a inteligibilidade primordial: fundamento teológico

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José Sebastião Gonçalves
A INTELIGIBILIDADE PRIMORDIAL:
FUNDAMENTO TEOLÓGICO-ANTROPOLÓGICO DA
FENOMENOLOGIA DA VIDA EM MICHEL HENRY
Dissertação de Mestrado em Teologia
Orientador: Prof. Dr. Geraldo De Mori
BELO HRIZONTE
FAJE- Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia
2014
José Sebastião Gonçalves
A INTELIGIBILIDADE PRIMORDIAL
FUNDAMENTO TEOLÓGICO-ANTROPOLÓGICO DA
FENOMENOLOGIA DA VIDA EM MICHEL HENRY
Dissertação de Mestrado em Teologia
Orientador: Prof. Dr. Geraldo Luiz De Mori
Apoio CAPES
BELO HORIZONTE
FAJE - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia
2014
José Sebastião Gonçalves
A INTELIGIBILIDADE PRIMORDIAL
FUNDAMENTO TEOLÓGICO-ANTROPOLÓGICO DA
FENOMENOLOGIA DA VIDA EM MICHEL HENRY
Dissertação apresentada ao Departamento de
Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e
Teologia, como requisição parcial para a
obtenção do título de Mestre em Teologia.
Área de concentração: Teologia Sistemática
Orientador: Prof. Dr. Geraldo Luiz De Mori.
Apoio CAPS
BELO HORIZONTE
FAJE - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia
2014
Gonçalves, José Sebastião.
G643i
A Inteligibilidade Primordial: fundamento teológicoantropológico da Fenomenologia da Vida em Michel Henry/
José Sebastião Gonçalves. - Belo Horizonte, 2014.
163 p.
Orientador: Prof. Dr. Geraldo Luiz De Mori
Dissertação (mestrado) – Faculdade Jesuíta de Filosofia e
Teologia, Departamento de Teologia.
1. Arqui-inteligibilidade. 2. Inteligibilidade primordial. 3.
Fenomenologia da Vida. 4. Encarnação 5. Corporeidade 6.
Antropologia 7. Teologia 8. Henry, Michel. I. De Mori,
Geraldo Luiz II. Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia.
Departamento de Teologia. III. Título
CDU 121.4
DEDICATÓRIA
"A fé é um modo de já possuir aquilo que se espera,
é um meio de conhecer realidades que não se vêem".
(Hb 11,1)
Aos amores de minha vida, entre eles, Raimundo Gonçalves
Pinto Garajau (In memoriam) e Jací Cândida Pinto, com os
quais aprendi a amar. À Comunidade cristã, especialmente
aos Escolápios, espaço vital da experiência de Deus. Aos
poetas e músicos e aos que perderam o sabor de viver, para
que percebam que a perda é também possibilidade de
encontro.
AGRADECIMENTOS
Ao Deus que é Vida, ao Deus da minha vida. Amor primordial, Caminho e Verdade que
nunca cessa de amar.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Geraldo Luiz De Mori, por ter acreditado no
potencial desta pesquisa e reservado preciosos momentos para o acompanhamento,
sempre manifestando carinho, paciência e competência.
À comunidade Santa Dorotéia ( aos meus irmãos Fernando, Carmelo, Enivaldo,
Maurício, Rogério), bem como à presença escolápia de GV. Por terem sido, muitas
vezes, o clarão do raio em meio às tempestades.
Aos outros irmãos escolápios com os quais tive a honra de conviver (juniores e prénoviços), e aos irmãos que possuem responsabilidade de Governo (a Pe. Fernando, ex
Vice provincial que apoiou o início desta empreitada; a Pe. Juan Mari, atual Viceprovincial; a Pe. Mariano, Provincial, e a Pe. Pedro, Geral).
Ao Jesuítas da comunidade acadêmica da FAJE (Caros colegas de mestrado,
professores, funcionários da biblioteca e xérox, bem como ao CTP.). Responsáveis por
aguçar ainda mais minha paixão pela pesquisa e vida intelectual.
Aos meus amigos amores e Amores amigos: Cláudio Paul, Juliano, Natalino,
Élio, Filipe, Taborda, Nilo, Daniel, Kleber, Cristiane, Amanda. E aos meus alunos pelo
carinho brindado e intuições suscitadas.
À minha família e aos meus afilhados (as), pelo carinho e confiança. Escola de
amor e de vida.
À Michel Henry ( in memoriam) e a todos que se dedicam ao árduo e nobre
exercício do pensamento filosófico e teológico.
À CAPS, pelo financiamento desta pesquisa.
RESUMO
O intuito desta pesquisa consiste em pensar a Arqui-inteligibilidade, haurida do prólogo
joanino, como fundamento teológico-antropológico da Fenomenologia da Vida de
Michel Henry. Partindo do pensamento deste autor, especificamente da perspectiva de
seu discurso sobre a corporeidade, propomos a articulação entre Antropologia e
Teologia. Nosso ponto de partida, tanto filosófico quanto teológico, é o fenômeno da
Vida. Este tema, esboçado fantasticamente na reflexão do filósofo francês, pode ser
pensado teologicamente, a partir do âmbito da Revelação-Encarnação-Salvação, através
da noção de Inteligibilidade primordial do prólogo de São João. Além da fecundidade
historicamente atestada do diálogo entre filosofia e teologia, as razões pelas quais
pretendemos investigar o tema proposto tocam questões de caráter eminentemente
existencial, no que se refere à reflexão teológica e à prática pastoral. A necessidade de
repensar o corpo e a corporeidade, situando-os numa nova conjuntura em que seja
superada a noção epistemológico-dualista segundo a qual todo conhecimento da
realidade brota de um intelecto desencarnado, apresenta-se aqui como uma de nossas
motivações explícitas. Neste sentido, consideramos a noção de Inteligibilidade
primordial, Arqui-inteligibilidade Joanina, como uma intuição fundamental. Ela pode
ressignificar nossa vivência da fé a partir da experiência de nossa corporeidade. Para
tanto, propomos,de acordo com o pensamento henryriano, explicitar a Inteligibilidade
primordial esboçada de forma especial no Prólogo joanino. Trata-se da tarefa de
recordar a verdade fundamental de nossa existência encarnada, a saber: antes do
pensamento, existimos enquanto carne afetada, participamos do mistério da Vida. A
possibilidade de toda ação e reflexão emerge de nossa condição humana originária de
sermos afetados na vida de Deus e por Deus. Pensar e, sobretudo, agir enquanto carne e
a partir da carne, tendo como referência a humanidade do Verbo encarnado, eis nossa
motivação existencial de fundo.
Palavras-chave: Arqui-inteligibilidade; Inteligibilidade primordial; Fenomenologia da
Vida; Encarnação; Corporeidade; Antropologia; Teologia
ABSTRACT
The goal of this research is to think the Arch- intelligibility, drawn from the Johannine
prologue, as theological- anthropological foundation of the Phenomenology of Life in
the Michel Henry's thought. Starting from his thought , specifically from the perspective
of his speech on corporeality , we propose the relationship between anthropology and
theology . Our starting-point , both philosophical and theological , is the phenomenon of
Life . This matter, fantastically outlined in the reflection of the French philosopher ,
could be thought theologically , from the scope of Revelation - Incarnation - Salvation ,
concerning the notion of prime or main Intelligibility at the prologue of St. John.
Beyond the fertility,
historically attested, of the dialogue between philosophy and
theology, there are other reasons which move us to begin this investigate. They touch
existential questions, with regard to the theological reflection and pastoral practice . The
need to rethink the body and embodiment , placing them in a new environment where
exceeding the epistemological and dualistic notion that think that all knowledge of
reality springs from a disembodied intellect , is presented here as one of our explicit
motivations. In this sense we consider the notion of prime or main intelligibility, Arch
Joanina intelligibility , as a fundamental insight . It can reframe our experience of faith
from the experience of our corporeality . To this end, we propose , according Henry's
thought, explaining the prime Intelligibility, outlined in a special way in the Johannine
Prologue . We want do the task of recalling the fundamental truth of our embodied
existence, namely, to affirm that before thought , we exist as flesh affected , partake of
the mystery of Life . The possibility of all the action and reflection begins with our
original conditional of being affected at the Life of God and by God. So, we can say
that our main existential motivation, which moved us to do this work, it is think, and
above all, act as flesh affected by God's life.
Key words: Arch-intelligibility; Prime intelligibility; Phenomenology of Life,
Incarnation, Embodiment, Anthropology, Theology.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 10
CAPÍTULO
1:
A
VIRADA
FENOMENOLÓGICA:
PRESSUPOSTOS
FILOSÓFICOS DA FENOMENOLOGIA DA VIDA PARA UMA POSSÍVEL
INVESTIGAÇÃO TEOLÓGICA ............................................................................ 18
1 O corpo de carne: distinção basilar e considerações preliminares.............................. 19
2 A questão da verdade como busca fundamental de uma inteligibilidade Primordial .. 25
2.1 A questão do aparecer e sua indigência ontológica ................................................ 26
2.2 A Verdade segundo a Fenomenologia do Mundo.................................................. 36
2.3 O esvaziamento do poder da impressão em sua auto-afecção ................................. 44
3 A virada fenomenológica: do aparecer do mundo à Fenomenologia da Vida ............ 47
3.1 A carne impressiva: O esquecimento da subjetividade e sua recordação no pathos
da vida ........................................................................................................................ 50
3.2 A remissão da Fenomenologia da Carne (impressiva) à Fenomenologia da Vida ... 54
3.3 A Verdade segundo o Cristianismo....................................................................... 62
CAPÍTULO 2: FENOMENOLOGIA DA VIDA E CRISTIANISMO: A
REVELAÇÃO SOBRE NOSSA HUMANIDADE ................................................... 69
1 Fenomenologia e ontologia: possíveis implicações teológicas .................................. 70
2 Fenomenologia de Cristo: função soteriológica ........................................................ 73
2.1 A autorrevelação da Vida Absoluta no Logos Primordial...................................... 81
2.2 A questão da Palavra viva de Deus ....................................................................... 92
2.3 O Deus relação: perspectiva trinitária ................................................................. 101
3 A condição Humana primordial: por uma antropologia fundamental ..................... 105
3.1 Filhos no Filho ................................................................................................... 107
3.2 Sobre o esquecimento da nossa condição de filho: Ilusão Transcendental do Ego 113
3.3 Por uma antropologia fundamental ...................................................................... 117
CAPÍTULO 3: INTELIGIBILIDADE PRIMORDIAL: O SENTIDO CRISTÃO
DA SALVAÇÃO ..................................................................................................... 122
1 A fenomenologia da encarnação ............................................................................. 123
2 A inteligibilidade Primordial: o sentido cristão da salvação .................................... 132
3 Por uma teologia mistagógica da corporeidade e da ação: recordação da nossa
condição de filhos e nossa incorporação ao Corpo místico de Cristo ......................... 144
CONCLUSÃO ......................................................................................................... 157
REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 160
A
INTRODUÇÃO
O escopo desta dissertação é pensar como a Inteligibilidade primordial, haurida
do prólogo joanino, pode ser vislumbrada como fundamento teológico-antropológico da
Fenomenologia da Vida de Michel Henry1. A partir do pensamento deste autor, mais
especificamente da perspectiva de seu discurso sobre a corporeidade, que emerge de sua
Fenomenologia da Vida, propomos a articulação entre Antropologia e Teologia. Nosso
ponto de partida, tanto filosófico quanto teológico, é o fenômeno da Vida. Este, que se
encontra esboçado na fantástica reflexão do filósofo francês, é pensado teologicamente
a partir do âmbito da Revelação-Encarnação-Salvação, através da noção de
Inteligibilidade primordial do prólogo de João. Apesar da impressão inicial, é
importante ressaltar que este trabalho não se trata de uma dissertação bíblica centrada na
investigação exegética do texto de João. Assumimos a perspectiva de nosso autor e
procuramos torná-la explícita. Contudo, não adentraremos em um discurso analítico do
texto bíblico. O mesmo se pode dizer em relação à fenomenologia. Apesar da relevância
do discurso filosófico, concentrado, principalmente, no primeiro capítulo, nossa
empreitada não constitui uma investigação filosófica sobre a fenomenologia enquanto
escola. Desde já, assumimos então as possíveis lacunas referentes a tais disciplinas.
Além da fecundidade historicamente atestada do diálogo entre filosofia e
teologia, as razões pelas quais pretendemos trabalhar o tema proposto tocam questões
de caráter eminentemente existencial, no que se refere à reflexão teológica pessoal e à
1
Cf. HENRY, Michel. Incarnation: une philosophie de la chair. Paris: Seuil, 2000, pp. 361-374 . O texto
original de Henry fala de uma "Archi-intelligibilité johannique". Contudo, em diálogo com nosso
orientador, pensamos que o termo Inteligibilidade Primordial traduziria com maior clareza a ideia do
autor. Assim, sempre que quisermos nos referir ao conceito original utilizaremos o segundo termo.
Aproveitamos a ocasião para informar que, embora tenhamos utilizado em nosso trabalho,
majoritariamente, a tradução espanhola, optamos pela citação do original francês, exceto em duas obras
que só tivemos acesso ao texto em língua espanhola. Assim mesmo, todas as citações literais foram
conferidas em suas fontes primeiras.
10
prática pastoral. A primeira razão explícita é a necessidade de repensar o corpo e a
corporeidade, situando-os numa nova conjuntura, em que seja superada a noção
epistemológico-dualista segundo a qual todo conhecimento da realidade brota de um
intelecto desencarnado. Aqui falamos do “saber ser carne”. É neste sentido que
consideramos a noção de inteligibilidade ou arqui-inteligibilidade Joanina como uma
intuição primordial para ressignificar nossa vivência da fé a partir da experiência de
nossa corporeidade. Para tanto, propomos, com Henry, desvelar uma Inteligibilidade
primordial esboçada de forma especial no Prólogo joanino. Não a inventamos
absolutamente, apenas queremos fazer notar que, antes do pensamento, existimos
enquanto carne afetada (participamos do mistério da Vida). Desta afecção brota a
possibilidade de toda ação e reflexão. Pensar e, sobretudo, agir enquanto carne e a partir
da carne, tendo como referência a humanidade do Verbo encarnado, eis nossa
motivação existencial de fundo.
A vastidão e a complexidade dos discursos produzidos até hoje sobre a nossa
forma de aparecer no mundo, ou seja, nossa corporeidade, oferecem certa dificuldade no
momento de situar e contextualizar a presente empreitada. Poderíamos nos perder em
divagações antropológicas e cair numa mera descrição de fenômenos. Assim sendo,
optamos por colocar como marco referencial, pano de fundo, duas características que
nos parecem fundamentais na hora de empreender a pesquisa sobre o tema da
encarnação como nossa forma de aparecer no mundo. A primeira se refere a uma
espécie de renascimento ou despertar da corporeidade, característica da cultura
contemporânea. O corpo escondido e reprimido outrora, agora se torna alvo de discursos
de libertação e até mesmo de posturas de banalização. De fato, com frequência vemos
nos meios de comunicação posturas paradoxais sobre a corporeidade: de um lado corpos
estendidos no chão, vítimas de acidente, assassinados, desnutridos, são mostrados ou
ignorados; do outro, outdoors com corpos belos convidando para academias, se
tornaram tão comuns que chegam a fazer parte do cenário da poluição visual. Há toda
uma produção e especialização de técnicas em favor da manutenção e cuidado com o
corpo. A cultura somática é obsessiva com as questões de saúde e estética. A
manipulação tecnológica do corpo abre por sua vez espaço para a “produção” de atletas
saudáveis capazes de quebrar recordes. A manipulação genética é um dos temas mais
empolgantes e controversos do cenário mundial. Ela também possui implicações
antropológicas que nos levam a pensar em um corpo ideal, lançando-nos em campos
complexos da eugenia, produção de embriões descartáveis com fins terapêuticos e
11
outros. Todo este cenário contribuiu para que se pudesse pensar, por exemplo, uma
sociologia do corpo, como é o caso de David Le Breton e Sandro Spinsanti2.
A segunda característica que auxilia a contextualização de uma atual pesquisa
sobre nossa condição corpórea, pode nos ser dada pela perspectiva filosófica da
fenomenologia. Neste sentido, tocamos o tema do 'aparecer' da Vida, ou seja, de sua
manifestação, desde as vivências mais hodiernas até as mais elaboradas e complexas
formas do existir humano. A reflexão sobre o fenômeno da vida e da existência foi
acentuada pelas filosofias modernas que precederam a reflexão fenomenológica
enquanto escola. A começar pela reflexão cartesiana, precursora de uma filosofia da
consciência, passando pela reflexão do sujeito transcendental de Kant, atingindo o
sistema hegeliano da manifestação do Espírito absoluto, como manifestação do sentido
da vida na história. No limiar da crise da modernidade uma fenomenologia da vida3 foi
esboçada pelo pensamento de Schopenhauer. Em sua obra intitulada "O mundo como
vontade e representação4", o autor compreende a existência como consequência de uma
vida cega e sem sentido. Esta perspectiva schopenhauriana será retomada pela filosofia
de Nietzsche que anunciará, de forma assombrosa, a morte de Deus. Intuiremos, ao final
de nosso discurso sobre a Fenomenologia da Vida, que o Deus morto do pensamento
Nietzschiano, felizmente, não coincide com o Deus que é Vida da existência cristã. O
anúncio da morte de Deus não é, efetivamente, o anúncio da morte da Vida. Ainda mais
podemos dizer sobre isso. Na perspectiva do pensamento henryriano, em certo sentido,
este anúncio nietzschiano sobre a morte de Deus é até mesmo vazio e sem sentido. Isto
porque no horizonte fenomenológico do mundo não é possível nenhum Deus, sempre
quando este é entendido como Vida. Assim então, constatamos que, segundo a
fenomenologia henryriana, a proclamação da morte de Deus é inútil, pois este nunca
existiu, eminentemente, no mundo, uma vez que este é vazio de toda Vida. A
perspectiva Schopenhauriana, de uma vida cega e sem sentido, que se expressa como
pura Vontade, haverá de ser retomada também por Freud. O médico de Viena confinará
a existência humana ao mundo inconsciente, palco de ação desta vida cega proclamada
2
Cf. LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Petrópolis: vozes, 2006. - SPINSANTI, Sandro. Il
corpo nella cultura contemporanea. Brescia: Queriniana, 1990.
3
Evidentemente esta fenomenologia da vida em minúscula, delineada por Schopenhauer, nada tem a ver
com a Filosofia da Vida, em maiúscula, do pensamento henryriano. De fato, a perspectiva do filósofo do
século XIX ainda permanece, como notaremos mais adiante, na perspectiva que Henry haverá de chamar
de Fenomenologia do mundo. Assim sendo, ressaltamos, que a concepção do aparecer da vida no
primeiro autor difere, radicalmente, da manifestação da Vida da perspectiva de Michel Henry.
4
Cf. SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro: contraponto,
2001. 431p.
12
por Schopenhauer. Os impulsos da dimensão dionisíaca, atestada pela filosofia
nietzschiana, agem, segundo Freud, no inconsciente de cada ser humano que está fadado
a uma existência inautêntica, uma vez que, como ser social, nunca poderá dar vazão à
todas suas vontades. Este discurso tão truncado e, para muitos, de difícil intelecção ao
início, haverá de ser elucidado aos poucos quando iniciarmos a narração da virada
fenomenológica proposta por nosso autor.
A fenomenologia, enquanto escola, esboça-se como um método de investigação
tendo Edmund Husserl como seu precursor. Para muitos estudiosos, tal método constitui
o centro de gravidade de grande parcela do pensamento filosófico do século XX. Ele
influenciou grandes pensadores como Heidegger5. Posteriormente, a filosofia
transcendental de Husserl foi retomada por exímios fenomenólogos como, por exemplo,
Merleau-Ponty. Autores contemporâneos como Paul Ricoeur também levam em conta a
reflexão proposta pela fenomenologia na hora de elaborar seu pensamento, como é o
caso da abordagem hermenêutica ricoeuriana6. Pensar uma possível abordagem
teológica sobre nosso corpo encarnado, a partir das descobertas do pensamento
henryriano, na perspectiva de uma fenomenologia da carne, poderá nos ajudar a resgatar
e a vivenciar melhor a verdade fundamental de nossa fé. Esta, encontra-se esboçada de
forma “espantosa” no fenômeno Cristo, chamado também de fato Cristão, e
poeticamente narrado no prólogo joanino: “O verbo se fez carne”. De fato, nosso
propósito investigativo pode ser explicitado também da seguinte maneira: pensar nossa
condição antropológica e teológica fundamental, nossa forma de aparecer no mundo
enquanto carne afetada, tendo como ponto de partida a contribuição da Fenomenologia
da Vida de Henry, à luz de nossa referência Teológica fundamental, a saber: a
Revelação- Encarnação do Cristo.
Para que pudéssemos oferecer condições práticas de factibilidade de nossa
pesquisa, delimitamos nossa empreitada a partir do grande objetivo já explicitado no
início desta introdução, a saber: pensar a noção de Arqui-inteligibilidade, anunciada no
prólogo de João e esboçada pelo pensamento de Henry, como possível fundamento
teológico-antropológico da Fenomenologia da Vida. Para pautar nossa reflexão
delimitamos nosso estudo a duas obras do autor, a saber: Incarnation e C'est moi la
5
Cf. HUSSERL, E. Investigações lógicas- sexta investigação. In Os pensadores. São Paulo: Abril
cultural, 1980, p. 6-14.
6
Cf. RICOEUR, Paul. Na escola da fenomenologia. Petrópolis, Vozes, 2009.
13
vérité7. Pensamos que, embora nossa questão tenha como ponto de partida o
pensamento de um filósofo e fenomenólogo, as condições práticas de factibilidade da
pesquisa se dão porque o tema, como se pode antever pelo mesmo título, leva-nos a um
âmbito explicitamente teológico. A partir destas obras empreenderemos um diálogo
com a Antropologia teológica. Modestamente, buscamos levar em consideração as
reflexões da Teologia fundamental, esboçada pela tradição da Igreja através de grandes
teólogos, desde a tradição dos padres (Irineu, Tertuliano) até o pensamento teológico
contemporâneo evocado aqui através de teólogos como Xavier Lacroix, Karl Rahner e
Adolph Gesché8. Quanto à delimitação do tema, pensamos que ela se esboça de forma
bastante clara no mesmo título de nossa pesquisa. Ressaltamos, portanto, que não temos
pretensão de abordar toda a reflexão sobre a Fenomenologia da Vida de Henry. Nossa
empreitada visa somente indicar que a reflexão fenomenológica desenvolvida pelo autor
recupera dimensões escondidas ou esquecidas no que se refere ao corpo e sua relação
com a doutrina da Salvação. Parafraseando Tertuliano e mesmo Gesché, pretendemos
elucidar que o corpo, segundo a sã tradição cristã, aparece como caminho de Deus e
caminho para Deus. Neste sentido, enquanto opção metodológica, podemos dizer que
nossa pesquisa se refere ao método hermenêutico enquanto reflexão dialógica que busca
a comunicação entre as duas disciplinas, a saber: Fenomenologia e Teologia, tendo
como centro a reflexão sobre nossa forma de aparecer e viver no mundo que se dá
através de nossa “condição de seres encarnados – corporeidade".
Desta forma, seguindo nosso objetivo primeiro (pensar a Inteligibilidade
primordial como fundamento teológico da Fenomenologia da Vida), de acordo com
nossa opção metodológica de colocar em diálogo Fenomenologia e Teologia, por meio
de uma modesta hermenêutica, estruturamos nosso discurso a partir de três objetivos
específicos. O primeiro deles gira em torno à tentativa de explicitar a Fenomenologia da
Vida de Michel Henry como uma possível filosofia cristã. Em segunda instância,
buscamos elucidar o vínculo entre Teologia e Fenomenologia da Vida, fazendo notar a
7
Cf. HENRY, Michel. C'est moi la vérite: pour une philosophie du christianisme. Paris: Seuil ,1996. A
outra obra já se encontra citada em nossa primeira nota. Trabalhamos, majoritariamente, em nossa
dissertação com a tradução espanhola das duas obras: Encarnación: una filosofia de la carne ; Yo soy la
verdad: para uma filosofia do Cristianismo. Contudo, conferimos todas as notas com o texto original e,
doravante, fizemos a opção por citar sempre o texto em sua versão de língua francesa.
8
Destacamos que a Teologia fundamental de Rahner foi o ponto de contato para que pudéssemos entravar
o diálogo entre a teoria henryriana e a tradição teológica. Contudo atestamos nossa limitação e
reconhecemos que, por questão de opção e delimitação, deixamos de fora a explicitação das concepções
antropológicas clássicas expostas, por exemplo, na teologia de Tomás de Aquino. De qualquer forma,
implicitamente, estas abordagens se encontram contempladas todas as vezes que nos referimos ao jogo
dialético entre Fenomenologia do Mundo e Fenomenologia da Vida.
14
profunda intimidade entre Teologia e Antropologia. Por fim, no terceiro objetivo,
propomos um pensamento teológico-mistagógico, que reforce a experiência ética vital
da corporeidade na sua relação com a alteridade. Destaca-se aqui o tema de nossa
incorporação ao Corpo místico de Cristo, através das nossas ações carnais, na relação
com os outros corpos encarnados. A estrutura do presente texto segue, metodicamente,
a elucidação dos três objetivos acima citados. Desta forma, nossa reflexão está
elaborada a partir de três momentos, sendo que cada um deles corresponde
estruturalmente a um capítulo. Sobre isso discorreremos brevemente a seguir.
O primeiro capítulo desta dissertação, intitulado "A virada fenomenológica",
busca expor os pressupostos filosóficos da Fenomenologia da Vida para uma possível
investigação teológica. Nele ganha destaque especial a tese que provoca a investigação,
a saber: a questão da encarnação. É a pergunta pela nossa condição carnal que conduz o
autor a pensar uma Fenomenologia da Vida, operando assim, uma guinada no
pensamento fenomenológico. Partindo da análise henryriana dos pressupostos
infundados da Fenomenologia do mundo, construiremos a base para o desvelamento de
uma Fenomenologia da Vida. O discurso, eminentemente filosófico, possui objetivo
teológico. Analisando a epistemologia moderna, desde a chamada redução galileana,
passando, brevemente, pela contra-redução cartesiana e a perspectiva husserliana,
buscamos explicitar a gratidão crítica de Henry. Este, reconhecendo-se na esteira da
fenomenologia tradicional, lança-nos para um novo modo de ver, a partir do qual,
pretende-se superar a dualidade entre fenomenologia e ontologia, entre ser e aparecer.
Emerge, neste contexto, a questão da verdade como busca fundamental por uma
Inteligibilidade dita primordial. A partir do conceito das duas verdades esboçadas no
pensamento de Henry, a saber: verdade do mundo e verdade do cristianismo, pretendese pensar a Fenomenologia da Vida como uma legítima filosofia do cristianismo. Na
medida em que, segundo a perspectiva fenomenológica do autor, a verdade do
cristianismo difere essencialmente da verdade do mundo, impõe-se como necessária a
elucidação destas duas fenomenologias. Nossa reflexão será de cunho teológicoantropológico-fundamental. Trata-se de pensar a verdade do cristianismo e, assim
mesmo, a cristologia desde a perspectiva da Fenomenologia da Vida. O discurso desta
unidade haverá de gravitar em torno a conceitos centrais como: verdade do mundo,
verdade do cristianismo, autorrevelação, fenomenologia da vida (e da carne).
Nosso próximo passo, buscando ser fiel ao segundo objetivo traçado, tratará da
relação entre Fenomenologia da Vida e Cristianismo. Aqui se coloca em pauta a questão
15
da Autorrevelação de Deus que nos abre o horizonte para pensar a revelação sobre nossa
condição humana de seres encarnados. Esta reflexão gravitará em torno da função
soteriológica da fenomenologia de Cristo, que nos lançará no campo de uma
antropologia fundamental, a partir da qual será possível pensar nossa condição humana
primordial. Uma vez elucidada a Fenomenologia da Vida, como verdade fundamental
que legitima uma filosofia do cristianismo, propomos pensar nossa existência carnal a
partir da Inteligibilidade primordial do prólogo joanino. A intuição que pretendemos
elucidar pode ser encarada como uma virada hermenêutica na forma de compreender e
pensar nossa forma de aparecer e ser no mundo. A Inteligibilidade primordial, pensada
por Henry, está estritamente ligada à verdade do cristianismo e sua Fenomenologia da
Vida. Nela ocorre uma revelação surpreendente sobre a nossa humanidade: na carne de
Cristo, e misteriosamente, na nossa carne se faz presente a Inteligibilidade primordial,
que ultrapassa toda pretensão racionalista de abordagem completa da verdade. Para
vislumbrar algo da verdade, antes é preciso saber ser carne e saber-se carne. A fonte do
pensar não parte, como advoga a tradição racionalista, de um nous desencarnado, mas
da nossa realidade patológica de autoafecção. Com isto, pode-se verdadeiramente
pensar o cristianismo e sua verdade como uma filosofia da carne.
O derradeiro capítulo dessa dissertação, buscando aprofundar ainda mais o
estreito vínculo entre Fenomenologia da Vida e Cristianismo, tomando como ponto de
partida a questão da Inteligibilidade primordial, desenvolvida por Henry, a partir do
anúncio do prólogo joanino, explicitará o horizonte do sentido cristão da salvação.
Trata-se aqui de repensar nossa condição humano-corporal a partir do mistério da
encarnação do Cristo. Segundo as reflexões anteriores sobre a verdade do mundo e a
verdade do Cristianismo, buscamos propor uma Teologia mistagógica concernente à
nossa corporeidade. Queremos pensar e viver nosso corpo de carne como lugar
teológico da manifestação da verdade fundamental de Deus e do ser humano. O corpo
como caminho de Deus e caminho para Deus.
Retomaremos neste terceiro capítulo temas fundamentais e, portanto,
estruturantes de toda investigação. Partindo da fenomenologia da encarnação,
abordaremos especificamente, num segundo momento, a revelação no prólogo joanino
de uma Inteligibilidade primordial. Encerraremos nosso discurso com a perspectiva
sobre uma teologia mistagógica da corporeidade. A partir desta abordagem éticoteológica, vislumbramos, com esperança, o horizonte para uma possível investigação, na
qual poderemos pensar uma espécie de catequese mistagógica sobre o corpo de Cristo e,
16
consequentemente, nossa incorporação a Cristo como lugar de encontro e revelação do
próprio Deus. Deixamos, portanto, manifesto, que um dos objetivos deste capítulo,
consiste em abrir horizontes através dos quais possamos pensar, a partir da
Fenomenologia da Vida de Henry, uma possível Teologia do corpo. Esta, por sua vez,
partiria do fundamento de nossa fé que está enraizada, no espantoso e bem aventurado
anúncio, do prólogo joanino: “o Verbo se fez carne” (Jo 1,14).
Por fim, dizemos que a relevância teológica desta dissertação pode ser
explicitada no vínculo claro que existe entre a noção de Inteligibilidade primordial
Joanina, proposta por Henry, e a mesma noção de Revelação atestada e vivenciada na
comunidade judaico-cristã no que tange à Autocomunicação (Autorevelação) de Deus.
O Cristianismo, como religião da encarnação, atesta que, a partir da experiência do
Cristo, Deus se revela através da nossa carne (Encarnação - Cristo). Assim sendo, temos
o vínculo explícito entre Antropologia e Teologia esboçado neste evento originário da
Encarnação que, em Michel Henry, encontra-se expressado na dupla noção básica de
Fenomenologia da Vida e Inteligibilidade primordial Joanina. Ambas as noções nos
conduzem à elucidação teológica do verdadeiro sentido da corporeidade- humanidade, a
saber, nossa destinação a participar da vida do próprio Deus.
17
CAPÍTULO 1: A VIRADA FENOMENOLÓGICA:
PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS DA FENOMENOLOGIA DA
VIDA PARA UMA POSSÍVEL INVESTIGAÇÃO TEOLÓGICA
Sendo esta empreitada uma investigação eminentemente teológica, ao leitor
poderia incomodar um capítulo exclusivamente filosófico. Contudo, para além de todo
capricho intelectual, a reflexão fenomenológica encabeçada neste primeiro momento,
situa-se como condição de possibilidade para o desenvolvimento sóbrio de nossa
pesquisa. É neste sentido que propomos explicitar a virada fenomenológica henryriana,
assim como os pressuposto filosóficos da Fenomenologia da Vida, afim de promover
uma autêntica investigação Teológica. Nosso percurso contará com três momentos
principais.
Em primeiro lugar faremos uma contextualização da pesquisa, colocando a
questão da distinção basilar entre 'corpo' e 'carne', assim como algumas considerações
preliminares caras à nossa investigação. Neste momento situaremos Henry na esteira da
fenomenologia e vislumbraremos, brevemente, como sua empreitada intelectual se
insere no seio da tradição filosófica, mais bem, na escola fenomenológica. Em nosso
segundo passo investigaremos a questão da verdade como busca fundamental de uma
inteligibilidade Primordial. Abordaremos nesta ocasião a questão do aparecer e sua
indigência ontológica, dando lugar à reflexão sobre a verdade segundo a Fenomenologia
do mundo, e à crítica henryriana do esvaziamento do poder da impressão em sua
autoafecção. Nosso derradeiro passo tratará explicitamente da virada fenomenológica e
buscará explicitar a passagem de uma Fenomenologia do mundo à Fenomenologia da
Vida. Emergirá de nosso discurso questões tais como: o esquecimento da subjetividade
e sua recordação no pathos da vida ( a questão da carne impressiva); a remissão
necessária de uma fenomenologia da carne à Fenomenologia da Vida; e, por fim,
veremos como tudo isto nos conduz à perspectiva da Verdade segundo o cristianismo.
Passemos pois à análise da questão que provoca a investigação (o corpo de carne), tais
como a algumas considerações preliminares.
18
1 O corpo de carne: distinção basilar e considerações preliminares
Como já explicitamos na introdução, a tarefa de nossa pesquisa consiste em
pensar a fundamentação teológica do discurso Henryriano em sua Fenomenologia da
Vida. Obviamente por se tratar da Vida absoluta na sua doação geradora desta vida
singular que cada um de nós vivemos, o discurso também é antropológico. Temos
então, que nosso trabalho traz como pano de fundo o tão mencionado binômio
relacional: Teologia-Antropologia. Sendo, portanto, que o objetivo da investigação é
teológico, o discurso filosófico, ou, no nosso caso específico, fenomenológico,
encontra-se pautado por um propósito investigativo específico. Este diz respeito à
explicitação necessária dos princípios filosóficos ou fenomenológicos que, doravante,
permitir-nos-ão uma plausível empreitada Teológica.
Por ousada que seja nossa postura, parece-nos conveniente afirmar que o tema
do Cristianismo, abordado diretamente por M. Henry no último período da sua
produção
intelectual,
não
se desvincula,
em absoluto,
de sua empreitada
fenomenológica. A busca pela verdade, seja como for, o conduziu até às portas do
pensamento cristão. Caminhando por estas veredas, como bom fenomenólogo, homem
empenhado em compreender o que há de mais fundamental na realidade, nosso autor se
deparou com a questão central da fé cristã. Trata-se do tema da encarnação. Centrando
nele seus últimos esforços intelectuais, dele também exauriu as forças necessárias para
levar a cabo sua proposta de pensar a Fenomenologia da Vida a partir do ethos cristão.
Afirmará Henry que a questão da encarnação, eixo central da fé cristã, também se
coloca como questão central para todos os homens e mulheres viventes que existem
sobre a terra. Isto ocorre simplesmente pelo fato de que todos esses viventes são seres
encarnados9. Esta verdade, proclamada no cristianismo, através do evento Cristo, é
também a verdade antropológica mais fundamental. De fato, diante da pergunta
filosófica mais básica, aquela que se refere à diferença entre os corpos vivos10 e os
9
HENRY, Incarnation, p.7. Aproveitamos a oportunidade para comunicar que todos os fragmentos
literais da obra do autor que se encontram neste texto possuem uma tradução livre (do espanhol ou
francês ao português) de responsabilidade nossa.
10
Por se tratar de uma dissertação de mestrado, portanto, modesta, não entraremos aqui na discussão
ampla sobre os corpos vivos que habitam a terra. Todas as vezes que utilizamos esta expressão estamos
fazendo alusão diretamente ao corpo do homem, um corpo de carne, que se sabe carne, no sentido
henryriano.
19
corpos inertes, objetos de estudo das ciência duras ( física, química, etc), dizemos que a
encarnação se apresenta, de fato, como o marco diferencial entre o corpo humano e os
corpos materiais. Agora, se esta é uma diferença fundamental, ela se impõe como
questão basilar na hora de pensar a verdade da vida ou a verdade de como conhecemos
esta vida.
Para levar adiante sua investigação fenomenológica, Henry introduz no início de
seu discurso, no livro Encarnação, uma distinção não só metodológica, mas de cunho
fundamental. Esta diz respeito à definição ou circunscrição, por meio das diferenças,
entre os dois corpos: por um lado, o corpo de carne, por outro, os corpos opacos que
povoam o universo. De um lado, temos um corpo encarnado, capaz de sentir as
interpelações do mundo. Este corpo, capaz de sentir, só o é, porque primeiro se sente.
Assim sendo, desponta-se o tema da auto-afecção como raiz da distinção primordial
entre o corpo sentido e o corpo que sente. Sendo que nosso corpo possui as duas
características, já que é, ao mesmo tempo, corpo que sente e corpo sentido. A
capacidade de sentir-se ou, como veremos adiante, de 'Poder sentir-se', capacidade esta
que não possui seu fundamento em si mesmo, estabelece-se como condição de
possibilidade de 'Poder sentir' os corpos exteriores. Afirmamos que aqui surge uma
questão epistemológica de fundo, a saber: a pergunta pelo ponto de partida do
conhecimento e o que se 'Pode' realmente conhecer. Esta questão, da teoria do
conhecimento, tão antiga e tão nova, esteve presente no pensamento humano desde
tempos imemoriais. Potencializada pela filosofia grega, continuou seu desenvolvimento
a partir da teologia cristã. Retomada pela filosofia moderna, foi reformulada por
Descartes, em seu Discurso do método, discutida pelos filósofos empiristas do séc.
XVII, e sintetizada de forma magistral pelas duas críticas de Kant. A questão,
obviamente, não se fecha em Kant, e continua a ser tematizada pelas filosofias
posteriores (positivismo de Comte, a retomada da questão da vida por Schopenhauer).
Despontam neste contexto duas personalidades que tratam da busca pela verdade
utilizando, embora de forma diferente, diretamente o termo fenomenologia, a saber:
Hegel (Fenomenologia do Espírito) e, posteriormente, Husserl. Este último, herdeiro da
tradição cartesiana, fundará uma das escolas filosóficas mais fecundas no limiar do séc.
XIX ao XX.
O pensamento henryriano se insere, como antes afirmamos, neste contexto de
investigação epistemológica. Herdeiro do pensamento de Husserl, ele o toma como
terreno fecundo para a criação de seu caminho constante de busca pela verdade.
20
Esbarrando com a confissão cristã de um Verbo encarnado, percebe a fecundidade desta
categoria para sua reflexão fenomenológica e para a própria teoria do conhecimento. Ao
avançar em suas pesquisas sobre a encarnação, tomá-la-á como premissa epistemológica
fundamental. Isto quer dizer: para Henry está clarividente que somente nossa carne nos
permite conhecer, ela é, a partir de seus limites, a condição de possibilidade de todo
conhecimento. Esta afirmação será elucidada mais adiante quando abordarmos
diretamente a fenomenologia da carne, assim como o tema da impressão e dos seus
"Poderes"11. Por agora, parece-nos indispensável aprofundar um pouco mais a distinção
antropológica básica proposta por Henry, a saber: aquela que se refere ao corpo de carne
e ao corpo inerte, objeto das ciências duras.
Na distinção que opera entre os dois corpos: o corpo vivo, dos seres humanos, e
o corpo opaco, dos objetos das ciências, o autor chamará carne o primeiro e corpo o
segundo. Todas as vezes, portanto, que falarmos de uma carne, estamos falando deste
corpo de carne, o nosso corpo vivo, encarnado e bem distinto dos outros corpos que
nada podem sentir. Aqui se encontra a riqueza do pensamento henryriano tal como sua
capacidade de fecundar o chão da teologia, ao abrir uma porta no seu pensamento
fenomenológico para pensar o tema cristão da encarnação. O que mais nos impressiona
é que ao pensá-lo, não o faz como uma questão marginal, como se fosse um acidente de
percurso do seu pensar filosófico. Ao contrário, destaca este tema como algo
fundamental na sua Fenomenologia da Vida, e o afirma como pivô da virada
fenomenológica que propõe. Por isso, lançamos nosso olhar investigativo sobre este
autor e nos propusemos buscar os fundamentos teológicos de sua fenomenologia da
vida a partir de sua fenomenologia da carne e da encarnação. Para continuar nossa
empreitada, passamos agora a pensar a definição de homem como carne12.
Para avançarmos na distinção proposta por nosso fenomenólogo, temos que
passar necessariamente pela abordagem das duas antropologias clássicas que subjazem à
visão ocidental do homem. Trata-se da visão do ser humano propagada pelo pensamento
grego e da visão propagada pelo pensamento semítico presente na tradição das Sagradas
Escrituras. Pese sua importância, passaremos brevemente por esta análise por ser ela um
lugar comum tanto na reflexão teológica quanto na filosófica. Henry percebe que a
definição do homem como carne, por mais evidente que pareça, não é uma questão tão
fácil de ser compreendida. A palavra encarnação, encruzilhada que pode proporcionar o
11
12
HENRY, Incarnation, pp. 69-74; 156-162.
Cf. Ibid, pp. 16-20.
21
fértil encontro entre Teologia e Filosofia, também suscita um ferrenho confronto entre
aqueles que a tomam como fundamento da própria vida (cristãos) e aqueles que a
rejeitam de forma, diz ele, "incondicional"13. Vejamos os traços principais das duas
antropologias, para percebemos os seus confrontos e desencontros, assim como alguma
possibilidade de aproximação da verdade proclamada pelo cristianismo.
Que a antropologia grega seja dualista, isto é um conhecimento proclamado aos
quatro ventos pela tradição filosófica e retomada pela reflexão teológica moderna.
Lugar comum é também a percepção que temos de que este dualismo ultrapassou as
fronteiras do mundo grego e penetrou na própria tradição cristã. Com certa razão se fala
de uma helenização do cristianismo. Contudo, este não é nosso tema. Constatar o
dualismo antropológico da filosofia grega deve nos levar a pensar concretamente a
dificuldade encontrada pela tese cristã da encarnação para penetrar os corações e mentes
helenizados. Com não menos razão, deve-nos fazer admirar a coragem dos primeiros
convertidos e imaginar o impacto deste anúncio (Deus encarnado) em suas vidas. O
dualismo grego encontra-se plasmado de forma brilhante em Platão, em uma de suas
obras mais lidas. Trata-se do Fédon. Neste diálogo, Platão expõe aquilo que pode ser
considerado como o duplo pilar do platonismo. Por um lado, desenvolve a Teoria das
ideias, por outro, defende a tese da imortalidade da alma humana. Nesta visão platônica,
o corpo é relegado ao mundo da ruína. Existe um logos imperecível que se situa para
além da realidade sensível.
A imortalidade da alma humana está na contemplação constante deste logos
imperecível, a contemplação do nous: " (...) Nenhuma alma que não tenha praticado a
filosofia e que não esteja absolutamente pura quando deixa o corpo pode alcançar a
natureza divina; isso só se aplica ao que ama aprender."14. Vemos nessa citação
elementos bastante interessantes para nossa análise. Primeiro, configura-se uma espécie
de salvação no sentido grego da alma. A respeito disso Michel Henry traçará uma
diferença fundamental, ao falar da possibilidade de uma salvação no sentido grego e da
salvação em sentido cristão. Vemos, segundo o que Henry percebe da tradição
filosófica, que se há alguma brecha para pensar algo como uma salvação no mundo
grego, isto somente se daria pelo exercício da contemplação, via exercício filosófico do
logos imutável, que habita em luz inacessível à carne. Contemplação, portanto, é a
13
14
Cf. Ibid, p. 10.
