavra amorosa, nos amou. Assim, dirá o autor, que o mandamento é um mandamento de amor somente porque a Vida é amor. Portanto, o mandamento do amor, e assim a ética cristã, dirige-se, primordialmente, a um filho dado a si mesmo na autodoação da Vida. Gerado no amor e por amor, todo ser humano traz em si, imanentemente, a condição de amante. Por esse motivo, entendemos que a práxis do mandamento do amor, no mundo da Vida, é imanente ao vivente. Esta imanência é o fundamento da ética cristã. Sobre o destinatário da ética cristã escreve o autor: A relação que abre a ética cristã é o nascimento transcendental do ego, é a relação de filiação. Aquele a quem se dirige a ética cristã não é a ideia de homem como compreende a antropologia grega, mas ela se dirige a um 'eu' transcendental vivente. Este, o Si vivente gerado na Ipseidade da Vida, o homem transcendental cristão, definido transcendentalmente por sua condição de Filho e só por ela. Tal é o primeiro mandamento da ética cristã: viverás, mais precisamente, serás este Si vivente, este e nenhum outro.232 Propor uma teologia mistagógica da corporeidade e da ação, significa para nós mergulhar no mistério insondável do ser humano em sua doação originária no seio da Vida que é Deus. Esta teologia mistagógica que nos permite compreender originariamente nossa corporeidade transcendental e, parodiando Lacroix233, o sentido de nossas ações carnais, abre-nos o horizonte para a possibilidade de uma reflexão que pensa a ética cristã enquanto recordação da nossa condição de filhos e nossa incorporação ao Corpo místico de Cristo. Outra vez esbarramos, necessariamente, com 232 233 Ibid, p.230. Cf. LACROIX, O corpo de carne, pp.79-103. 147 o tema deste capítulo, a saber: a salvação em sentido cristão. Não voltaremos a tratar dos temas da Inteligibilidade primordial e do cogito cristão da carne anteriormente trabalhados. Contudo, a partir da reflexão previamente feita, podemos afirmar com convicção que a ética cristã se propõe como superação do esquecimento radical de nossa condição de filhos. Esta superação da ilusão transcendental do ego se dá, segundo a fenomenologia da encarnação, na recordação, no "pathos" da práxis da vida cotidiana234. Assim é estabelecida a função recordatória da nossa carne. Nela, através da práxis, da atualização dos "poderes" nos quais nos encontramos originalmente dados, recordamos nossa condição de filhos no Filho. Esta recordação é nossa salvação. Definitivamente a carne se manifesta como eixo da salvação. Ao esquecimento radical da nossa condição de filho, opor-se-á, portanto, o caminho soteriológico da recordação, via práxis, no pathos cotidiano que se dá somente através da carne. Isto equivale, teologicamente, à esperança do segundo nascimento, proposto magistralmente por Jesus a Nicodemos e vivido, sacramentalmente, no batismo. Este segundo nascimento foi interpretado pela tradição cristã a partir da capacidade kenótica de nos despojar do homem velho e nos revestir do homem novo, teologia batismal de Paulo (Fl 4,17-24; Gl 3,23-29). Assim, a recordação da nossa condição de viventes na Vida supõe uma práxis desinteressada, ou melhor, despreocupada com as coisas do mundo. Para isto, temos que voltar à obediência da fé através da qual nos situaremos numa escuta primordial do mandamento do amor imanente na nossa carne. Somente assim será possível fazer a vontade do Pai235. Trata-se de um caminho mistagógico que somente pode ser trilhado na escuta atenta da palavra de Deus. Por meio desta arquiescuta diária, nas vivências mais ordinárias do dia a dia, o Espírito de Deus vai nos configurando à vontade do Pai. Fazer a vontade do Pai é deixar que se cumpra em nós a vida em abundância. Isto somente acontece com a ação ética que percebe no próximo uma carne viva como a minha. O caminho ético cristão é aquele que, abandonando a preocupação com as coisas do mundo, corre em direção à carne semelhante à sua para afirmar nela a vida (parábola do bom samaritano). Segundo Henry, aqui se encontra a riqueza das obras de misericórdia da tradição cristã. Isto porque, através delas, pratica-se o esquecimento do egoísmo transcendental236e a recordação da nossa condição de filho, ao se colocar entre parênteses a preocupação com o mundo. Assim temos que a resposta sobre a pergunta 234 Cf. Henry, Incarnation, p. 263. Cf. HENRY, C'est moi la vérité pp.205-209. 