Cf. ROBINSON, T. M. A psicologia de Platão, São Paulo: Loyola, 2007, p. 62.
22
palavra de ordem quando pensamos algo como uma soteriologia no mundo grego15.
Obviamente, a salvação, em sentido cristão, difere radicalmente daquela proposta por
Platão no Fédon. Isso porque, enquanto a primeira despreza o corpo e toda a realidade
sensível, a segunda faz da carne o eixo da própria salvação, como afirmavam os padres
da Igreja. Assim, já se pode vislumbrar a incompatibilidade do conceito de corpo no
mundo grego e no cristianismo. Antes de passar ao olhar antropológico do mundo
semita plasmado na tradição bíblica, queremos voltar à citação precedente para
fazermos nossa última observação. Assim como podemos ver uma preocupação de
fundo, no que se refere ao alcance da imortalidade pela alma humana na psicologia
platônica, da mesma forma também é possível vislumbrar uma outra perspectiva cara à
nossa pesquisa. Esta diz respeito àquela que aborda o tema da contemplação da verdade.
É inegável que esse pequeno trecho do Fédon contém o princípio da teoria do
conhecimento em Platão. Aqui, nenhum conhecimento verdadeiro se dá fora da
contemplação das essências. Por outro lado, o corpo não contempla coisa alguma e,
portanto, nada pode conhecer. Em Platão, a sensibilidade está relegada ao plano da
ignorância e da perdição16. Como pode então um grego aceitar a afirmação de que o
Logos se faz carne?
A antropologia semita ou a noção do homem bíblico difundida por ela, apresenta
traços bem distintos daquele apresentado pelo mundo grego. O homem criado por Deus
aparece como um ser unitário, uma carne (basar) animada pelo sopro de vida (nichmat'
haim)17 vindo de Deus. Não existe, portanto, separação entre alma e corpo, um princípio
vital capaz de manter uma identidade separada do basar. A alma ou a psiché bíblica
nada tem a ver com a psiché platônica. Existe, portanto, algo que poderíamos chamar de
uma simpatia escriturística que une judaísmo e cristianismo em torno à concepção
unitária do ser humano. Esta sintonia, porém, será colocada em questão quando se trata
de pensar o tema da Encarnação. Também para a tradição bíblica a encarnação oferece
problemas e dificuldades de ser aceita. E isso, segundo Henry, acontece por dois
motivos: o primeiro deles tem a ver com a noção de um Deus criador, que, ao criar o
15
Cf. HENRY, Incarnation, p.12.
Por uma questão de tempo e delimitação passaremos de largo sobre a questão do debate entre Platão e
Aristóteles e a valorização que este último dá à sensibilidade. Ainda assim, a filosofia Aristotélica,
herdeira de Platão, ao discordar de sua postura sobre a realidade sensível, não introduz uma ruptura com
sua visão dualista.
17
Cf. LACROIX, Xavier. O corpo de Carne: dimensões ética, estética e espiritual do amor. São Paulo:
Loyola, 2009, p. 151. Segundo este autor, o que o homem recebeu de Deus não foi diretamente a ruah,
mas o nichmat' haim. Esta distinção é importante para que não se divinize o princípio de vida. A alma não
é o Espírito.
16
23
mundo fora de si fica tão afastado dele como do homem. Esta ideia de um Deus
transcendente, no sentido de separado, coloca sérios problemas na hora de pensar a
Encarnação do Verbo. O segundo motivo tem a ver justamente, como diz nosso autor,
com a mesma ideia de Encarnação. O Deus transcendente de Israel é um Deus
ciumento, e entre as coisas das quais tem ciúmes está aquela que se refere ao seu caráter
único: somente ele é transcendente, divino, e isto não partilha com ninguém. Trata-se de
um ciúme ontológico18. Esse Deus ciumento da sua essência divina coloca em cheque a
ideia cristã de um Verbo encarnado, e, aliás, coloca em questão, toda a doutrina sobre a
Trindade. Acaso esse não é um dos conflitos patentes entre Cristianismo e Judaísmo? A
dificuldade da cultura semita para pensar a encarnação a partir de sua antropologia e
ideia de criação se apresenta de forma tão patente quanto ocorre no pensamento grego.
Contudo, difere radicalmente deste último porque abre espaço para pensar o homem
como um corpo de carne.
Retomando a distinção basilar entre nosso corpo de carne e os outros corpos do
universo, cientes da dificuldade que supõe avançar na análise, damos, com Henry, um
passo a mais ao afirmarmos nossa carne como lugar epistemológico por excelência.
Assim diz nosso autor:
Não se trata de uma dificuldade técnica, mas de uma aporia
metafísica [...]. Sem nossa carne a coisa da física, a coisa em si,
o noumeno kantiano, permanecem desconhecidos. Longe de
que a análise do corpo possa se converter no de nossa carne e
no princípio, um dia, de sua explicação; a verdade é totalmente
outra: somente nossa carne nos permite conhecer; nos limites
prescritos por este suposto ineludível, algo assim como um
corpo. Assim temos uma singular inversão: o homem que não
sabe nada mais que não seja a experiência de todos os
sofrimentos em sua carne ferida e pobre, provavelmente sabe
mais que um espírito onisciente que tem seu lugar ao término
do desenvolvimento ideal da ciência.19
Esta afirmação da carne como lugar epistemológico toma como ponto de partida o tema
principal da investigação henryriana: a encarnação no seu sentido Cristão. Este, por sua
18
19
CF. HENRY, Incarnation, p.14.
Cf. Ibid, p.10.
24
vez, tem seu fundamento naquilo que Henry chamará de alucinante proposição de João:
"O Verbo se fez carne" (Jo 1, 14). Assim sendo, a fenomenologia da carne, tal como a
elucidação sistemática da carne e do corpo e sua possível inter-relação, apresenta-se
como pré-requisito para o desenvolvimento de nossa pesquisa.
Pensando o tema da encarnação, Henry propõe uma inversão fenomenológica
que resulta na suspensão da Fenomenologia do mundo e a adoção daquilo que
chamaremos Fenomenologia da Vida. Trata-se aqui da busca por um ver originário, da
construção de uma fenomenologia de cunho radical. Pensamos que, ao propor sua
inversão fenomenológica, nosso autor opera também uma inversão epistemológica.
Afirma assim que uma Fenomenologia do mundo não pode ser o princípio do
conhecimento do homem e sua condição, uma vez que sob a luz do mundo somente
aparecem corpos inertes, que nada sentem porque são desprovidos da capacidade de 'se
sentir'. Desprovidos de carne, também esses corpos inertes e opacos permanecem
alheios à questão do conhecimento. Somente uma Fenomenologia da Vida pode
fornecer uma inteligibilidade que é, por sua vez, Primordial20. Esta Inteligibilidade
primordial, ou Arqui-inteligibilidade, segundo a linguagem henryriana, levanta a
questão de fundo não somente sobre o 'como' e o 'a partir de onde' se faz possível todo o
conhecimento. Desponta-se também o tema de fundo de toda a Fenomenologia da Vida,
a saber: a dimensão da Verdade e de sua constante busca.
2 A questão da verdade como busca fundamental de uma inteligibilidade
Primordial
A partir do conceito das duas verdades, esboçado no pensamento de Henry, a
saber: verdade do mundo e verdade do cristianismo, pretende-se pensar a
Fenomenologia da Vida como uma legítima filosofia do cristianismo (ou como uma
genuína reflexão que toca o mundo do pensamento teológico). Na medida em que,
segundo a perspectiva fenomenológica do autor, a verdade do cristianismo difere
essencialmente da verdade do mundo, impõe-se como necessária a elucidação destas
duas fenomenologias. Nossa reflexão tomará como ponto de partida as análises
fenomenológicas de Henry.
20
Cf. Idem.
25
Partindo da questão concreta do aparecer do mundo, avançaremos por meio da
fenomenologia da carne na compreensão da proposta concreta de uma Fenomenologia
da Vida, através da qual, nos propomos a desenvolver a reflexão teológica sobre a
encarnação e a salvação em sentido Cristão. Desta forma, afirmamos que nosso discurso
será de cunho antropológico-fundamental. A partir desta perspectiva antropológica
basilar (questionamento sobre a verdade do mundo e a fenomenologia da carne - a
questão da impressão), trataremos de pensar a verdade do cristianismo (cristologiaantropologia) desde a perspectiva da Fenomenologia da Vida. Portanto, nosso discurso
gravitará em torno de conceitos centrais como: Verdade do mundo, Verdade do
cristianismo, Autorevelação, Fenomenologia da Vida (carne impressiva).
2.1 A questão do aparecer e sua indigência ontológica
Antes de pensar concretamente a questão do aparecer, segundo a visão de nosso
autor, convém relembrar ligeiramente a experiência fundamental da epistemologia
platônica fundada a partir da teoria das ideias (Fédon). Na alegoria da caverna, Platão
coloca em evidência a questão fenomenológica. A pergunta pela realidade do que
aparece pode ser vislumbrada como o início de uma reflexão fenomenológica. Esta
surge primeiramente do senso comum que se pergunta pela realidade do aparecer numa
visão mais banal e, posteriormente, se estabelece enquanto disciplina que se pergunta
pela origem do próprio aparecer ou pelas condições de possibilidade que fundam o
aparecer. Seja como for, não se pode negar que a questão do aparecer se destaca como a
reflexão básica da teoria do conhecimento de Platão. Há aí raízes de uma reflexão
fenomenológica que haveria de florescer com maior vigor no nascimento da
epistemologia moderna. A oposição platônica entre mundo inteligível e mundo sensível,
o conflito latente entre verdade e aparência, tomando o último termo sempre em sentido
negativo, coloca já em evidência a relação entre ser e aparecer, digo, entre ontologia e
fenomenologia. No contexto da teoria das ideias de Platão, o fenômeno é relegado ao
último plano, ao mundo das cópias, da irrealidade. A realidade não é o que aparece,
verdade e realidade não se identificam com o fenômeno se este é pensado como sombra
do mundo inteligível. Na epistemologia platônica, portanto, a ontologia funda a
fenomenologia.
Fazendo um enxerto em nossa reflexão, parece-nos conveniente explicitar
rapidamente a ideia de fenomenologia que aparece em Paul Ricoeur. Definindo a
26
fenomenologia na sua obra Na escola da fenomenologia, este autor discute a questão da
fenomenologia rigorosa. Afirma que, seguindo a etimologia da palavra, qualquer pessoa
que trate do aparecer das coisas está fazendo fenomenologia. Assim, ele dirá que a
fenomenologia nasce quando se coloca em suspenso o ser das coisas para tratar do seu
aparecer. Contudo, Ricoeur faz uma observação, dizendo que uma fenomenologia
profunda brota quando esta distinção (ser - aparecer) é refletida por si mesma. Ao
contrário, uma fenomenologia se torna banal quando o ato de "nascimento", que faz
surgir o aparecer, não é tematizado. No segundo caso, para o autor, a fenomenologia se
torna simples apresentação de opiniões21.
Ao iniciar sua reflexão fenomenológica sobre a tese que provoca sua
investigação, a saber, a encarnação, Michel Henry o faz a partir de uma perspectiva que
supõe, ela mesma, a análise fenomenológica do método, que, em si, leva este nome.
Poderíamos dizer que faz antes uma reflexão fenomenológica sobre a fenomenologia e
suas raízes. Assim sendo, a partir de Heidegger (§7 Ser e tempo), retoma a questão do
objeto e do método da fenomenologia, através da análise semântica do próprio termo.
Não nos interessa aqui reproduzir em detalhes o caminho de nosso autor. Exporemos
somente as questões de cunho mais fundamental, exauridas por ele nesta empreitada. A
conclusão imediata, tirada por Henry, ao se questionar, a partir de Husserl e Heidegger,
sobre o objeto e o método da fenomenologia, será decisiva e diz respeito às bases sobre
as quais se fundamenta a fenomenologia mesma, tal como a conhecemos. Trata-se da
afirmação segundo a qual a fenomenologia tem a tarefa de estudar não o conteúdo dos
diversos fenômenos, mas sua essência, o aparecer enquanto tal. Assim, temos a
retomada da ideia de Husserl ao afirmar que a distinção entre o conteúdo do fenômeno e
o modo no qual ele se nos dá, nos permite captar o verdadeiro objeto da fenomenologia.
Com a afirmação de que o objeto da fenomenologia não é o fenômeno em si, mas o seu
aparecer, funda-se a distinção basilar da fenomenologia em relação às outras
disciplinas22.
No percurso feito por Henry, deparamo-nos uma vez mais com a questão
fundamental acerca da verdade. Isto porque afirma de forma categórica em seu texto
que entre os vários termos que concerne ao campo da fenomenologia (doação,
manifestação, revelação, termos utilizados também pela teologia), a palavra "verdade",
21
22
RICOEUR. Paul. Na escola da fenomenologia. Petrópolis: vozes, 2009, p. 149.
CF. HENRY, Incarnation, P.35.
27
não somente remete ao verdadeiro objeto da fenomenologia, mas forma também seu
núcleo principal. É a propósito disso que se falará de Verdade originária. Ao analisar
fenomenologicamente a própria fenomenologia, o autor encontrará em seu caminho
uma objeção quanto à forma da fenomenicidade daquilo que chamamos mundo. Tratase, em linguagem henryriana, do tema complexo do que aqui chamaremos, segundo o
próprio autor, de indigência ontológica do aparecer do mundo. Para chegar a abordar
esta temática, de caráter extremamente delicado, o autor jogará sempre com o binômio
fundamental de seu pensamento, a saber: Verdade do mundo e Verdade da Vida.
Constata-se simplesmente que existem, na linguagem fenomenológica, duas
formas de se entender o que é verdadeiro. A primeira delas é pré-filosófica ou préfenomenológica e a segunda, diz respeito à questão da compreensão do "aparecer"
daquilo que aparece, a fenomenização do fenômeno. Observemos a citação abaixo:
Há duas formas de entender a verdade: uma pré-filosófica ou
pré-fenomenológica na qual verdade designa aquilo que é
verdadeiro ( ex.: o cachorro caminhando ou 2+5=7). Contudo, o
que é verdadeiro desta forma deve primeiro aparecer. Assim
sendo, não é verdadeiro mais que num sentido secundário e
pressupõe uma verdade originária, uma manifestação primeira,
um poder que funda o aparecer do cachorro ou da proposição
aritmética23.
Fica deste modo estabelecido que a primeira concepção de verdade, fundada na acepção
mais popular da compreensão de fenômeno ou fenomenologia, depende de uma verdade
mais originária sobre a qual se fundam todos esses fenômenos ou verdades préfilosóficas.
Henry, obviamente, reconhece, como todo fenomenólogo, o impressionante
esforço daqueles que o precederam na reflexão fenomenológica (de forma especial
Husserl e Heidegger). Contudo, afirma que, apesar de seus esforços para buscar a
fundamentação de tudo aquilo que aparece, a questão fundamental do modo como
aparece, permanece ainda indeterminada nas suas reflexões. A isso Henry chamará dos
pressupostos indeterminados da fenomenologia. Discorrendo sobre esta questão, nosso
autor proporá a seguinte análise:
23
Cf. Ibid, p.37
28
Um problema permanece, apesar do caminho feito por Husserl e
Heidegger para chegar
à verdade como o fenômeno mais
originário (ou ao fenômeno mais originário da verdade?). Este
problema consiste em que o aparecer puro ou que a
fenomenicidade pura seja a condição de todo fenômeno
possível. Situa-se este aparecer no núcleo da reflexão
fenomenológica como seu verdadeiro objeto, mas não diz em
que consiste este aparecer puro. Isto se refere à uma indigência
ontológica do aparecer puro ou originário na fenomenologia de
Husserl e Heidegger. 24
Para Michel Henry, no caso de Heidegger, ao pensar o "aparecer puro", como o
fenômeno mais originário da verdade, e, principalmente, ao classificá-lo a partir da
mesma categoria de fenômeno, deixa-se uma lacuna ontológica no que se refere à
fundamentação mesma deste "aparecer puro". Em uma formulação mais simples
podemos perguntar: o que funda ou onde se funda o "aparecer puro", qual é, segundo
Henry, sua substância fenomenológica?
A questão crucial para Henry, ao tratar da indigência ontológica do aparecer se
refere, pois, então à indeterminação inicial dos pressupostos fenomenológicos da
mesma fenomenologia. Segundo Henry, esta indeterminação pode ser compreendida ao
pensar a relação entre as duas verdades na filosofia de Heidegger. Assim temos, como
descreve nosso autor, que na obra Ser e Tempo (§44), o filósofo alemão apresenta a
verdade originária não somente como condição de possibilidade que funda a verdade
segunda (o cachorro que vemos caminhar ou a proposição matemática), como também
haverá de designar a verdade originária com o nome mesmo de fenômeno. Falar-nos-á,
pois, então do fenômeno mais originário da verdade ou da verdade como o fenômeno
mais originário. Em resumo, podemos dizer o mais originário é seu fenômeno. O que
equivale a dizer que, segundo Henry, para Heidegger o aparecer não se limita somente a
fazer "aparecer" o que aparece nele. Esta verdade originária, tem como o mais
originário o fato de que ela mesma apareça. Assim, ele mesmo deve aparecer em
qualidade de "aparecer puro". Daqui temos a proposição segundo a qual já não seria
mais possível aparecer algo se, antes, seu "aparecer" não viesse ele mesmo, ou seja, não
24
Cf. Idem. O parêntese na citação é de responsabilidade nossa.
29
aparecesse, primordialmente, ele mesmo. A partir desta reflexão acerca do pensamento
de Heidegger é que Michel Henry situa o problema da indigência ontológica do
aparecer do mundo a partir da problemática da indeterminação inicial dos pressupostos
fenomenológicos da fenomenologia. Assim temos a afirmação abaixo:
Assim, o "aparecer" que brilha em todo fenômeno é o fato de
'aparecer' e somente ele. Este "aparecer puro" que aparece, um
'aparecer do aparecer mesmo', seu 'auto-aparecer'. Contudo, se
nos perguntamos por aquilo que, nesse aparecer puro, constitui
sua aparição, sua substância fenomenológica pura, damo-nos
conta que estamos frente a dois momentos nos textos
analisados: no primeiro momento nos encontramos com uma
não resposta. A aparição, a verdade, a fenomenicidade, se
afirmam sem que se diga em que consistem. Os supostos ou as
bases da fenomenologia permanecem indeterminados.25
A não resposta frente à pergunta sobre o fundamento do "aparecer puro" constitui, como
vimos a indeterminação inicial dos pressupostos fenomenológicos do "aparecer do
mundo" que, por sua vez, refere-se diretamente à lacuna ontológica deste aparecer. Este
é o primeiro dos momentos descritos por Henry ao analisar os textos heideggerianos.
Fala-se contudo, na citação, de dois momentos relativos à esta constatação fundamental
da indigência ontológica do mundo. Este segundo momento, não descrito na citação
acima, refere-se, segundo nosso entendimento, àquilo que mais adiante nosso autor
designará como a redução ruinosa de todo aparecer ao aparecer do mundo. Isto será
tratado quando o autor se referir aos preconceitos ocultos dos princípios da
fenomenologia.26 Por sinal, este é nosso próximo tema.
Retomando o caminho, vamos recapitular os passos dados até agora por nossa
reflexão. Lembramos que o propósito investigativo desta pesquisa tem como centro a
explicitação do fundamento teológico presente na Fenomenologia da Vida de Michel
Henry, que se encontra, ao nosso ver, resumida de forma magistral em suas últimas
obras, que tratam de temas concretos do cristianismo. Para afrontar tal empreitada,
pensamos ser indispensável a elucidação dos princípios filosóficos que levam o autor a
propor aquilo que chamamos de guinada fenomenológica em seu pensamento. Dentro
25
26
Ibid, p.39.
Cf. Idem, p. 47.
30
desta perspectiva, iniciamos centrando nossa atenção na tese que provoca a
investigação, a saber: a questão da encarnação. Neste sentido, entendemos que o
primeiro princípio filosófico acerca do qual devemos discorrer gira em torno do
binômio fundamental no qual Henry sustenta toda sua tese da Fenomenologia da Vida.
Este binômio se enuncia como a relação entre as duas verdades ou as duas formas de
aparecer: Fenomenologia do mundo e Fenomenologia da Vida. Eis então, que a questão
da verdade surge como o primeiro princípio filosófico objeto de nossa discussão nesta
dissertação. Neste discurso, situamos a empreitada de nosso filósofo como uma
constante busca pela verdade enquanto uma Inteligibilidade primordial, tema que
trataremos mais tarde. Ao abordarmos o tema da verdade, não podemos deixar de fazer,
como já sabemos, referência direta ao tema do como esta verdade se nos dá, como ela
aparece. Eis aqui nossa posição discursiva atual. Analisando a questão do aparecer,
desde a perspectiva henryriana, descobrimos uma falha ontológica nesta fenomenologia.
Esta chamada indigência ontológica, como acima explicitamos, está naquilo que já
denominamos, com nosso autor, de indeterminação das bases da fenomenologia. Esta
significa a incapacidade de fundar a substância fenomenológica do "aparecer puro".
Trata-se, por isso, da indeterminação dita "inicial" dos pressupostos fenomenológicos da
própria fenomenologia. Dito de forma mais clara, poderíamos formular na seguinte
questão: o que faz com que o aparecer apareça? Qual é o fundamento do "aparecer
puro" já que ele, ao fundar as bases de um aparecer segundo, não se funda a si mesmo?
Obviamente, se não se dá a si mesmo carece de algo, é um indigente. Passamos em
seguida à análise mais detalhada da indeterminação das bases fenomenológicas da
fenomenologia.
Analisando os três princípios fundamentais da fenomenologia, Michel Henry
demonstrará, em seu discurso, como neles mesmos se encontram a indeterminação das
bases ou pressupostos fenomenológicos da própria fenomenologia. O primeiro destes
princípios assim se enuncia: "tanta aparência, tanto ser". Na reformulação de Henry: "
Tanto aparecer, tanto ser"27. Neste princípio, encontra-se destacada a relação
fundamental entre ser-aparecer, entre ontologia e fenomenologia. Relação esta que não
somente é cara à filosofia, mas que se encontra presente nos discursos mais basilares do
senso comum. De fato, para o senso comum, o ser funda o aparecer, a coisa aparece
27
Cf. Ibid, p.41. Princípio tomado por Husserl da escola de Marburgo. O autor faz uma observação ao
preferir em seu texto a reformulação deste primeiro princípio. Esta se deve ao caráter ambíguo da palavra
"aparência" que, segundo Henry, pode levar-nos a entender tanto o conteúdo daquilo que aparece quanto
ao modo como tal ou qual coisa aparece.
31
porque ela é; a ontologia funda a fenomenologia. A partir da pergunta estrategicamente
situada sobre a possibilidade de existência desse mundo prévio. Pergunta que colocará
em xeque sua capacidade de auto-sustentação. Dito de melhor forma, que indagará sua
independência de uma verdade mais originária, em palavras heideggerianas, do parecer
puro que, "aparecendo ele mesmo", funda todo aparecer possível deste mundo.
Constatamos que a fenomenologia faz, de fato, o caminho oposto do senso comum.
Afirma, portanto, que para que a "coisa seja" ela deve primeiro aparecer. Temos então,
certa identidade entre aparecer e ser. Vejamos literalmente o texto:
A fenomenologia está atenta, em primeiro lugar, ao poder desta
correlação, e esta é a razão pela qual lerá a mesma no sentido
oposto. Basta que alguma coisa me apareça para que, então,
seja. Aparecer é o mesmo que ser [...] A aparição de uma
imagem é certa, mas consegue esta certeza não do seu conteúdo
particular, mas do fato que apareça. Assim, do aparecer depende
toda existência, todo ser possível. 28
Ao fazer o caminho inverso do senso comum, afirmando a existência ou o ser das
coisas a partir de sua fenomenicidade, de sua aparição, a fenomenologia funda a
ontologia: tanto aparecer-tanto ser. Contudo, a respeito desta pretensa identidade entre
ontologia e fenomenologia o autor mesmo afirmará de maneira categórica:
Apesar desta suposta identidade de sua essência, aparecer e ser
de modo algum se situam num mesmo plano; sua dignidade não
é a mesma: o aparecer é tudo, o ser é nada. Ou melhor: o ser
somente é porque o aparecer aparece enquanto tal. A identidade
entre aparecer e ser se resume assim: o segundo se funda no
primeiro.29
Temos então que o ser está fundado sobre o aparecer. Para Henry, está claro que
existe somente um 'Poder'. Este, outra coisa não é que o 'Poder' do aparecer. Por isso,
diz: "O ser só consegue sua essência no aparecer que previamente efetuou sua essência
nele; a essência do aparecer que reside em sua aparição efetiva, em sua auto28
29
Ibid, p. 42.
Idem.
32
aparição"30. Sobre a importância e o limite deste primeiro princípio, diremos o que se
segue. Sua relevância está na subordinação da ontologia à fenomenologia. Contudo,
vale a pena ressaltar que para Henry esta subordinação não significa em absoluto o
menoscabo da ontologia. Pelo contrário, o que se quer é possibilitar-lhe um fundamento
seguro. Por outro lado, o limite radica justamente na sua indeterminação
fenomenológica fundamental. Esta ocorre quando tal princípio nomeia o aparecer sem
dizer em que este consiste, no como aparece o aparecer. Ao não reconhecer a matéria
fenomenológica pura da qual deve estar feito todo aparecer na medida que diz que é ele
quem aparece, a pretensão de substituir uma ontologia especulativa por uma ontologia
fenomenológica cai por terra. Assim, limita-se a designar o aparecer desde o exterior, ao
invés de escrutar sua substância. Segundo Henry, dispomos, portanto, somente de um
conceito formal do mesmo31.
O segundo princípio da fenomenologia se enuncia da seguinte maneira: "ir às
coisas mesmas". Ir à coisa mesma significa eliminar interpretações prévias, abordar os
dados de forma imediata, ou, como diz Henry, em sua "imediatez". A partir deste
enunciado se volta a discutir o objeto e o método da fenomenologia. Segundo nossa
definição anterior, ao pensarmos o objeto da fenomenologia, nos daremos conta que "ir
à coisa mesma" da fenomenologia significa ir ao aparecer puro, ir, não ao conteúdo do
que aparece, mas à fenomenicidade pura. E, segundo Henry, ao pensarmos o percurso
que devemos fazer para chegar a esta fenomenicidade pura, descobriremos que o
caminho é esta mesma fenomenicidade, o caminho é o "aparecer mesmo", dito de outra
forma, o auto-aparecer. Temos então uma identificação entre objeto e método na
fenomenologia, já que, para ir ao 'aparecer puro', não temos outro caminho que este
mesmo aparecer. O objeto constitui o método fenomenológico. Assim, podemos
afirmar, neste contexto específico, que todo conhecimento ou toda forma de experiência
remetem necessariamente ao a priori de um poder de conhecimento. Toda experiência
traz em si mesma o método de acesso a ela. E Henry se pergunta se acaso não é esta
condição a priori de toda experiência possível que Kant converteu no tema da sua
filosofia. A partir desta concepção, ficaria excluída qualquer possibilidade de conceber
então um inteligível que escapa a toda condição prévia, uma inteligibilidade situada ao
princípio e condição de toda inteligibilidade, na linguagem henryriana, uma arqui-
30
31
Cf. Idem.
Cf. Ibid, p. 44.
33
inteligibilidade, talvez análoga à de João32. Desde esta perspectiva, entende-se melhor o
porquê de Kant pensar sua filosofia a partir de duas críticas. Na fenomenologia, pensada
neste horizonte de redução, não há lugar para pensar uma Inteligibilidade Primordial
que escape à fenomenicidade tal qual é concebida aqui. Parece-nos importante ressaltar
que esta arqui-inteligibilidade (Inteligibilidade primordial) pensada por Henry, busca,
no fundo, dar uma resposta à questão da indeterminação dos pressupostos
fenomenológicos da fenomenologia. Por isso, pensamos que a inversão fenomenológica
é também epistemológica.
Por fim, chegamos ao terceiro princípio, dito o princípio dos princípios, assim
ele é enunciado no §24 de Ideen I: "toda intuição em que se dá algo originalmente é um
fundamento de direito do conhecimento"33. A partir daqui, Henry se pronuncia sobre o
preconceito oculto que subjaz a estes três princípios da fenomenologia. Para ele, este
preconceito oculto se refere à redução catastrófica de todo aparecer ao aparecer do
mundo. Temos, pois, então, que, segundo Henry, a redução de todo aparecer ao aparecer
do mundo traz duas conseqüências imediatas: a primeira delas se refere ao
impedimento do acesso ao cristianismo. Isto porque, neste padrão de inteligibilidade,
não é possível pensar nenhuma Inteligibilidade primordial tal como é proposta pelos
cristãos. A segunda consequência é o obscurecimento da própria filosofia, diz ele:
"antes mesmo de chegar à fenomenologia"34. Em Husserl esta redução se encontra
esboçada neste terceiro princípio, chamado, como vimos, o princípio dos princípios.
Nele, afirma-se a tese segundo a qual 'toda intuição em que se dá algo originariamente é
um fundamento de direito do conhecimento'. Acontece que a intuição deve à
intencionalidade seu 'poder' fenomenológico de instituir a condição de fenômeno. E esta
intencionalidade, como estrutura da consciência, funda todo “ver” concebível pelo seu
movimento em direção ao objeto transcendente (correlato intencional). Contudo, ela não
se funda a si mesma, não se dá a si mesmo porque se dirige sempre para um "fora de si "
. E é este “dirigir-se para um fora” o que constitui sua essência. Por não fundar-se a si
mesma, a intencionalidade, ou esta Fenomenologia do mundo, cai numa indigência
ontológica, o que prova então sua perspectiva reducionista ao conceber todo “veraparecer” como ver intencional, sendo somente o “ver-aparecer” do mundo. Isto é o que
Henry denominará o preconceito oculto dos pressupostos da fenomenologia, esboçado
32
Cf. Ibid, p. 46.
No fundo, este terceiro princípio explicita ainda mais a reflexão anterior que afirma que toda
experiência traz em si mesma o método de acesso a ela.
34
Cf. Ibid, p. 49.
33
34
nos três princípios. É justamente esta indigência ontológica, oculta nos princípios
reducionistas da fenomenologia, o que provocará a tese de uma Fenomenologia da Vida.
Em outros termos, a percepção de uma Inteligibilidade primordial (Arquiinteligibilidade) que nos tire de tal indigência. É a partir deste contexto que se fala de
uma Fenomenologia do mundo e de uma Fenomenologia da Vida35.
Parece que chegamos ao limite essencial sobre a questão do aparecer. Para
darmos o próximo passo necessitamos analisar aquilo que representa o "elo perdido" na
temática epistemológica abordada pela filosofia. Este foi abordado por
Descartes,
sintetizado pela filosofia de Kant e reformulado magistralmente por Husserl, seguido
de Heidegger. Por fim, torna-se tema da fenomenologia de Merleau-Ponty, sendo
retomado
também
por
Michel
Henry.
Consideramos,
segundo
o
contexto
fenomenológico apresentado acima, que o "elo perdido" da epistemologia, no que se
refere ao tema do aparecer do mundo, pode ser pensado a partir da questão da
Impressão, desenvolvida a partir do § 7 da obra de Henry (Encarnação). Contudo, disso
não trataremos agora. Este tema merece uma análise especial que, desenvolveremos no
último ponto da primeira parte deste capítulo. Ele servirá como pré-texto para
pensarmos a guinada fenomenológica: de uma Fenomenologia do mundo à
Fenomenologia da Vida.
Constatamos, pois então, uma Indigência ontológica da fenomenologia
(aparecer do mundo). Esta falha ontológica, que se encontra na indeterminação dos
pressupostos fenomenológicos da fenomenologia e que é constatada a partir dos seus
três princípios fundamentais, resulta na redução de toda fenomenologia (de toda
possibilidade de aparecer) ao horizonte de visibilidade do mundo. Neste contexto, não
há espaço para pensar outras verdades. A verdade fundamental da Vida que se revela,
pensada pelo Cristianismo, fica de vez excluída. Contudo, veremos, a partir do início do
segundo capítulo, que existe uma implicação teológica direta quando pensamos a tese
do primeiro princípio segundo o qual a Fenomenologia funda a Ontologia. Aqui,
coloca-se em foco a relação das duas categorias teológicas chaves de nossa reflexão
(Criação - Revelação) que, por sinal, culminará no tema chave de nossa investigação, a
saber: 'a salvação em sentido cristão'36. Porém, ainda não podemos desenvolver com
acuidade tal questão sem antes continuar analisando aprimoradamente a questão
referente à 'Verdade do mundo'. Passamos então ao segundo momento deste primeiro
35
36
Cf. Ibid, pp. 47-61.
Cf. Ibid, p. 41.
35
capítulo, a partir do qual, depois de analisar, primariamente, a questão do aparecer,
trataremos da Verdade segundo o horizonte de visibilidade deste nosso mundo, ou seja,
da Verdade segundo a Fenomenologia do mundo.
2.2 A Verdade segundo a Fenomenologia do Mundo
Na sua obra sobre a filosofia do cristianismo, intitulada, "Eu sou a Verdade"
(C'est moi la vérité. Pour une philosophie du christianisme), Michel Henry dedica o
primeiro capítulo ao tema da Verdade do mundo37. Antes, porém, na introdução, o autor
lança para o leitor a empreitada que se propõe a fazer, a saber: apresentar aquilo que é a
Verdade segundo a concepção do cristianismo. Ao fazê-lo, aborda de forma sintética o
tema da falha na definição ontológica da realidade que, segundo ele, sustenta o conceito
de verdade no sentido histórico. Segundo Henry, existe, evidentemente, uma falha na
definição ontológica da realidade. Esta consiste no fato de que ao conceber a noção de
verdade a partir somente dos fenômenos que foram testemunhados, deixa-se de fora os
fenômenos que escapam a este critério de visão e testemunho. Assim sendo, eles estão
excluídos do campo conceitual da verdade da história, mesmo que tenham existência
real do ponto de vista ontológico, posto que de fato aconteceram. Levantando este
problema, Henry discute as questões sobre as fontes e os critérios para o
estabelecimento da verdade. A partir deste ponto de vista, ele constata mais uma vez a
irredutibilidade da Verdade do cristianismo ao conceito de verdade histórica. Ao afirmar
tal irredutibilidade, ele nos lança de volta à reflexão anteriormente elaborada, sobre a
possibilidade de uma verdade que não seja a do mundo. Retomamos, pois, o
pensamento segundo o qual existe uma verdade segunda (contingente) que se
fundamenta numa 'Verdade primeira' (a priori).
Segundo Michel Henry, a Verdade se define como puro ato de aparecer. Neste
sentido, afirma-se que o simples fato de "se mostrar" se constitui como a própria
essência da verdade tomando o sentido de uma revelação 'pura' a priori. Assim escreve
nosso autor:
Se o fato de se mostrar consiste na essência própria da verdade
no sentido de uma manifestação pura, de uma revelação pura,
37
Cf. HENRY, Michel. C'est moi la vérite: pour une philosophie du christianisme. Paris: Seuil ,1996, pp.
21-31.
36
então tudo o que se mostra não é verdadeiro mais que em um
segundo sentido.38
Temos então, como se pode notar, nesta obra anterior do autor (C'est moi la vérité,
1996) o germe da reflexão que haveria de desenvolver mais detalhadamente no seu
trabalho posterior (Incarnation, 2000). Isto é: a remissão imediata de toda verdade que
diz respeito aos entes (verdade ôntica) à 'Verdade fenomenológica'39. Contudo, no caso
de Henry, não se trata da remissão a qualquer fenomenologia, mas a uma
fenomenologia da Vida.
Ao tratar o tema da verdade segundo a Fenomenologia do mundo, nosso
fenomenólogo retoma de forma simples e direta a categoria mundo para defini-la
fenomenologicamente. Convém, portanto, dizer que a definição de mundo em Michel
Henry, a partir do seu trabalho supra citado, nada tem a ver com aquilo que ele mesmo
chama de "o conjunto das coisas ou do ente". Este mundo, refere-se sempre "ao
horizonte de luz no qual as coisas se mostram como fenômenos". O autor dirá, portanto,
que, nessa visão fenomenológica, "o mundo jamais designa o que é verdadeiro, mas a
verdade mesma". 40 E é por isso que tratamos aqui da verdade segundo a Fenomenologia
do mundo ou segundo o horizonte de visibilidade do mesmo. Trata-se, então, de pensar
as condições de possibilidade da verdade a partir das estruturas fenomenológicas
daquilo que Henry conceitua como sendo o Mundo. Fazendo uma análise do conceito
de fenomenologia (phainomenon-phanesthai) Henry destacará a centralidade da raiz
(phôs -φοs). Sobre isso diz:
Na
Grécia
as
coisas
são
chamadas
de
'fenômenos'.
Phainomenon, vem do verbo phainesthai, que tem na sua raiz
phos, que siginifica luz. Phainesthai quer dizer se mostrar vindo
à luz. Então, fenômeno quer dizer: o que se mostra vindo à luz,
saindo à luz do dia. A luz à qual saem as coisas para se
mostrarem como fenômenos é a luz do mundo. O mundo não é
o conjunto das coisas [...] nem designa o que é verdadeiro, mas
a Verdade mesma. Na interpretação grega das coisas (dos entes)
como 'fenômenos' está já implicada a intuição retomada pela
38
Ibid, p. 22.
Cf. Idem.
40
Cf. Ibid, p.24.
39
37
fenomenologia contemporânea como seu princípio fundador, a
saber: a ideia de que o que é [...] não 'é' senão enquanto se
mostra como fenômeno. 41
A partir desta definição de mundo e fenômeno, segundo a etimologia e o pensamento
grego, Henry retoma a compreensão de realidade e mundo da fenomenologia
contemporânea. Como bem disse, esta se fundamenta na afirmação de uma verdade
segunda que somente existe (o que é, não 'é' senão enquanto se mostra como fenômeno)
na dependência de uma verdade originária, um "aparecer puro".
A partir de então, o autor seguirá a exposição de sua tese, adentrando no tema
complexo das estruturas do 'aparecer' do mundo. Dirá Henry que a interpretação daquilo
que 'é' como aquilo que se mostra, ou seja, o vínculo entre ontologia e fenomenologia,
haverá de dominar o pensamento ocidental. Afirma também que é falsa a ideia de que a
passagem do pensamento da filosofia antiga e medieval para o pensamento moderno
introduziu uma ruptura na relação entre fenomenologia e ontologia. Para isso o autor
toma como exemplo a filosofia da consciência do séc XVII- XVIII (Descartes- Kant).
Nesta filosofia as coisas são reduzidas àquilo que se mostra na consciência. Há portanto,
um fortalecimento da compreensão das coisas como fenômenos diante de uma
consciência. Este "diante de" designa uma dimensão fundamental para a compreensão
da fenomenologia contemporânea. A consciência mesma se estabelece como o
fenômeno puro. Henry dirá: "a consciência mesma não é nada mais que o ato de
mostrar-se captado em si mesmo, a manifestação pura, a verdade"42. Esse "diante de"
acusa a relação da consciência com o objeto que lhe aparece. A partir desta relação,
compreender-se-á ainda mais a natureza de manifestação pura (verdade) concedida à
consciência. A consciência, ao representar-se um objeto, o põe "ante si". Este 'colocar
diante' significa também colocar 'afora'. Henry dirá que é "o 'fora' como tal". Agora,
para o autor, esse "afora" não é outra coisa que a verdade do mundo. Por isso afirma
que: "a consciência não designa em absoluto uma verdade de ordem distinta à verdade
do mundo"43. Então, a fenomenologia contemporânea pode ser designada,
inequivocamente, como uma Fenomenologia do mundo.
Ao aparecer do mundo, porém, se impõe uma distinção. Esta se refere à ordem
da própria verdade. Na luz do mundo, quanto à sua possibilidade de tornar manifestos
41
Ibid, pp.23-24.
Cf. Ibid, p.24-25.
43
Idem.
42
38
os objetos, aquilo que se mostra ou que se "faz manifesto" neste horizonte do "afora",
difere radicalmente deste mesmo horizonte que o faz aparecer. Surge daqui a não
confusão entre dois conceitos: não se mistura o que é verdadeiro com a verdade mesma.
Neste mesmo contexto, o autor destaca outro elemento relevante no que tange à
Fenomenologia do mundo. Trata-se da indiferença da luz da verdade com relação a tudo
aquilo que ela ilumina, ou seja, ao verdadeiro. Já entrevemos assim uma característica
fundamental desta verdade do mundo: uma tremenda apatia em relação àquilo que ela
ilumina. Como veremos adiante, todo phatos fica já de antemão excluído deste
horizonte de verdade44.
A auto-exteriorizaçao da exterioridade que, segundo Henry, não se confunde
com nenhum horizonte da metafísica tradicional, refere-se, então, simplesmente à
possibilidade da "manifestação" das coisas neste horizonte objetivo da luz do mundo.
Este panorama de visibilidade do mundo, seu "afora", pode ser designado, segundo o
autor, com o nome de tempo. Assim sendo, temos uma identidade estrita entre tempo e
mundo. Ambos podem então designar aquele "processo único no qual o "afora" se
auto-exterioriza constantemente"45. Este horizonte do mundo ocorre a partir das três
dimensões temporais. Segundo Henry, elas formam as chamadas "praias de
exterioridade designadas por Heidegger como ek-stasis ( futuro-presente-passado)"46.
Dirá ainda o autor que: "sobre o fundo deste horizonte se faz visível, como temporal,
tudo o que se mostra"47.
O pensamento henryriano apresenta assim uma crítica sobre o esvaziamento das
coisas provocado pela estrutura do aparecer do mundo48. Estruturas estas que possuem
na noção de tempo um de seus pilares: Assim, sobre isso, dirá Henry:
O tempo é o 'passar', o deslizamento, sob a forma de
deslizamento em direção ao nada. [...] É porque a vinda à
aparência é aqui a vinda ao 'afora', pelo qual, jogando tudo fora
de si e o arrancando de si mesmo, precipita-o no nada. O
aniquilamento é o modo de fazer aparecer enquanto toma sua
essência do 'fora de si'. [...] O tempo não é um deslizamento do
44
Idem.
Cf. Ibid, p. 27.
46
Idem.
47
Idem.
48
Cf. HENRY, Incarnation, pp.65-69
45
39
presente ao passado, como se pensa no senso comum. No tempo
não tem presente, nunca houve e nunca haverá.49
Ainda sobre a questão do esvaziamento ou aniquilamento do aparecer do mundo pela
sua própria estrutura de 'ek-stasis', o autor afirma que:
A verdade do mundo é a lei da aparição das coisas. Segundo
esta lei, as coisas, esvaziando-se de si mesmas em sua aparição,
não dão nunca sua realidade própria, mas somente a imagem
desta realidade que se aniquila no momento em que se dá. [...]
Por isso, não há presente no tempo. Porque esta vinda ao
aparecer, que define o presente mesmo como presente
fenomenológico, destrói a realidade desta coisa na apresentação
mesma, fazendo dela um presente-imagem. 50
E prosseguindo a reflexão sobre o vazio deixado pelo aparecer do mundo, sobre a
redução deste aparecer ao nada, pela própria estrutura temporal, o autor, de forma
decisiva, conclui: "Desde o princípio isso passava [...] sem se deter no presente se
dirigia até seu nada no passado. Em nenhum momento havia deixado de ser esse
nada."51.