236 Egoísmo transcendental é apenas outra formulação para se referir à ilusão transcendental do ego. 235 148 que se refere à possibilidade do segundo nascimento, ou seja, de sair do esquecimento da nossa condição de filho, desta espécie de alienação, somente pode ser encontrada no viés da práxis situada na Fenomenologia da Vida. A ética cristã, contudo, não está baseada num mero altruísmo radical. Ela é, sobretudo, o exercício de um poder que não tem sua origem em nós, mas que é a possibilidade de todo exercício de poder. Assim, nascer outra vez tem a ver com a atualização deste poder, com a ação focada na práxis da caridade ou misericórdia e não nas preocupações deste mundo em que todo agir pode ser visto e julgado pelos homens em sua ilusão transcendental. As obras de misericórdia nos fazem desviar do egoísmo transcendental. Acontece, então, um segundo esquecimento. Trata-se do esquecimento do próprio ego, que nos conduz ao reencontro com a Vida Absoluta, fonte e origem de todo poder. Este reencontro com a Vida absoluta é o que a fé cristã chama de salvação. Destarte, afirma-se, segundo a tradição cristã, a salvação como graça que deve ser atualizada, aceitada em cada gesto e ação que, aparentemente ordinárias, escondem a extraordinária graça, em relação às outras criaturas, de poder ser um vivente, um filho da Vida, autorizados por ela a agir, ou seja, a viver. A aceitação da salvação vem pela atualização dos poderes, leia-se como dons, que recebemos da Vida. Ocorre, segundo Henry, uma substituição do atuar do ego, no seu ego-ismo transcendental, preocupado consigo mesmo, para o atuar original da Vida, fundamento último do próprio ego e de todo atuar. Segundo o autor: Dado que o atuar é fenomenológico, também é fenomenológico o processo desta substituição, aquele que pratica a misericórdia experimentou em si a irrupção da vida.237 Experimentar a irrupção da Vida, que é Deus, em si mesmo, via obra de misericórdia, constitui o caminho de santidade proposto pela tradição cristã. O ápice deste experimento nos levaria a dizer como Paulo, parodiando Gl 2,20: já não sou eu quem atuo, é o Archi-filho quem atua em mim. Portanto, testemunhamos a necessidade de uma nova filosofia da ação que parta da Fenomenologia da Vida, pois o princípio da ética cristã não se faz inteligível na Fenomenologia do mundo. Terminando sua análise sobre a fenomenologia da encarnação, surge no pensamento henryriano uma pergunta tão radical quanto necessária, a saber: como fica a experiência do outro numa Fenomenologia da Vida? Este questionamento desemboca na 237 Ibid, p. 214. 149 reflexão pontual sobre a ética cristã. Para compreender o ser humano na sua relação com os seus pares, Henry haverá de propor a mesma virada fenomenológica que ocorreu em relação ao entendimento do corpo, que, a partir da Fenomenologia da Vida, não mais é vislumbrado como corpo opaco, mas como carne viva. Assim, o autor empreenderá sua análise pensando o pressuposto da relação com o outro no pensamento clássico. Como bem poderíamos supor, após nosso percurso na compreensão do autor, Henry advoga que a possibilidade de se relacionar com o outro classicamente se encontra compreendida a partir da presença de uma mesma racionalidade que nos abre a um mesmo mundo. É a Fenomenologia do mundo que coloca os pressupostos para a relação com nosso semelhante no paradigma do pensamento tradicional. Assim, mesmo para Husserl, a relação com o outro não pode ser pensada fora da relação intencional. Não voltaremos aqui à problemática já discutida no primeiro capítulo sobre o fracasso desta tese fundamentada em sua indigência ontológica. Apenas dizemos que o outro compreendido a partir da relação intencional, é um outro objetivado, incapaz de ser tocado na sua carne, pois a intencionalidade não pode alcançar a vida do outro nela mesma, mas somente indicá-la238. Sobre a relação com o outro a partir do Dasein heideggeriano, o problema se encontra no fato de que ela se estabelece, segundo Henry, não a partir de uma análise imanente do Dasein. Ao contrário, encontra seu ponto de partida no mundo, mais especificamente nos "entes intramundanos", a partir de sua constituição não como objetos puros, mas como objetos úteis. Portanto, entre eu e o outro sempre se interpõe um ente útil a partir do qual me refiro a ele. Poderíamos pensar que o ente útil é o que atualiza minha memória da existência do outro Dasein que não sou eu. Esta omnipresença dos outros nas coisas mesmas do mundo haverá de fundamentar nossa abertura ao mundo e aos outros. A questão que se coloca é que a relação com o outro cai na mesma indigência ontológica de outrora. Pois o mundo pode mostrar os entes, mas não os cria. Assim, o ente útil não pode se estabelecer como ponto de partida para a compreensão do outro, quando é o fato mesmo da existência prévia deste outro que o estabelece como um ente útil intramundano. Henry nos recorda, porém, que, segundo o mesmo Heidegger, resulta questionável a possibilidade da relação neste horizonte de exterioridade. Famosa é sua asserção de que "no mundo, a mesa não toca o muro"239, pode, no entanto, no mundo uma carne tocar a outra? Voltando à análise da 238 239 Cf. HENRY, Incarnation, pp.339-340. Ibid, p.345. 