Assim sendo, a questão colocada pela reflexão fenomenológica deste autor é de
fato relevante. E isto não só no que tange ao que denuncia, a saber: a redução de todo
aparecer ao aparecer do mundo e à ruinosa destruição (em direção ao nada) de tudo o
que aparece neste horizonte da Fenomenologia do mundo; mas também no que tange ao
que anuncia: como veremos, uma guinada fenomenológica e epistemológica centrada na
questão, vale a redundância, vital da Vida, por uma Inteligibilidade Primordial. O que,
de fato, provoca certo incômodo ao nosso autor é o pensamento reducionista de todo
aparecer ao aparecer unívoco do mundo. Em verdade, se tudo nos aparecesse somente
desta forma. Se, efetivamente, todo aparecer fosse, somente o aparecer do mundo,
levando a sério a redução catastrófica de todo aparecer a este horizonte de ek-stasis.
Então, se não existisse outra verdade que não fosse esta, considerada a análise sobre o
esvaziamento da realidade ôntica provocada pelas praias de exterioridade, podemos
49
Cf. HENRY, C'est moi la vérite, pp. 28-29.
Cf. Ibid, pp. 29-30.
51
Cf. Ibid, p.30.
50
40
afirmar que não haveria, em absoluto, realidade em nenhum lugar, mas somente morte
por todas as partes, no fim, o nada52.
A
tradição
intelectual
inaugurada
pela
filosofia
grega,
representada
tradicionalmente por Platão e Aristóteles, chega ao seu ápice com o advento da era
moderna. Contudo, um evento no mundo pré-científico, conhecido como revolução
copernicana, prepara o terreno para a introdução do elemento determinante que levará à
guinada epistemológica, condição de possibilidade para a decolagem da tradição
científica do Ocidente. Trata-se do deslocamento de uma razão nomotética heterônoma,
ainda devedora de um logos submetido a uma força superiora que governa o cosmos,
para uma razão instrumental, autônoma, profundamente hipotética e questionadora de
toda realidade, inclusive do mundo metafísico53.
Pensando a partir da passagem de uma Razão nomotética à razão instrumentalhipotética, evitando entrar nos pormenores dos germes das teorias do conhecimento
desta época, queremos destacar aqui, segundo M. Henry, as três formas de concepção da
realidade que fundamentam a Fenomenologia do mundo. Segundo nosso autor, o
aparecer do mundo tem sido constituído diferentemente segundo três padrões de
pensamento. O primeiro deles se refere ao mundo conhecido pela geometria ideal de
Galileu, a isto se chamará redução galileana; em segunda instância, o mundo é
percebido pela intuição intelectual de um entendimento puro como pensou Descartes e a
filosofia kantiana; por último, temos a retomada da tradição cartesiana por Husserl, que
pensa um mundo originalmente sensível, que brota da intencionalidade presente nos
nossos sentidos54. Pensemos brevemente o alcance e os limites de cada uma dessas
formas de ver (θεωρία-teoria55).
No primeiro caso temos a crítica operada por Galileu a todo mundo sensível.
Retomando a tradição do intelectualismo grego, ele propõe uma nova concepção de
mundo que, por sua vez, desembocará numa inédita concepção do corpo: passa-se do
corpo sensível, passível de ser tocado, mas subjetivo, ao corpo científico, idealizado,
objetivo, contudo, vazio de toda sensação. Negando a realidade dos corpos sensíveis,
Galileu afirma que o universo é formado de corpos materiais extensos. A partir desta
52
Idem.
Cf. SOUZA, José Carlos Aguiar de. O projeto da Modernidade. Brasília-DF: Liber Livro, 2005, p.33.
54
Cf. HENRY, Incarnation, pp. 169-170.
55
Cf. θεωρία in URBINA, José M. Pabón S. De. DICCIONARIO MANUAL. Grieco-Espanhol.
Barcelona: Vox, 1998. Vale lembrar que o verbete se refere diretamente ao ato mesmo de ver ou
contemplar. Com mais razão, portanto, este termo se aplica ao conjunto de conhecimento designado na
fenomenologia como uma "forma de ver".
53
41
constatação, deduz o que é acidental e o que é próprio de todo corpo. Dir-nos-á então
que o próprio de uma substância material extensa é sua delimitação potencial por
figuras. Assim, nasce uma ciência das figuras e formas puras à qual se denominará
geometria. Este novo saber coloca as bases para um conhecimento universal, que se
opõe ao conhecimento particular e limitado do mundo sensível. Temos então daí que se
o essencial à matéria extensa é definido pela sua forma geométrica, todo outro horizonte
pode ser subtraído do corpo geométrico. Neste contexto, as qualidades sensíveis de um
corpo não são essenciais à matéria. Toda sensibilidade não passa de uma espécie de
determinação acidental e contingente, que pode ser explicada segundo as
particularidades dos vários corpos sensíveis, de acordo com sua organização biológica.
De fato, um homem sente de forma diferente que um cão e este possui sensibilidade
distinta da de um pássaro.
Segundo o novo56 paradigma epistemológico, as figuras geométricas, situadas no
tempo e espaço, são a condição de possibilidade para a leitura do livro da natureza. A
linguagem matemática é a única capaz de decifrar os enigmas do universo. Para Michel
Henry, a nova inteligibilidade proposta por Galileu opera uma redução quando substitui
o corpo sensível pelo corpo científico definido pela matemática e a geometria. Esta
redução possui consequências determinantes para a ordem da verdade e a realidade dos
corpos no mundo. De fato, se pela análise eidética a matéria existe de forma
independente em relação às qualidades sensíveis, então todo mundo sensível é jogado
no campo da ilusão e da mentira. Este é justamente o limite da nova inteligibilidade de
Galileu. Ao colocar as qualidades sensíveis no campo da contingência, que se opõe ao
real e verdadeiro conhecimento, que só pode ser dado pela geometria, o mundo e a vida,
tais como os experimentamos, se deslocam para o horizonte da irrealidade.
Simplesmente não há verdade e realidade no 'mundo da Vida', já que este é
essencialmente sensação. Vivemos no reino da ilusão. O movimento intelectual
realizado por este grande cientista só pode ser considerado uma redução quando
percebemos, com Henry, que as qualidades sensíveis não possuem sua realidade na
ordem da res extensa, no mundo das formas puras da geometria, mas no 'mundo da
Vida' (Lebenswelt). Assim sendo, sua matéria não é a do mundo, mas a matéria
56
Novo em relação à antiga ciência aristotélica. Contudo, é importante observar que não há ruptura
radical entre o logos grego e a nascente ciência moderna. Podemos falar, portanto, de uma ruptura na
continuidade.
42
fenomenológica da vida57. A filosofia cartesiana, como veremos, operará uma contraredução recuperando o que outrora fora descartado pela teoria galileana.
O que não foi percebido como essencial por Galileu será captado por Descartes
como a intuição intelectual primordial para o fundamento de todo conhecimento
possível. Ao seguir as intuições de Galileu, Descartes não considera o mundo subjetivo
(impressões) como algo que pertence ao mundo da ilusão. Segundo Michel Henry, a
contra-redução cartesiana consiste em que Descartes não permite à verdade do corpo
geométrico descartar a verdade da impressão e da subjetividade. Isto porque é a certeza
absoluta da percepção subjetiva do corpo (que pensa e que "sente"), isto quer dizer, se a
cogitatio está ou não correta, que garante a certeza do conhecimento do universo
(Penso, logo existo). Isto implica afirmar que a verdade de um corpo só pode ser assim
determinada se minha percepção do mesmo ou minha intuição intelectual da sua
extensão for antes correta. O cogito cartesiano depende, pois, das aparições subjetivas.
Estas se relacionam de forma concreta com o mundo da sensibilidade. Nenhuma
intuição intelectual pode ser dada a partir do nada, mas somente a partir do apreendido
pelos sentidos. Dito com mais propriedade, depende do 'mundo da Vida', das
impressões. Michel Henry, estabelecendo a distinção entre a epistemologia proposta por
Galileu e aquela levantada por Descartes, dirá que: enquanto a visão galileana se refere
a uma análise ontológica do corpo (visa conhecer sua natureza), o horizonte delineado
por Descartes, refere-se a um análise fenomenológica do corpo, que busca levantar a
questão da possibilidade do conhecimento mesmo 58.
Inserido ainda no horizonte metafísico, Descartes ver-se-á envolvido no dilema
epistemológico fundamental de sua teoria. Este pode ser descrito como o problema da
conexão entre a res cogitans e a res extensa. Em outras palavras, trata-se de saber como
pode se passar de uma esfera à outra, como a alma toca o corpo. A esta questão
incômoda, Descartes tenta responder com a hipótese da suposta glândula pineal. Mais
adiante veremos que esta problemática será a mesma levantada por Maine de Biran, em
sua crítica à análise dos movimentos à estátua de Condillac. A aparente problemática de
Descartes é retomada por M. Henry, em sua Fenomenologia do corpo, mostrando que o
paradigma da Fenomenologia da Vida pode oferecer uma interessante pista para pensar
a questão.
57
58
Cf. HENRY, Incarnation, pp. 139-148.
Cf. Ibid, p.151.
43
Retomando a filosofia cartesiana, Husserl voltará a analisar a redução galileana,
não para colocar em xeque todo avanço científico que veio desta nova inteligibilidade,
mas simplesmente para denunciar o esquecimento daquilo que parece ser seu
fundamento último, a saber: a subjetividade. Assim sendo, Husserl, ao rejeitar a
pretensão de universalidade da ciência galileana, simplesmente denuncia uma pretensão
de autonomia que é vazia. Isto porque as figuras geométricas ideais não existem no
mundo real. Elas nada mais são que frutos de uma operação intelectual da consciência,
que abstrai, a partir do sentido no mundo real, figuras ideais. Esta operação é chamada
transcendental porque se refere à possibilidade de formação deste conhecimento ideal.
A consciência transcendental é condição de possibilidade para todo conhecimento do
mundo. Ocorre que as operações de tal consciência estão localizadas na subjetividade da
vida transcendental. Assim sendo, a pretensão de autonomia da ciência galileana, ao
rejeitar toda intuição sensível, é vazia, porque tal ciência, conhecimento matemático das
formas puras, permanece dependente das operações subjetivas da consciência
intencional transcendental para formar seu conteúdo de mundo.
Pensando que deveras as idealidades científicas se estabelecem como fruto de
um processo de intelecção, que toma como ponto de partida os dados sensíveis deste
mundo sensível, então, de fato, todo conhecimento, mesmo o matemático, mantém com
a sensibilidade uma conexão essencial, como seu lugar de origem. De fato, como
observa nosso autor, se toda teoria científica tem sua razão de ser enquanto princípio
explicativo da realidade e por isso parte de um dado sensível passível de explicação,
então, a ciência galileana tampouco pode abrir mão da experiência sensível. Os
fenômenos sensíveis são, simultaneamente, ponto de partida e referência última de toda
ciência. Existe, pois, uma sintonia obrigatória entre a análise ontológica proposta por
Galileu e a análise fenomenológica inaugurada por Descartes.
Havendo tocado indiretamente o tema essencial da 'impressão' pela redução
galileana, sua valorização pelo cogito cartesiano e sua retomada pela fenomenologia de
Husserl, parece-nos que chegou o momento de abordá-lo de forma mais direta. Os
próximos passos da reflexão, introduzir-nos-ão ao tema da fenomenologia da carne.
Pensaremos, com Henry, o caráter da nossa 'carne impressiva' e a 'auto-afecção' como
condição de possibilidade para a compreensão da virada fenomenológica, que supõe a
passagem de uma Fenomenologia do mundo à Fenomenologia da Vida.
2.3 O esvaziamento do poder da impressão em sua auto-afecção
44
A partir da redução galileana da realidade do mundo às puras formas
geométricas, retomando a intuição cartesiana sobre o papel da sensação, que determina
o conteúdo do mundo, chegamos a constatar a lacuna do aparecer do mundo ou sua
indigência ontológica. Kant a reconhece, segundo Henry, quando afirma o fracasso da
estrutura fenomenológica do mundo em relação ao conteúdo do que nele aparece.
Assim, segundo Kant, o horizonte fenomenológico do mundo (os a priori da intuição
pura do espaço e do tempo, tais como as categorias do entendimento) manifesta-se
incapaz de colocar por si mesmo a realidade que forma o conteúdo do mundo. Deixa-se
esta realidade à sensação. Para Henry, o mesmo acontece com Husserl. A consciência é
de fato sempre 'consciência de algo', mas nunca é capaz de colocar este algo. Isto quer
dizer que a intencionalidade não pode produzir o conteúdo que manifesta. Ela sempre e
somente é o 'poder' de manifestação. Assim, Husserl, em sua análise fenomenológica de
um objeto (por exemplo a cor de algo) falará de dois pólos de análise: de um lado a
“cor” noemática apreendida sobre o objeto (noematische Farbe-forma) e do outro, a cor
impressiva, vivenciada, invisível (Empfindungsfarbe-impressão). Contudo, a realidade
da “cor” está unicamente ali onde é sentida por nós, na cor impressiva ou sensual, na
empfindungsfarbe. Assim, o conteúdo real do mundo sensível não depende de sua
estrutura fenomenológica (representação para Kant, intencionalidade para Husserl), mas
da impressão59.
A questão da Impressão fornece, pois, a condição de possibilidade para pensar
uma Fenomenologia da carne e uma consequente Fenomenologia da Vida. A impressão
deve ser pensada aqui como fundadora da realidade. Ao pensar o estatuto
fenomenológico da impressão, ou sua relação com a consciência intencional, Husserl
perceberá a realidade da consciência em dois momentos. De um lado, coloca o conteúdo
noemático (visível-forma) como sendo externo à consciência, do outro, pensa o
conteúdo impressivo hylético (invisível) como algo que pertence à consciência, assim
como a intencionalidade. Pensa também o elemento sensual puro, a impressão original,
como estranho à intencionalidade e, considerando que esta é a responsável última por
mostrar tudo aquilo que se mostra, emerge a pergunta pelo como 'aparece' a impressão
mesma. Se esta é desprovida de intencionalidade, então como pode se mostrar? Estaria
ela perdida para sempre? Ao colocar esta questão, podemos também nos perguntar pelo
'aparecer' da própria intencionalidade; ela, que revela todas as coisas, 'como se revela a
59
Cf. Ibid, pp.65-69.
45
si mesma?'. Eis a solução husserliana. Evitando cair numa regressão ao infinito, na
busca da intencionalidade que funda a intencionalidade, declara-se que toda consciência
intencional é, por si mesma, impressiva. Impressionando-se a si mesma, nesta autoimpressão originária, a consciência intencional se revelaria a si mesma.
Contudo, ao afirmar a tese de uma consciência intencional impressiva em si
mesma, ocorre um deslocamento prejudicial à impressão mesma. Neste deslocamento, a
hyle, matéria da consciência (impressão) perde seu ônus fenomenológico. Isto significa
afirmar que deixa de ser pensada a partir de seu 'poder' de manifestação. Assim este
poder de manifestação é bruscamente transferido para a intencionalidade, a forma que
informa a matéria. Melhor dito, volta-se à antiga concepção onde a matéria somente
existe para ser informada por uma forma. Para Henry, percebe-se aqui o círculo fechado
da fenomenologia de Husserl:
A este conceito não questionado de uma matéria em si
fenomenológica, se superpõe o esquema vindo de longe, que
quer que uma matéria não seja nunca mais que uma matéria
para uma forma (...). Para Husserl, a intencionalidade é
precisamente esta forma que faz ver uma matéria em si
indeterminada e cega. Esta se torna um dado sensível, por meio
de um olhar intencional, que atravessa esta matéria composta de
impressões e sensações escuras e que ao fazê-lo a ilumina.60
Transferir o poder de manifestação à intencionalidade significa jogar na escuridão toda
impressão, que somente existe agora como matéria cega a ser informada pelo olhar
intencional que a define e ilumina. Ao esvaziar o poder de manifestação da impressão,
transferindo-o para a intencionalidade que a deve manifestar na estrutura de ek-stasis do
mundo, ocorre outro deslocamento absurdo. A impressão, ao perder seu ônus
fenomenológico, é atirada aos objetos, como um de seus atributos, apenas uma
qualidade. Voltamos a uma espécie de redução como em Galileu. Quando isso ocorre,
manifesta-se a dupla ilusão do mundo sensível, respectivamente: a crença em que a
verdade impressiva (sensível) encontra-se no mundo como qualidade dos objetos e a
atribuição à intencionalidade da revelação originária da impressão. Então, para Henry
60
Cf. Ibid, pp. 71-72.
46
"ao aparecer do mundo é atribuído um 'poder' que não possui (o poder de revelar a
impressão originária) e se oculta a revelação própria da impressão"61.
Até agora, somente abordamos a supressão da impressão na sua realidade
originária, ocorrida na fenomenologia de Husserl. Esta acontece quando se transfere seu
'poder de manifestação' à estrutura de manifestação do mundo, ou seja, à
intencionalidade. Abandonando o esquema da Fenomenologia do mundo, a partir do
qual toda matéria é informada por uma forma, na linguagem da fenomenologia, por um
"ver" da consciência intencional, voltamos agora nosso olhar para a impressão em si
mesma. Para Henry, a realidade mesma da impressão, sua essência, consiste numa
espécie de auto-afecção, em sentir-se a si mesma. Por isso, ao ser pensada como simples
qualidade de objeto, é destruída. A impressão só existe neste abraço consigo mesma,
nesta auto-afecção impossível aos objetos, e a todo aparecer impassível deste mundo.
Por isso, Henry afirma que no 'fora do mundo' nunca é possível nenhuma impressão. Se
esta afirmação constitui uma verdade fundamental no pensamento do autor, então, restanos a pergunta pelo fundamento da impressão originária. Sua descoberta constitui a
condição de possibilidade para pensar a virada fenomenológica, que nos conduz do
aparecer do mundo à Fenomenologia da Vida.
3 A virada fenomenológica: do aparecer do mundo à Fenomenologia da Vida
A virada ou inversão fenomenológica existe em função da superação de uma
aporia. Qual seria, contudo, tal aporia? Para nosso filósofo, ela vem à tona diante da
postura filosófica do 'pensar a vida'. Dito fenomenologicamente, quando o pensamento,
a partir do ver deste mundo visível, tenta captar a vida invisível. Seguindo nosso
discurso perguntamos: como esta inversão fenomenológica busca superar esta aporia?
Segundo Michel Henry, a superação deste problema pode ser vislumbrada quando, ao
aparecer ek-stático do mundo, acima exposto, se coloca como foco a reflexão sobre a
auto-revelação da Vida absoluta. Diz o autor que: "ao fazer esta oposição, a
Fenomenologia da Vida reconhece a auto-revelação da Vida absoluta como essência de
toda revelação"62. Reconhecer algo como "essência" da revelação é colocá-lo como
fundamento de tudo aquilo que se revela ou que pode ser revelado. Por isso,
61
62
Cf. Ibid, p.73.
Cf. Ibid, p. 135.
47
consideramos o caráter revolucionário da Fenomenologia da Vida ao propor tal
inversão. Contudo, resta-nos perguntar: o que de fato vem a ser tal inversão da
fenomenologia no pensamento henryriano. Quais são seus matizes e exigências? O que
de fato ela inverte?
O mesmo Henry nos diz, no início de sua Fenomenologia da carne, que esta
inversão fenomenológica outra coisa não é que o mesmo reconhecimento da primazia da
Auto-revelação da Vida absoluta. Isto, em outras palavras, consiste em lançar o
pensamento mesmo ou remetê-lo sempre ao processo de auto-doação da Vida absoluta
fora do qual nada pode existir. Esta inversão fenomenológica, portanto, pode ser
definida como o próprio movimento do pensamento que se humaniza, tornando-se
humilde, reconhecendo e compreendendo que a auto-doação da Vida absoluta o
precede. Isto quer ser a afirmação mais banal, por vezes esquecida de tanto trivial:
simplesmente a nota filosófica mais essencial que afirma a primazia da vida em relação
ao pensamento. Não se pensa primeiro para depois viver. O mais originário é a vida.
Não é, de fato, como diz Henry, o pensamento que, partindo de si mesmo, corre em
direção à vida, com a avidez de uma criança devoradora de doces, com intuito de
decifrá-la e conhecê-la. Uma nota importante de nosso autor consiste na observação,
muito clara, de que a mesma possibilidade de "pensar" a precedência da vida, somente é
possível porque na ordem da realidade a Vida mesma já se revelou. A partir desta
mesma afirmação é que Henry prosseguirá com a discussão sobre o método
fenomenológico, a partir do qual é possível enfrentar a empreitada de pensar a vida.
Para ele, portanto, todo método fenomenológico, que pensa a vida está
irremediavelmente fundado sobre a doação prévia da Vida absoluta que, por sua vez,
não depende em sua doação, do aparecer deste mundo. Consequentemente, existe
independentemente da fenomenologia enquanto pensamento. A vida mesma se coloca,
obviamente, como condição absoluta do pensar. De fato, o pensamento é antes vivo, o
pensamento de um vivente que 'pode', mas não por si mesmo, pensar.
Ao operar sua inversão fenomenológica, Henry se encontra com o problema de
um esquecimento fundamental na ordem do próprio pensar. A Fenomenologia da Vida
denuncia a usurpação, por parte da Fenomenologia do mundo, de um lugar que não lhe
pertence. Ao colocar-se como fundamento último de todo conhecimento possível, de
tudo aquilo que existe para nós enquanto fenômeno que pode ser vislumbrado e
estudado, o pensamento opera uma falha decisiva. Esta se refere ao esquecimento desta
precedência fenomenológica da vida em relação ao próprio ato de pensar. A recordação
48
desta precedência fenomenológica da vida é condição de possibilidade para o estudo de
nossa tese central sobre a encarnação e os temas do seu entorno, tais como: autoafecção, impressividade, corpo e carne. Uma Fenomenologia do mundo, que
desconsidera esta doação originária da vida, pensará estes temas de forma catastrófica.
Como é possível pensar uma carne que só existe como imanência da própria Vida, a
partir de um saber que ignora a precedência fenomenológica da Vida mesma? Não resta
dúvidas que a virada fenomenológica supõe para nós uma oportunidade única de pensar
tais temas a partir de novos pressupostos, tomando como referência a precedência da
doação originária na Vida.
Afirmar a virada fenomenológica supõe antever um giro epistemológico.
Obviamente o modo de análise fenomenológica operado pelo ver do mundo, difere
essencialmente daquele operado pela Fenomenologia da Vida. É importante recordar
que o esquecimento pelo pensamento da precedência da Vida revela, no 'aparecer do
mundo', aquilo que chamamos de carência ontológica radical. Recordemos, em forma
de resumo, três características da Fenomenologia do mundo estritamente conectadas a
este esquecimento da Vida. A primeira delas se refere à redução de tudo que aparece ao
aparecer do mundo. Nesta perspectiva, está excluída toda possibilidade de verdade que
não apareça neste horizonte ek-stático (de objetivação). A segunda diz respeito à apatia
deste aparecer. No mundo não é possível nenhuma alegria, nenhuma tristeza, nenhum
sentimento, sua estrutura fenomenológica é vazia de impressões, seu ver é vazio.
Lembramos anteriormente o conceito de mundo exposto por Henry, mundo enquanto
horizonte de visibilidade. A terceira característica nos revela que por trás de tal
indiferença se oculta uma indigência radical, para a qual o aparecer do mundo não só é
indiferente àquilo que revela, mas também incapaz de lhe conferir o ser (existência).
Esta incapacidade (indigência ontológica na qual o aparecer do mundo lança o próprio
mundo) explica sua indiferença para com tudo aquilo que faz aparecer. Esta indiferença
é, por sua vez, uma impotência63.
Uma observação simples, contudo, elucidativa nos é fornecida pelo mesmo
Henry, quando afirma que por causa de suas propriedades sensíveis todos os corpos
sensíveis que vislumbramos, definem-se sempre em relação à percepção sensível que
temos deles. E aqui, encontramo-nos com o problema concreto da indigência ontológica
e com a necessidade da virada fenomenológica que é, também, epistemológica. O
63
Cf. Ibid, pp. 59-61.
49
problema está em que nenhuma das qualidades sensíveis que admiramos ou percebemos
tem seu fundamento no aparecer do mundo (intuições a priori de Kant, ou a consciência
intencional de Husserl). O mundo, considerado no seu conteúdo concreto (hyle), deve
este 'conteúdo sensível' à sensação, à Vida mesma. Nenhum sentimento é possível sem a
Vida. Temos, portanto, segundo Henry, que a consideração do caráter sensível do
mundo nos lança de uma Fenomenologia do mundo à Fenomenologia da Vida64. A
propósito do esquecimento do pensamento, no que se refere à precedência
fenomenológica da Vida, abordaremos no tópico seguinte o tema da carne impressiva e
o esquecimento da subjetividade pela Fenomenologia do mundo e sua recordação no
pathos da Vida.
3.1 A carne impressiva: O esquecimento da subjetividade e sua recordação no
pathos da vida
Ao pensar a questão das raízes da modernidade, Lima Vaz, propõe uma
fenomenologia e uma axiologia da história intelectual do ocidente. Nestes termos,
definem-se três grandes momentos ou eventos fundamentais, a saber: o primeiro diz
respeito ao próprio nascimento da razão grega, a passagem do mito à filosofia, ou como
já dissemos, a emergência da noção de Logos; o segundo diz respeito à assimilação da
filosofia antiga pela teologia cristã, e o terceiro grande evento se refere ao advento da
razão moderna65. Recordamos de propósito esta distinção histórico-metodológica para
situar nossa questão neste último contexto. É nele que se insere propriamente dita a
análise fenomenológica do mundo, no sentido científico tal qual se nos aparece hoje. O
problema do esquecimento da subjetividade, como fundamento último do que nos
aparece, é evocado aqui, metaforicamente, como o elo perdido. O passo de uma
Fenomenologia do mundo a uma Fenomenologia da Vida, proposto por Henry, não
pode prescindir da abordagem desta questão. Ela é quem prepara o terreno para a
inversão fenomenológica operada pela filosofia henryriana.
A fantástica descoberta do mundo da geometria, feita pela redução galileana,
deixou de fora, como vimos, toda referência ao mundo sensível, subjetivo. A isto
decidimos chamar, metaforicamente, de “elo perdido”. Assim o denominamos de
acordo com aquela constatação segundo a qual todo conhecimento intelectual parte de
64
65
Cf. Ibid, p. 138.
VAZ, Claudio de Lima. Raízes da modernidade. São Paulo: Loyola, 2012, p.11.
50
uma experiência sensível real e se refere, em último caso, como teoria explicativa, a ela.
Neste sentido, o limite apontado à inteligibilidade proposta por Galileu foi ter ocultado
a pergunta fundamental, a saber: como conhecemos? Em outras palavras, como
chegamos à formação intelectual das figuras geométricas? A ciência galileana não
questionou coisa alguma sobre aquele “modo do aparecer” que faz possível a
inteligibilidade do inteligível. De fato, o que torna inteligível a intuição intelectual das
figuras puras é sua referência concreta ao mundo da natureza. Como bem lembrou
Husserl, não existe nenhum círculo ideal na natureza, este é deduzido a partir da
percepção meio bruta da realidade dos corpos percebidos e sentidos no mundo66.
Percebemos anteriormente que a visão cartesiana significa uma continuidade na ruptura
com a tradição galileana. Isto porque Descartes recupera este elo perdido, colocando a
ênfase nas intuições intelectuais, na própria subjetividade. A realidade só é realidade se
a cogitatio que tenho dela também é real. Vimos também que o pensamento cartesiano
desemboca no dualismo suposto pela assunção da teoria galileana. Esta dualidade entre
res extensa e res cogitans levantará o problema complexo de como pode acontecer a
passagem de uma à outra, como pode a alma tocar o corpo. A questão levantada por
Descartes parece ser ignorada por muitos. Por ser uma questão aparentemente de ordem
metafísica, não será foco de discussões, a não ser por alguns, como Maine de Biran.
Com matiz diferente, podemos afirmar que Husserl recupera também este elo
perdido, ao propor o corpo transcendental intencional como fundamento do
conhecimento. Assim se diz que nosso corpo é transcendental porque é a condição de
possibilidade de tudo aquilo que é sentido (do mundo sensível). Por isso, este corpo
transcendental será definido pelo conjunto de nossos sentidos. Aqui aparece a questão
fundamental que levará M. Henry a propor uma Fenomenologia da Vida. Esta se refere
ao fato de que esta intencionalidade do corpo transcendental, sendo responsável pelo
aparecer das coisas na nossa consciência, não se funda a si mesma, não pode ser
responsável pela sua própria condição de possibilidade. Ela nos abre ao mundo, mas não
funda sua própria manifestação. Dizemos então, com Henry, que ao constatar isto
somos lançados da possibilidade transcendental do mundo sensível (que reside no corpo
transcendental intencional que permite senti-lo) à possibilidade transcendental mesma
do corpo intencional, que é a auto-revelação da intencionalidade no mundo da Vida.
Passamos de uma possibilidade transcendental à outra. Aquilo que até agora
66
Cf. HENRY, Incarnation, p. 153.
51
pensávamos ser o mais originário, o corpo transcendental intencional de Husserl, parece
se remeter a algo ainda mais originário, que veremos a seguir.
O esquecimento da subjetividade, no sentido radical da imanência da Vida em
nossa carne, lança-nos, irremediavelmente, de volta à questão da impressão. Ao
afirmarmos que nossa carne é impressiva, fazemos referência a um 'Poder de sentir' cuja
fonte vai para além da aparência deste mundo, de sua estrutura ek-stática. Perguntar
pela origem desta condição de possibilidade de todo sentimento, é, no fundo, colocar-se
a questão sobre a origem da impressão. Sobre a origem da impressão Henry afirma:
Originário então, diferente de Husserl, designa aqui o que vem
antes de toda intencionalidade. Aquilo que vem antes do mundo
concebível, a-cósmico. O “antes” do originário não indica uma
situação inicial, o começo de um processo. Mas se refere a uma
condição permanente, interna, de possibilidade, uma essência.
Assim, aquilo que vem antes do mundo, jamais virá a ele, e isso
por uma razão essencial, a saber: nunca virá a ele porque não
pode se mostrar nele, mas somente desaparecer nele. Assim,
não se pode, como em Husserl, tomar a impressão originária
como uma existência que cai por seu próprio peso, simples
suposto não questionado em sua possibilidade interna 67.
Percebemos, pela citação acima, que Henry fala da impressão originária no
sentido radical, como aquilo que não pode ser justificado pela estrutura ek-stática do
aparecer do mundo. Descarta então a acepção temporal de origem da impressão. Esta
não pode ser pensada como sucessão de tempos, não se refere ao conteúdo que brota,
sem ser explicado, constantemente, e que desliza para o passado em direção ao nada.
Esta impressão originária, assim se designa porque se trata de uma condição de
possibilidade, a que se refere ao próprio 'Poder de sentir'. Não obstante, este 'Poder de
sentir, já tantas vezes mencionado, não possui sua origem nele mesmo. Isto implica
afirmar que esta impressão Originária não possui, tampouco, sua origem nela mesma. E
isto pode ser compreendido na filosofia de Henry através do argumento da possibilidade
que possui uma impressão de se transformar em outra. De fato, segundo Henry,
nenhuma impressão se funda a si mesma, caso contrário ela teria a capacidade de
determinar o tipo de impressão que desejasse ser. Contudo, pelo contrário, todas nossas
67
Cf. Ibid, p. 82.
52
impressões se transformam constantemente, não no não ser do fluxo ek-stático, mas em
outra e sempre nova impressão: a enfermidade em bem-estar, a fome em saciedade. A
impressão não elegeu ser o que é: uma impressão que se experimenta em sua própria
carne, em uma matéria impressiva que Husserl chamou com o termo grego de hylé.
Então, qual é a origem da impressão?68
Ao perceber que, por mais originária que seja a impressão, ela não pode ser o
fundamento de si mesma, passamos de uma fenomenologia da impressão, de uma
fenomenologia da nossa carne impressiva a uma outra. A pergunta sobre a origem em
fenomenologia, nos recorda Henry, nos remete à questão do ser. E como bem lembra o
autor, ser, no âmbito fenomenológico, é o aparecer. Então a origem da impressão é o
seu aparecer69. Contudo, onde a impressão originária aparece? Constatamos
anteriormente, pelo estudo da redução galileana, da contra-redução cartesiana e da
fenomenologia husserliana, que a impressão, no seu sentido originário, não pertence ao
horizonte de fenomenalidade do mundo, independe da sua estrutura ek-stática. Por este
motivo, Husserl, por exemplo, submete toda impressão ao olhar formatador da
intencionalidade, renovando a noção hilemórfica na qual está inserido o pensamento
ocidental. A impressão originária escapa a toda epistemologia que queira definir o ser a
partir do pensamento, esquecendo a condição originária de que todo pensar é, antes, um
'Poder do vivente'.
Afirma-se então que a impressão originária tem sua origem no aparecer da Vida
e não no horizonte de visibilidade do mundo:
A origem da impressão é seu aparecer: um aparecer tal que tudo
o que se revela nele advém como momento sempre presente e
real da carne impressiva da qual falamos. Não é o aparecer do
mundo, mas o aparecer da Vida, que é a Vida em sua
fenomenização originária.70
Passamos assim de uma fenomenologia da impressão para uma Fenomenologia da Vida.
Não abordaremos aqui a questão do tempo, compreendido a partir da fenomenologia
henryriana. Parece-nos apenas conveniente ressaltar que a noção de tempo nesta
Fenomenologia inaugurada por Henry, difere essencialmente da ideia de tempo da
68
Cf. Ibid, p.83.
Cf. Ibid, p.84.
70
Cf. Idem.
69
53
fenomenologia de Husserl (consciência interna do tempo: como deslizamento da
realidade para a irrealidade do passado irrecuperável), ou o tempo na filosofia
heideggeriana, como 'praias da exterioridade, como a condição de possibilidade de todo
aparecer. A Fenomenologia da Vida fala de nossa impressão a partir de um presente
sempre real de uma carne impressiva. Todo 'sentir' se insere neste horizonte da vida que
nunca é passado, mas sempre presente, sob pena de, quando passado, deixar de ser vida.
A impressividade de nossa carne pertence, portanto, ao aparecer da Vida na sua
autorevelação originária, na sua autoafecção constante, que nunca cessa, que é sempre
presente. A vida é aquela que sempre se sente, tendo a autoafecção, como aquilo que a
define, como sua própria essência71.
3.2 A remissão da Fenomenologia da Carne (impressiva) à Fenomenologia da Vida
Pensar a remissão da Fenomenologia da Carne impressiva à Fenomenologia da
Vida é, no fundo, voltar à tese henryriana que provoca nossa investigação: encarnação.
A análise fenomenológica da carne impressiva não é um capricho filosófico de Henry,
mas condição de possibilidade para o desenvolvimento posterior do discurso sobre a
salvação no sentido cristão, inserido no tema da encarnação. Assim sendo, a
Fenomenologia da carne impressiva, metodologicamente, encontra-se, estrategicamente,
situada antes da Fenomenologia da encarnação.
A inversão fenomenológica proposta por M. Henry é ela mesma uma denúncia
do esquecimento da Vida e de tudo aquilo que ela engendra. Esta inversão consiste
precisamente em reconhecer a primazia da autorrevelação da Vida absoluta, situando o
pensamento mesmo dentro do processo de auto-doação da Vida absoluta, fora do qual
71
Cf. FURTADO, José Luiz. Do ser à vida: fundamentos fenomenológicos da filosofia da vida e da
práxis em Michel Henry. Belo Horizonte: UFMG, 1996, 711p. De acordo com o título deste tópico,
falamos da nossa carne impressiva, da origem mesma da impressão, a partir do esquecimento da
subjetividade, entendendo subjetividade em relação estreita com o 'Poder de sentir' ou 'Poder da
impressão'. Falta, contudo, a explicitação da parte final, que se refere à recordação desta subjetividade no
patos da vida. Este tema não será desenvolvido em detalhes aqui. Contudo, ele permanece fazendo parte
desta secção, apenas como sinal que aponta para o horizonte necessário da nossa reflexão. Sendo esta
teológica, não pode deixar de ser antropológica e, por isso mesmo, ética. Faz-se necessário lembrar a
intuição presente na Fenomenologia da Vida de Henry. Intuição esta que afirma que a recordação da vida,
de sua imanência radical em nossa carne, a recordação da própria subjetividade como fundamento daquilo
que pensamos e sentimos, não pode ocorrer longe daquilo que se denomina práxis. Práxis entendida não
como estratégia de transformação da realidade, mas como atualização e percepção de cada 'Poder' que
habita nossa carne. Trata-se, na verdade, quando falamos da percepção, da recordação fundamental da
origem destes 'Poderes' que chamamos inapropriadamente de nossos. Sobre isto sugerimos a leitura da
tese doutoral supra citada. Aprofundaremos no tópico seguinte a remissão desta fenomenologia da carne
impressiva à Fenomenologia do Vida.
54
nada pode existir. Quando se afirma que o pensamento não conhece a Vida ao pensá-la,
ocorre então uma inversão fenomenológica que não é mais que o movimento do
pensamento que compreende que a auto-doação da Vida absoluta o precede. Assim, se
estabelece uma primazia da vida em relação ao pensamento (não se pensa primeiro para
depois viver). De fato, não é o pensamento que, partindo de si mesmo, vai em direção à
Vida para descobri-la e conhecê-la. Todo pensamento só é possível enquanto vida
previamente dada72.
A Fenomenologia da Vida reconhece os dois caminhos ou modos do aparecer: o
primeiro deles diz respeito à Fenomenologia do mundo, a partir da qual o ver não pode
se referir a outra coisa que não seja aquilo que pode ser visto pela estrutura ek-stática.
Trata-se do fenômeno tal como foi compreendido pela filosofia e as concepções
epistemológicas que fundam a ciência moderna. Neste aparecer do mundo os corpos são
objetivos. As categorias de espaço-tempo fundam a condição de possibilidade para este
“ver” fenomenológico. Este aparecer do mundo desemboca na, já citada, indigência
ontológica, que consiste em sua incapacidade de dar por si mesmo o conteúdo do
mundo. Este aparecer só manifesta aquilo que previamente já foi dado, e dado por
quem? Responderá M. Henry, pela Vida. Desta constatação nasce a proposta de uma
fenomenologia da Vida, que anuncia uma realidade fundamental para além de toda
realidade objetiva apreendida pela estrutura ek-stática. Se a Fenomenologia do mundo
não é suficiente para a compreensão da realidade, uma nova inteligibilidade surge. A
Fenomenologia da Vida, portanto, propõe uma nova epistemologia, fundada sobre a
Inteligibilidade primordial.
Assim, mesmo a análise fenomenológica proposta a partir do corpo intencional
transcendental de Husserl permanece relegada, segundo Henry, à esfera da
Fenomenologia do mundo. Isto porque, apesar de colocar a pergunta sobre a relação
entre o corpo sentido e o corpo transcendental, descortinando a questão da
intencionalidade que nos abre ao mundo, esta análise ainda continua refém da noção
tradicional de fenômeno. Este corpo transcendental intencional de Husserl participa
também da indigência ontológica do aparecer do mundo, pois uma vez que nos abre a
72
Cf. HENRY, Incarnation, pp.135-139. A inversão fenomenológica , segundo Henry, assim se expressa:
não é o pensamento que nos dá acesso à vida, é a vida que permite ao pensamento ter acesso a si mesmo,
experimentar-se a si mesmo e, ser em cada caso o que é: a auto-revelação de uma cogitatio. Porque é em
cada caso e necessariamente uma cogitatio, o pensamento designou indistintamente, sob um mesmo
conceito falaz, dois apareceres tão diferentes como o ver intencional e aquele que permite a este ver advir
a si em ausência de todo ver: sua auto-doação patética na Vida absoluta.
55
ele, tudo que permite sentir se situa no mundo, inevitavelmente, como objeto sentido. E
ele mesmo enquanto corpo que nos abre ao mundo não pode fundar aquilo que ele é
para nós, a saber: condição de possibilidade de abertura e do “ver” fenomenológico.
Para pensar o tema da Encarnação na Fenomenologia da Vida, Henry parte da
análise fenomenológica da condição de possibilidade do corpo transcendental, esboçado
pela fenomenologia de Husserl. Isto diz respeito à própria análise do corpo sensível, a
partir da qual se dará a remissão do corpo sentido ao corpo "que sente", denominado
também corpo transcendental. Em sua Fenomenologia da carne, Henry colocará em
oposição ao 'corpo opaco' do 'aparecer puro' do mundo o próprio 'corpo sensível'.
Afirma, com propriedade, que este não deve sua existência ao aparecer do mundo, isto
porque no 'corpo opaco' do aparecer do mundo não é possível nenhuma impressão, e,
portanto, nenhuma sensibilidade ou sentimento. Denuncia-se neste contexto, todo
realismo ingênuo73 que tende a classificar a impressão e o 'sentimento' como uma
qualidade dos corpos 'mundanos'. No fundo, esta foi a operação realizada, como já
dissemos, pela fenomenologia de Husserl, quando desloca o 'aparecer' mesmo das
impressões para a intencionalidade. Ao falar de uma consciência impressiva, Husserl
esvazia a fenomenicidade mesma da impressão, tornando-a apenas qualidade interna
dos corpos no mundo. Assim, por exemplo, o vermelho, a dor, o sorriso, tudo pode ser
pensado como simples qualidades dos corpos. Fica, portanto, estabelecido que, segundo
a Fenomenologia da Vida, a condição sensível e afetiva dos corpos não provém da
estrutura ek-stática do mundo, nada tem a ver com seu horizonte de visibilidade74.
Nesta dinâmica de oposição entre 'corpo opaco' (horizonte fenomênico do
mundo) ao 'corpo sensível' (alheio à estrutura do mundo), Henry procederá à sua análise
da carne impressiva, explicitando o seguinte quiasma: 'todo 'corpo sentido' deve
pressupor um 'corpo que o sente' e vice versa. Existe, pois então, um ´ Poder de sentir' .
A atualização deste ' Poder' leva à passagem de um 'corpo mundano', considerado como
objeto, para um 'corpo transcendental', condição de possibilidade do próprio 'corpo
sentido'. Henry dirá: "Este corpo transcendental é dotado dos 'poderes' fundamentais do
sentir, o que faz dele um corpo sujeito, subjetivo e a priori, um corpo originário e
73
Cf. LONERGAN. Bernard J. F. The way to Nicea: the dialectical development of trinitarian Theology.
Philadelphia: The Westminster, 1964, 143p. Nesta obra, ao discutir a formação do dogma, o autor
denuncia e esclarece, simultaneamente, o perigo do realismo ingênuo no discurso filosófico e teológico.
Para a compreensão do pensamento henryriano também necessitamos nos situar a partir desta dinâmica da
diferenciação da consciência, proposta por Lonergan. Somente a partir desta dinâmica poderemos
compreender sua empreitada intelectual que propõe uma passagem radical da fenomenologia do mundo à
fenomenologia da Vida.
74
Cf. HENRY, Incarnation, pp. 156-171.
56
fundador"75. Ao pensar a corporeidade, via fenomenologia do mundo, a filosofia se
depara com as duas grandes questões já antes delineadas: a primeira se refere
justamente ao caráter sensível dos corpos, que não pode ser explicado pela estrutura de
objetivação do aparecer do mundo. Por outro lado, ao pensar o 'corpo que sente', corpo
transcendental como princípio de toda experiência do 'sentir', constata-se que este
'corpo' está dotado de ' Poderes' fundamentais imediatamente conectados aos sentidos
tradicionais. O problema que se descortina neste horizonte se refere ao fato de que a
estrutura de cada um dos nossos sentidos somente é compreendida a partir da estrutura
ek-stática. Os sentidos são intencionalidades que se dirigem sempre para um 'afora de
si', pressupõem, portanto, sempre um distanciar-se. Segundo Henry, todos os sentidos
nos lançam para fora, tudo que sentimos se encontra fora de nós. Este corpo
transcendental, portanto, enquanto subjetividade, não pode ser definido como outra
coisa que não seja o conjunto das nossas intencionalidades, na linguagem henryriana: 'o
fora de si que permite ver na luz desse fora de si que é o mundo'. O problema é que se
entendemos o corpo transcendental a partir dos sentidos tradicionais, e estes, outra coisa
não podem ser que intencionalidades, então, não podemos explicá-lo a partir da
Fenomenologia do mundo fundamentada no próprio ver intencional. Segundo Henry,
constitui um absurdo "explicar uma condição de possibilidade (corpo transcendental) a
partir daquilo que ela mesma torna possível (intencionalidades)76".