150 possibilidade de todo "poder" e do poder tocar, perante o fracasso da fenomenologia da exterioridade pura, então, a relação com o outro passa a ser vislumbrada a partir da Fenomenologia da Vida, na autorrevelação da Vida absoluta. Desta forma, compreendemos, ao fim desta dissertação, que a relação com o outro só é possível a partir do nosso nascimento transcendental, como um "eu posso" na Vida, na sua autorrevelação. Assim dirá Henry em forma de pergunta: A experiência do outro, não é a que um eu tem do outro eu? Não se trata para cada um deles de ter acesso não só aos pensamentos do outro, mas de sua vida, de vivê-la de certo modo? Não é esta a razão pela qual, por todas as partes e sempre, tal experiência é primeiro afetiva, de maneira que, em cada um, é a afetividade que lhe abre ou lhe fecha a esta experiência? Não desempenha aqui a carne um papel principal, neste patos que constitui a matéria fenomenológica da comunicação, ao mesmo tempo que seu objeto?240 Contudo, segundo Henry, surge uma possível objeção. Esta se refere àquela acusação de que a fundamentação da relação com o outro num eu, compreendido como mônada, fechado em si mesmo, como muro inquebrantável, é o que impede efetivamente não somente a compreensão, mas a mesma atualização da experiência do outro. A Fenomenologia da Vida não ignora esta objeção, mas ao contrário, o tempo todo se preocupa com ela. E sendo o cristianismo sua inspiração primordial, ele também a livra desta terrível armadilha. Dessa forma, modestamente, na tentativa de compreender tal objeção e lhe oferecer um horizonte hermenêutico adequado, nasce exatamente a fenomenologia da encarnação. De fato, a relação com o outro ficaria comprometida, se estivesse fundamentada apenas numa fenomenologia da "ação", uma fenomenologia do "eu posso". Por isso, é preciso que se passe de uma fenomenologia da carne à uma fenomenologia da encarnação. A partir desta, a relação com o outro "eu" toma como ponto de partida não a própria carne, mas o que vem antes dela, a saber: a vinda da Vida absoluta a uma carne na autogeração do Arquifilho, na autorevelação da Vida absoluta. Segundo Henry: 240 Ibid, p.346. 151 Toda relação de um si com outro si requer como ponto de partida, não esse si mesmo, um eu - o meu ou o do outro -, mas sua comum possibilidade transcendental, que não é outra que a possibilidade de sua relação mesma: a Vida absoluta.241 Podemos afirmar, portanto, que uma teologia mistagógica da corporeidade e da ação, pensada a partir do crivo da ética cristã, como recordação da nossa condição de filhos a partir da práxis carnal cotidiana, deve nos levar ao ápice do sentido cristão da salvação. Esta se refere à divinização ou a nossa incorporação a Cristo. Contudo, este processo de incorporação ao corpo místico de Cristo se dá, podemos concluir, por meio da recordação da Vida na nossa práxis cotidiana. É neste sentido que o corpo se nos aparece como caminho para Deus. Isto porque, ao atualizarmos os "poderes" da Vida imanente na nossa carne, através das nossas ações, somos conduzidos ao magnífico mistério da Vida. Daí que afirmamos a importante função mistagógica do nosso corpo de carne. A partir daqui veremos que o corpo, como morada do Espírito, aponta para a experiência do outro. Vislumbramos neste sentido, ainda que de forma tangencial, a questão da autoafecção e da hetero-afecção em busca de uma alter-afecção. Tudo isto nos abre ao horizonte da possibilidade da relação com o outro. Esta possibilidade se encontra, segundo Henry, conectada à realidade denomina pela tradição cristã como Corpo místico de Cristo. A relação com o outro no cristianismo não pode ser entendida sem a compreensão teológica da salvação como divinização ou incorporação de cada ser humano ao corpo místico de Cristo. Ao tratar da possibilidade da salvação numa perspectiva mais ética, retomamos, a partir da exigência existencial da relação com o outro, o tema da encarnação que continuará como chave hermenêutica do nosso discurso. A relação com o outro, segundo Henry, não pode ser vislumbrada fora do mistério da relação de interioridade fenomenológica recíproca entre a Vida absoluta e o Primeiro Vivente. É nesta relação que todo ser humano possível se faz concebível. Tocamos aqui o cerne do mistério da nossa fé sobre a encarnação e a salvação. Assim se advoga que a relação com o outro deve ser compreendida primordialmente onde ela acontece originariamente, a saber: no seio da Vida, longe da estrutura ek-stática do mundo. Sobre isto afirma o autor: 241 Ibid, p.347. 