A questão precedente nos leva a perguntar com o autor: onde então estará a
essência da corporeidade originária imanente? Vimos que, segundo Henry, nosso corpo
é transcendental porque se coloca como condição de possibilidade de tudo aquilo que
'podemos sentir'. Por isso, este corpo transcendental é definido como o conjunto de
nossos sentidos,
sendo
cada um deles uma
intencionalidade.
Contudo,
a
intencionalidade deste corpo transcendental não pode ser explicada, tampouco, pela
estrutura do mundo, à qual ela mesma torna possível. Como bem diz Henry, é um
contrassenso que uma condição de possibilidade seja justificada a partir daquilo que ela
mesma torna possível, cairíamos no cúmulo da tautologia. Então, a intencionalidade
constitutiva do corpo transcendental não pode fundar por si mesma sua própria condição
de possibilidade ou existência. Ela, de fato, nos abre ao mundo, aos fenômenos, mas não
se funda enquanto fenômeno, não coloca por si mesma o seu 'aparecer'. É aqui, nesta
esfera, que teremos, como designa nosso autor, a passagem de uma possibilidade
75
76
Idem.
Idem. Parênteses nosso.
57
transcendental a outra: somos lançados da possibilidade transcendental do mundo
sensível (que reside no corpo transcendental intencional que permite senti-lo) à
possibilidade transcendental do 'corpo intencional mesmo' (que é a auto-revelação da
intencionalidade na Vida)77.
Declara Henry que o 'corpo transcendental', considerado pela fenomenologia do
mundo como o mais originário, repousa, todavia, sobre uma corporeidade ainda mais
originária. Esta é transcendental, no sentido radical da palavra, no seu sentido último,
segundo nosso autor. Nela não há intencionalidade, nenhum movimento para o 'afora'.
A essência desta corporeidade originária imanente é a própria Vida na sua Autorevelação. Passamos, portanto, de uma Fenomenologia do mundo, via análise da
Fenomenologia da carne impressiva, na sua 'possibilidade' de sentir, para uma
Fenomenologia da Vida. Para Michel Henry, as análises do corpo e da realidade,
realizadas pela fenomenologia contemporânea, podem ser classificadas a partir da
fenomenologia do mundo. Para o autor, o Corpo Transcendental da fenomenologia
contemporânea, definido como intencionalidade, que se coloca como condição de
possibilidade do 'corpo sentido', pertence claramente à estrutura de visibilidade do
mundo. Afirmará Henry: "Este novo corpo transcendental possui a mesma condição do
corpo antigo que é 'sentido', a tal ponto que pode se deslocar para a antiga posição"78.
Esta afirmação se refere à possibilidade inerente ao nosso corpo de ser ao mesmo tempo
o que sente e o que pode ser sentido. Assim, pode-se voltar uma e outra vez à antiga
posição de ser sentido (como objeto apreendido pela intencionalidade). Aproveitamos
este tema para assinalar rapidamente a breve crítica dirigida por Henry, em seu livro
Encarnação, a Merleau-Ponty. Pensando na dualidade insuperável dos dois corpos,
como propriedade própria dos corpos vivos, neste caso o corpo humano (o que sente e o
que é sentido), Henry defenderá a estrutura opositiva entre o que constitui e o que é
constituído. Para ele, ao desqualificar esta estrutura opositiva, Merleau-Ponty "estende
de maneira não legítima, ao mundo inteiro aquilo que é próprio do nosso corpo e que
não pode ocorrer em outro lugar que nele, a saber: a relação tocante tocado"79.
Somente nosso corpo pode tocar e ser tocado. A postura de Merleau-Ponty é, portanto,
uma postura de absolutização do sensível. Com tal atitude, diz o autor :
77
Ibid, p.159.
Idem
79
Cf.Ibid, p.163-166.
78
58
esmaga-se o 'poder' transcendental de constituição contra o
constituído, que é reduzido e confundido com ele. Isto ocorre
por não pensar o estatuto fenomenológico do poder de
constituição.
Absorvido
pelo
constituído,
a
teoria
da
constituição cede seu lugar a uma descrição literária dos
fenômenos que beira ao realismo ingênuo.80
Portanto, para Henry, a extensão ao universo do quiasma tocante-tocado, não pode ser,
de forma alguma possível dentro da perspectiva da Fenomenologia da Vida.
Assim, quando o corpo é pensado a partir da Fenomenologia da Vida e não mais
do mundo, ocorre uma inversão da própria concepção de corpo. Ele deixa seu estatuto
de objeto para ser encarado como princípio de toda experiência, possuindo, então, um
poder de doação. Pensando a Vida como aquela que revela o corpo, obrigatoriamente
ocorre uma mudança radical, pois a ek-stasis não se aplica a ela, na Vida não há
intencionalidade. Assim, o corpo pensado na Fenomenologia da Vida se refere a uma
corporeidade originária, despojada do caráter mundano. Portanto, se é desprovida do
caráter fenomenológico do mundo, é , como se deve prever, dotada de todas as
propriedades fenomenológicas da Vida. Estas propriedades, que o corpo originário toma
da Vida, provêm daquilo que ela revela. Em que consiste esta revelação da Vida? A
revelação da Vida nada mais é que sua autorevelação. Esta é, por sua vez, o originário e
o puro experimentar-se a si mesmo, sendo que o que experimenta e o experimentado são
um só. Isto ocorre porque o modo fenomenológico da revelação da Vida consiste em um
Phatos cuja matéria fenomenológica é a afetividade e a impressividade pura. Em outras
palavras, o modo fenomenológico pelo qual a Vida se revela é a autoafecção
radicalmente imanente que é nossa carne81.
A indigência ontológica não existe na Fenomenologia da Vida, porque ao revelar
a carne ela não se limita a revelá-la como na estrutura do mundo na qual o que revela
não é o revelado. Assim, a Vida revela a carne ao engendrá-la, como aquilo que nasce
com ela, da mesma substância dela. Esta carne revelada é uma carne afetiva e
impressiva cujas características não provêm de outra coisa que não seja a
impressividade e a afetividade da Vida mesma que a revela. Desta forma temos a
seguinte constatação: o que revela e o revelado são um só. Portanto, na Fenomenologia
80
81
Idem.
Cf. Ibid, pp. 172-179.
59
da Vida a carne é mais que mera realidade revelada pela Vida. Surpreendentemente,
estabelece-se que a carne é a forma que tem a Vida de se fazer Vida. Então, a
interioridade reciprocamente originária entre carne e Vida nos atinge porque, na Vida
absoluta, esta carne constitui o modo fenomenológico segundo o qual a Vida vem
eternamente a si no Arqui-patos da sua Arqui-carne.
A partir de tudo que dissemos, insistimos em explicitar um pouco mais em que
consiste a guinada epistemológica e como ela se relaciona com o que chamamos
Inteligibilidade primordial. Para isso, deve-se reconhecer que a virada fenomenológica,
a qual consiste na passagem de uma Fenomenologia do mundo a uma Fenomenologia
da Vida, propor-nos-á um novo paradigma. Este é concebido por Henry como Arquiinteligibilidade, ou, como sugerimos, uma Inteligibilidade primordial. De fato, como se
nota, a Fenomenologia da Vida, mais que ruptura, é uma descoberta fascinante de outra
forma de “ver” radicalmente diferente do “aparecer” do mundo. Se a autorevelação da
Vida é o que há de mais originário, a análise fenomenológica que parte dela deve fazer
surgir uma nova concepção de mundo, de corpo e do próprio pensamento, diríamos,
ousadamente, uma epistemologia primordial.
Uma indagação pertinente, e mesmo necessária, deve ser formulada neste
instante. Esta deve se referir ao nexo existente entre Fenomenologia da Vida
(Inteligibilidade primordial) e a própria tradição cristã. Trata-se do possível impacto que
a Fenomenologia da Vida pode exercer sobre o terreno teológico. Neste sentido, é
surpreendente notar que o mesmo Henry parece não só se referir ao cristianismo, mas o
toma como referência necessária para pensar sua Fenomenologia da Vida. O autor não
tem receio de identificar a Vida com o Deus anunciado pelos cristãos82. A própria ideia
de Inteligibilidade primordial é lançada pelo autor em referência direta ao prólogo do
Evangelho de João. A partir de sua análise fenomenológica da vida, ao encontrá-la
como auto-afecção que se revela revelando-se sempre numa carne, o autor estreita ainda
mais o laço entre seu pensamento e a própria tradição cristã. Propor-nos-á, portanto,
uma fenomenologia não só da carne, mas da encarnação, visando explicitar a relação
primordial entre a Vida absoluta e sua vinda a nós83. O tema é, pois, inegavelmente
teológico.
82
Idem
Idem. O autor define que a fenomenologia da encarnação trata da relação da Archi-carne com a carne
inscrita no prólogo joanino: “a vida se fez carne”.
83
60
Parece-nos, portanto, conveniente afirmar que o pensamento henryriano, no que
se refere à sua inversão fenomenológica e à sua guinada epistemológica, traz uma rica
possibilidade de fecundação do terreno teológico em suas várias vertentes. A
Fenomenologia da Vida pode trazer grandes contribuições para o pensamento teológico.
Seu alcance pode tocar tanto o nível de uma reflexão mais sistemático-fundamental
(Antropologia e Cristologia) quanto a elaboração de um pensar ético-pastoral, e por que
não dizer, também pode lançar luzes ao caminho espiritual. Aliás, se a Vida precede o
pensamento, e a Vida é Deus, e Deus é unidade, como bem nos lembra Henry, não pode
haver cisão epistemológica na nossa forma de conhecer a vida. Por isso, é necessário
reafirmar que a análise ontológica de Galileu não deve existir separada da análise
fenomenológica de Descartes. A via metodológica e a constatação das duas formas de
aparecer, ressaltadas pelo autor, não querem desembocar no divórcio entre vida e
pensamento, a proposta de Henry não é um neo-dualismo 84.
A Fenomenologia da Vida, autenticamente referida à tradição cristã, traz,
portanto, consequências para o fazer teológico. Aqui arriscamos apontar somente alguns
horizontes para uma futura reflexão. O primeiro deles parte daquilo que é o cerne da
reflexão henryriana, a saber: a autorevelação da Vida. Se a forma de revelação da Vida
é em si mesma uma autorrevelação cuja matéria fenomenológica é a autoafecção pura,
então, nosso Deus, identificado com a Vida por Henry, é também autoafecção pura. Isto
nos faz retomar toda a reflexão cristológica e antropológica, para repensar o nexo entre
Teologia e Antropologia. Em outras palavras, coloca-se em evidência a relação estreita
entre a Vida de Deus ou o Deus que é Vida e a vida do homem. A partir deste mesmo
dado, a Vida que se autorrevela a si mesma em uma carne, podemos atualizar a própria
teologia da revelação escrita na Dei Verbum. O campo se abre ainda mais se
considerarmos a fantástica categoria de transcendência anunciada por Henry. Segundo
ele, transcendência, no sentido radical, segundo o próprio cristianismo, só pode
significar a imanência da Vida em cada vivente85. A partir deste fantástico condensado
de significado, que nos abre a Fenomenologia da Vida, podemos, por último, propor
uma nova reflexão sobre o corpo no seu sentido teológico. Esta abordagem nos aponta
para uma nova Teologia do Corpo, pensado não mais a partir dos pressupostos do corpo
transcendental intencional, mas a partir da corporeidade originária, que tem sua raiz na
Vida mesma enquanto Deus. Certamente, isto implica um mergulho profundo na
84
85
Cf. Ibid, p. 216. Henry fala de dois modos de aparecer, mas de um só processo.
Idem.
61
abordagem metodológica da Fenomenologia da Vida, coisa que ainda não nos sentimos
capazes de realizar. Por enquanto, parece-nos suficiente apontar o vasto horizonte do
pensamento henryriano nos seus possíveis ponto de contato com a tradição cristã, o que
nos pode levar a uma nova perspectiva do fazer teológico.
3.3 A Verdade segundo o Cristianismo
A Verdade do cristianismo está estritamente conectada ao tema da Vida, e,
como tal, difere totalmente da verdade do mundo. Desta constatação nasce a exigência
henryriana de propor uma Fenomenologia da Vida para pensar com acuidade o tema
cerne de nossa investigação: a vida dos seres encarnados. Sobre tal tema Henry declara:
O cristianismo não dispõe por si mesmo dos conceitos
adequados à sua verdade e isso não porque possui uma
indigência intelectual, mas por outra razão, a saber: é que a
verdade do cristianismo não pertence à ordem do pensamento.
O gênio dos padres da Igreja foi captar a verdade do
cristianismo em sua afirmação mais desconcertante: a
encarnação, que é não uma afirmação do pensamento, mas
daquilo que escapa a todo pensamento: um corpo e uma carne.86
Esta afirmação desconcertante do 'corpo de carne' possui a novidade mais fundamental e
chocante anunciada pela Fenomenologia da Vida. Ela se refere àquela Inteligibilidade
Primordial já antes citada e que posteriormente será retomada em nossa reflexão.
Não obstante, se o autor afirma que o cristianismo não possui conceitos
adequados para dizer sua verdade, cabe-nos perguntar a partir de que lugar tem falado
até hoje todos os teólogos? A partir de quais pressupostos o discurso cristão tem se
firmado? A interrogação nos lança em direção à crítica heideggeriana da ontoteologia.
Esta perspectiva é retomada por Henry ao pensar a relação entre fenomenologia e
ontologia. O vínculo entre estas duas disciplinas é pensado, na Fenomenologia da Vida,
como a possibilidade de uma reflexão profunda sobre a própria vida, que tem sido
esquecida por ser uma "noção vaga e de muitos significados87", como afirma o próprio
autor. Assim, Henry dirá, como forma de provocação, que "viver significa ser".
86
87
Cf. Ibid, p. 16.
Cf. HENRY, Michel. Fenomenología de la vida. Buenos Aires: Prometeo libros, 2010, p.19.
62
Contudo, esta afirmação, em seguida, é especificada por uma crítica radical sobre a
filosofia (ontologia) na tradição do pensamento ocidental. Sigamos nosso autor:
Viver significa ser. Mas o ser deve ser tal, deve estar
compreendido de tal forma que signifique a mesma coisa que a
vida. Contudo, o que caracteriza a filosofia ocidental, desde as
origens gregas até Heidegger, é que pressupõe em geral um
conceito de ser que, longe de acolher o conceito de vida, o
exclui de um modo insuperável. Por isso, o conceito de vida
continua suspeito diante dos olhos da filosofia; esta suspeita não
ocorre porque a vida é algo vago e duvidoso. Ela é a mais certa
de todas as coisas. Mas esta suspeita existe porque em sua
essência mais própria a vida se encontra constituída em uma
interioridade tão radical que, em verdade, apenas permite ser
pensada. Pelo contrário, o que define o ser ocidental é a
exterioridade. 88
Este é pois o choque entre a ontologia ou filosofia, concebida como Fenomenologia do
mundo, e a Vida. Enquanto a primeira identifica ser com exterioridade, ou pensa o ser a
partir desta objetivação, esquece a realidade da vida, ou simplesmente não percebe que
a vida em si mesma, ou seja, essencialmente, está constituída de uma interioridade
radical, quer dizer, que nunca poderá deixar de ser interioridade sob pena de deixar de
ser vida. Por isso, a Fenomenologia da Vida é irredutível a uma Fenomenologia do
mundo, e por isso mesmo se diz que na exterioridade do mundo nunca é possível
encontrar nenhuma vida, pois esta é, como dissemos, radicalmente interioridade. Ainda
sobre isso, em seu discurso sobre a Verdade do cristianismo, nosso fenomenólogo
afirma que o conceito de "ser", tal como o percebemos no pensamento ocidental, referese exclusivamente à verdade do mundo. Por este motivo, não designa nada mais que sua
aparição e se encontra impossibilitado de se referir à Verdade do Cristianismo, ou seja,
a Deus mesmo 89.
Neste sentido, como em Heidegger, Deus não se identifica com o ser da
filosofia ocidental. A fenomenologia de Henry não é uma volta à metafísica tradicional.
Ela expurga a confusão entre Vida e ser, sempre que esta for compreendida a partir da
88
89
Cf. Ibid, p. 20.
Cf. HENRY, C'est moi la vérité, p. 41.
63
ontologia, que se fundamenta na perspectiva de uma Fenomenologia do mundo. Por
isso, parece-nos que o sugestivo título da tese doutoral: "Do ser à vida", aplicado à
reflexão da práxis no âmbito puramente filosófico, aplica-se também, e com maior razão
a partir das últimas produções henryrianas, ao âmbito teológico. A reflexão teológica
ainda precisa completar sua passagem do "ser" à Vida. Tal processo pressupõe a virada
fenomenológica e epistemológica de uma Fenomenologia do Mundo à uma
Fenomenologia da Vida.
Não é novidade afirmar que a Fenomenologia da Vida é um dos frutos do
pensamento contemporâneo que brota da crítica ao conceito de ser como exterioridade.
Neste sentido, Henry se insere na tradição fenomenológica de Husserl e Heidegger.
Retomamos, brevemente, a discussão sobre a análise das estruturas do aparecer do
mundo. Tudo o que foi dito sobre o aparecer ek-stático, a noção de tempo e da própria
consciência intencional como objetivização. Como dissemos, consciência de algo é
representar este algo, objetivar este algo, isto é exteriorização. A consciência neste
sentido é sempre, como diz Husserl, 'consciência de'. A consciência sempre se dirige
para 'fora de si', a consciência intencional é sempre um lançar-se fora, é um 'ver' que
sempre dirige seu olhar para o objeto e somente existe enquanto este movimento
intencional constante, sempre se dirigindo para um 'afora'. Dito de outra forma por
Henry:
[...] a consciência é esta representação. O sujeito não é então
diferente do objeto, mas designa a condição fenomenal do
objeto, sua representação, sua objetividade mesma. Assim, a
subjetividade do sujeito no Ocidente não é mais que a
objetividade do objeto.90
Esta afirmação, certamente, soará como 'címbalo estridente' a muitos ouvidos. Contudo,
percebe-se aqui a denúncia henryriana da perda da subjetividade enquanto ipseidade
radical. A crítica de Henry a Merleau-Ponty, como dissemos, refere-se justamente à
volta à indeterminação da vida, quando se estende ao mundo aquilo que é próprio do
'corpo de carne vivente', sua interioridade enquanto ipseidade radical, sua identidade
consigo mesmo, irredutível a toda exterioridade. Por isso, o autor afirmará que, na
perspectiva da Fenomenologia da Vida, passar do 'eu sinto' ao 'se sente' quer dizer
90
HENRY, Fenomenología de la vida, p. 21.
64
esvaziar a vida de si mesma, fazer dela o que a filosofia ocidental sempre fez, identificála com o ser enquanto exterioridade, e assim, como impessoalidade.
Ainda na esteira da crítica à Verdade do mundo, o autor afirma que o processo
pelo qual a subjetividade do sujeito se revela finalmente idêntica à exterioridade, inicia
com o abandono, por parte de Descartes, de uma intuição valiosa:
Em Descartes, a apreensão da subjetividade como experiência
vivida, e portanto, como momento da vida sob o título de
'pensamento', apreensão que se evidencia na afirmação decisiva
segundo a qual 'sentir é também pensar', não preocupa por
muito tempo o filósofo. Descartes não se interroga sobre a
essência da ipseidade nem sobre a estrutura interior da
subjetividade, enquanto ela é idêntica à vida [...] na terceira
meditação desloca o interesse da investigação para a relação
problemática da consciência com seu correlato, do cogito ao
cogitatum [...] a problemática se desloca para este mundo do
pensado, e ao movimento em direção a este mundo, da
consciência reduzida a este 'movimento em direção a', ou seja,
reduzida à abertura da exterioridade.91
Ao citar este deslocamento do cogito ao cogitatum, do pensamento ao que é pensado,
poderíamos dizer, da Vida ao que é vivido, o que o autor denuncia neste parágrafo é o
abandono, por Descartes, de uma intuição valiosa e fundamental, a saber: aquela que
afirma a identidade do cogito com a Vida ao dizer que 'sentir também é pensar'
(Meditação segunda e princípios da filosofia, §9)92. Ao centrar sua atenção na relação
problemática entre o pensamento e a realidade, ou entre a ideia de coisa e a realidade da
coisa, Descartes abandona esta intuição primeira de grande utilidade para refundar a
filosofia ocidental a partir da Vida e sua interioridade. Não investigando a estrutura
interior da subjetividade, como diz Henry, Descartes coloca as bases para que a
subjetividade seja interpretada como esta consciência intencional que só existe enquanto
exterioridade, ou seja enquanto consciência de algo, enquanto movimento que se dirige
sempre para um fora de si.
91
92
Ibid, p.22.
Idem. Qualquer dúvida confira a citação do texto cartesiano no texto do próprio autor.
65
A Fenomenologia henryriana, não somente denuncia este esquecimento da Vida,
mas anuncia, a partir de Descartes, esta revelação extraordinária da Vida enquanto
interioridade. E apesar de estranha ao nosso mundo conceitual, a afirmação que
identifica sentir e pensar, aponta para a vida enquanto interioridade radical na qual é
impossível toda e qualquer exteriorização, toda e qualquer cisão entre vida e
pensamento, na qual o pensamento somente pode ser compreendido na imanência
radical da Vida impressiva a partir do 'corpo encarnado'. Ali, na Vida, todo pensamento
brota enquanto sentimento de uma auto-afecção originária. Por isso, pensar é sentir. O
autor afirma que a seguinte fase do processo pelo qual a subjetividade é transformada
em exterioridade acontece na fenomenologia husserliana:
A seguinte fase se refere a Husserl. Na grandiosa reafirmação
husserliana do projeto cartesiano, assistimos a um idêntico
deslocamento de interesse que vai da matéria da consciência (o
que Husserl chamou de Hyle) à intencionalidade, ou seja, à
triunfal irrupção da exterioridade.93
Não aprofundaremos aqui esta discussão, apenas situamos que a citação anterior se
refere à toda temática já antes trabalhada sobre a impressividade e a redução de todo
aparecer ao 'aparecer do mundo', tal como à volta do binômio tradicional matéria-forma.
Completando sua discussão sobre o tema, Henry voltará a Kant para afirmar:
Em Kant esse pensamento mostra seus limites mais evidentes.
A incapacidade da problemática kantiana no que se refere à
apreensão da vida, apareceu na famosa crítica do paralogismo
da psicologia racional, que priva de toda legitimidade ao
conceito de alma que é idêntico ao da vida. A crítica pretende
subtrair ao ser real do Eu ao mesmo Eu com o pretexto de que
somente conhecemos fenômenos e de que nosso Eu é um deles.
Mas a reivindicação da fenomenicidade, onde Kant fundamenta
sua argumentação, continua sendo tributária do conceito
ocidental de ser. Ser quer dizer para Kant ser dado à intuição e
representação, ou seja, projeção extática de um horizonte de
visibilidade. O fato de que o ser real do Eu não possa se exibir
93
Ibid, p. 23.
66
em uma intuição mostra precisamente que é irrepresentável, que
a essência da ipseidade é irredutível à exterioridade, que as
pressuposições da ontologia kantiana permanecem fechadas ao
ser da vida.94
Recordamos que todo nosso discurso filosófico se coloca em função de uma
reflexão genuinamente teológica. Por isso, toda esta exposição deve nos levar à uma
indagação teológica fundamental. Esta diz respeito à possibilidade da 'Revelação'
propriamente dita. Portanto, com nosso autor perguntamos: se a 'Revelação de Deus'
não somente não depende, como também se faz impossível que se dê a partir da
estrutura de visibilidade (revelação - fenomenologia) do mundo, como então podemos,
nós que vivemos e aprendemos a partir da Fenomenologia do mundo, ter acesso a ela?
Na tentativa de lançar luzes sob este interrogante nosso autor afirmará que, excluída a
possibilidade de se chegar à Verdade do cristianismo a partir da Verdade do mundo,
resta-nos apenas pensar que a revelação desta Verdade do cristianismo, sendo ela
mesma Deus, somente pode se dar: "ali onde se produz a auto-revelação mesma e do
modo em que ela o faz. Ali onde Deus vem originalmente a si, na fenomenalização de
sua fenomenicidade, como a auto-fenomenalização desta fenomenicidade"95. E ao
perguntarmos pelo como é possível que isso aconteça e onde isto mesmo pode
acontecer, temos a declaração que surpreende justamente por parecer banal:
Na vida, como sua essência. A vida não é nada mais que o que
se autorrevela, não algo que teria a propriedade de autorrevelarse, mas o fato mesmo de se autorrevelar, a autorrevelação
enquanto tal. Sempre que se produz algo como uma
autorrevelação, há vida. Sempre que existe vida se produz esta
autorrevelação. Então, se a revelação de Deus é uma
autorrevelação que não depende da verdade do mundo, e se
perguntamos onde acontece tal revelação, a resposta só pode
ser: na Vida e só nela. Aqui se dá a primeira equação
fundamental do cristianismo: Deus é Vida, a essência da Vida é
Deus. 96
94
Ibid, p.24.
Cf. HENRY, C'est moi la vérité, p.39
96
Idem.
95
67
Eis aqui a estrita conexão entre Fenomenologia da Vida e Cristianismo. A esta
temática, no auge da maturidade intelectual, Henry dedicou seus últimos anos de
reflexão fenomenológica. Com modéstia, nossa dissertação pretende avançar nesta
pesquisa, afim de elucidar os fundamentos Teológicos deste pensamento tão original e
fascinante denominado Fenomenologia da Vida. Colocados os pressupostos filosóficos,
passamos ao momento seguinte de nossa empreitada, a saber: o aprofundamento da
reflexão entre Fenomenologia da Vida e Cristianismo a partir da categoria
fenomenológica fundamental da 'Revelação'.
68
CAPÍTULO 2: FENOMENOLOGIA DA VIDA E CRISTIANISMO: A
REVELAÇÃO SOBRE NOSSA HUMANIDADE
Nosso segundo capítulo tem por objetivo elucidar ainda mais a possibilidade do
fecundo diálogo entre o pensamento de Henry e a tradição cristã. Trataremos
explicitamente da relação entre Fenomenologia da Vida e Cristianismo, visando
tematizar a fantástica revelação sobre nossa humanidade. Faremos isto a partir de três
momentos.
Partindo do discurso anterior, no que se refere aos três pressupostos da
fenomenologia, retomaremos, em um primeiro momento, a relação entre fenomenologia
e ontologia com a perspectiva de vislumbrar possíveis implicações teológicas da tese
fenomenológica. Questões teológicas de fundo, tais como, criação
e revelação,
começaram a emergir. A afirmação da opção henryriana, a de buscar a fundamentação
de sua Fenomenologia da Vida na tradição cristã, remeter-nos-á ao segundo momento
deste capítulo que terá como foco a questão da fenomenologia de Cristo e sua função
soteriológica. O sabor teológico de nossa pesquisa começa a ganhar corpo neste
momento quando entrarmos em questões clássicas da tradição cristã. A autorrevelação
da Vida absoluta no Logos Primordial encabeça a discussão deste segundo passo. Em
seguida trataremos também da dimensão da Palavra viva de Deus e do Deus relação,
buscando destacar, no discurso henryriano, algo da perspectiva trinitária. Todas as três
perspectivas deste segundo momento ( Autorrevelação da Vida no Logos, a Palavra e a
perspectiva trinitária) são desdobramentos necessários da rica reflexão sobre a
fenomenologia de Cristo e sua função soteriológica.
Uma vez que Cristo se estabelece, a partir de sua fenomenologia, como condição
de possibilidade para a compreensão de nossa realidade humana, podemos abordar com
mais clareza nossa condição humana primordial. O terceiro passo de nosso discurso
coloca em foco a reflexão acerca de uma antropologia fundamental. Esta discussão
encontra seu ponto de partida na tematização de nossa condição primordial de filhos no
Filho. Inseridos neste horizonte, abordaremos a questão da ilusão transcendental do ego
69
como consequência do esquecimento de nossa condição de filhos. Tudo isto nos
conduzirá ao último tópico, no qual desenvolveremos com maior acuidade a questão de
uma antropologia fundamental.
1 Fenomenologia e ontologia: possíveis implicações teológicas
Retomando
a
Indeterminação
dos
pressupostos
fenomenológicos
da
fenomenologia, reconhecida nos três princípios que ela se deu a si mesma, um deles, o
primeiro especificamente, suscita-nos uma questão. Esta se refere à relação entre
ontologia e fenomenologia. Nesta relação temos a primazia da segunda sobre a primeira,
como se disse anteriormente: a fenomenologia funda a ontologia. Ao iniciarmos este
capítulo, que tratará de forma específica a relação entre fenomenologia e teologia, e
ainda mais diretamente, da relação entre Fenomenologia da Vida e Cristianismo,
pensamos oportuno iniciar a reflexão desta parte da pesquisa com uma provocação, na
verdade uma pergunta: considerando este primeiro princípio, olhando de frente nossa
reflexão sobre a relação entre as duas disciplinas em questão (Fenomenologia da Vida e
Teologia), perguntamo-nos, qual a implicação Teológica desta máxima ou princípio
fenomenológico que subordina a ontologia à fenomenologia?
Ressaltamos que existe de fato uma implicação Teológica da tese
fenomenológica que propõe a Fenomenologia como fundamento da Ontologia.
Pensando este princípio fenomenológico no campo teológico, podemos dizer que, na
esfera do cristianismo, a Ontologia também aparece, de certa forma, subordinada à
Fenomenologia. Em termos próprios isso significa dizer que a subordinação, em
Teologia, de uma à outra está na afirmação da fé segundo a qual a Revelação de Deus
que é Vida (no sentido absoluto), funda toda vida, toda existência. Neste sentido, faz-se
possível afirmar um vínculo estreito entre Revelação e Criação. Uma auto-implicação,
mas com privilégio da primeira sobre a segunda, a criação, o ser, a existência e o mundo
só existem porque Deus se revela, porque a Vida vem a nós, se faz carne. Como
anteriormente ressaltamos, Henry destaca a importância e o limite deste primeiro
princípio. Afirma que, se por um lado, a relevância de tal princípio está na inversão ou
subordinação da Ontologia à Fenomenologia, seu limite aparece justamente no que se
chama de indeterminação fenomenológica fundamental. Isto é, o fato de que tal tese
70
nomeia o aparecer, mas não possibilita a compreensão da origem deste mesmo aparecer,
não diz, em linguagem henryriana, "como aparece o aparecer"97.
A brilhante intuição do supra citado trabalho sobre Michel Henry, mostra-nos a
relevância deste primeiro princípio para o pensamento filosófico na sua complexa busca
pela verdade. Na tese intitulada "Do ser à vida" o autor apresenta a crítica henryriana
que afirma a fenomenologia como ponto de partida para a compreensão da existência98.
A Fenomenologia da Vida, neste sentido, apresentar-se-á, como uma possibilidade de
hermenêutica existencial. A presente dissertação consiste justamente em elucidar que a
Fenomenologia da Vida, em todo seu potencial de hermenêutica existencial, lança mão
de intuições fundamentais do cristianismo. Ousamos ainda dizer que, com base em
nossas pesquisas, este pensamento fascinante de Henry, não somente se apropria de
algumas intuições fundamentais do mundo cristão, mas que se fundamenta ele mesmo a
partir do princípio dos princípios. Este, refere-se à equação cristã que identifica Vida e
Verdade com o próprio Deus. Por isso, não nos parece absurdo propor que um dos
capítulos deste trabalho acene como tema chave a complexa e fecunda relação entre
Fenomenologia e Cristianismo. Nesta seção temos a oportunidade de atualizar e
explicitar o título da própria dissertação cuja intuição consiste em pensar a
Inteligibilidade Primordial a partir dos pressupostos teológicos e antropológicos da
Fenomenologia da Vida. Portanto, nossa pesquisa se apresenta também como um rico
diálogo entre Antropologia, Cristianismo e Fenomenologia.
Para pensar a revelação sobre nossa humanidade, a partir da relação entre
Cristianismo e Fenomenologia da Vida, precisamos ter em mente a questão da
desqualificação do poder de 'revelação' próprio da fenomenologia do mundo. Isto quer
dizer que nosso discurso trará sempre o binômio "aparecer do mundo" e 'invisibilidade
da Vida'. Em outras palavras, permanece latente o conflito entre Fenomenologia do
mundo e Fenomenologia da Vida. Sabemos que o pensamento henryriano, ao apontar a
indigência ontológica do horizonte de visibilidade do mundo, opera uma inversão dos
pressupostos que guiam a tradição do pensamento ocidental. Por isso, destacamos o
quanto possível que a inversão fenomenológica operada por Henry, necessariamente,
também se inscreve como guinada epistemológica. A interpretação da existência a partir
da Fenomenologia da Vida conta com outro tipo de sabedoria que não é, efetivamente, a
deste mundo. Contudo, não devemos pensar ingenuamente que a reflexão henryriana
97
98
Cf. HENRY, Incarnation, pp. 41-43.
Cf. FURTADO, Do ser à vida, 711p.
71
introduz uma espécie de neomaniqueísmo que despreza radicalmente a epistemologia
moderna, nomeada por ele como Fenomenologia do mundo. O que o autor propõe nesta
jornada não pode ser entendido como desqualificação do poder de 'revelação' do mundo.
Ainda que a comparação pareça infeliz, ousamos dizer que, como Kant pensou e
sistematizou a teoria do conhecimento a partir da sua Crítica da razão pura e Crítica da
razão prática; também Henry pensa a compreensão da existência a partir de dois modos
de manifestação, que ele denomina Fenomenologia do mundo e Fenomenologia da
Vida. Portanto, o objetivo da empreitada henryriana não consiste, de forma alguma, em
excluir, abominar ou desprezar a fenomenologia do mundo, mas apenas em apontar para
uma manifestação mais originária, a manifestação da Vida.
Sobre a afirmação de que a inversão fenomenológica proposta por Henry não
significa o desprezo
pela Fenomenologia do mundo, mas possui a intenção de
circunscrever de forma rigorosa sua competência e domínio, convém lembrar ainda sua
genuína intuição. Esta se manifesta a partir do postulado de que existe uma Verdade
original que se manifesta em uma forma Original de revelação. Verdade original e
forma Original de revelação coincidem em Henry com a Vida e sua Autorrevelação
originária. Ao propor sua Fenomenologia da Vida a partir deste postulado,
consequentemente, Henry questiona os conceitos fenomenológicos que se encontram no
fundamento de todo pensamento. Constatando que os mesmos pertencem a um modo
secundário de revelação, que é a Fenomenologia do mundo, ou o ver ek-stático a partir
do qual se funda a epistemologia moderna, Henry propõe a Fenomenologia da Vida
como nova epistemologia. O fascinante para o discurso teológico é que ao fazer tal
proposta, Henry retoma a tradição cristã afirmando, categoricamente, que as intuições
do cristianismo são o ponto de partida para tal inversão99.
Temos então que a empreitada henryriana aponta para a circunscrição rigorosa
da Fenomenologia do mundo tal como seu domínio e competência. O aparecer do
mundo, que tem dito, nos últimos tempos, através da mentalidade cientificista, a última
palavra, precisa ser recolocado como um discurso, não como o discurso. Neste sentido,
evocamos aqui a ajuda de William Desmond, com sua filosofia metaxológica100. Todos
os discursos que aparecem nesta Fenomenologia do mundo: a arte, a religião, a
filosofia, e principalmente, a ciência, precisam perceber que são vozes secundárias.
99
Cf. HENRY, C'est moi la vérité, pp.109-110.
Cf. DESMOND, William. A filosofia e seus outros: modos do ser e do pensar. São Paulo: Edições
Loyola, 2000. nota 1, p. 21.
100
72
Neste sentido, são vozes metaxológicas, ou seja, discursos intermediários, que se
encontram em meio a outros discursos, outras experiências. Ainda mais, que possuem,
na linguagem judeu-cristã, uma função profética, enquanto sua voz, seu "poder de
expressão" somente se compreende como expressão de um "poder Primordial". Que
toda sua inteligibilidade é reflexo de uma Inteligibilidade Primordial que nunca se
mostra nesta estrutura ek-stática do aparecer do mundo.
A tese defendida por Henry em suas últimas produções acadêmicas (Eu sou a
Verdade- Encarnação- Palavras de Cristo), aponta para o Cristo como horizonte de
compreensão de toda existência encarnada. Este pensamento possui profunda sintonia
com a verdade fundamental professada pelo cristianismo. Esta, por sua vez, diz respeito
à famosa formulação teológica que afirma a conexão profunda entre a Verdade em Deus
e a Verdade do homem, a relação entre Antropologia e Teologia. Nossa humanidade, o
ser humano como existência encarnada, encontra seu horizonte de compreensão a partir
de Cristo. Ele é o critério hermenêutico de toda antropologia cristã. Pensando, portanto,
a implicação teológica da tese que afirma a primazia da Fenomenologia sobre a
Ontologia, parece-nos conveniente que, antes de qualquer palavra sobre o homem,
digamos, com Henry, alguma palavra sobre a possibilidade de alguém como Cristo.
Destarte, nosso próximo tópico diz respeito à fenomenologia de Cristo e sua função
soteriológica.
2 Fenomenologia de Cristo: função soteriológica
A fim de pensar a fenomenologia de Cristo traçamos neste tópico um caminho.
Nele abordaremos a "presença" de Cristo a partir de três perspectivas. Cabe ressaltar
que não devemos entendê-las em ordem lógica ou cronológica, isto seria um absurdo,
visto que contradiria todo nosso discurso sobre a virada fenomenológica de Henry.
Esforcemo-nos, pois então, por compreendê-las a partir do postulado da Teologia
Fundamental, retomado pela Fenomenologia da Vida de Henry, ou seja, nosso ponto de
partida é a Autorrevelação da Vida. Desde este horizonte, abordaremos, primeiro, o
discurso henryriano sobre a geração do Arqui Filho na Vida. Trata-se da Autorrevelação
da Vida absoluta no Logos Primordial. Aqui aparecerá a categoria fenomenológica
fundamental que afirma a interioridade fenomenológica recíproca do Pai com o Filho
(Jo14,6-10). Este jargão da Fenomenologia de Henry é facilmente identificado com a
73
expressão "comunicação de idiomas", cunhada no contexto da discussão cristológica
sobre a identidade entre Pai e Filho. O importante é ressaltar aqui que, mesmo uma
cristologia que parece descendente, no fundo, traz em si um movimento ascendente,
uma vez que toda reflexão sobre a Vida do Pai e do Filho não é possível sem a
manifestação do Espírito de Cristo encarnado no meio de nós. Jesus, de fato, é quem
nos revela o Pai, ele é quem nos diz: "quem me viu, viu o Pai" (Jo14,6-10). O passo
seguinte desta reflexão será pensar a fenomenologia de Cristo a partir da Palavra da
Vida encarnada. Jesus, o Cristo, é a palavra da Vida proferida aos homens. O tema da
palavra se conecta estritamente ao tema da encarnação, e portanto, à própria revelação.
Nosso discurso contará aqui com a reflexão henryriana plasmada em seu livro
"Palavras de Cristo", tal como com a luz da reflexão eclesial respaldada pela "Dei
Verbum". A fenomenologia de Cristo, pensada a partir do rosto relacional de Deus
revelado por Jesus, será o último tema a ser tratado nesse tópico. Tratar-se-á, aqui, da
dimensão trinitária. A presença de Cristo, seu 'aparecer' controverso para a
Fenomenologia do mundo, não é solitário. Cristo não vem só, ele vem em nome do Pai
e toda sua ação acontece no Espírito. Portanto, a dimensão trinitária representa
teologicamente o ápice da revelação em Cristo. Ele, ao se manifestar, nos mostra, pela
ação do Espírito, o rosto do Pai. Revelação é relação.
Antes, porém, de iniciarmos nosso caminho, convém ressaltar algumas questões
preliminares. Elas são molduras que apontam o horizonte limite de nossa reflexão.
Iniciamos pela questão da encarnação, como retomada da tese que provoca a
investigação fenomenológica de Henry. A fenomenologia de Cristo, pensada a partir de
sua função soteriológica, traz à tona a sempre atual sentença de Tertuliano que afirmara
de maneira categórica: "caro salutis est cardo"- a carne é o eixo da salvação101. No seu
discurso sobre a defesa da carne de Cristo, este autor haverá de haurir a impactante
verdade da revelação cristã: a encarnação acontece em favor de nossa salvação. Deus se
revela, e em sua autorrevelação na carne do Filho, opera a salvação da nossa
humanidade. As controvérsias sobre a dupla natureza de Cristo, que, para Lonergan,
inscrevem-se dentro do quadro de um realismo ingênuo102, no processo de evolução do
dogma e diferenciação da consciência, haverá de nos fornecer intuições fundamentais
para uma melhor percepção da fenomenologia de Cristo. A primeira destas intuições se
101
Cf. TERTULIANO. La carne de Cristo. Traducción Luigi Rusca. Apologeticum de carne Christi.
Milano: Biblioteca Universale Rizzoli, 1984.
102
Cf. LONERGAN, The way to Nicea, 143p.
74
encontra no debate sobre a virgindade de Maria. Segundo Henry, a discussão da
Theotokos (mãe de Deus), ou os conflitos gerados em torno desta temática, devem nos
levar a pensar uma fenomenologia do nascimento. Esta, só pode ser elaborada a partir
do discurso de Cristo sobre si mesmo. Neste sentido, parece-nos conveniente dizer que
o pensamento henryriano possui uma simpatia com a tese de Lonergan sobre a
diferenciação da consciência no processo de elaboração dogmática. Isto porque, Henry
também afirma que uma vez lançada a possibilidade de uma Fenomenologia da Vida, a
discussão sobre as duas naturezas de Cristo pode cair num "sem sentido", uma vez que
não pode existir uma natureza humana vivente, separada da Vida. Esta discussão ficará
mais clara quando abordarmos o nascimento do Ego transcendental e pensarmos o
homem na sua condição de filho no Filho.
De todas as maneiras, para nosso autor, parece claro que a questão da
virgindade de Maria representa somente o reflexo da essência da verdade revelada
segundo o cristianismo. Para onde aponta o discurso sobre a virgindade de Maria?
Aponta para a questão crucial da possibilidade de alguém como Cristo, para a
possibilidade do Verbo encarnado. E ao apontar para este horizonte provoca uma
fenomenologia da encarnação que, pensando a geração do Verbo da Vida, pensa
também a condição do homem como vivente, nascido da Vida. É neste sentido que
Henry afirma que a verdadeira mensagem captada da controvérsia mariológica diz
respeito à nossa condição de filhos e propõe uma ressignificação do conceito mesmo de
nascimento, pois: "O nascimento não consiste nesta sucessão de viventes que pressupõe
a vida em si, mas consiste na vinda à vida de cada vivente a partir da Vida mesma."103.
Está, pois, lançada a ressignificação não somente do conceito de nascimento, mas
também do conceito de filiação. Veremos porque Jesus insiste em dizer que na terra
ninguém pode ser chamado de Pai, pois um só é o Pai (Mt 23,9). Assim mesmo,
perceberemos porque ele faz questão de romper com a genealogia humana,
desvinculando a maternidade e os laços de fraternidade da questão sanguínea e
vinculando-os à vontade do Pai (Mc 3,33-35). Intuímos, portanto, que como em outros
assuntos, sobre a compreensão do nascimento, também a Fenomenologia da Vida
apresenta um horizonte radicalmente diferente daquele defendido pela Fenomenologia
do mundo. Enquanto esta pensa o nascimento como sucessão de viventes que
pressupõem a vida em si, a Fenomenologia da Vida pensará a fenomenologia do
103
Cf. HENRY, C'est moi la vérité, p.91.