152 Esta interioridade fenomenológica recíproca do vivente e da Vida absoluta no Verbo de Deus nos permite compreender o que agora nos importa, a relação original que se estabelece entre todos os homens, a experiência do outro em sua possibilidade última. Se o Verbo é a condição na qual todo Si carnal vivente vem e pode vir a si, não é, ao mesmo tempo, a condição de todo Si carnal vivente distinto do meu, o caminho que se deve tomar necessariamente para entrar em relação com ele, com o outro? A Vida absoluta revela ser aqui, em seu Verbo, o acesso fenomenológico ao outro si, igual que é para mim mesmo acesso ao meu eu (ou ao si que sou).242 A afirmação de que o acesso fenomenológico ao outro não pode acontecer fora do Verbo da Vida aponta para a Verdade fundamental constitutiva da nossa condição humana. Esta se refere ao fato de que todos nós fomos gerados, como Si transcendentais, primordialmente juntos nesta Vida única e absoluta do Verbo na Arquipassividade de sua Arquicarne. Então, segundo o autor: O ser juntos nesta Vida única e absoluta do Verbo - na Arquipassividade de sua Arquicarne -, de todo Si transcendental carnal e vivo, é o que constitui o conteúdo fenomenológico concreto de toda relação entre os homens, o que lhes permitem entender uns aos outros antes de que se encontrem, o que permite a cada um entender ao outro como este se entende a si mesmo [...] É a Vida em seu Verbo a que une a todos os viventes e torna possível seu encontro como seu único princípio. É esse princípio que torna possível, por sua vez, toda forma de relação histórica, trans-histórica ou eterna entre eles. 243 Este "ser juntos" primordial, estabelecido como a condição de possibilidade de toda relação com o outro, não deve levantar a suspeita de que nossa individualidade seja, no fundo, uma ilusão. O ser juntos não supõe a dissolução da individualidade. Aqui está, segundo Henry, a fantástica originalidade do cristianismo, pois a unidade 242 243 Ibid, p.352. O parêntese é nosso. Ibid, p.353. 153 absoluta entre estes Si(s) transcendentais não comporta de forma alguma a supressão da individualidade. Vem à tona o mistério da geração singular de cada ser humano a partir da Palavra viva do Pai, naquilo que a Fenomenologia da Vida determina de Ipseidade originária do Primeiro Vivente, em outras Palavras, Cristo. A preciosidade da singularidade de cada vivente é atestada pelas relações que Cristo estabelece com cada homem e mulher que cruza seu caminho. É assim que dá atenção à Samaritana e que chora por seu amigo Lázaro. É a partir daqui que se entende a questão, às vezes tão esquecida, do "discípulo amado", amado talvez pela sua diferença, alteridade irredutível que fascina o próprio Cristo. Narrativamente, a beleza da singularidade que somos pode ser vislumbrada em muitas parábolas, mas de forma especial naquela que fala da paixão do Pastor que sai à procura da ovelha perdida (Lc. 15, 4-7). É que ela é tão única que vale o sacrifício de sair à sua procura. Na tradição mística, Deus se relaciona com o ser humano a partir da sua singularidade, ele nos chama pelo nome. Feita a observação desta nota sobre a riqueza da singularidade de cada Si transcendental gerado na Ipseidade originária do Primeiro Vivente, voltamos à afirmação fundamental que constitui o ponto de partida da relação com o outro e da possibilidade da nossa incorporação ao Corpo místico de Cristo. Em Henry, o fato de estarmos dados juntos, todos os Si(s) transcendentais na autodoação da Vida absoluta, funda a possibilidade última não somente da nossa relação com o outro, mas também a possibilidade mesma da nossa incorporação ao Corpo místico de Cristo. Assim nos diz o autor: O elemento que edifica, a <cabeça> desse corpo, é Cristo. Seus membros são todos aqueles que, santificados e deificados nEle e por Ele, pertencem-lhe doravante até o ponto de se tornarem partes deste mesmo corpo, precisamente seus membros [...] Contudo, aos membros de seu corpo, a cada um dos que, dados a si mesmos na auto-doação do Verbo, somente viverão da Vida infinita que se experimenta nesse Verbo, a aqueles que se amam Nele de tal maneira que é a Ele a quem amam em si mesmos, a Ele e a todos aqueles que estão com Ele, ser-lhes-á dada a Vida eterna. Nesta Vida que chega a ser a sua, serão salvos. 