75
nascimento a partir da Arquigeração transcendental do Arqui-Filho (Jo 1,13). É
importante, porém, pensar que ao recusar a questão da filiação do homem ou de seu
nascimento a partir do próprio homem, não se faz isto em razão de um maniqueísmo
que advoga o sangue e a carne como maldade. A única razão de se propor uma
fenomenologia do nascimento, a partir da Fenomenologia da Vida, radica no fato de que
este sangue e esta carne são viventes, mas não são a Vida. Como tal, portanto, nossa
carne não pode gerar vida, sendo ela mesma gerada pela Vida. Por isso, afirmar-se-á de
maneira inequívoca que filho e nascimento somente existem na Vida:
Situar os conceitos de nascimento e de Filho sob a salvaguarda
do
Arqui-Filho
transcendental
é,
de
fato,
referir-se
necessariamente à Vida absoluta cujo Arqui-Filho não é mais
que o autocumprimento sob a forma de sua autorevelação.
Trata-se de apelar inevitavelmente a outra verdade distinta
daquela do mundo, a essa verdade da Vida fora da qual não
existe,
de forma
alguma,
nascimento,
filho,
nenhuma
possibilidade de vivente.104
Dizemos, portanto, que a incompreensão das palavras de Cristo se dá porque os
homens somente percebem sua condição humana a partir do horizonte de visibilidade do
mundo. Por isso mesmo, a palavra de Deus, ao se revelar com Cristo e como Cristo,
causa estranhamento. Insuportável aos ouvidos dos homens, o é, por ser também
incompreensível. Sua incompreensibilidade se deve ao fato de que tal palavra possui
outra origem, se inscreve em outro horizonte que nada tem a ver com o campo de visão
deste mundo (Jo, 6,60). Perceber que estas duras palavras possuem o segredo da Vida
eterna é um dom inexplicável, mas em Cristo, faz-se possível a todos os homens.
Contudo, deste tema trataremos mais adiante.
Quanto à relação entre a Fenomenologia de Cristo e sua função soteriológica,
Henry afirma que João formula fenomenologicamente a tese da soteriologia cristã em
três versículos105, a saber: Jo 1,14.18; 1Jo 1,1. O primeiro deles, refere-se à tese que
provoca nossa investigação. Nela se afirma que o Verbo se fez carne e nos manifestou
sua glória ou, segundo o postulado de Tertuliano, fez-se carne para manifestar a sua
glória. O segundo versículo diz respeito a Jo 1,18 e por sua vez nos diz que ninguém
104
105
Ibid, p.94.
Cf. Ibid, p.104.
76
jamais viu a Deus e que a possibilidade de sua revelação somente pode se dar via seu
Filho único que, habitando no seu seio, no-lo dá a conhecer. O último versículo é da
carta de João (1Jo 1,1). Trata-se de um discurso da comunidade cristã que testemunha o
mistério inefável do Verbo da Vida. Curioso é que nesta narrativa o evangelista fala da
revelação a partir dos sentidos: "o que viram nossos olhos, o que nós escutamos, o que
nossas mãos tocaram". Somente depois ele conclui: "Isso vos anunciamos". Tudo isso
se diz do Verbo da Vida, todas as coisas ditas se referem à manifestação da Vida:
"Porque a Vida se manifestou' (1Jo 1,2). O conteúdo e o próprio anúncio coincidem. A
vida se anuncia a si mesma ao se Autorrevelar no seu Filho. Anunciam a própria Vida.
A finalidade do anúncio é, como vemos, a comunhão entre os homens que, por sua vez,
acontece na comunhão com o próprio Pai e com o seu Filho. É belo perceber que tudo
acontece para que nossa alegria seja plena, completa. É dizer, tudo ocorre em vista da
bem aventurança, a alegria aqui, não resta dúvida, só pode ser pensada como salvação.
Estes três textos, portanto, revelam definitivamente a fenomenologia de Cristo a partir
de sua função soteriológica. Cristo realmente é a Alegria dos homens como bem
expressou Sebastian Bach em sua magnífica arte musical. Então, com Henry podemos
dizer:
A fenomenologia de Cristo se elabora como segue: ao não se
mostrar no mundo nenhum Pai verdadeiro (a Vida), a vinda de
Cristo a este mundo, segundo a tese do cristianismo, tem por
finalidade revelar para os homens o Pai verdadeiro e assim
salvá-los [...] A significação religiosa do cristianismo, que é a
de propor aos homens uma salvação, pode ser compreendida
como uma fenomenologia, porque se trata de tornar manifesto o
Pai ao mundo.106
A fenomenologia de Cristo nos lança ainda em direção a outro tema igualmente
instigante, tanto quanto fundamental para nossa vida de fé. Referimo-nos à questão da
visibilidade do mundo e do olhar da própria fé. A fé se nos propõe nas Escrituras como
um modo de ver totalmente diferente. Assim, a carta aos Hebreus afirma que: " A fé é
um modo de possuir o que ainda se espera, a convicção acerca de realidades que não
se veem" (Hb 11,1). A partir da exegese de (Jo 9,35-38) Henry reafirma a tese cristã
segundo a qual o ato de crer independe da fenomenologia do mundo. De fato, é curioso
106
Ibid, pp. 103-104. E diz o autor que ao mesmo tempo que esta fenomenologia da salvação revela o Pai
aos homens no mundo, também revela os homens a si mesmos, ou seja, torna manifesto aos homens
aquilo que todo homem é, a saber: filho no Filho.
77
notar que o homem outrora cego, mesmo curado, permanece cego a ponto de perguntar,
olhando para Jesus, "quem é, Senhor, para que eu nele creia?". Esta permanência na
cegueira, segundo Henry, é a afirmação de que mesmo a inteireza da possibilidade
fenomenológica do 'ver' deste mundo, representa nada mais que a cegueira para a
verdade da Vida, que jamais se mostra na estrutura ek-stática do mundo. Assim mesmo,
dirá Henry, que o "mostra-nos o pai", dito por Filipe (Jo 14,6-10), representa a típica
petição de quem está preso às estruturas da fenomenologia do mundo107. Rahner, em
seu discurso sobre a fenomenologia da nossa relação com o Cristo, como reflexão que
precede o pensamento sobre a cristologia transcendental, dir-nos-á que o ponto de
partida para tal encontro radica na relação de fé existente de fato. Afirma com
convicção que a fé precede a teologia enquanto reflexão. E, numa conexão
extraordinária com o pensamento henryriano sobre a Fenomenologia da Vida, o teólogo
alemão afirma que isso assim ocorre porque "em nenhuma parte da existência do
homem a reflexão teórica consegue abranger exaustivamente o ato originário da
Vida"108. Podemos afirmar contundentemente que o vivido é sempre mais rico que o
formulado. Esta afirmação teológica de Rahner possui para nós valor inestimável. Uma
vez que com tal sentença podemos vislumbrar a aproximação do ato existencial da fé,
em Rahner, da Fenomenologia da Vida, em Henry. Neste sentido, ousamos dizer que a
fé faz parte deste velho e sempre novo olhar, ela se opõe à Fenomenologia do mundo
enquanto horizonte de visibilidade ek-stática. E diríamos, numa sentença paradoxal e
incompreensível para os homens deste mundo, que a fé é a possibilidade de ver o
invisível. O olhar da fé funda o horizonte teológico, mas não se reduz a ele. Ela
ultrapassa a esfera da reflexão. Sendo um "poder" que encontra suas raízes no próprio
mundo da Vida (Deus), ela nos conduz, reconduz, até Ele. A fé, adiantando aqui parte
do nosso discurso, é o que nos permite recordar nossa condição de filhos. Gerados na fé,
em Cristo, somos inseridos no seio da Vida. Nesta perspectiva, ouçamos uma vez mais a
voz de nosso autor:
Ver o Pai se transforma na interioridade fenomenológica
recíproca do Pai e do Filho e esta interioridade [...] conecta-se
ao conceito de crença [...] Crer não significa um saber menor,
homogêneo ao mundo, mas ainda irrealizado ou imperfeito, de
107
Cf. Ibid, pp.107-108.
RAHNER, Karl. Curso fundamental da fé: introdução ao conceito de cristianismo. São Paulo: Paulinas,
1989, pp. 243-244.
108
78
modo que aquilo no qual se crê necessitaria ainda provar sua
realidade ou sua verdade se mostrando de verdade. Crer não é a
substituição de um ver ainda ausente, não designa uma espera
daquilo que ainda não vi, mas que um dia verei na verdade do
mundo. 109
O ato de crer e, portanto, a Fé, segundo Henry, deve ser entendida como um
outro tipo de ver. Trata-se de uma outra fenomenologia, distinta radicalmente daquela
do mundo. Nesta perspectiva, o "ver face a face" de 1Cor 13,12-13 precisa ser pensado
a partir de um novo horizonte. A interação mesma entre Fé, Esperança e Caridade toma
outro matiz. Isto porque, como bem diz o autor, a Fé ou o ato de crer, na perspectiva da
Fenomenologia da Vida, não pode ser interpretada como ausência de visão, mas como
outro modo de ver, completamente distinto do ver deste mundo. O "ver de maneira
confusa e limitada" é uma característica daquele "ver" próprio da Fenomenologia do
mundo. O conceito teológico de visão beatífica precisa ser reconsiderado e purificado
no nosso imaginário. Esta visão, em se tratando de Deus, não é conveniente que seja
pensada a partir da Fenomenologia do mundo. Nossa fé, neste sentido, paradoxalmente,
não deve esperar ver nada mais que aquilo que agora vê, nenhum outro ver será
possível. Não haverá substituição, nem visão mais completa daquilo que agora vemos a
partir da Autorrevelação do Verbo. De fato, deveríamos fazer sempre nossas as palavras
de Simeão "meus olhos já contemplaram a salvação", por isso mesmo posso partir em
paz, já tudo tenho visto (Lc 2,29-32). A Esperança, enquanto virtude teologal, segundo
a perspectiva henryriana, não é conveniente que seja pensada como espera de uma nova
visibilidade110. Por isso, nossa fé afirma a plenitude da revelação em Jesus Cristo111. A
partir da Fenomenologia da Vida esta asserção, tantas vezes questionada como
possibilidade de fechamento por parte dos cristãos, agora se faz mais compreensível.
Somente quem está preso ao paradigma da Fenomenologia do mundo, a este ver que
nada vê, espera outra visão, ou compreende a fé como ausência de visão. Em Jo 14,19
Jesus afirma que o mundo não mais o verá, mas que seus discípulos o seguirão vendo.
Justifica que esta contemplação (visão) somente é possível porque ele vive e porque nós
também viveremos. O mundo, ausente de vida, os corpos opacos da redução galileana, a
109
HENRY, C'est moi la vérité, p.108.
Ao longo da pesquisa notamos que esta perspectiva henryriana pode nos lançar numa controvérsia
sobre a escatologia. Poderíamos supor que sua teoria dá pé para afirmar uma escatologia realizada.
Contudo, por não ser este o tema desta dissertação, não desenvolvemos o tema. Deixamo-lo apenas como
intuição para uma futura pesquisa.
111
Cf. DEI VERBUM sobre a revelação divina ( n.3-4). In Compêndio do vaticano II constituições,
decretos e declarações, Petrópolis: Vozes, 1969, pp122-123.
110
79
ciência objetiva que esquece e despreza o postulado da Inteligibilidade primordial, que
nada mais é que a Vida geradora de todo vivente, não poderão, de fato, ver a Cristo.
Prosseguindo na mesma esfera da reflexão sobre a fé, parece-nos plausível a
exegese realizada por Henry, no que diz respeito à ruptura, no Prólogo joanino, do nexo
entre verdade e mundo. Na Fenomenologia do mundo, Luz, que é igual à verdade, ou
horizonte a partir do qual se dá todo aparecer, se conecta intimamente ao conceito de
mundo. Somente existe um mundo, porque existem coisas que aparecem neste mundo.
Agora, as coisas aparecem neste mundo somente porque elas se mostram através de sua
luz, sem luz (que é igual à verdade) não existe mundo, ou melhor, não existe nenhuma
possibilidade de aparição de coisa alguma. Segue-se, portanto, como bem lembra
Henry, que quando o evangelista anuncia que a Luz verdadeira veio a este mundo,
ocorre uma ruptura. A mesma se esboça como segue: se a Luz verdadeira veio a este
mundo é porque não pertencia ao mesmo. No prólogo de João se fala, então, de outra
luz. De fato, se a luz do mundo pertence à própria estrutura do aparecer do mundo, esta
não pode vir a ele, pois já constitui a sua essência. A luz que veio ao mundo, por
conseguinte, é outra luz, uma Luz que deve ser, então, Primordial. E se, como dissemos,
a luz se conecta fenomenologicamente à categoria de verdade, ao dizer que a Luz
Primordial veio ao mundo, João afirma que a Verdade Primordial veio ao mundo.
Segundo nosso autor, da ruptura do nexo entre verdade e mundo no Prólogo de João,
nasce a inversão dos conceitos fundamentais da fenomenalidade, da qual o cristianismo
é somente consequência. 112
De forma admirável a Fenomenologia de Cristo nos lança em uma aporia
fenomenológica radical. Esta se refere à impossibilidade de Cristo se mostrar neste
mundo. Assim, a tese não somente aponta o limite de conhecimento do ser humano, mas
também pode ser percebida como a afirmação da impossibilidade do acesso a Cristo
pelo ver fenomenológico do mundo. Contudo, esta aporia desaparece do pensamento
henryriano quando, ao avançarmos em seu raciocínio, deparamo-nos com o conceito de
"Nascimento transcendental do homem na Vida". De fato, sob a visão do mundo,
nenhum acesso a Cristo é possível. Por isso, Ele não é reconhecido, como afirma João
em seu Prólogo (Jo1,10-11): "o mundo não o reconheceu". Porém, ao percebermos o
homem a partir de seu 'Nascimento transcendental', veremos que ele, efetivamente, tem
112
Cf. HENRY, C'est moi la vérité, pp.110-111.
80
acesso a Cristo e assim, à Vida, pois nasceu dela e está feito nela e para ela.
Aprofundaremos este tema no segundo momento deste capítulo113.
Temos visto que, indubitavelmente, a Fenomenologia de Cristo descortina a
relação da Vida com o vivente. Este é o tema central do cristianismo. A partir desta
reflexão surge a possibilidade de compreensão da distinção entre geração e nascimento.
Estamos seguros que o discurso fenomenológico acerca de Cristo se elabora a partir da
afirmação da geração do Primeiro vivente na Vida114. Cristo é o ArquiFilho ou o Filho
Primordial da Vida. Ele é o único gerado não criado. A tese henryriana afirma também
que a Fenomenologia de Cristo descortina o horizonte para uma fenomenologia do ser
humano como filho no Filho. Somente a partir daqui podemos ressignificar o conceito
de nascimento. Por tudo que temos pensado, parece-nos conveniente concluir este
tópico abrindo uma nova perspectiva através do seguinte pensamento: a Fenomenologia
de Cristo nos remete sempre à questão da Arquigeração do Verbo na Autogeração da
Vida absoluta. Portanto, no esboço mais aprofundado desta fenomenologia, nosso
primeiro passo consiste em abordar, a partir do pensamento henryriano, a reflexão cristã
acerca da Autorrevelação da Vida Absoluta no Logos primordial.
2.1 A autorrevelação da Vida Absoluta no Logos Primordial
A Fenomenologia de Cristo não pode ser pensada fora da dinâmica da
autorrevelação de Deus no Logos Primordial. Por outro lado, a questão da
Autorrevelação da Vida absoluta apenas permite ser ideada a partir do evento Cristo.
Por isso mesmo, situamos esta temática dentro da seção da Fenomenologia de Cristo. A
partir da cristologia percebemos a graça de Deus que se autorrevela no Filho, e que, ao
fazê-lo, abre também caminho para a compreensão da nossa humanidade. Segundo
Rahner, o homem é percebido neste processo como "evento da livre e indulgente
autocomunicação de Deus". Chamamos a atenção para o ponto de conexão entre
Rahner e Michel Henry ao abordar um tema que somente pode ser tocado no despojo de
todo orgulho intelectual e da pretensão de compreensão daquilo que, por nós mesmos,
não poderíamos compreender. Rahner dirá que o homem, como evento da livre e
indulgente autocomunicação de Deus, pode ser pensado a partir de três perspectivas:
como ouvinte da palavra, como ser diante do mistério absoluto e como ser radicalmente
113
114
Cf. Ibid, p.119.
Cf. Ibid, p.73.
81
ameaçado pela culpa115. Em seu Curso Fundamental da Fé, o teólogo situa
didaticamente esses três temas como passos prévios para a abordagem daquilo que
constitui a mensagem cristã por excelência. Embora não utilize as mesmas palavras e
metodologia, Henry oferece, em seu pensamento, destaque especial a estes três temas: o
homem situado frente ao mistério do absoluto, constitui, no fundo, o tema de toda a
produção de uma Fenomenologia da Vida; o homem como ouvinte da Palavra, tratado
especificamente em seu livro Palavras de Cristo 116; por fim, a ilusão transcendental do
ego, pode ser pensada como o homem frente ao mistério do esquecimento da sua
condição de filho, fonte também de culpabilidade.
A impossibilidade de se aceder à Vida (Deus) pelo pensamento ou pelo
horizonte de visibilidade do mundo constitui o cerne da reflexão fenomenológica
henryriana. Porque o cristianismo possui seu centro de gravidade na relação da Vida
com o vivente, Henry propõe uma Fenomenologia da Vida como condição de
possibilidade para a compreensão da mensagem cristã117. A Vida será pensada sempre
como Verdade a partir da autorrevelação.
Segundo o cristianismo, não existe mais que uma só Vida, a
única essência de tudo o que vive. Não se trata de uma essência
imóvel ao modo de um arquétipo ideal como o de um círculo
presente em todos os círculos, mas de uma essência atuante que
se atualiza com uma força invencível, fonte de potência,
potência de geração imanente a tudo o que vive e que não cessa
de lhe dar a vida.118
Sobre a impossibilidade de acesso à Vida pelo pensamento, já tratamos em nosso
primeiro capítulo. Sabemos que tal situação ocorre porque existe uma distinção
fundamental entre a Fenomenologia do Mundo e a Fenomenologia da Vida. Trata-se de
dois modos de 'visibilidade' radicalmente distintos. De tudo isto surge, segundo Henry,
a primeira aproximação fenomenológica da Vida, que deve ser pensada então como
autorrevelação. Afirma-se, desta forma, categoricamente que, se temos acesso à Vida,
isto não ocorre pelo esforço do pensamento que se encontra compreendido a partir da
estrutura ek-stática do mundo. A respeito disto, propõe-se uma espécie de 'purificação'
115
Cf. RAHNER, Curso fundamental da fé, p. 145. Dedica três seções, por separado, para cada um dos
temas em questão.
116
CF. HENRY, Michel. Paroles du Christ. Paris: Seuil ,2002, 155p.
117
Cf. HENRY, C'est moi la vérité, p.71.
118
Ibid, p.72.
82
da linguagem sobre a Vida. Realiza-se tal empreitada minimizando os efeitos da
categoria 'ser', tão cara à filosofia tradicional, pois ela sempre nos remete, segundo o
autor, à ontologia ou ao ver ek-stático do mundo119. Como ocorre, então, o acesso à
Vida? Se temos acesso à Vida é porque ela se nos dá a si mesma em si mesma, isto é: o
acesso à vida está em sua autorrevelação. Para o cristianismo e a fenomenologia
henryriana, não existe afirmação mais plausível. Respondendo à questão sobre a
independência da Fenomenologia da Vida ou da revelação de Deus com relação à
estrutura de visibilidade do mundo, Henry afirma:
Onde acontece uma autorrevelação deste tipo? Na Vida, como
sua essência. A Vida não é nada mais que o que se autorrevela,
não algo que teria a propriedade de se autorrevelar, mas o fato
mesmo de se autorrevelar, a autorrevelação enquanto tal.
Sempre que se produz algo como uma autorrevelação, existe
vida. Sempre que existe vida se produz esta autorrevelação.
Então, se a revelação de Deus é uma autorrevelação que não
depende da verdade do mundo, e se perguntamos onde acontece
tal revelação, a resposta só pode ser: na Vida e só nela. Aqui se
dá a primeira equação fundamental do cristianismo: Deus é
Vida, a essência da Vida é Deus. 120
A equação fundamental do cristianismo, segundo Henry, pode ser vislumbrada
na autorrevelação como atualização necessária da Vida, como sendo ela mesma Vida.
Não se trata de uma possibilidade interna como qualquer outra, mas da identidade
consigo mesma. A Vida se compreende como autorrevelação e a vida de cada vivente
está ligada visceralmente à Vida fenomenológica absoluta. Se pensamos a Vida a partir
desta fenomenologia radical, e se afirmamos, com o autor, que a essência da Vida é
Deus, então temos que, se a Vida é autorrevelação enquanto tal, o mesmo pode se dizer
de Deus. A criação, nestes termos, pode ser pensada licitamente como autorrevelação de
Deus. Isto traz consequências teológicas complexas. A 'criação-salvação' não pode
jamais ser entendida como acaso, plano divino casual, mas uma espécie de
'cumprimento essencial' daquilo mesmo que Deus 'é'. E ele 'é' visceralmente Vida que
119
120
Cf. Ibid, p.72-73.
Ibid, pp.39-40.
83
se autorrevela, uma fenomenologia radical. Mundo e salvação nada mais são que a
expressão da graça intrínseca da Vida que por ser Vida se autorrevela, gerando viventes.
O Deus amigo que se revela aos homens e com eles se entretém121, não é um
horizonte de luz que lança claridade sobre uma realidade totalmente separada, como
acontece na estrutura ek-stática do mundo. Este Deus, ao se revelar, autorrevela-se
como aquilo que ele é, a saber: Vida, vida corrente e presente nos viventes. Isto quer
dizer que não há oposição entre o conteúdo da revelação e aquele que revela, por isso
mesmo, por tal coincidência dos termos, chamamos a revelação de Deus de uma
autorrevelação. Sobre a autorrevelação da Vida, Henry afirma que nela não há nenhuma
estrutura opositiva. Isto quer dizer que não existe uma realidade que revela outra
realidade. Então: o que revela é também o revelado122. De fato, diz Jesus: "Eu e o Pai
somos um" (Jo 10,30). Esta asserção espantosa se torna compreensível diante da
afirmação precedente. A Fenomenologia da Vida, a partir do texto evangélico (Jo 14,610), afirmará decisivamente a interioridade fenomenológica recíproca do Pai com o
Filho.
Cabe-nos aqui destacar a possível conexão entre a glória e a fenomenalização
original da Vida. A glória do Pai é a glória do Filho, isso é o que Henry chama de
interioridade recíproca do Pai e do Filho. Esta categoria henryriana, remete-nos a um
tema teologicamente relevante do evangelho de João. Trata-se do tema da manifestação
da glória de Deus em seu Cristo. Em João, esta glória de Deus, shekiná, manifesta-se
não somente no Filho, mas como sendo o próprio Filho. Cristo manifesta a glória do Pai
porque ele mesmo é a glória de Deus, sendo ele mesmo um com Ele (Jo 10,30). A partir
da unção em Betânia (Cap 12) Jesus anuncia sua glorificação. Os capítulos 13-20
formam a segunda parte do evangelho, sendo considerados como livro da glória, pois
tratam da manifestação da glória do Pai em Jesus. O cap. 17 é o ponto cume desta
manifestação da glória de Deus no seu ungido (Cristo). Sobre a reciprocidade do Pai e
do Filho, pode-se dizer, com Konings, que "Jesus é a Shekiná de Deus, a inabitação
salvadora junto ao povo"123. A partir desta mesma perspectiva, o discurso henryriano
descortina outras duas categorias teológicas caras à sua Fenomenologia da Vida. A
primeira delas diz respeito à humildade ontológica. Esta, outra coisa não é que o
reconhecimento, por parte de Cristo, de que o Filho não poder ser compreendido sem o
121
Cf. DEI VERBUM sobre a revelação divina ( n.2). In Compêndio do vaticano II constituições, decretos
e declarações, Petrópolis: Vozes, 1969, p.122.
122
Cf. HENRY, Incarnation, p. 172.
123
Cf. KONINGS, Johan. Evangelho segundo João: amor e fidelidade. São Paulo: Loyola, 2005, p.275
84
Pai. A humildade ontológica é a porta de entrada para pensar, em termos clássicos, a
doutrina trinitária. Conectada ainda à questão da interioridade fenomenológica recíproca
do Pai com o Filho, desponta-se uma segunda categoria teológica. Esta diz respeito à
questão da autogeração da Vida e da geração do Arqui-Filho, ou Filho Primordial124.
Discursando sobre a autogeração da Vida como geração do Primeiro Vivente, diz o
autor:
A vida não é, ela advém e não pára de advir. Este advento
incessante da vida é seu eterno chegar a si, um processo sem
fim, um movimento. No cumprimento eterno deste processo, a
vida se joga em si, se esmaga contra si, se experimenta a si
mesma, goza de si, produzindo sua própria essência, posto que
consiste neste gozo de si e se esgota nele. Assim, a vida se
engendra continuamente a si mesma. [...] A essência da vida é o
movimento pelo qual a vida não deixa de vir a si, chamamos de
auto-geração.125
A afirmação segundo a qual a vida se identifica consigo mesma, enquanto
advento incessante que se experimenta continuamente a si mesma e, em
experimentando-se, produz sua própria essência, que é o eterno gozo de si, coloca-nos
em contato com duas ideias preciosas para a reflexão fenomenológica henryriana. A
primeira delas é a noção de auto-afecção ou de uma arqui-passibilidade essencial da
Vida126. Esta ideia de que a Vida se experimenta a si mesma constantemente, que goza
de si incessantemente e, neste gozo, se auto-engendra, lançar-nos-á, por sua vez, em
direção à segunda ideia, a saber: a questão das tautologia essenciais da vida. Este
pensamento se conecta com as outras duas categorias acima citadas: a que se refere à
interioridade fenomenológica recíproca do Pai e do Filho que, por sua vez, lança-nos
frente à ideia de humildade ontológica127. Nenhuma dessas categorias são abordadas por
acaso na teoria henryriana. Elas são as membranas de um núcleo duro da sua
fenomenologia. No centro se encontra uma rede de relações classificadas a partir
daquilo que é o mais originário. A relação mais primordial na Fenomenologia da Vida
diz respeito justamente à auto-geração da Vida que engendra, ao engendrar-se a si
124
Cf. HENRY, C'est moi la vérité, pp.102-114.
Ibid, pp.74-75.
126
Cf. HENRY, Incarnation, p. 176.
127
Cf. HENRY, C'est moi la vérité, pp.100-101.
125
85
mesma, o Primeiro vivente, chamado também de Arqui-Filho. Desta relação primordial
do Pai com o Filho, da Vida com o Primeiro vivente, depreende-se uma rede de
relações: a relação da Vida com todos os viventes, a relação do Arqui-Filho com os
outros filhos, e, por último, a relação dos filhos entre si, o que se denomina, no campo
filosófico, da relação intersubjetiva128. Observemos o seguinte texto:
A Vida absoluta se experimenta a si mesma em uma ipseidade
efetiva que é, como tal, um Si ele mesmo efetivo e, como tal, Si
singular. Deste modo, a auto-geração do Pai implica nela a
geração do Filho e constitui um com ele. A geração do Filho,
inclusive, consiste na auto-geração do Pai e se faz um com ele.
Não há vida sem um vivente. Não há vivente sem vida. Não se
pode dizer: gerando-se a si mesma a Vida gera o Vivente [...]
mas que a Vida se engendra a si mesma como esse Vivente, que
é ela mesma em seu auto-engendramento. E é por isso que este
Vivente em concreto é o Único e o Primeiro como disse João.129
A Fenomenologia da Vida introduz uma distinção radical no que se refere à
compreensão da geração deste "Si" primordial chamado também de Arqui-Filho ou
Primeiro Vivente. De fato, a sentença segundo a qual a Vida se engendra a si mesma
como esse "Si" vivente difere radicalmente da afirmação segundo a qual a geração deste
"Si" vivente, como Arqui-Filho, ocorre como consequência da auto-geração da Vida. A
sutileza está em que no segundo caso introduzimos discretamente a noção ek-stática
espaço-temporal, ao sugerir o nascimento do Primeiro Vivente como consequência da
auto-geração da Vida absoluta. Sem querer pode-se cair na estrutura opositiva da
Fenomenologia do mundo, o que seria um absurdo para a Fenomenologia da Vida. Isto
porque na Vida não há espaço-tempo, uma vez que não existe nenhuma distância entre o
que revela e aquilo que é revelado. Aqui se expressa uma vez mais a tautologia
essencial da Vida. Ainda no contexto do que Henry chama de interioridade
fenomenológica recíproca entre a Vida e o Primeiro vivente, parece-nos relevante a
citação que segue:
128
129
Cf. Ibid, pp.80-81.
Ibid, pp.79-80.
86
No entanto, a Vida não necessita ter terminado sua obra em
Cristo, como em qualquer outro vivente, para que o Primeiro
vivente seja vivente, se a geração do Filho co-pertence à autogeração da Vida como aquele sem o qual esta auto-geração não
teria acontecido. E isto porque a Vida não se dá a si mesma
mais que se abraçando a si mesma na ipseidade essencial, cuja
efetividade fenomenológica não é outra que o Verbo.130
Efetivamente, a geração do Primeiro Vivente na Vida traz uma revelação
decisiva em relação aos outros viventes. Retoma-se aqui, na linguagem teológica, o
vínculo outrora esboçado entre Cristologia e Antropologia. Esta discussão é proposta
por Henry ao tratar do homem em qualidade de filho de Deus131. O autor retoma em
seu texto a crítica à cristologia das duas naturezas, que, segundo ele, constitui um
verdadeiro impedimento para a intelecção do cristianismo. Parece-nos, de fato, que para
Henry está clarividente que a ideia de uma natureza humana autônoma contradiz a
verdade essencial do cristianismo. Esta afirma que o nascimento transcendental do
homem se dá na Vida, por meio do Primeiro Vivente. Assim sendo, constitui um
absurdo e uma verdadeira aporia antropológica afirmar a possibilidade de existir uma
natureza humana que seja radicalmente diferente da essência na qual ele foi engendrado
(Vida). Portanto, Henry advoga que a vida deve ter um único sentido, tanto para Deus
quanto para o Cristo, e, assim mesmo, para o homem. Diz o autor:
Se o homem é filho engendrado na Vida e a partir dela, não
pode haver nele nada mais que essa essência da Vida, não pode
haver uma outra natureza [...] Compreender o homem a partir
de Cristo, compreendido Cristo a partir de Deus, radica a
intuição decisiva da fenomenologia radical da Vida que é
precisamente a do cristianismo: que a Vida tem o mesmo
sentido para Deus, para Cristo e para o homem. 132
A crítica henryriana à linguagem cristológica convida à reflexão sobre algumas
categorias-chave da teologia. Como é o caso, por exemplo, daquela que afirma a
encarnação do Verbo como assunção da nossa carne. Uma pergunta fundamental
130
Ibid, p.102.
Cf. Ibid, pp.120-141.
132
Ibid, pp. 127-128.
131
87
emerge neste contexto: pode a Vida assumir algo fora daquilo que ela é em si mesma? A
resposta afirmativa à esta questão, segundo a fenomenologia henryriana, constituiria o
maior dos contrassensos, uma verdadeira agressão à Fenomenologia da Vida. Esta
afirma categoricamente que nossa vida é a mesma vida de Deus e de Cristo. Existe,
pois, uma cumplicidade existencial entre a Vida de Deus e a vida dos homens. Portanto,
se o Verbo enquanto Vida não pode assumir outra coisa que não sejam as propriedades
da própria Vida, e isto pela simples razão de que não existe nada fora desta Vida
absoluta que é a de Deus e a do seu Verbo, então, o que dizer sobre a questão da vida do
homem enquanto corpo de carne, o que dizer sobre a encarnação? Se tudo que vivemos
provém da Vida, então não é lícito sustentar nenhuma espécie de dualismo, como
outrora ocorreu nas visões antropológicas que separaram definitivamente o ser humano
em duas realidades inconciliáveis. Assim mesmo, toda epistemologia que concebe o
conhecimento a partir desta cisão radical é digna de suspeita.
Quando a vida revela a carne, não se limita a revelá-la como se
estivesse em presença de dois termos, um que revela e o outro
que é revelado [...] a vida revela a carne ao engendrá-la, como
aquilo que nasce nela, que se forma e se edifica nela, tomando
sua substância fenomenológica pura, da substância mesma da
vida. Uma carne impressiva e afetiva, cuja impressividade e
afetividade não provém de algo distinto à impressividade e
afetividade da vida mesma.133
Como compreender nosso corpo de carne segundo a afirmação primordial do
cristianismo, que revela o homem a partir da sua solidariedade existencial com a Vida,
que é Deus, revelando-o como filho da própria Vida? Aqui desponta uma questão
crucial: segundo a fenomenologia henryriana, a carne não pode ser entendida como um
anexo da vida. Trata-se de uma questão complexa que urge ser pensada com mística e
devoção, pois toca a tese que provoca nossa investigação, a saber: o tema da
encarnação. A Fenomenologia da Vida, inspirada no ethos cristão, aborda a questão da
carne como condição interna de possibilidade da vida. Advoga que a Vida, enquanto
arqui-passibilidade, autoafecção, engendra-se enquanto carne. Contudo, exige-se que a
categoria 'carne' seja decantada do contexto de nossa linguagem dualista e demasiado
133
HENRY, Incarnation, pp..173-174.
88
materialista. Para a Fenomenologia da Vida, carne não significa outra coisa que o
"Poder de auto-afecção Primordial". Trata-se do poder de se sentir, sua origem é a
arqui-passibilidade, na arqui-carne. Seu contexto vital é o abraço patético da Vida em si
mesma. Este abraço patético, que nunca cessa e que é a constante auto-geração da Vida
enquanto autorrevelação de si mesma. Assim diz o autor:
A única razão pela qual, necessariamente, onde quer que uma
vida vem a si, tal vinda é idêntica à vinda de uma carne, a vinda
a si desta carne na Arqui-Carne da Vida [...] reside no fato que
esta vinda originária a si mesma se cumpre no patos originário
de seu gozo de si, no Arqui-Patos de uma Arqui-Carne. A carne
é justamente a forma que tem a vida de se fazer Vida [...] Esta
conexão entre Carne e Vida, somente diz respeito a uma vida
como a nossa porque, antes do tempo, estabeleceu-se na Vida
absoluta como o modo fenomenológico segundo o qual esta
Vida vem eternamente a si no Arqui-Patos de sua ArquiCarne. 134
O que significa dizer, com Tertuliano, que a carne é o eixo da salvação? Se
pensamos a carne como algo fora de Deus, uma coisa de outra natureza que ele precisa
assumir para se tornar um de nós, então esta sentença carece de sentido. Isto porque, a
partir desta premissa, a salvação seria pensada e compreendida fora de Deus. Dizer que
a carne é o eixo da salvação significa dizer que somos salvos pela e na carne. Por mais
absurdo que pareça à nossa mente dualista, isso significa afirmar que a carne vem de
Deus. Nossa carne é deífera, não só porque pode ser salva, mas porque nela se encontra
o princípio mesmo de salvação, já que se trata de uma carne viva. Posto que a carne,
como diz Henry, é justamente a forma que tem a Vida de se fazer Vida. Nesta sentença,
afirma-se a intuição de que o vínculo entre a vida do ser humano e a Vida que é Deus se
dá justamente nesta carne que é pura autoafecção e que pode afetar e ser afetada. O
vínculo da salvação significa, pois, autoafecção. A categoria carne deve fugir da sua
significação hodierna, que a entende como matéria que perece, imanência fadada ao
fracasso. Assumindo, portanto, seu verdadeiro sentido como carne fenomenológica, que
134
Ibid, p.174.
89
se autorevela como 'poder de sentir', como autoafecção que pode afetar e ser afetada,
primeiro em si mesma.
Aqui se desponta uma das mais surpreendentes teses da Fenomenologia da Vida.
Trata-se da questão da carne como condição interna de possibilidade da vida. Esta tese
henryriana lançar-nos-á em direção a um surpreendente conceito de transcendência. O
autor afirma que transcendência, no sentido cristão, e segundo a Fenomenologia da
Vida, outra coisa não pode ser que a imanência da vida na carne. 135 Afirma, então, que a
substância fenomenológica patética do viver é a carne entendida como lugar de afecção
pura. Nela se dá, segundo a teoria henryriana, a essência mesma do viver que é a
autoafecção, ou seja, o sentir-se a si mesmo. A partir de então podemos fazer uma
afirmação eminentemente teológica, que possui caráter revolucionário: o Deus que é
Vida é um Deus que sente, é autoafecção radical. E por isso mesmo, é um Deus carnal,
é um Deus de carne, posto que ele mesmo é, em si mesmo, autoafecção pura, o puro
poder de sentir, ele é Vida atualizada. Este Deus, que Cirilo de Alexandria identifica
com a Vida, revela-se a si mesmo como carne, revela-se a si mesmo na sua Arquipassibilidade. Temos daí que o Deus cristão não é um Deus impassível, mas um Deus
afetuoso, ele mesmo pode ser compreendido como pura afetividade. Não é por acaso
que é apresentado na história de Israel como aquele capaz de "escutar" (Ex 3,7) e de se
"comover" com a situação de seu povo (Os 11,8).
Segundo Henry, Irineu, diferente de Tertuliano, que ainda se encontra preso no
paradigma dualista, dá um passo ao pensar a carne de Cristo não mais pela matéria
fenomenológica do mundo, mas pelo sofrimento. Ao destacar o sofrimento e a paixão
da carne de Cristo, Irineu nos lança na matéria fenomenológica da Vida, que é o 'poder
de sentir'. Discorrendo sobre o que denomina de 'cogito cristão' em Irineu, Henry dirnos-á:
Longe de ser a vida incapaz de tomar carne, é sua condição de
possibilidade. Longe de ser incapaz de receber a vida, a carne é
sua efetuação fenomenológica [...] A imanência da Vida na
carne não somente funda a substância fenomenológica de toda
carne concebível; faz ao mesmo tempo possível cada uma das
135
Cf. Ibid, p176.
90
estruturas fenomenológicas fundamentais do que chamamos
corporeidade originária.136
Pode-se dizer, com Henry, que em Irineu a ligação da carne à Vida se aprofunda. A
Vida aqui é a Vida fenomenológica absoluta. É esta vida de Deus auto-revelada no
Verbo que se faz carne. A carne, à qual vem o Verbo, vem do Verbo mesmo, vem da
Vida. No final de seu discurso sobre o cogito cristão, o autor, citando Irineu, diz:
O testemunho da Vida em toda carne [...] consiste em que a
Vida está presente em toda carne como aquilo que a revela a si
mesma, fazendo dela uma carne e lhe dando a Vida. Tal é o
conteúdo do extraordinário cogito da carne, próprio do
cristianismo, que Irineu formula em uma proposição muito
densa: que a carne seja capaz de receber a Vida, se prova por
esta mesma Vida na qual [a carne] vive já no presente.137
Henry destaca que o cristianismo inaugura uma nova tese no pensamento
humano. Esta diz respeito à compreensão da carne como aquela que traz em si uma
Inteligibilidade primordial. Mais que destacar a presença da Vida na carne, o cogito
cristão afirma a Vida mesma enquanto carne. Por isso, esta é portadora do princípio de
compreensão da Vida, que chamamos de Inteligibilidade primordial. Não é possível
nenhuma revelação na Vida que não parta da auto-auto afecção da carne. Não é por
acaso que a tese cristã, por excelência, diz explicitamente que: "o verbo se fez carne"
(Jo 1,14). Então, podemos dizer que a transcendência, no sentido cristão, funda a
substância fenomenológica de toda carne e torna possível cada uma das estruturas
fenomenológicas fundamentais daquilo que chamamos nossa corporeidade originária.
De fato, segundo nosso autor, ao dizer que a carne é capaz de receber o poder de Deus,
Irineu reconhece em cada uma das estruturas do corpo transcendental a imanência da
Vida absoluta como constitutiva de sua realidade fenomenológica e de sua possibilidade
para exercer seu 'poder'. Nossa carne viva manifesta o 'poder originário' da Vida. Por
isso, todo movimento ou ato carnal, ao ser atualizado, se dá enquanto a vida mesma.
Temos assim que nosso olhar é vivo, nosso toque é vivo, nossa palavra é viva.
136
137
Ibid, pp.191-192.
Ibid, p.195. O destaque na citação de Irineu é nosso.
91
2.2 A questão da Palavra viva de Deus
A Fenomenologia de Cristo se dá essencialmente em Jesus como palavra
encarnada. Ele é a palavra da Vida que se manifesta para a salvação dos homens. Antes
de prosseguir nosso discurso, pensamos por bem fazer duas considerações. A primeira
se refere a uma opção que consideramos importante. Seguindo Konings, em seu livro
Evangelho segundo João, também queremos manifestar nossa preferência pela categoria
'Palavra' em vez de 'Verbo'. Parece-nos, não somente sensata, mas também fundamental
a opção deste exímio teólogo. De fato, como ele mesmo lembra, o termo 'verbo' nos
remete ao contexto das discussões e especulações da filosofia grega acerca do Verbo
divino 138. Enquanto a categoria "Palavra" nos aparece como possibilidade autêntica de
nos aproximar da fonte religiosa e cultural do cristianismo, a saber: a tradição judaica. A
segunda consideração, trata-se, na verdade, de um justificação. Sobre o tema da
linguagem enquanto reflexão filosófica, abordá-lo-emos circunstancialmente e de forma
muito limitada. Apesar de sua relevância fundamental para nossa investigação, ele não
constitui o objetivo de nosso estudo.
No capítulo 12 do livro Eu sou a verdade, Henry aborda o tema da Palavra de
Deus e as Escrituras, o qual retomará mais tarde em sua obra intitulada: Palavras de
Cristo. Ao discorrer sobre o assunto, uma constatação pertinente vem à tona. Ela diz
respeito ao Cristianismo. Uma vez que ele se nos apresenta sempre sob a forma de um
texto, e mais ainda, como palavra performativa (a Palavra se fez carne), então, deveras,
a questão da 'palavra' surgirá como fundamental desde nosso primeiro contato com ele.
Segundo nosso autor, o texto do Novo Testamento se apresenta de maneira inédita
porque é de proveniência Divina. Isso se nota ao perceber que os narradores param a
narrativa para que o próprio Cristo, Filho de Deus, diga sua palavra139. Partindo da
exegese do evangelho de João, principalmente do Prólogo, o autor encontrará, segundo
Miguel García, "que os paradoxos da linguagem evangélica acerca da vida
representam a mais acabada expressão da verdade do Fundamento: fragmentos de uma
autêntica ontologia fenomenológica"140. Daí procede o grande encanto de Henry pelo
cristianismo e suas Escrituras, ao ponto de afirmar sem medo que "longe de se opor a
138
Cf. KONINGS, Evangelho segundo João, p. 76.
Cf. HENRY, C'est moi la vérité, p. 269.
140
HENRY, Michel. Palabras de Cristo. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2004, p.11 Expressão dita por
Miguel García na apresentação desta obra na tradução espanhola.
139
92
uma reflexão verdadeiramente livre, o Cristianismo situaria a filosofia tradicional ante
seus limites, por não dizer sua cegueira"141. No livro Palavras de Cristo, o propósito
investigativo do autor está imbuído da convicção de que existe outra ordem de palavra
diferente daquele modo ordinário de se comunicar dos homens.