244 244 Ibid, pp.357-358. 154 Desta forma, constatamos maravilhados que o sentido cristão da salvação desemboca, em Henry, numa teologia do corpo místico de Cristo. Contudo, esta reflexão haverá de nos remeter sempre, em uma Fenomenologia da Vida, ao mistério da geração de cada Si transcendental vivente no processo de autogeração da Vida fenomenológica absoluta. Antropologia, protologia e soteriologia (escatologia) formam o núcleo duro da reflexão henryriana sobre a Verdade do Cristianismo proclamada na tese que provocou nossa investigação, a saber: a encarnação. Da Vida que é Deus se diz que é fundamentalmente relação. A compreensão da Trindade na fé cristã passa irremediavelmente por este crivo. Deus é amor porque o amor é sempre a possibilidade de sentir-se a si mesmo sentindo o outro, e de sentir o outro sentindo-se a si mesmo. Portanto, se Deus é relação, aquele "si" a quem gerou (ou a quem criou segundo sua imagem e semelhança), em seu Si primordial (na linguagem cristã, seu Filho), também se encontra radicalmente determinado pela possibilidade transcendental da relação. Henry dirá que os homens, gerados no seio da Vida, em si mesma relação, encontram-se situados neste "ser-com" que sempre os precede. Sendo que este "ser-com" é primordial à própria Vida absoluta em sua Ipseidade originária. Segundo o mesmo autor, todos os homens estão vivos "em uma única Vida, como vários si (no plural) na Ipseidade de um mesmo e único Si".245 Esta visão pode nos aproximar da nossa fé no Corpo místico de Cristo, que também pode ser compreendido como nossa vida singular incorporada definitivamente à sua fonte eterna que é o Deus vivo e verdadeiro de Jesus Cristo. Contudo, tal incorporação a Cristo não significa o mergulho no anonimato, a dissolução da ipseidade. A singularidade radical de cada ser gerado na Ipseidade do primeiro "Si", continua sendo a intuição e o mistério mais fascinante do cristianismo. Desta forma, diante da pergunta sobre como fica minha relação com o outro, sobre a possibilidade de que afetemos e sejamos afetados pela alteridade. O viés para uma modesta resposta seria pensar que todos somos afetados pela Vida e que minha relação com o outro se dá nesta Vida comum que nos afeta a todos. Neste sentido, pensar que afetamos ou somos afetados originalmente pelo outro e modificados por ele, pode nos levar a colocar no centro a ilusão transcendental do ego. Esta ilusão seria a afirmação de que somos capazes de afetar alguém. Não somos o fundamento da nossa afecção e portanto não podemos afetar o outro de modo originário. Primordialmente 245 Ibid, pp. 347-348. O parênteses é nosso. 155 somos afetados por uma mesma Vida que é a de Deus. Portanto, somente em sentido segundo, nesta mesma Vida de Deus, podemos afetar, tocar e sermos tocados pelo outro. Pois ele, assim como eu, está constituído, em sua transcendência corpórea, a partir de uma corporeidade originária transcendental no seio da Vida, como imanência da Vida na carne. 156 CONCLUSÃO Ao término desta empreitada, para além da feliz sensação de tarefa cumprida, resta-nos algumas considerações finais. A primeira delas se refere ao reconhecimento da limitação de nosso discurso. Ao longo da pesquisa esbarramos em três fatores que estabeleceram o horizonte limite deste trabalho. Em primeiro lugar, colocamos a questão prática da temporalidade. Evidentemente, a eficácia da pesquisa, assim como seu objetivo, encontram-se diretamente relacionados às condições temporais oferecidas. Não reclamamos em absoluto mais tempo, tampouco justificamos uma possível incompetência por falta do mesmo. Apenas ressaltamos que adequamos a possibilidade de investigação ao tempo que nos foi oferecido neste exercício de dissertação. O segundo fator diz respeito à nossa opção quanto à delimitação da empreitada. Como a pesquisa toca diretamente temas complexos, tais como: encarnação, corporeidade, fenomenologia, epistemologia, filosofia e cristianismo, para evitar divagações, em vista da construção de um discurso mais coeso, delimitamos nosso trabalho a partir da investigação privilegiada do discurso henryriano. Em alguns momentos fizemos aproximações necessárias com outras reflexões como, por exemplo, as de Rahner. Contudo, tais considerações foram realizada sem perder o referencial último da pesquisa. O terceiro horizonte que delimitou e limitou nossa pesquisa está relacionado ao aspecto bibliográfico. Efetivamente, constatamos um déficit de produções acadêmicas no que tange à elucidação do pensamento henryriano e sua relação com a teologia246. Neste sentido, assumimos o desafio de navegar pelos discursos da 246 Sobre a elucidação do discurso henryriano no âmbito teológico encontramos a tese doutoral de José Luiz Furtado, já anteriormente citada, assim como seu artigo mais recente sobre o tema intitulado: "A filosofia de Michel Henry: uma crítica fenomenológica da fenomenologia (Cf in http://www2.ufpel.edu.br/isp/dissertatio/revistas/27-28/27-28-10.pdf). Especificamente sobre a relação do pensamento de Henry e o cristianismo tivemos acesso ao conjunto de reflexões publicadas numa obra, também já citada, intitulada Phénoménologie et christianisme chez Michel Henry. Ultimamente, infelizmente ao término de nossa pesquisa, tivemos acesso a uma tese doutoral da Universidade de Edinburgh que aborda o self henryriano na perspectiva religiosa. A tese, em inglês, possui o seguinte 157 Antropologia teológica e da Cristologia afim de oferecer, à comunidade cristã e à comunidade acadêmica, uma interpretação que fosse autêntica e eficaz. Manter o discurso aberto não é somente característica do pensamento que quer avançar na busca da verdade, mas constitui também tarefa e exercício de honestidade intelectual. Por isso, nesta ocasião, à guisa de conclusão, manifestamos, modestamente, os possíveis alcances e limites da reflexão henryriana, apresentada nesta dissertação, no que tange à sua colaboração para com a reflexão teológica propriamente dita. Quanto aos limites, ou sobre algumas dificuldades do pensamento de Michel Henry, em sua perspectiva de diálogo com o cristianismo, destacamos em primeiro lugar a polêmica questão de sua resituação do termo "geração". Aplicado, em sua teoria, para se referir à criação do homem em Deus, o termo geração pode levantar desconforto teológico, uma vez que, tradicionalmente, ele foi reservado à linguagem trinitária para falar da geração eterna do Filho como um da Trindade. Na proposta da elaboração de uma fenomenologia radical, fascinantemente pensada à luz do anúncio cristão da encarnação do Verbo, Henry proclama uma identidade, na carne, entre Deus e o homem, que o leva a pensar a geração de todo ser humano a partir do Primeiro vivente, chamado, por nós, Cristo. Esta identificação parece problemática porque não explicita a separação constitutiva que existe entre Deus e sua criatura. Parece existir, portanto, no pensamento henryriano, uma lacuna no que tange à explicitação do princípio de individuação. Sua teoria carece, de fato, da salvaguarda da diferença entre a Vida absoluta e a vida singular? Ainda que, desde nosso ponto de vista, não pareça plausível advogar um panteísmo em Henry, constitui questão de honestidade intelectual apontar para o risco possível desta interpretação. Ela, de fato, pode acontecer sempre que não se leve suficientemente a sério o projeto henryriano da virada fenomenológica, inserido em sua fenomenologia material247. A interessante compreensão da encarnação, delineada a partir da Fenomenologia da Vida, pode também manifestar uma patente dificuldade teológica na hora de pensar a questão da Kenosis. Nesta perspectiva, emergem alguns questionamentos cuja relevância não se pode ignorar. O principal deles, de certa forma provocado por Henry, em sua crítica sobre a cristologia das duas naturezas, esboça-se como segue: Como interpretamos a vinda do Verbo a uma carne se a carne, como poder de afecção e título: "Seeking the Sabbath of life: figuring the theological Self after Michel Henry" (Cf in https://www.era.lib.ed.ac.uk/bitstream/1842/7810/1/Rivera2013.pdf.). 