A matriz hermenêutica para a compreensão das palavras de Cristo, como Palavra
viva de Deus, dá-se a partir da oposição metodológica realizada pelo pensamento do
autor, a saber: Fenomenologia do mundo - Fenomenologia da Vida. Esta abordagem nos
reconduzirá à questão da Verdade segundo o Cristianismo. Aqui se estabelece uma
afirmação decisiva, a de que a Palavra de Deus pertence à Verdade da Vida. Contudo,
esta asserção faz surgir uma pergunta fundamental. Uma vez que as palavras de Cristo
chegam a nós na comum linguagem dos homens, em termos fenomenológicos, na
linguagem do mundo: como podem elam então dizer a mensagem da Vida que não se
manifesta no mundo? Como esta palavra da Vida, expressa na linguagem do mundo,
pode ser ouvida e compreendida como palavra da Vida e não do mundo? A
possibilidade de compreensão deste paradoxo somente pode ser estabelecida partindo da
tese que estabelece duas ordens de palavras : a dos homens e a de Deus142. Esta tese,
como bem sabemos, refere-se aos dois modos de manifestação descrito pelo pensamento
henryriano. Sobre os dois modos de manifestação e a categoria da verdade, segundo o
ethos cristão, é importante recordar o pensamento segundo o qual:
Chamamos verdadeiro ao fenômeno, ao que se mostra, ao ente
no 'afora' do mundo e do tempo; mas também chamamos
verdadeiro ao fato de que todos os entes se mostram. E este fato
não é ele mesmo um ente entre os entes. Não é uma verdade
particular, mas a verdade original. A qual não se mostra
aparecendo no mundo, mas no fato mesmo de fazer com que o
mundo apareça. [...] A vida é uma 'substância cuja essência toda
é aparecer, revelar-se. E o 'cristianismo', outra coisa não é que a
teoria, rigorosa, de que se dá aos homens, como sua porção, esta
autorrevelação do Absoluto. Pois o amor pelo qual são João
define a natureza de Deus não é outra coisa que o gozo de si
mesmo da Vida absoluta143.
141
HENRY, Paroles du Christ, p.87.
Cf. HENRY, C'est moi la vérité, pp. 270-271.
143
HENRY, Michel. Palabras de Cristo, pp.11-12. Apresentação do livro em espanhol.
142
93
Partindo desta elucidação dos dois modos de manifestação, Henry prosseguirá
em sua nota sobre a palavra do mundo e a palavra da Vida144. Afirma a necessidade da
distinção de duas ordens de palavras: as dos evangelistas, que narram a vida de Cristo, e
as do próprio Cristo, que irrompem surpreendentemente nos textos. Contudo, estas
palavras de Cristo estão formuladas na linguagem dos homens, que chamamos, também,
de linguagem do mundo, por duas razões: primeiro porque designam as coisas deste
mundo (coisas inertes, animais, objetos culturais); segundo, trata-se de palavras do
mundo porque só podemos falar das coisas que se nos mostram. Sobre isso, afirma o
autor:
Se unicamente podemos falar do que se nos mostra, e se tudo o
que se nos mostra nos é mostrado no mundo, então toda palavra
está vinculada ao mundo por uma relação inegociável.
Unicamente podemos falar do que se nos mostra no mundo [...]
Palavra do mundo quer dizer uma palavra que fala do que se
nos mostra nessa exterioridade que o mundo é. Assim o
aparecer se propõe como a condição de possibilidade de toda
palavra145.
Notaremos a seguir, que esta constatação henryriana traz uma série de
implicações para a palavra do mundo. Segundo o autor, se a fenomenologia do mundo
se coloca como condição de possibilidade para que haja uma linguagem humana, então
esta, se fundamenta necessariamente nas características fundamentais deste aparecer do
mundo. Sendo o horizonte de visibilidade deste mundo exterioridade pura, indiferente
àquilo que ilumina, constituído de uma carência ontológica, como descrevemos no
primeiro capítulo, então, a palavra do mundo, também se compreende situada a partir
destas três notas. De fato, ela fala de uma realidade outra que não é a de si mesma, e
por isso mesmo, lhe é indiferente. Tudo isto haverá de culminar numa indigência
ontológica da linguagem, expressa, segundo Henry, no caráter referencial da linguagem.
Trata-se, neste último caso, de que a palavra do mundo sempre se refere a um conteúdo
exterior que foge ao seu domínio porque se situa em um nível radicalmente diferente
dela mesma. Em outros termos, a palavra do mundo não funda a realidade à qual se
refere. O autor denuncia ainda a carência das teorias da linguagem que radicam na
144
145
Cf. HENRY, Paroles du Christ, pp.87-99.
Ibid, p.90.
94
"crença ingênua" de que somente o aparecer do mundo constitui o objeto unívoco da
linguagem. Assim, esquece-se e se oculta a possibilidade mesma de outra palavra mais
originária, mais essencial que a do mundo146. Ao tratar deste tema, nosso fenomenólogo
nos lança novamente em direção à sua reflexão fundamental, a saber: sobre a
Inteligibilidade primordial ou a questão da Verdade. Sobre a vinculação entre
linguagem e Fenomenologia do mundo, afirma que o caráter referencial da linguagem
traz em si a possibilidade sempre patente da falsidade ou da mentira. Sobre este tema
delicado diz o próprio autor:
Mesmo impotente para estabelecer a realidade da qual fala,
conserva (a palavra do mundo) um poder: o de afirmar esta
realidade quando não existe, o poder de mentir. Esta é a razão
pela qual afirma São João que o testemunho que traz em si esta
palavra é potencialmente um falso testemunho147.
Retomando a reflexão cristológica sobre a natureza de Cristo, Henry dirá que se
esta é dupla, podemos pensar que sua palavra também está constituída de uma autêntica
duplicidade. Esta não se encontra marcada pelo caráter da mentira. Ela não é dupla no
sentido de verdadeiro ou falso, mas no sentido de que algumas vezes se trata da palavra
humana e em outras da palavra de Deus. Neste contexto, o autor introduzirá a distinção
entre o ato de falar (a maneira que alguém tem de falar) do conteúdo da fala. Esta
observação marca a diferença entre a forma de Deus e a forma dos homens falarem. A
palavra de Deus, neste sentido, não poderia ser abordada positivamente por uma análise
do discurso, ou por uma filosofia da linguagem que possua como objeto a linguagem
humana148.
Sem entrar diretamente no tema, apontamos somente o fantástico horizonte
aberto por Henry ao propor a discussão sobre a questão da possibilidade da mentira e o
discurso sobre a incapacidade das palavras da lei humana para produzir seu efeito.
Reflexão abordada por Henry no capítulo 12 de seu livro Eu sou a verdade149.
Passamos direto à questão da Palavra de Deus na Fenomenologia da Vida. Assim como
a palavra do mundo assume as características do aparecer do mundo, as palavras da
146
Cf. Ibid, pp.91-92.
Ibid, p.95. O conteúdo entre parênteses é uma elucidação nossa.
148
Cf. Ibid, p.10
149
Cf. HENRY, C'est moi la vérité, pp. 269-291.
147
95
Vida assumem também as características da Fenomenologia da Vida. Retomando
brevemente as notas essenciais da fenomenologia henryriana, é possível pensar agora a
relação Palavra-Vida, como condição de possibilidade da escuta da palavra que é
Cristo.Temos, pois então, que se a palavra do mundo traz em si a possibilidade da
mentira, a palavra da Vida (palavra de Deus) exclui definitivamente a mentira, sendo,
portanto, uma palavra de Verdade. Isto só é possível porque existe uma identificação
entre Verdade e Vida. Segundo a fenomenologia henryriana, "a Vida é verdade porque
se revela a si mesma e esta autorrevelação constitui o fundamento de toda verdade
concebível"150. Juntamente a esta primeira nota, vislumbramos uma segunda
perspectiva. Esta se refere ao fato de que a palavra da Vida é uma palavra afetiva, pois
não pode ser indiferente ao que diz. Isto acontece porque está extremamente implicada
naquilo que diz, uma vez que ao dizer, também se diz. A palavra da Vida, segundo
Henry, "fala em um sentimento". Aqui se vislumbra a imanência radical da Vida que
não pode escapar de si mesma. Assim sendo, não pode revelar ou anunciar outra coisa
que não seja ela mesma neste abraço patético consigo mesma. Concluirá o autor: "A
Vida é uma palavra e uma palavra que fala de si mesma unicamente porque se
experimenta a si mesma e se revela a si de forma patética, na imanência desta
Afetividade primitiva"151.
Compreendendo Deus a partir da noção de auto-afecção da Vida, ou a Vida
como experiência de si, Henry abordará o tema da Palavra de Deus como radicalmente
diferente, uma vez que nela não há distância entre o que é dito e aquele que diz. Deus,
ao dizer, se diz em sua Palavra. Sobre a possibilidade do conhecimento de Deus por
parte do homem Henry dirá:
Se Deus é Vida, disso resultam duas consequências: primeira,
algo sabemos sobre Deus. Segunda, não o sabemos por causa de
nosso pensamento. Sabemo-lo porque somos viventes e porque
nenhum vivente está vivo se não porta consigo a Vida, não
como um segredo desconhecido por ele, mas como isso mesmo
que experimenta sem cessar, como aquilo no qual ele se
experimenta sem cessar, como sua própria essência e realidade
150
151
HENRY, Paroles du Christ, 98.
Ibid, p. 99.
96
mesma. Se Deus é Vida então [...] o homem (como este vivente
que é e que se experimenta) conhece e ( experimenta) a Deus.152
Contudo, este conhecimento de Deus não se dá de outra forma a não ser pela escuta
'atenta' da sua Palavra. Assim, a ideia henryriana, que abre o discurso sobre a
possibilidade humana de escutar a Palavra de Deus e que afirma a inteligibilidade da
humanidade como possível somente na sua relação interior com esse absoluto de
Verdade e Amor que é o próprio Deus153, encontra-se novamente respaldada no fim do
seu discurso sobre a Palavra encarnada:
Já que só aquele que dispor em seu coração da Palavra original
da Vida seria capaz de ouvi-la, escutá-la, ser-lhe fiel e, assim,
ser salvo, não era pois plausível que esta palavra viesse entre
nós para se dar ela mesma a nós? A Encarnação do Verbo, na
carne de Cristo, é esta vinda da Palavra da Vida em uma carne
semelhante à nossa. Então, para que essa Palavra de Deus seja
efetivamente recebida por nós, não reside sua condição em que
Cristo nos dê sua própria carne, que é a do Verbo, que se dê a
nós em sua carne, unindo sua carne à nossa, de modo que esteja
em nós e nós nele, assim como ele está no Pai e o Pai nele?154
Temos então a encarnação da Palavra como condição de possibilidade para que
o homem possa ouvir em plenitude a voz da Vida. Sobre os filhos da Vida, como
potenciais ouvintes da Palavra, Henry dirá que é a geração do homem na Palavra de
Deus, como Primeiro vivente, que permite a escuta daquilo que a Vida diz. Podemos
escutar a Palavra da Vida, porque viemos dela155. Contudo, se as palavras de Cristo são
palavras de um homem como nós, por que muitos não a compreendem , como dizem as
Escrituras, possuem ouvidos e não ouvem (Jo 9, 27)? Isto ocorre "Porque eles somente
captam o sentido humano destas palavras reduzindo-as a preceitos morais"156. O centro
de gravidade deste discurso se resume em pensar a seguinte questão: poderia o homem
ouvir a partir da sua própria língua uma palavra que fosse dita em outra linguagem que
152
Ibid, pp.104-105. Os parênteses são nosso.
Cf. Ibid, p.15.
154
Ibid, pp154-155.
155
Cf. Ibid, pp.149-150.
156
Ibid, p.11.
153
97
não a sua, que se tratasse da linguagem de Deus, ou da sua Palavra eterna? Henry não
vê outra alternativa para pensar o tema a não ser a de tomar como ponto de partida as
mesmas Palavras de Cristo. Ressaltando que a pretensão destas não é a de simplesmente
transmitir uma revelação divina, mas a de ser em si mesma esta revelação, ou seja, a
Palavra de Deus157. De fato, quando fala aos homens, como bem observa o autor, Jesus
não se refere sempre a eles. Existe um discurso de Cristo sobre si no qual ele não fala de
si mesmo como homem, mas como Filho de Deus. Esta forma de falar constituiu,
inclusive, o motivo máximo de sua condenação: "Nós temos uma Lei, e conforme esta
Lei, ele deve morrer, porque se fez Filho de Deus" (Jo 19,7).
Sobre as condições de possibilidade de ser ou não um ouvinte da palavra existe
uma aproximação entre a reflexão de Rahner e Henry. Para o teólogo alemão, o sujeito,
entendido como evento da livre e gratuita autocomunicação de Deus, pode, a partir da
Graça, ouvir esta palavra de vida. Isto porque possui em si mesmo a graça da vida,
condição de possibilidade para a própria transcendência.
Ao se colocar analiticamente em questão e abrir-se para o
horizonte ilimitado de semelhante questionamento, o homem já
transcendeu a si mesmo, bem como todas as dimensões
pensáveis dessa análise ou de auto-reconstrução empírica de
si.158
No que diz respeito à peculiaridade da experiência da pessoa, o que caracteriza o
homem como sujeito enquanto condição de possibilidade de ouvinte da palavra é
justamente sua postura de abertura frente ao horizonte ilimitado do mistério da vida,
colocando-se em questão. Este 'colocar-se em questão' exige do sujeito uma certa
'possessão de si', tal como nos indica a seguir o próprio autor:
Ser pessoa significa, então, a autoposse de um sujeito como tal
em relação consciente e livre para com o todo. Essa relação é a
condição de possibilidade e o horizonte prévio para que o
homem [...] possa haver-se consigo mesmo em sua unidade e
totalidade. 159
157
Cf. Ibid, pp.13-14.
RAHNER, Curso fundamental da fé, p.43.
159
Ibid, p.44.
158
98
Este tema tocado pelo teólogo alemão, em seu Curso fundamental da fé,
encontra-se magistralmente desenvolvido em uma de suas obras intitulada O ouvinte da
palavra160. A ideia de pessoa como autoposse, ou mesmo de "existencial
sobrenatural"161 em Rahner nos remete à noção henryriana de "possessão" dos poderes
oriundos da Vida. Neste sentido, estabelece-se uma conexão instigante entre as duas
noções de sujeito. Por um lado, em Rahner, sujeito é aquele que, conscientemente, sabese possuidor de si mesmo enquanto evento gratuito e livre da autocomunicação de Deus.
Por outro, em Henry, sujeito é aquele que se reconhece como filho no Filho e que
exerce conscientemente os "poderes" da sua corporeidade, sabendo que estes mesmos
significam a imanência da Vida absoluta na sua vida particular. Assim, em ambos os
casos, o "poder" de ouvir a palavra se manifesta como possibilidade antropológica
fundamental que não encontra sua raiz numa capacidade egocêntrica. De fato, este
"poder" de ouvir advém da própria Graça que nos foi concedida pela Vida. No caso de
Rahner, trata-se de um "poder" constitutivo da nossa humanidade enquanto somos
evento livre e gratuito da autocomunicação de Deus. Não obstante, em Henry, refere-se
a um "poder" transcendental, recuperando o sentido de transcendência como imanência
da Vida em nossa carne.
Outro tema extremamente relevante emerge da reflexão henryriana na hora de
pensar o homem como ouvinte desta Palavra da Vida. Trata-se da geração da
humanidade na Palavra Primordial, que é Cristo. Esta concepção do homem no seio
mesmo da Vida, através de sua Palavra, coloca-se, portanto, como a principal condição
de possibilidade de ouvinte do mistério da Vida. Como os discípulos de Emaús, nosso
coração se reaviva em um ardor de outro mundo e somos gerados enquanto ouvimos a
Palavra da Vida. Diz Henry:
O princípio que permite compreender as Escrituras, é portanto,
o mesmo que legitima as palavras de Cristo sobre si mesmo: a
Palavra do Verbo em nós [...] A Palavra de Cristo em qualidade
da do Verbo é a única fonte que nos dá acesso à intelecção dos
textos sagrados, ela é o Espírito que, por vezes, produziu estes
160
Cf. RAHNER, Karl. Horer des wortes: zur grundlegung einer religionsphilosophie. Muchen: Kosel,
1963, 220p.
161
Cf. RAHNER, Karl. Curso fundamental da fé, p.157.
99
textos e que funda sua inteligibilidade. Somente o Espírito nos
permite conhecer o Espírito162.
Esta "Palavra do Verbo em nós" fundará o princípio de inteligibilidade de toda
compreensão das palavras de Cristo, em suas três dimensões: sobre nós, sobre o mundo
e sobre ele mesmo. No que se refere à proposta concreta de uma inteligibilidade
primordial, a partir da exegese henryriana do prólogo de João, este será um dos temas
do nosso próximo capítulo.
Convém terminar este tópico destacando algumas ideias valiosas encontradas na
já referida obra de Konings, sobre o evangelho de João. A Primeira delas tem a ver com
a interpretação de Jo 1,18. Destaca-se aqui o verbo "narrar - descrever". Neste sentido,
tal versículo poderia ser entendido como segue: "ninguém conhece a Deus, mas o filho
unigênito que lhe é íntimo no-lo narrou". Assim, Jesus aparece como a Palavra de Deus
que narra o próprio Deus. A manifestação de Deus no cristianismo, que é autêntica
fenomenologia da Vida, acontece, por excelência, por meio da Palavra encarnada, que
nos conta sua vida, que é a vida de Deus. Ao nos narrar esta Vida através de sua
existência encarnada, Jesus nos mostra, ao se revelar, o próprio Deus. Uma
Fenomenologia da Vida não se faz possível sem esta narratividade da Palavra viva, ou
da palavra que é, ela mesma, Vida. Destaca-se ainda a questão do nosso Deus que, ao se
manifestar em seu Filho como Palavra encarnada, faz-nos intuir que podemos
compreendê-lo, sobretudo, como comunicação. Deus é diálogo, e diálogo tem a ver com
relação, e a base de toda relação deve ser o amor. Daí que a manifestação de Deus, em
seu Filho unigênito, como Palavra que está voltada para o seio do Pai, e que se
encarnando, narra a Vida de Deus, dando-nos a conhecê-lo, manifesta Deus mesmo
como amor. E a essência do amor é a comunicação. O que fazem os enamorados?
comunicam-se, declaram-se, cantam hinos, e ao cantar, também contam sua história de
amor163.
A reflexão apresentada pelo autor sobre o poder originário da palavra que nos
chama à vida, parece-nos igualmente fascinante. De fato, existimos porque Deus
pronunciou nosso nome. Assim, dirá Konings, que "somos porque outros nos chamam
pelo nome, nos dirigem a palavra" 164. A tradição da nossa fé afirma que somos criados
na Palavra de Deus, pois "tudo foi feito por meio dela, e sem ela coisa alguma pode ser
162
HENRY, Paroles du Christ, pp.150-151.
KONINGS, Evangelho segundo João, pp. 73-83.
164
Ibid, p.83.
163
100
feita" (Jo 1,3). Gerados na Palavra e por ela, também participamos da sua glória na
carne165. Este tema é retomado por Konings com maestria ao tocar a questão da
glorificação de Cristo. Assim diz o autor:
A carne e a glória estão mútua e inseparavelmente imbricadas.
O tipo de glória que João vai descrever só pode manifestar-se
em carne. A carne não serve para esconder a glória, mas para
manifestá-la166.
Esta percepção valiosa da carne como shekiná, morada do próprio Deus em nós, acaso
não coincide com a definição espetacular de transcendência em Henry: a imanência da
Vida em nossa carne, condição de possibilidade de todos os nossos poderes (poder
sentir, poder ouvir)? E assim mesmo, tal perspectiva se insere na tradição da nossa fé
que afirma, com santo Irineu, contra os gnósticos de outrora e de hoje, que "a glória de
Deus é o homem vivo". Acrescentaríamos, e não existe Vida que não seja esta
vislumbrada na nossa carne, não como matéria opaca, incapaz de sentir, mas como pura
sensibilidade, como pura afecção. Esta é a vida de Deus, aquele que sente, que ouve os
clamores do seu povo (Ex 3,7-8), e que se abaixa para alimentá-lo (Os 11,4), o amado
que bate à nossa porta, numa súplica para entrar (Ct 5,2), que falara pelos profetas, e nos
últimos tempos se encarnou167, e encarnado se narrou (Jo 1,18). E nós vimos sua Glória
(Jo 1,14)!
2.3 O Deus relação: perspectiva trinitária
Nosso discurso cairia num vazio de sentido teológico se a Fenomenologia de
Cristo não nos conduzisse a pensar, necessariamente, uma perspectiva trinitária.
Contudo, este panorama fundamental, que não deve ser negligenciado, tampouco pode
ser compreendido apenas como um tópico importante. A doutrina trinitária emerge da
profundidade da contemplação do mistério da encarnação168. Trata-se, portanto, da
mesma Fenomenologia de Cristo, que ao se manifestar, revela-nos um Deus que se dá
como Pai-Filho-Espírito. Neste sentido, Jesus se nos faz presente ou se manifesta como
165
Mais adiante trabalharemos a polêmica questão da distinção fenomenológica entre geração-criação
e nascimento em Michel Henry.
166
Ibid, p.80.
167
Cf. DEI VERBUM, n.4, p.123.
168
Cf. RAHNER, Curso Fundamental da fé, p.255.
101
sendo, por excelência, a relação. Pela conjuntura e objetivo da mesma pesquisa, não
temos possibilidades de tratar com profundidade nesta dissertação este tema. Assim
sendo, justificamos que apenas visamos ressaltar que, do nosso ponto de vista, o
discurso henryriano sobre a perspectiva trinitária, embora não seja explícito,
efetivamente se faz patente. Observemos a citação abaixo:
Alheio à verdade do mundo, o conteúdo do cristianismo
consiste numa rede de relações transcendentes que podemos
formular assim: relação da Vida absoluta com o Primeiro
vivente (do Pai com o Filho-de-Deus, com Cristo), relação da
Vida absoluta com todos os viventes (Deus com todos os
homens), relação do Filho com os filhos (Cristo com os
homens), relação dos filhos (homens entre si) que chamamos
em filosofia de intersubjetividade169.
Esta "rede de relações transcendentes", da qual nos fala o autor, que é elemento
fundamental em nossa fé, acaso não constitui apenas outra forma de discurso sobre a
Fenomenologia de Cristo que nos conduz necessariamente à revelação de um Deus
relação? Em linguagem mais dogmática, tudo isto não pode ser compreendido como
outra forma de anunciar o mistério da Trindade?
Como em outra ocasião dissemos, Michel Henry não desenvolve explicitamente
uma reflexão sobre a Trindade. Não obstante, as palavras de Miguel García-Baró, em
sua apresentação do livro "Palavras de Cristo", manifestam-se cheias de sentido ao
anunciar: "A teologia de Henry está tão cheia do Espírito que apenas se refere ao Pai e
ao Filho"170. De fato, mesmo não desenvolvendo uma reflexão sistemática sobre o tema,
ousamos dizer que se existe uma teologia em Henry (o que efetivamente para nós
aparece de forma indubitável), esta se encontra irremediavelmente imbuída da fé
trinitária. Todo seu discurso sobre a geração da Vida em si mesma, enquanto Primeiro
vivente, remete-nos ao pensamento teológico sobre a pericorese. De forma magistral,
através de categorias próprias, como por exemplo, a da interioridade recíproca ou
aquela que se refere à ilusão transcendental do ego, o autor apalpa temas clássicos da
discussão teológica como a questão da noção de tempo-eternidade ou mesmo o tema da
Graça. Alias, o pensamento henryriano é realmente gracioso, é ele mesmo uma dádiva.
169
170
HENRY, C'est moi la vérité, pp. 80-81.
HENRY, Palabras de Cristo, p.12
102
A partir da Fenomenologia da Vida, como reflexão que se apoia definitivamente no
anúncio cristão, faz-se possível repensar categorias clássicas tais como: a de natureza,
pessoa, communicatio idiomatum (comunicação de idiomas) etc. Todavia, este não é o
foco de nossa empreitada.
Dizemos, pois então, que a Fenomenologia de Cristo é, por excelência,
Fenomenologia da Vida. De fato, entre Cristo e Vida não existe nenhuma alteridade (Jo
1,4; 14,6). A identificação entre estas duas fenomenologias, Cristo-Vida, lançar-nos-á
ao campo da revelação sobre nossa humanidade. Isto significa dizer que as duas
fenomenologias revelam, concretamente, algo sobre nossa condição humana. Porém, o
que exatamente dizem? Elas se referem à natureza da nossa relação com o mistério
inefável de Deus, ou seja, da Vida e de Cristo. Rahner compreende isto quando aborda o
tema da possibilidade da divinização. Daí brota a afirmação absurda, para a
Fenomenologia do mundo, de que o doador, sendo ele mesmo o próprio dom, se coloca,
também, como o fundamento da acolhida deste dom. Esta autocomunicação da Vida de
Deus possui, para Rahner, "efeitos divinizantes". Diríamos, esta autocomunicação
possui efeito soteriológico. Não é por acaso que o título dessa seção trata da
Fenomenologia de Cristo enquanto função soteriológica. Pois, na percepção da Vida
que se manifesta em nós, enquanto atualização dos poderes de nossa carne, encontra-se
a possibilidade da nossa salvação em Cristo, a Arqui-carne, o Filho primordial, o
salvador171.
Pensando um pouco mais a partir de Rahner, em diálogo com Henry, chamamos
a atenção para a dupla observação que o teólogo alemão faz em sua introdução sobre a
doutrina trinitária. A primeira diz respeito à linguagem. Neste sentido afirma:
O vocabulário que a Igreja utilizou nos inícios em uma teologia
extraordinariamente vigorosa e no esforço de compreensão
conceitual continuou tendo sua história [...] pode muito bem
ocorrer de determinada palavra vir a assumir conteúdo que no
mínimo acarreta o risco de que insira um sentido falso e
mitológico não mais aceitável. 172
171
172
Cf. RAHNER. Curso fundamental da fé, pp. 147-157.
Ibid, p.166.
103
Com tal afirmação Rahner aponta o limite da linguagem teológica que, situada sempre
nas coordenadas culturais de um tempo-espaço, não pode dizer, definitivamente, aquilo
que pretende dizer. Isto quer significar também que a reflexão sobre o dogma não
realizou a atualização linguística necessária. Assim, somos lançados em direção à
seguinte situação: ao tentarmos comunicar a mensagem cristã nos deparamos com o
paradoxo de que nossa linguagem corre o risco de ser incapaz de apontar sequer a
direção da mensagem que queremos comunicar.
A segunda observação diz respeito à teoria psicológica da explicação trinitária.
Aqui se expressa a famosa asserção que afirma: a "Trindade econômica é a Trindade
imanente". A preocupação do autor é resgatar um fazer teológico que tenha seu ponto de
partida na revelação de Deus em Jesus Cristo. Neste sentido, advoga-se que a doutrina
trinitária, entendida a partir de Cristo, é uma consequência da própria história da
salvação. Portanto, partindo de um movimento ascendente, da nossa experiência do
Cristo, percebemos que Deus se revela em seu Filho, pela ação do Espírito, como Pai173.
Diríamos, como que em metáfora, através deste movimento ascendente, da fé em Cristo,
percebemos o movimento condescendente de Deus que se nos dá como Pai, em seu
Filho, mediante a ação do Espírito. Tudo isto que é afirmado por Rahner é dito também
pela Fenomenologia da Vida de Henry, ainda que não possua efetivamente uma
abordagem direta sobre a doutrina trinitária. Talvez não o tenha feito por falta de tempo,
ou simplesmente para fugir ao tema da linguagem dogmática tradicional.
Para Henry, a Vida disse tudo ao se dizer no Filho. Ao se dizer em sua Palavra
encarnada, a Vida disse mesmo uma Palavra cheia de Espírito. O "Eu sou a Verdade",
dito pelo Cristo, não pode ser entendido sem a ação do Paráclito, aludido no v. 17 do
mesmo capítulo 14 de João. O Espírito da Verdade, e ressaltamos aqui a identificação
entre Verdade e Cristo, é enviado pelo Pai a pedido do Filho: "eu rogarei ao Pai e ele
vos dará outro Paráclito, para que convosco permaneça para sempre, o Espírito da
Verdade, que o mundo não pode acolher, porque não o vê nem o conhece. Vós o
conheceis, porque permanece convosco. (Jo 14,16-17). O que permanece conosco que o
mundo não pode conhecer? Aquilo que é alheio ao mundo, a própria Vida de Deus,
imanente em nossa carne. Este texto de São João se apresenta, simultaneamente, como
introdução e conclusão magistral da Fenomenologia da Vida. Trata-se de uma narração,
efetivamente trinitária, tal como o pensamento sobre a manifestação da Vida de nosso
173
Cf. Ibid, pp. 165-170.
104
fenomenólogo. Visto que toda autorrevelação de Deus descortina o horizonte para a
própria revelação sobre o homem, passamos agora ao discurso sobre nossa condição
humana primordial, na tentativa de vislumbrar uma antropologia fundamental.
3 A condição Humana primordial: por uma antropologia fundamental
A Fenomenologia de Cristo, revela-nos a condição humana primordial. Por isso,
cabe-nos agora pensar, à luz da humanidade de Jesus, o estatuto do próprio ser humano.
Nosso discurso desembocará, necessariamente, numa antropologia fundamental. De
fato, ao fim da sua secção sobre a Fenomenologia de Cristo, antes de nos lançar à
reflexão do ser humano como "Filho de Deus", Henry aponta a desconstruçãoconstrução frutuosa da concepção cristã acerca do homem. Assim, dirá:
Esta concepção do homem como ser do mundo é a que o
cristianismo faz em pedaços. E o faz porque entende o homem a
partir de seu nascimento transcendental como um Filho da
Vida.174
O cristianismo provoca, efetivamente, um esfacelamento da imagem do homem como
ser do mundo ao entendê-lo a partir da categoria da transcendência, imanência da Vida
na carne. Compreendendo o ser humano a partir do seu nascimento transcendental como
um filho da Vida e, se de fato, a Vida é Deus, compreende-o também como filho de
Deus. Esta concepção cristã da humanidade faz emergir uma novidade antropológica
que produz duas consequências imediatas segundo Henry: de um lado, transtorna a
concepção antropológica tradicional, que afirma o homem como Dasein, como ser no
mundo (do mundo); do outro lado, introduz o homem no sistema autárquico da Vida
fenomenológica absoluta e de seu Verbo, possibilitando assim seu acesso a Cristo, sua
salvação. Introduzir o homem no sistema autárquico da vida, significa, na linguagem
teológica oriental, divinizá-lo, introduzi-lo no seio do Deus trino, Deus relação.
De fato, mesmo não sendo deste mundo, sentimos, inelutavelmente, o peso do
mesmo, a carga de existir aqui e agora, neste tempo-espaço determinado. Isto nos
remete à questão existencial fundamental. Trata-se do Paradoxo de ter nascido sem ter
174
HENRY, C'est moi la vérité, p.119.
105
pedido: o peso existencial de ter que se suportar a si mesmo. Este tema é abordado por
Henry na sua fenomenologia da carne, ao descrever a corporeidade original, a partir de
sua auto-afecção radical, e ao propor a analítica do "eu posso". Toda esta questão,
desenvolvida na segunda parte da obra Encarnação, já se encontrava presente no livro
Eu sou a Verdade. Pensando os "paradoxos do cristianismo", Henry enfatizará a
narrativa do fardo ligeiro da Vida absoluta, contraposto ao peso do vivente de ter que se
tolerar como existente nesta carne em que se encontra dado originalmente sem o haver
desejado. Sobre Isso, diz o autor:
Esse sentimento de estar carregado de si para sempre sem havêlo querido, não é precisamente o ego quem o dá a si mesmo,
não é ele quem determina as condições, tampouco é ele quem o
leva: só o dá no ego a autodoação da Vida absoluta, só o traz e
o suporta nele aquilo que o faz se suportar a si mesmo, o sofrer
da Vida absoluta na qual esta chega a si na ebriedade de sua
Ipseidade original.175
Suportar-se, irremediavelmente, sem o haver desejado constitui, de fato, um paradoxo
existencial. Assim, a desventura de viver consistiria em que o ego afetado por um
conteúdo que não escolheu carrega um pesado fardo. Este é a Vida que veio a mim sem
que eu a escolhesse. Contudo, como pode a vida ser um fardo? Antes não devíamos
aceitá-la como uma dádiva? A respeito disso, parece-nos interessante a interpretação de
Henry sobre a passagem de São Mateus (11,28-30). Por que diz Cristo que seu jugo é
suave e leve enquanto o nosso é pesado, duro de suportar? Porque na Vida, que é Cristo,
não existe outro sentir que não seja aquele do gozo eterno da Vida, que se engendra e se
ama eternamente. Assim, na Vida não existe outro padecer que não seja sua alegria e
seu amor sem limites. Para Henry, a transformação da carga pesada em fardo leve,
acontece somente quando o ser humano se experimenta a si mesmo como filho no Filho.
Ao se perceber nesta experiência radical, a de estar dado em uma Vida que é puro dom,
ocorre um segundo nascimento. Este se faz condição de possibilidade para viver a vida
não mais a partir da angústia de uma existência pesada e sem sentido, mas como pura
175
Ibid, p.261. O termo "carregado de si" pode ser entendido através de um neologismo, tradução radical
do termo ipseidade, em que entendemos a nós mesmos enquanto esta mesmidade. Este sentimento radical
de estar sempre dado a mim mesmo, nesta auto-afecção radical, porém secundária, que provém da autoafecção primordial da Vida em si mesma.
106
gratuidade. Não mais se vive a partir da fraqueza e da impotência de ter que ser sem têlo escolhido, mas sim a partir da esperança e da alegria de existir neste hiper-poder da
Vida que, como diz Paulo (2Cor 12,10), paradoxalmente me faz forte quando pareço
fraco176.
3.1 Filhos no Filho
Esta seção visa abordar uma fantástica afirmação teológica haurida da fé cristã,
retomada, por sua vez, pelo discurso henryriano. Trata-se da asserção que defende a
condição de filho como uma verdade originária. O homem não se torna filho da Vida ou
filho de Deus numa posteridade devido à sua conduta existencial mais ou menos
adequada. Ele nasce da Vida e, portanto, deve ser compreendido como Filho da Vida.
Sendo o ser humano um partícipe da vida, ele não se dá a si mesmo enquanto vivente.
Seu nascimento é uma dádiva. Segundo a fé cristã, nossa condição de vivente, deve ser
percebida como um dom que recebemos da Vida, mediante a mesma Vida que é Cristo.
A fenomenologia henryriana apresenta uma visão antropológica que destoa daquela
desvelada pelo realismo ingênuo, que pensa o homem como um ser a mais no mundo.
De fato, nossa presença se dá de uma forma bem distinta dos outros corpos que habitam
o universo. Primeiro, porque somos um corpo de carne, somos seres encarnados.
Segundo, estamos presentes de uma forma diferente, porque conscientes desta presença,
podemos agir efetivamente sobre nós mesmos e o mundo à nossa volta. Percebemos
então, que a própria tradição filosófica, concebida a partir das reflexões de Descartes,
Kant e Husserl, já contradiz, como bem nos lembra Henry, a noção do realismo
ingênuo. Fazendo emergir, portanto, o homem em sua condição epistemológica, em sua
possibilidade transcendental, como sujeito capaz de conhecer e dominar a realidade.
Contudo, a fenomenologia henryriana propõe, a partir da tradição cristã, outra visão do
ser humano177. A concepção cristã do homem como Filho introduz, segundo Henry, um
caráter antropológico - filosófico revolucionário, ao afirmar que ele não é um ser-domundo como os outros corpos. Trata-se de uma virada antropológica que anuncia a
passagem de uma Fenomenologia do mundo a uma Fenomenologia da Vida.
176
177
Cf. Ibid, p. 263.
Cf. Ibid, pp. 121-123.
107
A inversão da concepção do homem, realizada de uma vez por
todas pelo cristianismo, não consiste na modificação dos
elementos incluídos na concepção reinante. Consiste em sua
exclusão. Outra essência fenomenológica define ao homem
transcendental cristão,
outra
verdade.
Outro
modo
de
fenomenalização da fenomenalidade constitui sua realidade
substancial, a carne fenomenológica que constitui sua carne. O
cristianismo procede a esta substituição radical de um modo de
verdade por outro quando apresenta o homem como filho.178
A concepção reinante, referida no texto acima, diz respeito ao realismo ingênuo ou à
filosofia transcendental, ambas partícipes da Fenomenologia do mundo. Este outro
modo de fenomenalização da fenomenalidade se refere à nossa condição de viventes no
seio da Vida. A outra essência fenomenológica que define ao homem é justamente sua
condição de filho gerado no Filho. Com isto, o autor pretende afirmar que a existência
encarnada, que somos cada um de nós, difere-se, radicalmente, do conceito de criação
presente na Fenomenologia do mundo.
Ao afirmar que o homem não é um ser do mundo como os outros corpos, afirmase que o ser humano possui origem distinta. Ele não foi criado do mesmo modo como
todas as outras coisas, mas foi criado à imagem e semelhança de Deus (Gn1). Esta
criação à imagem e semelhança é interpretada por Henry a partir da categoria, até então
teologicamente reservada à vida intra-trinitária, de geração dos filhos no Filho. Sabemos
o quão problemático se faz esta hermenêutica henryriana. Afirmar que o homem é
gerado no Filho como filho destoa da clássica tradição teológica que afirma o homem
como criação ordinária, somente o Filho de Deus é gerado eternamente. Somos
conscientes do risco hermenêutico da interpretação henryriana no que diz respeito à
origem da vida do ser humano. Contudo, depois de nossa pesquisa, afirmamos que não
nos parece que a reta intenção do autor possa ser colocada em questão. Isto significa
afirmar que não conseguimos detectar em sua teoria, filosofia do cristianismo, a
intenção de derrubar a tese teológica da criação do homem como marca da sua radical
alteridade em relação a Deus. Na teoria do autor, o homem, apenas não deve ser
considerado como uma criatura ordinária, ele é de ordem extraordinária porque pertence
à esfera da Vida do próprio Deus, isto significa ser feito à imagem e semelhança.
178
Ibid, p.124.
108
Portanto, pensamos que a palavra geração, no discurso henryriano, sempre que se refere
ao ser humano, para evitar cair na interpretação que acarreta possível lesão à ortodoxia,
deve ser pensada em dois sentidos. No primeiro, geração significa o mesmo que
nascimento transcendental do homem que tem sua origem no seio da Vida, mais
propriamente dito, criado no Filho. No segundo sentido, pode-se pensar que o homem é
gerado enquanto é criado de forma distinta das outras realidades. Neste sentido, a
geração do homem no Filho, significa o mesmo que sua criação à imagem e semelhança
da Vida, que é Deus. Isto porque recebe de Deus a Deus mesmo, ou seja a Vida.
Devemos colocar o acento no verbo 'receber', que aponta para a dimensão de
passividade do homem em relação à Vida absoluta. Retomaremos este tema no nosso
terceiro capítulo, quando trataremos da Inteligibilidade primordial e o sentido cristão da
salvação.
Para prosseguir nosso discurso, urge retomar a distinção basilar operada no
pensamento henryriano entre geração e nascimento. Esta reflexão colocará em xeque a
concepção filosófica clássica do nascimento, segundo a qual nascer significa vir a ser,
entrar na existência. Se a fenomenologia funda a ontologia, poderíamos dizer que
nascer, segundo uma compreensão fenomenológica, pode ser entendido como vir a
aparecer neste horizonte de visibilidade do mundo. Não obstante, tal visão nos lança
num profundo dilema, quando compreendemos, segundo Henry, que neste horizonte do
aparecer do mundo nenhum nascimento é possível, pois a Vida não se manifesta no
aparecer do mundo. Desta forma, a concepção clássica, que concebe todo nascimento
como o "vir a aparecer neste mundo", fica relegada à ilusão. No mundo não é possível
nenhum nascimento.
Não somente dizemos que muitas coisas vêm ao mundo sem
por ele ter nascido, senão, mais radicalmente, que a vinda ao
mundo proíbe de antemão todo nascimento concebível se é
verdade que, no "afora de si" do mundo, o abraço da vida
consigo estava quebrado antes de se produzir, se a Verdade da
Vida é irredutível à do mundo.179
A distinção entre geração e nascimento, a partir do mundo da Vida (Lebenswelt),
já foi tratada tangencialmente quando abordamos a questão da autorrevelação da Vida
absoluta no seu Logos primordial, e haverá de ser retomada, no terceiro capítulo,
179
Ibid, p.78.
109
quando abordarmos os temas da Protologia e da Soteriologia. Vimos, contudo, que o
termo geração encontra-se reservado, teologicamente, para a relação de mistério e amor
que ocorre na Vida que se autoengendra como Pai-Filho no Espírito. Ao se engendrar,
no abraço patético de si mesmo a si mesmo, a vida se engendra como Filho. A geração
do Primeiro vivente ou do Arqui-Filho é o ponto de partida para a compreensão do
nascimento transcendental de cada homem e mulher como filhos e filhas da Vida.
Portanto, esta questão primeira da geração e nascimento nos lança no terreno teológico
da ressignificação do conceito de filiação. Já observamos que, segundo a
Fenomenologia do mundo, nascer significa aparecer sob esta estrutura de visibilidade
ek-stática. Todavia, segundo a Fenomenologia da Vida, o nascimento se refere a uma
fenomenologia mais radical e não pode ser reduzida ao aparecer do mundo. Vale a pena
ressaltar uma vez mais este pensamento:
Pois o nascimento não consiste nesta sucessão de viventes que
pressupõe em si a vida, mas consiste na vinda à vida de cada
vivente a partir da Vida mesma. Tampouco se pode
compreender a não ser a partir desta e de sua essência própria, a
partir da autogeração da Vida como sua autorrevelação na
Ipseidade essencial do Primeiro Vivente. 180
Ao advogar o nascimento como algo distinto desta sucessão de viventes, o autor
nos remete ao versículo 13 do prólogo de São João : "eles, que não foram gerados nem
do sangue, nem de uma vontade da carne, nem de uma vontade do homem, mas de
Deus". Contudo, faz-se importante perceber que, segundo o próprio Henry, ao se
recusar a fundamentação radical da filiação no homem, não se procede assim por razão
semelhante ao maniqueísmo, que advoga que o sangue e a carne são maus. A tese que
fundamenta esta recusa de que não chamemos "Pai" a nenhum homem sobre a terra,
ancora-se em algo que outrora já fora explicitado em nosso discurso (Mt, 23, 9). Tratase da indigência ontológica que a todos assola. Assim sendo, o ponto nevrálgico é que
este sangue e esta carne são viventes, mas não são, em si mesmos a Vida. Portanto,
como tal, não existe possibilidade que sejam geradores autônomos da vida. Assim, fica
demonstrada a absurdidade que constitui a pretensa paternidade do mundo. Se cada um
que se deixa chamar de pai não é a vida, mas somente vivente, então esta autotitulação
180
Ibid, p.100.
110
não pode ser lícita. Isto porque, como vivente, também se coloca como receptor deste
dom primordial de "ser encarnado na Vida", não sendo a vida em si, não pode também
dá-la, não deve, portanto, ser considerado ou chamado, originalmente, de pai. Como diz
Henry:
Situar os conceitos de nascimento e de Filho sob a salvaguarda
do
Arqui-Filho
transcendental
e,
de
fato,
referir-se
necessariamente à Vida absoluta cujo Arqui-Filho não é senão o
autocumprimento sob a forma de sua autorrevelação. Trata-se
de apelar inevitavelmente a outra Verdade distinta daquela do
mundo, a essa Verdade da Vida fora da qual não existe,
efetivamente, nem nascimento nem filho, nenhum tipo de
vivente.181
Ao pensar o homem na qualidade de filho, o pensamento henryriano lança um
olhar crítico sobre a Cristologia das duas naturezas. Como antes dissemos, para o autor
esta reflexão cristológica apresenta problemas por gerar preconceitos que impedem a
intelecção do cristianismo. O primeiro se relaciona com a ideia de que, ao pensar em
Cristo a união entre duas naturezas (humana e divina), pode-se pressupor que exista
uma natureza humana preexistente, posteriormente assumida pelo Verbo. Diante disso,
surge o desafio de "explicar Cristo a partir de uma natureza humana que não existia
quando Cristo foi engendrado no autoengendramento da Vida absoluta"182. Onde fica a
afirmação de João 8,58 (eu sou antes de Abraão)? Segundo o pensamento henryriano,
se o homem foi engendrado na Vida, não pode haver nele outra "matéria
fenomenológica" que não seja aquela da Vida. Conceber uma natureza humana separada
daquela própria na qual foi gerada, constitui uma aberração para o cristianismo, e coloca
em xeque a afirmação capital do homem enquanto filho no Filho.