247 Cf.FURTADO, José Luiz. A filosofia de Michel Henry: uma crítica fenomenológica da fenomenologia. In http://www2.ufpel.edu.br/isp/dissertatio/revistas/27-28/27-28-10.pdf) 158 autoafecção, pertence já à estrutura fenomenológica da própria Vida absoluta que é Deus? A encarnação poderia então ser tomada como simples suprassunção da Fenomenologia do mundo por uma Fenomenologia da Vida? Nesta perspectiva, avançando já para o alcance da fenomenologia henryriana, no que tange à sua possível contribuição para o fazer teológico, partilhamos da intuição de que a assunção de nossa carne pelo Filho de Deus, não pode ser compreendida como kenosis no sentido de um Deus que deixa de ser Vida. E a Vida, é concebida, segundo a fenomenologia henryriana, como a essência do próprio Deus, ou seja, como divindade. Portanto, a encarnação em seu movimento kenótico, precisa ser compreendida como a ação de um Deus que se abaixa para encher nosso mundo com sua Vida. Sem situar a questão no âmbito da Fenomenologia da Vida, podemos cair num duplo perigo: por um lado, podemos incorrer no gravíssimo erro de desconsiderar a encarnação como verdadeira kenosis de um Deus que vem para derramar Vida em abundancia. Do outro, podemos lamentavelmente perder a oportunidade de haurir os possíveis frutos do pensamento henryriano por considerá-lo, de algum modo, heterodoxo. Uma das mais fascinantes possibilidades esboçada pela Fenomenologia da Vida de Michel Henry, diz respeito à potencialidade de sua teoria em oferecer uma autêntica hermenêutica sobre a condição humana primordial, a saber: a de sermos um corpo de carne, seres encarnados. A emergência, em seu pensamento, de uma antropologia fundamental, ancorada na Fenomenologia da Vida que, por sua vez, bebe avidamente das fontes cristãs, parece-nos ainda mais oportuna. A fenomenologia da carne e da encarnação, juntamente, ao autêntico conceito de transcendência como imanência da Vida na carne, possibilita-nos vislumbrar futuras investigações sobre o tema da relação entre corporeidade e teologia. Ao fim desta empreitada, advogamos que o pensamento henryriano sobre a manifestação originária da Vida enquanto carne, pode nos conduzir à elaboração de uma fecunda reflexão teológica sobre nosso modo de existir como seres encarnados e irmanados na Vida. A Fenomenologia da Vida, tal como a explicitação de sua nota fenomenológica essencial do "poder de autoafecção e alter-afecção", descortina a possibilidade de pensar a abordagem teológica das nossas ações carnais, o que poderia nos levar à formulação de uma autêntica Teologia do corpo. Esta, pensada à luz do paradigma epistemológico da Inteligibilidade primordial, fecundaria o chão da existência cristã, recolocando a encarnação e nossa vida na carne como dimensão mistagógica de nossa fé em Cristo. 159 REFERÊNCIAS Obras de Michel Henry: HENRY, Michel. C'est moi la vérite: pour une philosophie du christianisme. Paris: Seuil, 1996. 345p. (Yo soy la verdad: para una filosofía del cristianismo. Ediciones Sígueme, Salamanca, 2001. 318p.) ____________Incarnation: une philosophie de la chair. Paris: Seuil ,2000. 374p. ( Encarnación: una filosofía de la carne. Ediciones Sígueme, Salamanca, 2001. 350p.) ____________ L'essence de la manifestation I. Paris: PUF ,1963. 908p. ____________ L'essence de la manifestation II. Paris: PUF, 1963. 908p. ____________Paroles du Christ. Paris: Seuil ,2002. 155p. ____________Phénoménologie de la vie: De la phénoménologie I. Paris: PUF, 2003. 209p. ____________Phénoménologie de la vie: De la subjectivité II. Paris: PUF, 2003. 183p. ____________Phénoménologie de la vie: De l'art et du politique III. Paris: PUF, 2004. 348p. ____________Phénoménologie de la vie: Sur l'éthique et la religion IV. Paris: PUF, 2004. 247p. ____________Phénoménologie matérielle. Paris: PUF, 1990.179p. ____________Philosophie et phénoménologie du corps. Essai sur l'ontologie biranienne. Paris: PUF, 1965. 308p. (Filosofia y Fenomenologia del Cuerpo: Ensayo sobre la ontología de Maine de Biran. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2007. 302p.) Outras obras: ALAND, B; ALAND, K; KARAVIDOPOULOS, J. The greek new testament. 4 ed. Münster/Westphalia: Deutsche Bibelgesellschaft, 1993. ATANÁSIO, de Alexandria, Santo. A encarnação do Verbo. São Paulo: Paulus, 2002. BÍBLIA de Jerusalém. Ed. revista e atualizada. São Paulo: Paulus,2004. BRETON, David Le. A sociologia do Corpo. Petrópolis: Ed. Vozes, 2006. ________________.Antropologie du Corps et modernité. Paris: PUF, 2001. 160 _________________Corps et société: essai de sociologie et d’antropologie du corps. Paris : Méridiens-Klincksieck, 1985. CAPELLE, P. Phénoménologie et christianisme chez Michel Henry. Paris: Les Éditions du CERF, 2004. 214p. CONCILIUM . Corpo e Religião. Vozes, n. 295-2002/2. CORBIN, Alain; COURTINE, Jean-Jacques; VIGARELLO, Georges. História do corpo 1: da renascença às luzes. Petrópolis: vozes, 663p. ______________História do corpo 2: da revolução à grande guerra. Petrópolis: vozes, 511p. _____________ História do corpo 3: as mutações do olhar. O século XX. Petrópolis: vozes, 615p. DEI VERBUM sobre a revelação divina ( n.3-4). In Compêndio do vaticano II constituições, decretos e declarações, Petrópolis: Vozes, 1969, pp122-123. DESCARTES, René. Discurso do método; As paixões da alma. 4° ed. São Paulo: Nova cultura, 1979\1987. 