Prosseguindo ainda sua análise, o autor dirá, com relação à significação negativa
e positiva da afirmação do homem como filho da Vida, que no primeiro momento, esta
asserção arranca o homem da compreensão ordinária dos seres inseridos no mundo
natural. Negando, portanto, sua existência como ser do mundo. O homem não é um
corpo qualquer perdido no espaço e no tempo. Não é o corpo opaco, objeto de análise
das ciências duras. Por isso, é inconcebível reduzi-lo ao ponto de vista da filosofia
181
182
Ibid, p. 94.
Ibid, p.126.
111
transcendental. Isto porque ele não pertence a este mundo, enquanto horizonte de
visibilidade. Sua essência não pode ser captada pela Fenomenologia do mundo. Exigese uma outra epistemologia para sua compreensão, uma Inteligibilidade primordial.
Trata-se de um outro modo de manifestação mais radical, o do mundo da vida
(Lebenswelt). A significação positiva nos lança uma pergunta crucial, ponto de crítica
da própria fenomenologia henryriana. Partindo da afirmação de que o homem possui em
si a essência divina, por ser ele filho da Vida, pergunta-se, com toda propriedade: em
que ele se diferencia do próprio Deus? Aqui desponta a questão da individuação, que
segundo Miguel García-Baró, fica sem resposta consistente na teoria da fenomenologia
da Vida de Henry183. Contudo, ousamos dizer, que desde nosso ponto de vista, este
problema pode ser compreendido, como bem afirma o autor, a partir da análise do
nascimento transcendental do Filho na Vida. O conceito chave é o de autoafecção. O
que diferencia a Vida absoluta de todo vivente, o que constitui o marco do princípio de
individuação é a forma com que ocorre a afecção. No caso da Vida ela é a autoafecção
primordial. O própria da Vida é que ela é esse eterno abraço patético a si mesma, sem
nunca se distanciar de si. Isso constitui o que Henry chama de sentido forte da
autoafecção. O sentido fraco da autoafecção se refere ao vivente que se experimenta a si
mesmo, mas em um segundo sentido, devido à indigência ontológica que acusa o fato
de não ser ele o responsável último desta autoafecção, uma vez que não se deu a si
mesmo a Vida. Assim, segundo Henry, "existe, portanto, nesta autoafecção do "eu" uma
passividade, uma vez que não sou "eu" a fonte desta experiência"184.
Ao final desta secção retomamos o tema do nascimento com uma interrogação
profundamente evangélica. O que será que Jesus quis dizer a Nicodemos quando
afirmou que ele precisava nascer de novo? O "bom homem" entendeu isto no sentido do
realismo ingênuo pensando que deveria voltar ao ventre materno. Contudo este
nascimento dito por Jesus, refere-se ao segundo nascimento na Vida, que
espiritualmente pode ser compreendido como o caminho de conversão, ou
simplesmente, a percepção da Graça de sermos um vivente no seio da Vida. A tradição
espiritual, especificamente cristã, sempre advogou esta possibilidade de nascer de novo.
O sacramento do Batismo é entendido, tradicionalmente na comunidade cristã, como
um segundo nascimento. Esta morte para o mundo, pode ser interpretada, segundo
Henry, não como um abandono da nossa condição carnal, mas como assunção da
183
184
Cf. HENRY, Palabras de Cristo, p.12.
Cf. HENRY, C'est moi la vérité, pp.128-137.
112
condição humana primordial, a de sermos, filhos no Filho. Isto exige uma nova
condição epistemológica, uma nova inteligibilidade. Exige-se o êxodo da ilusão
transcendental do ego para a percepção da nossa condição de irmanados na vida. De
fato, "agora vemos como em espelho, de maneira confusa, mas depois veremos face a
face. Agora meu conhecimento é limitado, mas. depois, conhecerei como sou
conhecido" (1Cor. 13,12). Não é possível conhecer como sou conhecido a não ser no
seio da Vida.
3.2 Sobre o esquecimento da nossa condição de filho: Ilusão Transcendental do
Ego
Este tópico traz como reflexão o drama existencial do esquecimento da nossa
condição de Filho. Toca, portanto, temas clássicos da teologia cristã, tais como: nossa
condição de labilidade e a possibilidade da salvação. Desde já salientamos que a questão
destacada por nós, segundo o pensamento de Henry, não é a demonstração de como os
homens que vivem uma vida que não se fundamenta neles mesmos poderiam, por uma
espécie de mutação em sua própria natureza, transformarem-se em algo distinto do que
outrora foram. O homem, como dissemos, não se torna filho de Deus, por uma espécie
de mutação espiritual, abandonando assim um velho casco e assumindo um novo. Há de
se entender muito bem o "novo nascimento" sempre anunciado pelo cristianismo. Nosso
propósito gravita em torno da indagação de como nós homens, filhos de Deus, podemos
perder nossa condição e, ao perdê-la, se nos é possível voltar a encontrá-la. À guisa
desta problemática gravitará a tarefa de pensar as duas causas deste esquecimento da
condição de filho 185.
As causas que provocam o esquecimento da nossa condição de filhos serão
determinadas respectivamente pelo pensamento henryriano como Ilusão transcendental
do ego e dissimulação da Vida. Para entendermos estas duas causas, precisamos retomar
o tema da geração transcendental de cada vivente na Vida. Abordar o processo de
nascimento transcendental de cada vivente, a partir do Arqui-Filho, na Ipseidade da
Vida absoluta, equivale a levar a cabo uma interrogação capital para a Fenomenologia
da Vida. Trata-se de se perguntar pela mesma possibilidade de que nós sejamos este
"ego" capaz de pronunciar a cada instante um "eu". Então, previamente ao tema do
185
Cf. Ibid, p. 205.
113
esquecimento da condição de filhos, destaca-se o tema da extraordinária possibilidade
de sermos este filho particular que pode a cada instante pronunciar "eu". Todo vivente,
gerado na Ipseidade da Vida absoluta, é gerado como um "si", um "eu". E não é possível
que se estabeleça nenhum "eu" fora deste processo de geração da Vida. Parece-nos
interessante a afirmação henryriana segundo a qual, ao dizer "eu", este "si" o diz de
forma acusativa para ressaltar que este "poder" de dizer "eu" é ele mesmo uma dádiva,
uma vez que não lhe foi conferido senão pela Vida. Ao abordar a geração de cada
vivente na Ipseidade da Vida absoluta, Henry introduzirá uma distinção complexa entre
o que ele denominará "eu" e "ego". Não faz parte do nosso objetivo aprofundar ou
discutir este instigante tema. Apenas o tocamos tangencialmente, porque constitui
condição de possibilidade para que possamos entender o que segue. Para Henry o "eu"
gerado na Ipseidade da Vida absoluta, no instante mesmo em que nasce, entra em
possessão deste "poder viver". Assim, dir-se-á que pronunciar "Eu" é o mesmo que
pronunciar "Eu Posso". Desta forma é que a fenomenologia henryriana distinguirá dois
tipos fundamentais de "Poder": primeiro, o"poder" deste ego, colocado em "possessão"
de si mesmo; em seguida, o poder de dizer "eu", contraposto ao "não poder". Este
último é mais decisivo e importante que o primeiro e significa "a impotência absoluta
do Eu no que se refere ao fato de se encontrar em posse deste poder, com capacidade
de exercê-lo"186. A expressão "se encontrar" em posse de um poder é capital para
entendermos o raciocínio do autor. O "Eu", de fato, "se encontra" em posse de um poder
que lhe foi "dado". Assim, todo "poder" do ego está baseado na gratuidade radical da
Vida que, ao engendrar o vivente no seu seio, engendra-o como este "poder" de ser um
"si" que sente.
Na possessão de si mesmo, experimentando-se constantemente neste ato sempre
novo de dizer "eu posso" (correr, amar, viver), o ego se toma como fonte e origem deste
"poder". Assim nasce a primeira causa do esquecimento da condição de filho,
denominada por Henry de Ilusão transcendental do ego. Antes de abordar a segunda
causa, parece-nos necessário ponderar algo essencial na teoria henryriana da geração
transcendental do "eu". Trata-se da afirmação de que esta primeira causa do
esquecimento da condição de filho, porta em si, uma verdade necessária. Esta é que a
doação do poder ao eu gerado na Vida é verdade e não uma ilusão. Ilusório constitui
somente o fato de que o "ego" se tome como fonte destes "poderes". Contudo, o "ego"
186
Ibid, p.173.
114
se encontra, efetivamente, em "posse" de si mesmo de uma vez por todas. O ego,
encantado e fixado na doação efetiva do poder, esquece a fonte e a possibilidade de todo
poder, a Vida geradora de todo vivente, a autodoação da Vida fenomenológica absoluta
no Filho Primordial. Ocorre então, um velamento da verdade sobre ele mesmo, pela
empolgação do exercício do seu 'eu' que se encontra em possessão dos "poderes" a ele
doados pela Vida187.
Partindo da afirmação espantosa de que o esquecimento da nossa condição de
filhos não ocorre devido a fatores externos, mas que constitui parte do próprio processo
da geração do "eu" transcendental na Vida fenomenológica absoluta, buscaremos
abordar a segunda causa deste ocultamento da nossa condição primordial. A
dissimulação da Vida favorece a compreensão do paradoxo, aparentemente insuperável,
de que estamos fadados, pelo próprio processo da geração dos viventes na Vida, a
cairmos no esquecimento da fonte de nós mesmos. Como se a Ilusão transcendental do
ego fosse o destino de todo "si" transcendental gerado na Vida. A dissimulação da vida
afeta diretamente a noção de tempo que temos segundo a estrutura da Fenomenologia
do mundo. Resulta que a vida é imemorial porque nela não há temporalidade. Não esta
temporalidade das "praias de exterioridade" da estrutura ek-stática do mundo, onde tudo
desliza para um passado, para o vazio e o nada. Assim, este esquecimento da Vida é
inevitável, visto que faz parte de seu estatuto fenomenológico. O 'Si' da vida se deixa
esquecer. Se o esquecimento é entendido como pensamento, então concluímos, com
Henry, que esquecemos aquilo no qual não pensamos mais. Pensar em algo, dizemos
com o autor, é lançar um olhar intencional para a coisa do mundo. Esta relação
intencional, "aquilo no qual pensamos surge então diante deste olhar , esse 'fora' que é
a verdade do mundo"188. Portanto, se na vida não há nenhum "fora", se não há as praias
de exterioridade, ou a estrutura ek-stática a partir da qual o olhar possa se deslizar, esse
raciocínio não se aplica. A Vida, na sua autoafecção, nunca se separa de si mesma, não
há nenhuma distância nela, e por isso mesmo, a vida é incapaz de pensar em si mesma,
não há recordação, não há o que recordar, porque na vida não existe passado, ela é
sempre presente. Assim diz Henry:
A vida é esquecimento, esquecimento de si no sentido radical.
Enquanto o esquecimento da vida é definitivo, insuperável, a
vida carece de memória. A vida carece de memória porque
187
188
Cf. Ibid, pp.177-179.
Ibid, p.186.
115
nenhuma intencionalidade, nenhuma menção de nenhum
objectum é capaz de se situar nela, de se interpor entre ela e ela
mesma. [...] A vida é imemorial. O homem esquece sua
condição de filho porque a Vida escapa de toda memória
possível. 189
A dissimulação da Vida no "ego" pelas causas fenomenológicas acima
explicitadas, abre espaço para que este possa mergulhar no mundo. Assim, segundo
Henry, quanto mais se oculta a Vida no ego, mais disponível permanece o mundo. A
partir daqui brota uma espécie de "egoísmo transcendental". Este se baseia na
desmedida preocupação do homem pelo mundo, que na verdade se resvala
constantemente na preocupação por si mesmo. Temos, então, duas maneiras de
relacionamento do ego: a relação consigo na preocupação com o mundo, que leva ao
egoísmo, e a relação do ego consigo na Vida. A denúncia, por parte de Jesus, das vãs
preocupações, aparece-nos aqui como sugestiva (Mt 6,25-33) sobre o abandono à
providência) e (Lc 10,41) "Marta, Marta, tu te inquietas e te agitas por muitas coisas;
no entanto pouca coisa é necessária, até mesmo uma só. Maria, com efeito, escolheu a
melhor parte, que não lhe será tirada". O que havia escolhido Maria, senão o ficar
jogada aos pés da Vida, escutando suas Palavras, sentindo-se a si mesma, neste sentir
maior que é o próprio Cristo?
Voltemos à questão angustiante de como pensar a saída do ego do esquecimento
da sua condição primordial se este é provocado pelo próprio processo de autogeração da
Vida. Não existe outra saída senão aquela oferecida pela tese cristã do segundo
nascimento. Este se instala como possibilidade do homem de superar este esquecimento
radical. Esta possibilidade é o que se entende na tradição espiritual do cristianismo
como salvação. Para Henry, este segundo nascimento é o reencontro daquela condição
original de todo vivente. Assim, a possibilidade da superação do esquecimento e da
salvação está na condição de filho. O retorno do filho se dá pela própria condição de
filho. Então, segundo o autor:
Unicamente porque, no automovimento de sua temporalidade
imanente, esta Vida nunca se separa de si, o ego, dado a si
189
Idem.
116
mesmo na autodoação desta Vida absoluta, não está separado
dela nem dele mesmo. 190
Isto equivale a dizer que o filho não se separa da Vida. Mesmo perdido na ilusão
transcendental, tomando-se a si mesmo como fonte de todos os seus poderes, sempre
existe a possibilidade de recordar a condição primordial de filho. Acaso não é isto o que
nos narra a parábola do "filho pródigo e do Pai misericordioso" (Lc15,11-32)? Aquele
filho, mesmo distante, havia esquecido de sua condição primordial, mas não perdido.
Segundo Henry, "a imanência da Vida absoluta na vida própria e singular do ego é o
que faz teoricamente possível a salvação."191. É o que faz possível a volta do filho para
a casa paterna. Ao se lembrar da dádiva que significa ser um filho, não há outro
caminho, colocamo-nos em marcha para a casa do Pai. Para o cristianismo, no entanto,
dir-nos-á o próprio autor, o segundo nascimento que faz escapar da morte e recuperar a
condição de filho ocorre devido a uma mutação que se leva a cabo no interior da vida
mesma. Esta mutação se refere à "autotransformação da vida que consiste em um fazer
que reconduz à sua essência verdadeira, é a ética cristã."192. A ética cristã religa as
duas vidas: a do ego e a de Deus. Contudo, disto agora não trataremos, pois este é o
tema a ser desenvolvido com acuidade no nosso próximo capítulo, quando abordarmos
o sentido cristão da salvação.
3.3 Por uma antropologia fundamental
Pensar uma antropologia fundamental supõe, no fundo, fazer ecoar uma
pergunta, radicalmente fenomenológica sobre o ser humano, a saber: quem é este que
aparece como corpo e que a todo instante pronuncia um "eu"? Não há nada que se
inventar neste tópico. De fato, todo nosso discurso até agora se encontra imbuído de
uma reflexão fundamental sobre a realidade humana a partir da Fenomenologia da Vida.
Simplesmente destacamos que a concepção antropológica presente no pensamento
henryriano parte de seu entendimento da geração do "Si" transcendental na Ipseidade da
Vida absoluta. Este vivente que aparece constantemente pronunciando um "eu", para
Henry, não pode ser compreendido senão a partir de sua geração no seio da Vida.
Gerado na dinâmica do eterno abraço da Vida a si mesma, o vivente é um corpo de
190
Ibid, p.202.
Ibid, p.208.
192
Ibid, p.209.
191
117
carne. Este constitui o atributo principal da fenomenologia henryriana. Antes de
qualquer coisa, somos carne, porque viventes. Este termo, como sabemos, possui, no
pensamento do autor, o significado radical de autoafecção. O homem é portanto,
primordialmente, um ser afetado pela Vida fenomenológica absoluta. E só é um vivente,
enquanto compreendido nesta doação essencial da Vida na qual ele é gerado ou, na
linguagem teológica tradicional, criado à imagem e semelhança.
O pensamento henryriano, segundo Lacroix, permite pensar uma antropologia
fundamental, na medida em que colabora na reflexão da ontologia do corpo-sujeito.
Assim, merece atenção as três acepções de corpo haurida da fenomenologia de Henry.
Em primeiro lugar, o ser humano, deve ser compreendido a partir do seu "arquicorpo",
chamado o corpo originário, ou como prefere Lacroix, o corpo de carne. Este pode ser
definido como o "lugar de nossa presença no mundo e em nós mesmos (...) o alfa e o
ômega de nossa experiência do mundo"193. O arquicorpo nos remete uma vez mais ao
nascimento transcendental do homem na Ipseidade da Vida absoluta, a partir da qual,
recebe seu "poder de sentir", tal como abordamos anteriormente. De fato, uma nota
antropológica essencial é aquela que se refere ao homem como este "Eu posso" visceral
narrado tantas vezes na Fenomenologia da Vida pelo autor. A segunda acepção de corpo
é o corpo orgânico, que aparece como um corpo metaxológico194. Quer dizer, como
aquele que se situa no meio e se constitui a partir de uma dupla relação: por um lado, a
relação interorgânica que os órgãos mantêm entre si; por outro, a conexão necessária
que deve existir entre cada órgão e sua referência última, a saber: o corpo originário. É a
partir deste que se dá a compreensão dos "poderes" particulares conferidos a cada órgão.
Lacroix destaca que não existe um dualismo entre o corpo originário e o corpo orgânico,
afirmando que a diferença entre eles se instaura na ordem ontológica e não ôntica.
Trata-se, especificamente, da diferença entre o corpo doação (corpo originário) e o
corpo dado (corpo orgânico). Assim temos que:
O corpo orgânico possui um estatuto intermediário entre
imanência e transcendência: de uma parte, ' o ego é a substância
de seu
organismo';
de outra, ele é chamado 'corpo
193
LACROIX, O corpo de carne, p. 143.
Cf. DESMOND, William. Being Between. Clio: journal of literature, History and the Philosophy of
History 204 (1991), p.315.
194
118
transcendente, que não é outra coisa senão a fronteira desta
vida'.195
O corpo objetivo constitui a terceira acepção destacada por Lacroix e pertence
definitivamente ao mundo transcendente. Isto porque, de fato, pode ser tomado como
objeto exterior, passível de ser analisado pela ciência. Contudo, mesmo assim, este
corpo não pode ser situado no mundo como qualquer outro corpo dado no horizonte de
visibilidade ek-stática. Nosso corpo objetivo, não é puramente um ob-jecto, um ser
lançado no fora deste mundo. Ele é dado e constituído a partir de uma matéria
fenomenológica distinta da matéria fenomenológica dos corpos opacos que nada
sentem. Uma abordagem mais aprofundada sobre o tema pode ser feita a partir da obra "
Philosophie et phénoménologie du corps"196, na qual Henry aprofundará a análise de
Maine de Biran. Por questão de objetivo e tempo, não nos detemos nesta análise,
embora a consideremos de extrema importância para a compreensão deste tema. Cabe
ressaltar ainda, que as três acepções de corpo que acabamos de vislumbrar, a partir do
pensamento henryriano, não introduzem, em absoluto, uma espécie de esfacelamento de
sua visão sobre o homem. A antropologia henryriana não se destaca da sua compreensão
da Fenomenologia da Vida, e por isso mesmo, constitui uma unidade. A distinção
ressaltada por Lacroix se insere numa descrição metodologicamente fenomenológica
visando a melhor compreensão da realidade fundamental do ser humano, refletida
magistralmente pela análise henryriana do mundo da Vida.
A intelecção do conceito cristão de homem, para Henry, encontra-se
fascinantemente narrada no Prólogo de São João. É a partir deste texto fundacional que
poderá ser pensada uma antropologia fundamental, compreendida a partir da
Inteligibilidade primordial. A tese da encarnação, tantas vezes recordada como princípio
investigativo de nossa empreitada, emerge novamente como o ponto nevrálgico do
nosso discurso antropológico, que, por sua vez, necessariamente se instaura como
cristológico. A relação dialética entre antropologia e cristologia se reacende quando nos
damos conta que, segundo a fenomenologia henryriana, o Primeiro vivente ou o
ArquiFilho se estabelece, tanto no cristianismo como no pensamento do autor, como
195
LACROIX, O corpo de carne, p.144.
Cf. HENRY, Michel. Philosophie et phénoménologie du corps. Essai sur l'ontologie biranienne. Paris:
PUF, 1965. 308p. ( Filosofia y Fenomenologia del Cuerpo: Ensayo sobre la ontología de Maine de Biran.
Ediciones Sígueme, Salamanca, 2007. 302p.) Não tivemos acesso ao texto francês, por isso a citação
desta obra ocorrerá sempre a partir da versão espanhola).
196
119
chave hermenêutica para a compreensão de nossa condição humana. Portanto, toda
antropologia que se pretende pensar o ser humano a partir de sua condição originária,
passa necessariamente, pela tematização da nossa condição de seres encarnados. A
compreensão do homem como vivente gerado na Arquicarne da Vida, estabelece-se
como viés antropológico necessário para toda reflexão que se pretende fundamental.
No ocaso deste segundo capítulo, parece-nos relevante destacar a possibilidade
de uma antropologia fundamental a partir da conexão entre a categoria de
"autocomunicação" em Rahner e a "Fenomenologia da Vida" em Henry.
Sobre a
Autocomunicação de Deus, Rahner afirma que ela não pode ser confundida com um
discurso objetivante sobre esta realidade. Trata-se de uma autocomunicação ontológica
de Deus, que, por sua vez, pode ser pensada da seguinte forma: "O termo
'autocomunicação' visa propriamente a significar que Deus se torna ele mesmo em sua
realidade mais própria como que um constitutivo interno do homem". Ora, esta
definição rahneriana vai ao encontro do pensamento henryriano que defende uma
Fenomenologia da Vida. Neste sentido, não nos parece absurdo pensar que existe, de
fato, uma coincidência feliz entre a reflexão sobre a 'autocomunicação de Deus',
desenvolvida pelo teólogo alemão, e a 'Fenomenologia da Vida', do filósofo francês. Em
Henry, este "Deus que se torna ele mesmo em sua realidade mais própria como que um
constitutivo interno do homem", outra coisa não é que a Vida absoluta em sua carne
patética. E o se tornar "um constitutivo interno do homem", pode ser pensado, segundo o
mesmo autor, a partir da Fenomenologia da Vida, como a autogeração do vivente na
Vida. A Vida que possibilita o vivente ser ele mesmo um "Si", é, para nosso autor, o
constitutivo interno do homem, o dom revelado pela Vida é a vida mesma de Deus
imanente no nosso corpo encarnado, nosso corpo originário197.
Ao abordar o tema da Autocomunicação de Deus e a permanência do mistério,
Rahner fala dos existenciais fundamentais do homem que são percebidos a partir da
experiência que este faz de si mesmo como ser finito e categorial. A partir daí o ser
humano se encontra com o seguinte paradoxo existencial: ao mesmo tempo que ele
provém permanentemente de Deus, também se encontra na radical distinção com
respeito a Deus mesmo 198. Estes existenciais fundamentais de Rahner encontram na
Fenomenologia da Vida de Henry uma elaboração diferente, mas que nos aproxima da
mesma mensagem. O vivente também se reconhece, a partir do seu 'si' transcendental,
197
198
Cf. RAHNER, Curso fundamental da fé, pp. 145-146.
Cf. Ibid, pp.148-149.
120
como fundamentado na Vida, provém permanentemente dela. Contudo, apesar de ser
vivente, ele mesmo não é a Vida e se distingue radicalmente dela enquanto não pode se
dar a si mesmo e nem gerar outros viventes. A denúncia dos homens que, absurdamente,
equiparam-se a Deus na teologia cristã, corresponde à insatisfação henryriana de pensar
que há viventes que, esquecendo sua condição primeira de 'jogados na vida' como um
'si' transcendental contingente, se colocam como fundamento da própria condição de
vivente. Isto foi do que tratamos no tópico anterior ao abordarmos o tema do
esquecimento da nossa condição de filhos ao cairmos no egoísmo gerado pela ilusão
transcendental do ego.
A antropologia henryriana nos lança sempre, como uma espécie de efeito
bumerangue, à questão da encarnação. Esta, por sua vez, nos descortina o desafio de
refletir sobre o sentido cristão da salvação. Pensar o homem como um corpo de carne,
não pode ser feito negligenciando o fenômeno universal de que somos seres encarnados,
e o fenômeno culturalmente restrito da profissão de fé em um Deus encarnado. Toda
esta reflexão não se faz possível a não ser a partir de um pressuposto fenomenológico
radicalmente distinto. Este pressuposto gera uma nova inteligibilidade, dita Primordial,
que permite ver o invisível. Aqui nos encontramos no âmbito da nossa profissão de fé
em um Deus encarnado, que veio a nós para nossa salvação. Este vir de Deus em uma
carne não é acidental, mas fundamental. Destarte, a encarnação revela uma Arquiinteligibilidade. Uma Inteligibilidade primordial que se estabelece como condição
hermenêutica da compreensão do sentido cristão da salvação. Este é o preâmbulo do
derradeiro capítulo de nossa dissertação.
121
CAPÍTULO 3: INTELIGIBILIDADE PRIMORDIAL: O SENTIDO
CRISTÃO DA SALVAÇÃO
Por que escolher este título para nosso derradeiro capítulo? Qual a conexão entre
o sentido cristão da salvação e a inteligibilidade dita primordial? O ponto de partida
para a compreensão desta questão coincide, definitivamente, com o tema crucial
abordado durante toda a dissertação, a saber, a tese da encarnação. Nesta última
empreitada daremos três passos decisivos visando proporcionar uma melhor
compreensão do conjunto de nosso trabalho. Partiremos em um primeiro momento da
reflexão sobre a fenomenologia da encarnação, que se faz condição de possibilidade
para a abordagem do nosso segundo momento. Este, por sua vez, tratará da
compreensão da salvação em seu sentido cristão, a partir da Inteligibilidade primordial
anunciada no prólogo de são João. Por último, haveremos de propor uma reflexão de
cunho ético-teológico sobre o sentido e a possibilidade das nossas ações carnais,
apontando para o horizonte de uma teologia mistagógica da corporeidade. Tema que
pretendemos continuar desenvolvendo numa futura pesquisa.
A partir da compreensão cristã do evento da vinda da Vida a uma carne,
especificamente, daquilo que o prólogo joanino proclama no seu versículo 14, surge o
horizonte hermenêutico a partir do qual podemos conceber o sentido cristão da
salvação. Este horizonte hermenêutico, possibilitado pela encarnação do Verbo, é o que
Henry denomina Arqui-inteligibilidade. O sentido cristão da salvação somente pode ser
vislumbrado a partir da inteligibilidade primordial desvelada pelo que nosso autor
classifica, com Irineu, como cogito cristão da carne. Veremos que esta inteligibilidade
original outra coisa não é que a vinda da Vida à uma carne que, dando-se previamente a
qualquer inteligibilidade, estabelece-se como Arqui-inteligibilidade. Outra vez caímos
na reflexão profunda da geração da Vida em si mesma a partir do seu abraço patético.
122
Propor uma reflexão de cunho ético-teológico sobre o sentido e a possibilidade
das nossas ações carnais, apontando o possível horizonte de uma teologia mistagógica
da corporeidade, constitui o intuito de nosso último passo. Contudo, destacamos desde
já a importância do verbo "propor" e o aliamos ao verbo "apontar". De fato, coisa
alguma faremos a não ser apontar para o horizonte de tal reflexão, expondo com
modéstia aquilo que nos parece relevante. Outra coisa no momento não podemos
oferecer. Consideramos fundamental repensar nossa condição humano-corporal a partir
do mistério da encarnação do Cristo. Segundo as reflexões anteriores sobre a verdade do
mundo e a verdade do Cristianismo é possível vislumbrar inicialmente a possibilidade
de construir, numa investigação futura, uma Teologia mistagógica concernente à nossa
corporeidade. Pensar e viver o corpo de carne como lugar teológico da manifestação
desta verdade fundamental sobre Deus e sobre o ser humano199. O corpo como caminho
de Deus e caminho para Deus200. Isto apenas será possível se partirmos de uma
catequese mistagógica sobre o corpo de Cristo e, consequentemente, sobre nossa
incorporação a Cristo como lugar de encontro e revelação do próprio Deus. O objeto
desta última empreitada consiste em descortinar, a partir da Fenomenologia da Vida de
Henry, a possibilidade de uma Teologia do corpo fundamentada no espantoso
enunciado do prólogo joanino: “o Verbo se fez carne” (Jo 1,14). Descortinar uma
possibilidade significa, em outros termos, apontar para um horizonte a ser contemplado.
1 A fenomenologia da encarnação
Ao expor sua análise da filosofia e fenomenologia do corpo como um ensaio
sobre a ontologia de Maine de Biran, Michel Henry tocará o tema da encarnação na
conclusão do seu trabalho, ao propor uma identificação entre carne e espírito. O tema é
abordado no contexto em que o autor discute a dialética entre corpo-objetivo e corpo
absoluto, ou de outro modo, corpo transcendente e corpo transcendental. Assim dirá:
Se somos capazes de dizer que, em nossa representação, nosso
corpo-objetivo se relaciona com as coisas circundantes de
diferentes formas é porque temos um corpo absoluto no qual
estas diversas intencionalidades acontecem de um modo
199
200
Cf. LACROIX, O corpo de carne, pp.149-172
Cf. GESCHÉ, Adolphe. O corpo: caminho de Deus. São Paulo: Ed Loyola, 2009.
123
originário, antes de ser representadas por meio de nosso corpo
transcendente objetivo.201
O corpo transcendente objetivo, encontra-se situado no mundo não a partir da
estrutura ek-stática, como qualquer outro objeto, mas possui referência última no corpo
originário transcendental, cuja matéria fenomenológica é o pathos da Vida. O que então
quer dizer a encarnação senão a imanência desta Vida na carne? Ser encarnados é estar
situados no mundo a partir da estrutura fenomenológica da Vida. Ser encarnados
significa estar situados no mundo a partir destas diversas intencionalidades que
acontecem em um modo mais originário no mundo da vida (lebenswelt). Assim, o estarsituado do corpo objetivo transcendente depende, e só pode ser compreendido, a partir
do estar-situado primordial do corpo originário (subjetivo) transcendental. Este, a partir
da sua condição transcendental, portanto, segundo Henry, não contingente, já se
encontra situado enquanto subjetividade em relação transcendental com o mundo. Esta
percepção henryriana da situação do corpo transcendente a partir da corporeidade
originária transcendental, subverte as noções antropológicas do realismo ingênuo que
povoaram até recentemente o mundo da filosofia. Tais noções pensavam uma
subjetividade abstrata que se situava a partir do corpo objetivo. Este, por fim, era
tomado como o corpo real, fonte última da nossa situação no mundo. A partir deste
paradigma ingênuo, a noção de encarnação assume então significado bem distinto de
como é pensado por Henry.
A encarnação, segundo este pensamento ingênuo, pode ser entendida como o
movimento de uma subjetividade abstrata que procura um corpo objeto a partir do qual
pode se situar no mundo. Neste sentido, temos então que: encarnar é estar situados no
mundo a partir do corpo objeto transcendente. Foi assim inclusive que se entendeu a
questão da individuação nas teorias da encarnação das almas pré-existentes. O próprio
platonismo, juntamente com uma falsa antropologia pretensamente cristã, fomentou esta
visão durante séculos, sendo ela que determinou a noção de encarnação corriqueira. A
questão da encarnação, pensada a partir da teoria ontológica do corpo desenvolvida por
Henry, é justamente inversa. Encarnação significará, pois então, estar situados no corpo
objetivo transcendente a partir da experiência na Vida do corpo originário
transcendental. Somos, assim, situados (considerados seres encarnados) porque
tomamos nossa carne, enquanto sentir da vida, da própria Vida fenomenológica
201
HENRY, Filosofía y fenomenología del Cuerpo, pp.265-266.
124
absoluta. Encarnados significa, irmanados na Vida, partícipes dela da forma mais
radical possível. Encarnação é imanência da Vida em nós. Desta forma, nossa
transcendência situada, não é radicalmente contingente porque encontra sua
fundamentação última na experiência transcendental do mundo da Vida.
Saber-se situado enquanto corpo transcendente a partir de uma corporeidade
transcendental é sempre vislumbrar o horizonte originário do lugar onde a Vida se dá. E
a Vida se dá a si mesma em si mesma. É justamente esta olhadela que nos permite
compreender o necessário passo de uma fenomenologia da impressão à fenomenologia
da carne que nos conduz, por sua vez, à fenomenologia da encarnação. Sobre isso nos
diz o autor:
É a forma em que a Vida absoluta vem a si numa
Arquipassibilidade própria da autoafecção patética de todo
"viver" concebível, é o arquipatos desta arquicarne o que se
encontra suposto em toda fenomenalização da vida e, assim, em
todo vivente - já que este não possui a capacidade de se trazer a
si
mesmo
à
vida
[...]
Toda
carne
é
passível
na
Arquipassibilidade da Vida absoluta. É possível nela. Uma
carne que pode ser definida como: a passibilidade de uma vida
finita que toma sua possibilidade da Arquipassibilidade da Vida
infinita. Se algo como a carne não pode ser concebido mais que
a partir desta vinda originária à carne, vinda que não depende
desta mesma carne, então a fenomenologia da carne remete a
uma fenomenologia da En-carnação.202
Parece-nos plausível afirmar que é justamente a constatação da nossa indigência
ontológica radical, exaustivamente tratada nessa dissertação, que aponta a passagem
necessária de uma fenomenologia da carne à fenomenologia da encarnação. A
Fenomenologia da Vida se constitui, na verdade, como este movimento dialético das
análises fenomenológicas da impressão, da carne e, agora, da encarnação. Como vimos
no trecho acima, a categoria da passividade da nossa carne, remetida sempre à
Arquipassibilidade da Vida em si mesma, toma dimensão de referencial do discurso.
Ao tratar da fenomenologia da carne e sua geração na Vida absoluta, Henry
destacará as características fenomenológicas originárias da carne que brotam desta
202
HENRY, Incarnation, pp.242-243.
125
geração. Neste sentido, a autoafecção do Si transcendental, fundamentada na
Arquipassibilidade da Vida absoluta, coloca-se como viés para a compreensão da
fenomenologia da encarnação. Como já sabemos, neste contexto, o nascimento toma
significação radicalmente diferente daquele de uma Fenomenologia do mundo. Pois
todo nascimento deve ser compreendido como uma situação do corpo transcendente a
partir da corporeidade transcendental do mundo da Vida. Numa fenomenologia do
nascimento, Henry afirmará que o "nascer", compreendido como encarnação, somente
pode ser vislumbrado na Fenomenologia da Vida como a vinda à vida de um si
transcendental vivente que experimenta a si mesmo na sua condição carnal, e
acrescenta: "segundo o modo que toda carne tem de se experimentar"203. E o modo que
toda carne possui de se experimentar radica na passividade em relação à Vida
fenomenológica absoluta que se experimenta a si mesma numa Arquicarne. Assim se
estabelece que a fenomenologia da encarnação tem como objeto a compreensão da
relação da Arquicarne com a carne anunciada no prólogo de João (1,14). Esta
encarnação se cumpre no interior da Vida fenomenológica absoluta, longe do aparecer
do mundo. Por isto, a fenomenologia da encarnação é mais complexa que a análise dos
poderes da carne, assumindo assim o estatuto de uma fenomenologia radical.
Em sua fenomenologia da encarnação o autor acenará para três temas caros à
tradição cristã. A partir da analítica dos "poderes" da carne, podemos vislumbrar o
primeiro tema como aquele que se refere à possibilidade do pecado, o qual se encontra
conectado à mesma possibilidade da idolatria. Tudo isto haverá de nos remeter ao tema
da ilusão transcendental do ego, explorado no segundo capítulo. Percebemos uma
extraordinária coerência no discurso henryriano no que se refere às conexões entre suas
categorias-chave. O segundo tema se refere à natureza de Cristo. Trata-se da
possibilidade de alguém como Cristo, da sua encarnação. O que o autor visa ressaltar é a
relação entre Antropologia e Teologia a partir da Cristologia. A possibilidade de alguém
como Cristo funda, na Fenomenologia da Vida, a possibilidade de alguém como o Ser
humano. A terceira questão é aquela que se encontra assinalada no título do próprio
capítulo e se refere ao sentido cristão da salvação descortinado pelo fascinante anúncio
de João204. Este último tema será tratado com mais acuidade a partir da segunda parte
deste capítulo.
203
204
Ibid, p.145.
Cf. Ibid, p.247.
126
A passagem necessária da fenomenologia da carne à fenomenologia da
encarnação se encontra inserida, portanto, no contexto da ilusão transcendental do ego.
Trata-se da tentativa de se mostrar que nenhum dos nossos poderes possuem sua fonte
em nós mesmos. Por isso, ao propor uma fenomenologia da encarnação, Henry retomará
a questão da analítica do "eu posso", que nos conduzirá da percepção do corpo
transcendente à corporeidade transcendental dada no seio da Vida. Nesta sua
empreitada, o autor narra aquele trágico encontro do "eu posso" com um não poder
absoluto que se refere justamente à sua incapacidade de se fundar a si mesmo. Esta
indigência ontológica, tratada no primeiro capítulo, constitui a impotência radical do
"eu posso", o qual, em realidade, nada pode, fora do poder no qual está dado a
posteriori. A posteriori significa que se encontrar enquanto dado em uma realidade que
lhe é anterior. Assim, nosso Si transcendental se estabelece como um "eu posso"
somente enquanto dado em um poder absoluto que funda toda possibilidade de "poder".
Veremos, na última parte deste capítulo, que o discurso ético no cristianismo se dá nesta
recordação primordial do nosso "não poder" frente ao poder definitivo que vem da Vida.
A este respeito tocaremos no tema do esquecimento da vida e sua recordação através do
patos da práxis cotidiana e da recordação patética da vida através da angústia. Angústia
de saber que sou " um si transcendental incapaz de me livrar de mim".205
Sobre a questão do "eu posso" e da possibilidade do pecado ou da idolatria, o
autor retornará ao conceito chave de ilusão transcendental do ego para, a partir de uma
analítica dos "poderes" do corpo transcendente objetivo, tratar da possibilidade da
labilidade. Situando as "ações do eu" num fenomenologia da encarnação, Henry
retomará a delicada questão do limite existencial de um "ego" que se encontra com o
seu limite radical do "não poder" ao se perceber como alguém jogado numa existência
que ele mesmo não escolheu. Assim, nosso autor tratará do limite do "eu posso". Este
limite, como antes tratamos, é de ordem ontológica e se refere ao fato de que este "ego
agente" não tem o poder de agir em si e, tampouco, de se trazer a si mesmo. Assim
sendo, paradoxalmente, ao agir, ele se encontra com um não poder absoluto no qual se
encontra fundamentado todo seu poder efetivo. Esta é sua impotência radical. Tudo isto
que agora acabamos de relatar se refere ao tema, já antes tratado, da indigência
ontológica dos "poderes" deste "eu posso" que somos todos nós.
205
Ibid, p.278
127
O tema do limite radical do "eu posso" nos remete a outro tema clássico da
reflexão teológica cristã. Trata-se da ambiguidade de nossa condição carnal. Henry
retomará de forma fascinante a reflexão de Irineu, que pensa a carne a partir de sua
situação paradoxal. De fato, ela traz em si, simultaneamente, a possibilidade da salvação
e da perdição. Assim, a análise do "eu posso", numa fenomenologia da encarnação,
remeter-nos-á à questão da possibilidade do pecado e da idolatria como perdição. Esta
possibilidade se funda na ilusão transcendental do ego que se toma como fonte de seus
poderes. Desta forma, o ser humano, perdido neste devaneio transcendental, passa a
adorar a si mesmo, julgando-se como fonte de todos seus poderes, esquecendo a
passividade radical na qual se encontra206. Ousamos pensar que, segundo a
Fenomenologia da Vida, a categoria do pecado original poderia ser ressignificada a
partir deste movimento existencial que ocorre quando o "ego" esquece da Graça
originária sobre a qual se funda e estão dados todos seus poderes. Neste sentido,
esquecer ou evitar recordar nossa condição primordial de viventes no seio da Vida,
constitui toda fonte de pecado e idolatria.
O encontro com este limite radical, denominado ilusão transcendental do ego,
poderia nos levar a adotar posturas filosóficas como aquela de Schopenhauer, na qual se
advoga uma vida cega, pura vontade que arrasta a todos para o mar da indeterminação
individual. Visto que não possuímos nenhum poder em nós mesmos, seríamos
remetidos diretamente ao sem sentido de uma vida indeterminada que nos faz brotar do
acaso constante. A questão do princípio de individuação, criticada por alguns autores
em Henry, vem à tona. Ainda que possamos concordar que tal tema não se encontra
definitivamente bem resolvido no pensamento henryriano, não resta dúvidas de que
constitui uma das preocupações de nosso autor. Notamos que, segundo Henry, existe
um conflito entre a visão dita "devastadora" de Schopenhauer (a dissolução de toda vida
individual à uma vida cega e indeterminada que resultaria na supressão da
individualidade) e a identificação cristã entre Verdade e Vida. Esta pensa a
autorrevelação da Vida na Ipseidade de um Si originário como o modo fenomenológico
de seu cumprimento (revelação de Deus - Verdade sobre a Vida). Em outras palavras, a
Verdade da Vida e de Deus está conectada justamente à revelação de Deus em sua
Palavra, identificada no cristianismo como o ArquiFilho, o Primeiro Vivente, no qual
todas as vidas singulares foram dadas. Portanto, no pensamento cristão, a imanência da
206
Cf. Ibid, pp. 245-246.
128
Vida em cada vivente não supõe a supressão de sua individualidade. Isto porque no
processo imanente da Vida absoluta a geração da Ipseidade de um Si originário (o
ArquiFilho) se estabelece como condição interna da autorrevelação, condição interna de
toda vida. A beleza da antropologia cristã aparece com toda claridade na seguinte
constatação: o fato de que não subsiste por si mesmo não tira do indivíduo sua
singularidade. Entregado a si na Ipseidade da Vida absoluta, ele mesmo é gerado
(criado) como um Si singular para sempre207.
A autorrevelação da Vida na Ipseidade de um Si originário, que se estabelece
como o modo fenomenológico do cumprimento desta mesma autorrevelação, aponta
para a possibilidade de alguém como Cristo. A teologia sobre a autorrevelação de Deus
em seu Cristo haverá de tirar a existência humana da indeterminação do pensamento
panteísta. Este tema já foi de algum modo tratado por nós ao abordarmos a
fenomenologia de Cristo no primeiro ponto de nosso segundo capítulo. Naquela ocasião
viabilizamos justamente a afirmação de que a fenomenologia de Cristo, ou a
possibilidade de alguém como Cristo, aponta efetivamente para a possibilidade da nossa
salvação. Por este motivo, abordamos a questão a partir do viés soteriológico.
Retomaremos brevemente este tema no próximo passo de nosso discurso. Então
haveremos de pensar o cogito cristão da carne que, defendido por Irineu, no contexto da
proposta de uma Inteligibilidade primordial, lança-nos para a possibilidade da salvação
em sentido cristão.