154p. (Os pensadores). DESMOND, William. A filosofia e seus outros: modos do ser e do pensar. São Paulo: Loyola, 2000. 545p. DESMOND, William. Being Between. Clio: journal of literature, History and the Philosophy of History 204 (1991), p.315. FALQUE, Emmanuel. Dieu, la chair et l'autre: d'Irénée à Duns Scot. Paris: PUF, 2011, 494p. FARBER, M. The foundation of Fenomenology. Cambridge: Havard University Press, 1941. FAUS, José I. Gonzáles. Proyecto de hermano : visión creyente del hombre. Madrid: Sal terrae, 1991. FEINER, Johannes; LÖHRER, Magnus. Mysterium salutis: Compêndio de dogmática histótico salvífica II. Petrópolis: Vozes, 1972, p.15. (Artigo de Rahner sobre protologia e antropologia). FURTADO, José Luiz. Do ser à Vida: fundamentos fenomenológicos da filosofia da vida e da práxis em Michel Henry. Belo Horizonte: UFMG, 1996, 711p. GARCIA, Alfonso Ortiz. Diccionário teológico enciclopédico. Pamplona: 4ª Ed. Estella: EVD, 2003. 1071p. (Cf. protologia, p.808) GESCHÉ, Adolphe. O corpo caminho de Deus. São Paulo: Ed Loyola, 2009. 225p. 161 _______________ O Cristo. São Paulo: Paulinas, 2004. 235p. V.6. _______________ O Ser Humano. São Paulo: Paulinas, 2003. 160p. V.2. HUSSERL, Edmund. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica: introdução geral à fenomenologia pura. 3 ed. Aparecida: Ideias & Letras, 2006. 383p. HUSSERL, Edmund. Investigações lógicas sexta investigação. Elementos de uma elucidação fenomenológica do conhecimento. São Paulo: Victor Civita, 1980. 184 (Os pensadores). KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Petrópolis: Vozes, 2012. 621. KELKEL, L. ; SCHÉRER, R. Husserl. Sa Vie, Son Oeuvre. Paris: Presses Universitaires de France, 1964. KONINGS, Johan. Evangelho segundo João: amor e fidelidade. São Paulo: Loyola, 2005, p.275 LACROIX, Xavier. O corpo de Carne: as dimensões ética, estética e espiritual do amor. São Paulo: Loyola, 2009. 283p. LONERGAN. Bernard J. F. The way to Nicea: the dialectical development of trinitarian Theology. Philadelphia: The Westminster, 1964. 143p. MARION, Jean-Luc; PLANTY-BONJOUR, Guy. Phénoménologie et métaphysique. Paris: PUF, 1984, 273p. MARION, Jean-Luc. Le visible et le révelé. Paris: Cerf, 2005, 190p. _____________Le croire pour le voir: réflexions diverses sur la rationalité de la révélation et l'irrationalité de quelques croyants. Paris: Éditions Parole et Silence, 2010. 224p. MERLEAU-PONTY, M. Le Philosophe et son ombre in Signes. Paris: Gallimard, 1960. PLATÃO. Fédon (ou da alma). In__________ Diálogos III (Socráticos): Fedro (ou do belo); Eutífon ( ou da religiosidade); Apologia de Sócrates; Críton ( ou do dever); Fédon ( ou da alma). Bauru: EDIPRO,2008.V.3. RAHNER, Karl. Curso Fundamental da Fé. Introdução ao conceito de Cristianismo. São Paulo: Paulinas, 1989. 531p. RAHNER, Karl. Horer des wortes: zur grundlegung einer religionsphilosophie. Muchen: Kosel, 1963. 220p. RICOEUR, Paul. Na escola da fenomenologia. Petrópolis: Vozes, 2009. 354p. 162 ROBISON, Johan A.T. The body: a study in Pauline Theology. Philadelphia: The Westminster Press,1952. 95p. ROBINSON, T. M. A psicologia de Platão, São Paulo: Loyola, 2007. 236p. ROY, Ana. Tu me deste um corpo. São Paulo: Paulinas, 2000. 175p. SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001. 431p. SOUZA, José Carlos Aguiar de. O projeto da Modernidade. Brasília-DF: Liber Livro, 2005. 141p. SPINSANTI, Sandro. Il corpo nella cultura contemporânea. Brescia: Queriniana, 1990. TERTULIANO.Apologia del cristianesimo: la carne de Cristo. Milano: Biblioteca Universale Rizzoli, 1984. 465p. TERTULIANO. La carne de Cristo. Traducción Luigi Rusca. Apologeticum de carne Christi. Milano: Biblioteca Universale Rizzoli, 1984. URBINA, José M. Pabón S. De. DICCIONARIO MANUAL. Grieco-Espanhol. Barcelona: Vox, 1998 VAZ, Claudio de Lima. Raízes da modernidade. São Paulo: Loyola, 2012, p.11. Bibliografía consultada ou adquirida via internet: FURTADO, José Luiz. A filosofia de Michel Henry: uma crítica fenomenológica da fenomenologia. In http://www2.ufpel.edu.br/isp/dissertatio/revistas/27-28/27-28-10.pdf) RIVERA, Joseph. Seeking the Sabbath of life: figuring the theological Self after Michel Henry in https://www.era.lib.ed.ac.uk/bitstream/1842/7810/1/Rivera2013.pdf. Acesso em 16 de janeiro às 21:00 p.m. (Tese de doutorado apresentada na Universidade de Edinburgh). 163 164