Seja como for, as querelas filosóficas sobre o sentido da nossa vida singular, e
no que se refere a ela, sobre nossa identidade pessoal, assim como o dom que constitui a
singularidade de cada vivente, apontam sempre para o mistério inefável da Vida. Este
mistério insondável da Vida constitui igualmente o mistério insondável do ser humano,
que, segundo Henry, é tão invisível como Deus. De fato, se ninguém nunca viu a Deus,
tampouco viu a um homem em sua verdade fundamental constitutiva. Nenhum de nós,
diz o autor, jamais viu um Si transcendental vivo. A partir daqui se fazem inteligíveis
aquelas palavras proferidas pelo homem Jesus diante de Pilatos; "meu reino não é deste
mundo" (Jo 18,36). De fato, nenhum homem transcendental gerado na Ipseidade no seio
da Vida, criado em Cristo no seio de Deus, pode ser vislumbrado a partir da
fenomenologia deste mundo. Interessante são as palavras de Rahner que, ao pensar a
encarnação de Deus, na sexta seção do Curso fundamental da fé, sobre Jesus Cristo,
207
Cf. Ibid, p. 260.
129
retoma, em uma frase muito sugestiva, a intuição da sua segunda seção sobre o homem
perante o mistério absoluto. Assim dirá o teólogo:
Quando terminarmos de dizer tudo o que se pode dizer de
observável e definível sobre nós, não teremos ainda dito nada
de nós, se no que afirmamos não dissemos implicitamente que
somos os referidos ao Deus incompreensível208.
Esta asserção de Rahner faz referência a uma espécie de solidariedade no
mistério entre Deus e homem. A existência humana, para a teologia, encontra seu
horizonte de compreensão no mistério inefável do próprio Deus. Para Rahner, o
mistério, como horizonte de possibilidade de compreensão do homem, não pode ser
compreendido como uma realidade paralela a ser descoberta. O mistério é o que existe
e, paradoxalmente, se coloca como o "horizonte que sem ser dominado domina todo o
compreensível". Impressiona-nos a similitude entre o pensamento de Rahner sobre o
mistério, e a narrativa henryriana sobre a Fenomenologia da Vida. Pois esta também se
coloca como o horizonte ou o mistério, que antes de ser compreendido a partir da
objetivação
da Fenomenologia do
mundo, coloca-se como
a possibilidade
transcendental de compreensão de toda realidade vivente, aparentemente tangível.
Ainda nesta perspectiva, Rahner compreenderá o mistério da encarnação a partir do
horizonte kenótico de abandono radical, por parte do ser humano, neste mistério
absoluto, que outra coisa não pode ser senão o mistério da Vida fenomenológica
absoluta. Citamos novamente o teólogo alemão:
A encarnação de Deus é, nesta perspectiva, o caso singular e
supremo da realização essencial da realidade humana,
realização que consiste no fato de que o homem é à medida que
se desfaz de si abandonando-se e entregando-se ao mistério
absoluto, que chamamos Deus.209
Parece-nos fascinante a compreensão rahneriana acerca da encarnação que se dá
a partir da compreensão do homem na sua solidariedade radical com o mistério. A
afirmação de que o homem existe à medida que se desfaz de si, abandonando-se ao
208
209
RAHNER, Curso fundamental da fé, p. 259.
Ibid, p.260.
130
mistério, constitui o ponto de partida para a compreensão da encarnação enquanto
Kenosis. Assim, a encarnação do Verbo significa esta entrega primordialmente radical
do Filho nas mãos do Pai. "Sendo ele Deus, não se apegou à sua condição divina, mas
se despojou" (Fl 2,6-7). Ao se encarnar, o Filho de Deus realiza definitivamente a
essência da condição humana. Esta, segundo Rahner, somente pode ser entendida a
partir da opção radical de cada ser humano de, abrindo mão de si mesmo, fazer-se
entrega radical no mistério inefável de Deus, horizonte hermenêutico último de sua
existência. Por isso, diz o teólogo, a encarnação de Deus se constitui como "o caso
singular e supremo da realização essencial da realidade humana". O Verbo, ao se fazer
homem, manifesta sua entrega radical ao mistério que ele mesmo é. Encarnar-se
significa, então, entregar-se a este horizonte incompreensível que funda toda
compreensão. Se pensamos, com Henry, que a vinda a uma carne somente pode
acontecer no movimento da autodoação da Vida absoluta, que o ser passível da carne
não é outra coisa que o dom inefável da Vida imanente nela, então percebemos que
existe uma similitude fascinante entre o discurso rahneriano e a fenomenologia da
encarnação descrita na Fenomenologia da Vida. Em ambas, a encarnação se conecta à
categoria de doação. Em Rahner, a encarnação pode ser compreendida como entrega e
imersão radical no mistério de Deus pelo próprio homem-Deus. Em Henry, a
encarnação é a geração gratuita e necessária da carne na Vida, visto que toda Vida
somente existe enquanto doação em uma carne. Recordando que o conceito de carne em
Henry se refere sempre à possibilidade da autoafecção radical, dada no abraço patético
da Vida a si mesma210. O mistério abraça o mistério, que é sempre gratuidade.
Deus como Vida se doa ao homem. E nesta doação faz dele sua imagem e
semelhança, um vivente. O ser humano, situado nesta passividade radical da Vida
enquanto dom, existe como dado para se dar a Deus. Em linguagem teológica, podemos
dizer que sua existência criada, enquanto gerada e dada a partir da Vida, constitui já a
possibilidade de sua salvação. Não obstante, como outrora vimos, este ser dado na Vida
não ocorre de qualquer forma, mas implica a própria doação dos caracteres
fenomenológicos fundamentais da Vida absoluta ao ser humano. Esta doação de tais
210
Cabe-nos apenas relembrar que esta autoafecção radical, que determina a compreensão da categoria
"carne" no pensamento henryriano, estabelece-se como algo constitutivo da Vida fenomenológica
absoluta, sendo assim, sua matéria fenomenológica. Somente desde este ponto de vista podemos
compreender que a geração da carne na Vida se dê de forma necessária. Assim acontece porque a Vida é
necessariamente carne, se entendemos carne como autoafecção e esta como constitutiva daquilo que a
Vida é em si mesma: a eterna presença que sente incessantemente a si mesma. Aqui se manifesta a
profundidade fenomenológica da categoria carne e encarnação da Fenomenologia da Vida de Henry.
131
caracteres fenomenológicos nada mais é que a criação do homem à imagem e
semelhança de Deus. Portanto, temos então que criar à imagem e semelhança significa,
como vimos em Henry, a geração de cada "eu" transcendental na Arqui-carne do ArquiFilho. Aos nos criar à sua imagem e semelhança, ao promover nosso nascimento
transcendental no seio do seu Verbo, a Vida, que é Deus, constitui-nos a partir daquilo
que ela mesma é, a saber: uma carne que "pode sentir e ser sentida". Por isso, a criação
de cada ser humano significa sua encarnação na carne da Vida, na carne de Deus. Esta
encarnação, na carne de Deus, funda toda inteligibilidade de nossa existência, uma
Arqui-Inteligibilidade, bem como a possibilidade de nossa salvação. Este constitui o
tema do nosso próximo passo.
2 A inteligibilidade Primordial: o sentido cristão da salvação
O sentido cristão da salvação, em Henry, somente pode ser compreendido a
partir da inteligibilidade primordial anunciada no prólogo joanino. Uma vez abordada a
Fenomenologia da Vida como verdade fundamental que legitima uma filosofia do
cristianismo, propomos pensar nossa existência carnal a partir da inteligibilidade
primordial. A intuição que pretendemos elucidar neste momento pode ser encarada
como uma virada hermenêutica na forma de compreender e pensar nossa forma de
aparecer e ser no mundo. A inteligibilidade primordial, pensada por Henry, encontra-se
estritamente conectada à Verdade do cristianismo e sua Fenomenologia da Vida. Assim
diz o autor:
Esta definição muito simples de Deus a partir da definição da
Vida como pura "experiência de si", funda a intuição que
conduz a investigação e que é precisamente a Arquiinteligibilidade (inteligibilidade primordial) da qual falamos.211
Este conceito henryriano traz a revelação surpreendente sobre nossa humanidade: na
carne de Cristo, e misteriosamente, na nossa carne se faz presente uma inteligibilidade
primordial, que ultrapassa toda pretensão racionalista de abordagem completa da
verdade. Para vislumbrar algo da verdade, antes é preciso saber ser carne e saber-se
carne. A fonte do pensar não parte, como advoga a tradição racionalista, de um nous
211
HENRY, Incarnation, p.29. O parêntese é nosso.
132
desencarnado, mas da nossa realidade patológica de autoafecção. Com isto, para o
espanto de muitos, pode-se verdadeiramente pensar o cristianismo e sua verdade como
uma filosofia da carne. O experimentar-se da Vida a si mesma, em outras palavras, a
categoria de autoafecção aparece aqui com toda sua força:
A Arqui-inteligibilidade pertence ao movimento interno da
Vida absoluta que se engendra a si mesma, não sendo outra
coisa que a forma segundo a qual se cumpre este processo de
auto-engendramento. A Vida se engendra a si mesma ao vir a si,
à sua condição, que é a de se experimentar a si mesma.212
Ao percebermos a centralidade da inteligibilidade primordial no pensamento
henryriano intuímos que, a partir desta categoria, ser-nos-ia possível pensá-la como
fundamento teológico-antropológico da Fenomenologia da Vida em Michel Henry.
Daqui surge a justificativa do título dessa dissertação. Ao afirmar que o prólogo joanino
pode ser entendido como uma espécie de releitura da narrativa da criação em Gêneses
(um midrash), o autor tocará uma discussão clássica da teologia. Esta diz respeito ao
vínculo entre Antropologia e Cristologia, situada na discussão da compreensão da
escatologia e soteriologia a partir da protologia. Ao pensar Deus como Vida e ao definir
esta como autoafecção radical a partir do processo de auto-engendramento, surge em
Henry uma nova releitura antropológica que pensa o ser humano não mais a partir do
conceito de criação da Fenomenologia do mundo, mas a partir da categoria de geração
própria da Fenomenologia da Vida. Segundo as palavras do próprio autor:
Conhecemos as proposições fundamentais do prólogo de João
que nos permitem compreender a unidade do ponto de vista
transcendental das Escrituras. Esta unidade se manifesta
claramente quando a ideia de criação dá lugar à de geração. O
homem somente pode ser compreendido a partir da ideia de
geração. A geração do homem no Verbo repete a geração do
Verbo em Deus como sua autorrevelação.213
212
213
Idem.
Ibid, p.328.
133
Esta tese henryriana causa, certamente, desconforto aos ouvidos teológicos. Isto porque
parece introduzir o princípio de não diferenciação entre o ser humano e Deus. Uma vez
mais recordamos que esta constitui, justamente, uma das críticas elaboradas ao
pensamento henryriano. Contudo, pensamos que não se pode afirmar qualquer intenção
no autor em deturpar a doutrina da criação-salvação no cristianismo. Ao contrário,
notamos e citamos várias vezes sua semelhança de pensamento com reflexões
teológicas como, por exemplo, as de Rahner. Este mesmo, em um dos seus textos, que
aborda a temática das reflexões fundamentais sobre a antropologia e a protologia no
conjunto da teologia, afirma:
Se o Logos se torna homem, tal afirmação não se entende, se a
encarnação se toma simplesmente como <assunção> duma
realidade que não tem relação interna com aquele que a assume
e poderia da mesma forma substituir-se por outra realidade.
Somente se entende corretamente o que seja a encarnação,
quando a humanidade de Cristo não se considera afinal como
instrumento externo, pelo qual um Deus invisível faz ouvir sua
voz, mas precisamente como aquilo que Deus se torna
(permanecendo Deus), quando ele próprio se exterioriza na
dimensão do outro-que-ele-mesmo, do não divino.214
Isto é justamente o que Henry procura defender em sua fenomenologia da
encarnação. O autor quer pensar que a possibilidade de alguém como Cristo, e logo, de
alguém como o ser humano, não pode ser entendida sem que se compreenda a
encarnação a partir desta "relação interna com aquele que a assume". Ao pensar o ser
humano como gerado no Verbo da Vida, a intenção primeira não é, de forma alguma,
estabelecer uma indiferenciação entre Deus e o homem criado. Consiste, pelo contrário,
em afirmar que este homem não foi criado, posto fora, como se entende na
Fenomenologia do mundo, mas gerado (criado à imagem e semelhança) na mesma
carne (afetividade transcendental) do Verbo. E por isso mesmo, ao se fazer carne, o
Verbo não assume outra coisa senão aquilo que desde sempre foi: passividade que
sente. Não é por acaso que a possibilidade da "paixão de Cristo" assuste e encante todo
214
FEINER, Johannes; LÖHRER, Magnus. Mysterium salutis: Compêndio de dogmática histótico
salvífica II. Petrópolis: Vozes, 1972, p.15. ( Neste artigo Rahner escreve as Reflexões fundamentais sobre
a antropologia e a protologia no conjunto da teologia, Cf. pp.5-19)
134
homem e mulher que se vê jogado neste fantástico mundo da Vida. A afirmação
rahneriana de que "a possibilidade da criação se funda na possibilidade mais radical da
auto-exteriorização de Deus", de forma alguma é contestada por Henry quando ele
propõe pensar a criação à imagem e semelhança ou como "geração" do homem no
Verbo. Rahner dirá que o homem se constitui primordialmente como a "possível
alteridade da auto-exteriorização de Deus e o possível irmão de Cristo"215. Em relação
a isso, com certo atrevimento, ousamos dizer que o problema talvez esteja na concepção
ou conceito de exteriorização de Deus. Caso esta categoria seja utilizada teologicamente
a partir da Fenomenologia do mundo, certamente será problemática em relação ao
pensamento henryriano, que propõe justamente a inversão dos pressupostos
fenomenológicos para pensar o homem como ser encarnado. Percebemos então que sem
levar a sério a inversão fenomenológica que funda a Fenomenologia da Vida em Henry,
faz-se impossível compreender teologicamente o conceito de geração proposto pelo
autor. A inversão da fenomenologia em Henry é a chave hermenêutica para a
compreensão das realidades fundamentais constitutivas do ser humano, e portanto, das
categorias-chave a partir das quais podemos abordá-lo. Na Fenomenologia da Vida,
como vimos, nenhuma exteriorização é possível no sentido ek-stático da fenomenologia
do mundo. A autorevelação da Vida é a Vida mesma. Ela não revela outra coisa que não
seja a si mesma. Se existe algo como a exteriorização da Vida, esta não pode
exteriorizar coisa diferente que não seja a Vida mesma. Por isso, o homem como
exteriorização da Vida, ou de Deus, na linguagem de Rahner, outra coisa não pode ser
senão um vivente, um filho no Filho, por isso, um filho de Deus. Não é por acaso que,
para a Fenomenologia da Vida, a transcendência é a imanência da Vida em nossa carne.
Sobre a geração do homem no Verbo, o autor seguirá dizendo:
Esta homogeneidade entre a geração do Verbo e a do homem
explica porque o Verbo, ao se encarnar para se fazer homem,
não veio ao mundo senão em uma carne, <aos seus>- entre
aqueles que foram gerados Nele e lhe pertencem desde sempre
[...] O conceito de geração dá seu sentido exaustivo e adequado
à criação; o Prólogo de João nos permite compreender o
Gênesis. 216
215
216
Ibid, p.16
HENRY, Incarnation, p.328.
135
Para Henry, a partir da Fenomenologia da Vida, o conceito de criação pode
encontrar seu sentido mais genuíno no de geração. Não há substituição do segundo pelo
primeiro, mas explicitação. Frisamos, contudo, que, sem levar a sério a substituição de
uma Fenomenologia do mundo pela Fenomenologia da Vida, ser-nos-á impossível
compreender a reflexão henryriana não somente sobre o que ele chama de geração do
homem no Verbo, mas também no que diz respeito à própria Inteligibilidade Primordial.
O conceito de geração se encontra, por sua vez, conectado ao de nascimento
transcendental, que é diferente do nascimento transcendente da Fenomenologia do
mundo. No mundo não é possível nenhum nascimento, mas só criação-exteriorização.
Então, se o homem não é um ser deste mundo, no sentido fenomenológico, não aparece
neste mundo da mesma forma que todas as outras criaturas aparecem, então seu
nascimento, diferente de uma criação ou exteriorização, significa uma geração. Surge
então o comunicado espantoso e polêmico da Fenomenologia da Vida de Henry que
proclama o homem não como uma criatura, mas como um filho gerado no Filho. O
problema do conceito de criação, segundo a fenomenologia henryriana, é que criação se
refere sempre ao horizonte da Fenomenologia do mundo, pressupõe aquela separação
radical que não existe no mundo da Vida. Nossa vida é uma vida diferente da Vida de
Deus, ou da Vida que é Deus. Contudo, não radicalmente separada. Não nos parece
verdadeiro advogar um abismo intransponível entre a vida do ser humano e a Vida de
Deus. Esta cisão radical parece descartar toda possibilidade de salvação. O tema que se
refere à separação da vida singular da Vida fenomenológica absoluta constitui, como
notamos, uma das lacunas do pensamento henryriano. Isto ocorre porque o autor não
explicitou, de forma satisfatória, a teoria da individuação da vida em seu pensamento
fenomenológico.
Então falar que o homem é criado significa, para Henry, dizer que o homem
pertence ao mundo como qualquer outro corpo inerte da natureza. As coisas podem ter
sido criadas, mas o homem foi gerado na Vida, e não se separa dela, pois o dom de
Deus não tem volta. Uma vez dado na Vida, permanece um vivente, em outras palavras,
um corpo de carne, possui uma dignidade irrevogável de filho gerado no Filho. Assim, o
criado à imagem e semelhança é traduzido na Fenomenologia da Vida como gerado no
Arquifilho. Esta imagem e semelhança, obviamente, exprime a singularidade do ser
humano em relação às demais criaturas. Mas de que singularidade se trata? Justamente
do fato de que o homem não foi criado como as outras criaturas, não é um corpo como
136
qualquer outro corpo, mas um corpo de carne, que porta em si a Vida invisível, e assim
o é porque foi gerado nela, na Ipseidade do primeiro vivente.
Poderíamos dizer que a teoria henryriana é um arianismo às avessas? Enquanto
Ário proclamava o Filho como uma criatura, a fenomenologia henryriana proclama toda
criatura Filho? Algo poderia ser dito neste sentido, mas não com tanta radicalidade. O
discurso henryriano é muito mais complexo e muito mais sensível do que o do
arianismo. Neste sentido, Henry não pode ser pensado, ingenuamente, como um filósofo
que inverte o arianismo. De fato, apesar da polêmica que pode gerar seu conceito de
geração e criação, o autor toca a essência da fé cristã quando propõe a ressignificação
do termo criação, ou, no caso do ser humano, sua substituição pelo termo geração.
Acaso não cremos que saímos de Deus e para Deus haveremos de voltar? A encarnação
do Verbo, pensada em seu fim soteriológico, não significa a recordação constante de
nossa origem divina? Acaso Irineu se equivocou quando proclamou que nossa carne é
deífera (capax Dei); toda a teologia da divinização estaria equivocada? Com modéstia, o
que devemos ressaltar é que a profundidade da teoria henryriana causa desconforto e
nos convida a ressignificar categorias até então repetidas na teologia, já calcificadas
hermeneuticamente. Pensar nossa carne como deífera, proclamar, como Rahner, que o
mistério do homem somente pode ser inteligível a partir do mistério da Vida que é
Deus, acaso soa diferente do que pensar o ser humano enquanto gerado no Verbo?
Apesar do desconforto, pensamos que o conceito de geração em Henry, pode nos
proporcionar uma possibilidade exuberante de compreensão do mistério da encarnação
do Verbo e deste corpo de carne que somos nós. A encarnação do Verbo, sua presença
em nosso meio como um de nós, segundo Henry, para outra coisa não aponta senão para
a extraordinária revelação de que nós somos um Si carnal vivo, gerado
transcendentalmente na Arquicarne desse Verbo da Vida. Assim, sobre essa verdade
transcendental do homem nosso autor dirá:
Quando se encarnou, mostrou-se aos homens em qualidade de
homem que é imagem de Deus, mostrou-lhes nesse homem que
ele era a Imagem original, a imagem da qual o homem havia
sido feito, mostrou-lhes nele ao Verbo. Disse-lhes que como
Ele, gerados Nele, eles também eram portadores desse Verbo
que era ele mesmo, que eram de origem divina. Assim foi como
137
o homem foi devolvido, graças à encarnação, à sua dignidade de
filho de Deus.217
A verdade transcendental do homem, gerado no Verbo, levanta a questão
fundamental do ato de fé naquilo que somos. Assim, Henry lançará a pergunta sobre o
que significa crer, quando este ato de fé envolve o crer no Cristo. Aqui joga um papel
definitivo a Inteligibilidade Primordial. Diferente a todo pensamento, ela o precede e
fundamenta o ato de fé. Assim se estabelece que a verdade da fé nunca pode ser tratada
como um modo do pensamento. Dirá o autor:
Posta em relação com o pensamento e tratado como um modo
deste, a crença não é mais que uma forma inferior do
pensamento, já que nunca chega a ter uma evidência clara
daquilo que crê. 218
Pensar o sentido cristão da salvação, a partir da Inteligibilidade primordial proclamada
no prólogo de João, supõe proclamar a Verdade da Vida que habita cada Si
transcendental vivente. Esta é uma proclamação de fé que somente pode ser proferida
pelo ser humano que venceu a ilusão transcendental do ego e que voltou a escutar "o
ruído de seu nascimento", de sua geração, no seio da Vida. Esta capacidade de escuta
radical (primordial) da voz da Vida em nós é o que constitui a Inteligibilidade
primordial, proclamada também por Henry como uma Arqui-gnose. Esta espécie de
arquiescuta pode ser pensada teologicamente como a obediência da fé proclamada pela
comunidade judaico-cristã desde tempos imemoriais. Contudo, esta escuta só se torna
possível porque nossa carne porta em si, pela graça de Deus, uma inteligibilidade dita
primordial. Assim diz magistralmente Henry:
Nossa carne porta em si o princípio da sua manifestação, e esta
manifestação não é o aparecer do mundo. Em sua autoimpressividade patética, em sua mesma carne, dada a si na
Arqui-passividade da Vida absoluta, ela revela Aquele que a
revela a si, ela é em seu pathos a Arqui-revelação da Vida, a
217
218
Ibid, p.370.
Ibid, p.371.
138
parusia do Absoluto. No fundo da sua noite, nossa carne é
Deus. 219
Isto tem a ver com a extraordinária notícia de que nossa carne traz em si o
princípio fenomenológico, por excelência, ela é em si revelação, revela nossa condição
primordial de viventes na Vida, de filhos no Filho. Nossa carne porta em si a Arquiinteligibilidade, a inteligibilidade primordial. Isto de fato deve assustar aos sábios deste
mundo. Poderíamos dizer, para a desventura do gnosticismo, que "a pedra que foi
rejeitada tornou-se a pedra angular"(Sl 118,22; Mt 21,42). A carne, interpretada pela
Fenomenologia do mundo, como obscuridade, aparece na revelação cristã como arquignose, como Inteligibilidade primordial. Agora se entende com espanto a extraordinária
asserção do prólogo sobre a qual se fundamenta a revelação cristã: é porque a carne
porta em si a arqui-Inteligibilidade que o Verbo se fez carne para explicitar nossa
condição humana.
Recordemos que o tema da encarnação exigiu do pensamento henryriano uma
nova visão dos pressupostos fenomenológicos que resultou na efetiva migração de uma
Fenomenologia do mundo à Fenomenologia da Vida. Assim, operou-se uma radical
inversão da fenomenologia para que esta pudesse servir como método para a
investigação em questão. No contexto desta inversão, em nosso primeiro capítulo,
antecipamos algo sobre o tema da salvação. Naquela ocasião, estabeleceu-se com
clarividência a diferença entre a possibilidade da salvação a partir da teoria grega, e a
salvação em seu sentido cristão. No sentido grego, a salvação é efetivamente teórica.
Sendo que teoria (θηωρια)220, em nosso discurso, assume seu sentido original de
contemplação como visão a partir do intelecto. Dizer, então, que a salvação é teórica,
significa que ela não pode ocorrer senão a partir do ato da contemplação. Esta visão se
situa na contramão da salvação em seu sentido cristão. Neste, proclama-se aos quatro
ventos que tal possibilidade somente se faz possível porque a Palavra de Deus se
encarnou221.
219
Ibid, p.373. Se de algo tivéssemos que acusar a Henry, não poderia ser de um panteísmo. Não
conseguimos ver em sua teoria razão para isso. Se de fato, alguma acusação cabe a este autor, seria a de
uma espécie de antropoteísmo, ou melhor, a de um teoantropologismo. Isto porque, em sua filosofia do
cristianismo, Deus, que é a Vida, constitui-se como horizonte primordial de toda hermenêutica sobre o ser
humano.
220
Cf. URBINA, José M. Pabón S. de. Diccionário Manual Griego-Espanho. Madrid: Vox, p. 296.
221
Cf. HENRY, Incarnation, 11-32.
139
Sobre o tema da encarnação já dissemos muitas coisas. Contudo, parece-nos
pertinente recordá-lo, no contexto da discussão henryriana sobre a ontologia do corpo,
citada no início deste capítulo. Neste sentido, o autor traça a diferença radical entre a
compreensão da encarnação como a situação de uma subjetividade abstrata num corpo
transcendente ou seu entendimento a partir da nossa condição de viventes situados
numa corporeidade transcendental gerada no seio da Vida. Aqui ocorre a denúncia de
uma exegese equivocada do prólogo de João (1,14) que, segundo Henry, pode ter a
seguinte lógica: o significado de que o Verbo tenha se feito carne é que este Verbo veio
a um corpo, sendo, portanto, que o corpo pertence ao mundo, o Verbo veio ao mundo
por vir a um corpo. E já que vir ao mundo por um corpo significa tomar a condição
humana, então temos a conclusão de que os homens são seres do mundo e, portanto,
compreendidos a partir dele. Entretanto, não é isso que diz João. O evangelho de Jesus
Cristo proclama que a humanidade é filha de Deus. Portanto, precisa ser compreendida
a partir de uma inteligibilidade radicalmente distinta daquela que fundamenta o
conhecimento dos corpos objetivos deste mundo. Isso significa dizer que a condição de
possibilidade para a compreensão do fenômeno humano radica numa Inteligibilidade
primordial própria do mundo da Vida. Esta diz respeito ao mesmo Deus, e por isso, é
relativa ao homem que de Deus nasce. Sobre uma exegese autêntica do prólogo de João
Henry dirá:
Somente no caso de que a encarnação do Verbo - sua vinda à
uma carne - signifique sua vinda à condição humana, podemos
perceber que da afirmação espantosa de João advém ainda outra
tese, a saber, uma definição do homem como carne. Isto porque
a palavra não diz que o Verbo tomou a condição humana e que
por isso se encontra em possessão de uma carne como de outros
atributos desta condição. Ao contrário, a palavra diz que o
Verbo se fez carne e que, nesta carne e por ela, fez-se
homem. 222
O sentido cristão da salvação se encontra, irremediavelmente, pautado pelo
horizonte hermenêutico do que compreendemos por encarnação. Em sua fenomenologia
da encarnação Henry retomará a teologia de Santo Irineu a propósito daquilo que
222
Ibid, p.18.
140
denomina o cogito cristão da carne. Assim, ele pensa a salvação tal como é proclamada
pelo cristianismo. Na interpretação dos textos de Irineu, o autor perceberá a verdade
essencial da encarnação. Esta afirma que longe da Vida ser incompatível com a carne,
ela se estabelece, pelo contrário, como sua condição. Uma carne viva é uma carne de
Deus. Já dissemos mais de uma vez que transcendência, para o autor, é a imanência da
Vida na nossa carne. Sobre a possibilidade da encarnação, diz-nos o autor:
Irineu declara que a Encarnação do Verbo em nossa carne finita
deve nos permitir recuperar nossa relação inicial com Deus e,
ainda mais, deificar-nos [...] De maneira verdadeiramente genial
a propósito do que denominamos o cogito cristão da carne,
Irineu se referia à condição en-carnada do homem mesmo para
mostrar como a vida, longe de ser incompatível com a carne é,
pelo contrário, sua condição.223
O cogito cristão da carne é aquilo que chamamos desde o início de Inteligibilidade
primordial. Trata-se da afirmação espantosa de que o homem feito à imagem e
semelhança de Deus, outra coisa não é, que o ser humano gerado na Ipseidade originária
da Vida absoluta. Esta geração coincide, teologicamente, com a criação do homem na
Palavra eterna de Deus. Assim temos que:
Uma Vida suscetível de dar vida a um corpo para fazer dele
uma carne é aquela que é capaz de se dar primeiro a vida a si
mesma no eterno processo de sua autorrevelação no seu Verbo.
Toda carne, assim, provém do Verbo. "Tudo foi criado nele,
sem Ele, nada do que está feito foi feito". A proximidade de
Irineu com relação às palavras iniciais do Prólogo lhe comunica
a intuição fulgurante de João, a de uma afinidade essencial entre
a criação original do homem e a Encarnação do Verbo, de
maneira que somente a segunda nos permite entender a
primeira. Existe em Irineu uma espécie de retro-inteligibilidade
fundante. 224
223
224
Ibid, pp. .330-331.
Ibid, p.331.
141
Esta retro-inteligibilidade fundante em Irineu, chamada originalmente por Henry
de Arqui-inteligibilidade e traduzida em nosso texto como Inteligibilidade Primordial,
funda a compreensão da salvação no sentido cristão. Nosso corpo é caminho para Deus,
porque nossa carne, no sentido da fenomenologia radical proposta pelo autor, constitui a
expressão do modo fenomenológico pelo qual a Vida se autorrevela em sua
arquipassividade radical, que funda a possibilidade transcendental de uma carne como a
nossa. Podemos dizer isto de uma forma mais narrativa, talvez mais poética,
interligando, a partir da teologia bíblica, a categoria de shekiná à ideia henryriana da
transcendência como imanência da Vida na carne. Fazendo então um paralelo entre a
interpretação da encarnação do Verbo como shekiná, ou seja, como Deus que arma sua
tenda para morar em nós, e a ideia henryriana da transcendência como imanência da
vida na carne, podemos compreender a carne, no sentido henryriano, como shekiná de
Deus. É na carne que Deus se manifesta ao manifestar sua glória. Pois é nela que Deus
se manifesta a si mesmo ao manifestar sua Vida, ou ao se manifestar como Vida. Não é
por acaso que, sabiamente, a tradição da Igreja afirma que a glória de Deus é o homem
vivo. Através dos "poderes" da carne é que Deus faz morada na humanidade, e esta
somente existe enquanto morada de Deus. Neste sentido, faz-se impossível, como diz
Henry, a existência de uma carne sem que esta seja imanência da Vida de Deus em nós.
Para os cristãos, como bem lembra Johan Konings, o lugar da morada de Deus, por
excelência, é a palavra de Deus encarnada225. A proclamação do prólogo joanino 1,14,
funda uma Inteligibilidade primordial, marco hermenêutico da compreensão da
existência humana sempre referida à possibilidade da salvação. Neste âmbito se atesta o
vínculo definitivo entre antropologia e teologia, sendo que o ponto de intercessão,
encontra-se pautado pela beleza do mistério da cristologia, em outras palavras: a
encarnação do Verbo. Assim diz Henry:
A carne é capaz de receber a vida por uma razão essencial:
porque provém da Vida. A leitura joânica do Gn permitiu a
Irineu a percepção da criação, não como exposição fora de si de
uma coisa mundana, mas como geração de uma carne por
insuflação da vida em um corpo de terra - por este alento da
Vida que é seu Espírito. Aquilo que Paulo fala: vosso corpo é
templo do Espírito Santo (1Cor 7,19). Porque esta vinda da
225
Cf. KONINGS, Evangelho segundo João, p.81.
142
Vida a uma carne define a criação do homem em qualidade de
seu nascimento transcendental, nesta se estabelece uma
conaturalidade entre a essência divina e a nossa, como o afirma
Irineu: "posto que pertencemos a Deus por nossa natureza.226
Assim, a salvação no sentido cristão, proclama a possibilidade, via carne, da
divinização do ser humano. Evocamos três ideias básicas que nos ajudarão a sintetizar
esta seção. A primeira delas diz respeito à questão da passividade radical, própria do
corpo de carne, que nos abre à via da salvação. Isto se refere à questão já discutida da
encarnação entendida como esta situação primordial da nossa existência numa
corporeidade transcendental gerada na Arquicarne da Vida onde somos dados a nós
mesmos aos nossos "poderes". Assim, todo ser encarnado se encontra situado nesta
afetividade transcendental que funda toda possibilidade do "poder sentir". A paixão de
Cristo, e assim, nossa salvação, não aconteceria fora desta afetividade transcendental.
Em segundo lugar, dizemos que esta passividade radical, situada numa afetividade
transcendental, funda aquilo que denominamos o cogito cristão da carne ou
Inteligibilidade primordial. O cogito cristão da carne dirá que a possibilidade da
salvação se dá porque toda carne provém do Verbo. Aqui se insere toda a dinâmica da
discussão anteriormente apresentada de identificação entre criação e salvação
(protologia e soteriologia); o Gêneses, quando submetido a uma releitura a partir do
prólogo de João, permite-nos compreender o ser humano a partir da polêmica categoria
de geração da Fenomenologia da Vida de Henry.
A terceira ideia concerne aos dois pressupostos fenomenológicos básicos citados
na fenomenologia da encarnação. O primeiro deles diz respeito ao axioma a partir do
qual se diz que é a Vida, em sua materialidade fenomenológica carnal, que define a
realidade e, ao mesmo tempo, a da sua ação já que se trata de uma ação real. Aqui se
colhe o fascinante fruto da virada fenomenológica proposta por Henry: a radical
substituição da Fenomenologia do mundo pela Fenomenologia da Vida confere a esta
última a responsabilidade pela Verdade fundamental daquilo que ela mesma revela.
Surge uma nova epistemologia a partir da Inteligibilidade primordial responsável pela
compreensão de tudo aquilo que se manifesta no mundo da Vida. Contudo, em Henry, a
Fenomenologia do
mundo, como
anteriormente dissemos, não
se encontra
desqualificada de forma radical, apenas desautorizada a falar uma palavra definitiva
226
HENRY, Incarnation, p.331
143
sobre realidades que dizem respeito ao nosso corpo encarnado. Retomando neste
momento o tema da ruptura do nexo entre Verdade e Mundo, exposto na fenomenologia
de Cristo, recordamos a afirmação importante de que a Luz do mundo em si mesma não
é definitivamente trevas, pois sua luminosidade mostra de fato o mundo em sua
concretude. Contudo, esta se torna trevas quando percebe sua impotência radical ao não
poder revelar o mais primordial, a saber: a Vida. A Fenomenologia da Vida não
pretende descartar ou desconhecer o poder de manifestação da Fenomenologia do
mundo, mas, apenas "circunscrever de modo rigoroso seu domínio e competência"227. O
segundo pressuposto fenomenológico, encontra-se estabelecido a partir da tese,
genuinamente teológica, segundo a qual a carne define o lugar da salvação porque
constitui o lugar de toda ação real. Isto se é verdade que a salvação não consiste em um
dizer, mas em um fazer a Vontade do Pai228: "Nem todo aquele que me diz Senhor,
Senhor, entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a Vontade do Pai" (Mt 7,21). Por
isso, a última parte deste derradeiro capítulo, quer pensar a salvação no sentido cristão,
a partir de uma perspectiva que aponta para uma teologia mistagógica da corporeidade e
da ação. Trata-se da parte de nosso discurso em que nos propomos a vislumbrar algo
bem modesto sobre o horizonte ético da teoria henryriana.
3 Por uma teologia mistagógica da corporeidade e da ação: recordação da nossa
condição de filhos e nossa incorporação ao Corpo místico de Cristo
Tendo presente os dois pressupostos fenomenológicos básicos acima citados,
percebemos que o ponto de partida da ética cristã se estabelecerá a partir do sentido
cristão da salvação, o qual afirma que a destinação do ser humano passa,
necessariamente, pela recordação da nossa condição de filhos, na práxis cotidiana.
Portanto, como condição de possibilidade do prosseguimento deste discurso, faz-se
necessário esboçar o pensamento sobre a fenomenologia da ação a partir da virada
fenomenológica proposta por Henry. De fato, uma teologia mistagógica da corporeidade
e da ação somente se faz possível, na teoria henryriana, se situarmos toda e qualquer
ação no mundo da Vida. Nosso autor pensa a situação da práxis na Vida a partir da
análise das duas formas básicas da manifestação: Verdade da Vida -Verdade do mundo.
Partindo da Fenomenologia do mundo, podemos perceber, a partir da análise do próprio
227
228
HENRY, C'est moi la vérité, pp.109.
Cf. HENRY, Incarnation, pp. 333-334.
144
verbo produzir, que a práxis é compreendida neste âmbito como mera exteriorização de
um projeto subjetivo, situando-se então numa esfera totalmente transcendente em
relação àquele que a realiza. De fato, o próprio verbo produzir (pro-ducere = conduzir
ante) traz a marca da exteriorização. Assim, em relação ao entendimento da práxis ou da
ação na verdade do mundo, dirá Henry:
O que chamamos resultado exterior da ação não é mais que a
representação global na verdade do mundo daquilo que possui
seu foco original na verdade da Vida [...] Pois o homem é um
"eu transcendental" invisível, é esse "eu" que atua.229
Resulta então que a ação não é tão somente, no seu sentido fenomenológico
radical, uma exteriorização dos nossos projetos subjetivos. Proclama-se assim que,
segundo a Fenomenologia da Vida, nosso atuar é o atuar em Deus porque é o atuar na
Vida e a partir da Vida. A reflexão henryriana sobre nossa doação originária no mundo
da Vida, conduz ao pensamento de que cada uma de nossas ações revela a Vida de Deus
em nós. Portanto, a ação compreendida primordialmente como práxis na Vida não
possui caráter objetivante. Este constitui o drama do comportamento ético-cristão, pois
segundo a fé, a práxis não pertence à ordem do mundo. Sendo assim, nossas obras são
ocultas, visíveis somente aos olhos de Deus, ou seja, da Vida (Mt 6,17-18). A situação
da práxis, a partir da Fenomenologia da Vida, causa um desconforto e um efetivo
confronto diante do mundo e sua normatividade. Isto ocorre porque o modo de ver ekstático, como antes acenamos a partir do verbo "produzir", situa toda práxis a partir da
estrutura fenomenológica do mundo. Assim sendo, toda ação deve obedecer às leis do
mundo que não se referem somente ao espaço-tempo, como horizonte de visibilidade
própria do mundo, mas também, segundo Henry, às leis das coisas no seu sentido não
físico, tais como a normatividade social e moral. Acontece que, segundo a
fenomenologia radical, a práxis pertence originalmente à Verdade da Vida. Portanto,
torna-se inconcebível, e mesmo impossível, que ela obedeça às leis transcendentes da
Verdade do mundo. Assim, diz nosso autor:
O cristianismo joga em uma subjetividade abissal todo o
sistema mundano das ações, ação arrancada da Verdade do
229
HENRY, C'est moi la vérité, pp.218-219.
145
mundo, para ser submergida ao Patos da Vida. No que concerne
à ação mesma, seu caráter objetivo é recusado - não é mais que
uma aparência. Toda ação não se revela mais que se revelando a
si na autorrevelação da Vida.230
O conflito está posto e manifesto quando se observa efetivamente a impotência
da lei para produzir em si o atuar. Esta impotência está estritamente conectada à
problemática da ilusão transcendental do ego, trabalhada no segundo capítulo. Esta
ilusão transcendental, recordemos, diz respeito, por sua vez, ao esquecimento de nossa
doação original na Vida. Dito de outra forma, refere-se ao esquecimento de nossa
condição de filhos no Filho. Daí que a reflexão ética do cristianismo difere radicalmente
das outras por se dirigir a todos os homens em sua condição originária de filhos da
Vida. A analítica do eu "posso" denuncia, como vimos, a ilusão transcendental do ego, e
situa o ser humano diante da impotência radical que consiste, paradoxalmente, na sua
doação originária a si mesmo a partir da afetividade transcendental da Vida. Afetados
radicalmente na autorrevelação da Vida, em sua autoafecção radical, somos contagiados
visceralmente com seu "poder" . Daí que constitui a pior das idolatrias o esquecimento
desta doação radical da Vida a todo vivente e uma verdadeira ilusão a situação da práxis
em nós mesmos. A partir desta reflexão nos é possível compreender a ineficácia da lei.
Esta, situada a partir da Fenomenologia do mundo, é transcendente à vida e, assim
sendo, não possui poder efetivo para cumprir aquilo que promete. A lei padece de uma
impotência radical, vinda do mundo partilha com ele sua indigência ontológica. Esta
impotência é proclamada pela teologia paulina, no drama existencial do homem que não
pratica o bem que deseja, mas o mal que não deseja (Rm 7,19). Assim mesmo, no
evangelho esta lei é ignorada por ser radicalmente diferente do "Poder originário" que
funda todo poder. De fato, o homem "pode" trabalhar (curar) em dia de sábado porque
este está em função daquele e não aquele em função deste (Mc 2,27). Também porque a
Vida (meu Pai) trabalha sempre, a Vida não pára (Jo 5,17). O shabat não é ausência de
Vida, ela continua se manifestando sempre, ela nunca tira férias de si mesma, nunca
escapa da sua constante autoafecção radical231.
230
231
Ibid, p.222.
Cf. Ibid, pp. 225-227.
146
Evidenciamos então uma guinada radical. O mandamento situado na Vida nos
conduz a uma compreensão radicalmente diferente da lei. Passa-se, segundo Henry, de
um mandamento transcendente, situado fora, para um mandamento radicalmente
imanente na Vida. Assim desaparece a lei tal como a entendemos, em seu sentido de
uma determinação objetiva, portanto, transcendente. O mandamento agora é interior à
Vida. E a Vida é, fenomenologicamente falando, auto-afecção pura, gerada eternamente
no abraço amoroso a si mesma. Não é por acaso que o mandamento novo, o
mandamento da Vida, consiste no surpreendente apelo: amar-nos como a Vida, em sua
Palavra amorosa, nos amou. Assim, dirá o autor, que o mandamento é um mandamento
de amor somente porque a Vida é amor. Portanto, o mandamento do amor, e assim a
ética cristã, dirige-se, primordialmente, a um filho dado a si mesmo na autodoação da
Vida. Gerado no amor e por amor, todo ser humano traz em si, imanentemente, a
condição de amante. Por esse motivo, entendemos que a práxis do mandamento do
amor, no mundo da Vida, é imanente ao vivente. Esta imanência é o fundamento da
ética cristã. Sobre o destinatário da ética cristã escreve o autor:
A relação que abre a ética cristã é o nascimento transcendental
do ego, é a relação de filiação. Aquele a quem se dirige a ética
cristã não é a ideia de homem como compreende a antropologia
grega, mas ela se dirige a um 'eu' transcendental vivente. Este, o
Si vivente gerado na Ipseidade da Vida, o homem
transcendental cristão, definido transcendentalmente por sua
condição de Filho e só por ela. Tal é o primeiro mandamento da
ética cristã: viverás, mais precisamente, serás este Si vivente,
este e nenhum outro.232
Propor uma teologia mistagógica da corporeidade e da ação, significa para nós
mergulhar no mistério insondável do ser humano em sua doação originária no seio da
Vida que é Deus. Esta teologia mistagógica que nos permite compreender
originariamente nossa corporeidade transcendental e, parodiando Lacroix233, o sentido
de nossas ações carnais, abre-nos o horizonte para a possibilidade de uma reflexão que
pensa a ética cristã enquanto recordação da nossa condição de filhos e nossa
incorporação ao Corpo místico de Cristo. Outra vez esbarramos, necessariamente, com
232
233
Ibid, p.230.
Cf. LACROIX, O corpo de carne, pp.79-103.
147
o tema deste capítulo, a saber: a salvação em sentido cristão. Não voltaremos a tratar
dos temas da Inteligibilidade primordial e do cogito cristão da carne anteriormente
trabalhados. Contudo, a partir da reflexão previamente feita, podemos afirmar com
convicção que a ética cristã se propõe como superação do esquecimento radical de
nossa condição de filhos. Esta superação da ilusão transcendental do ego se dá, segundo
a fenomenologia da encarnação, na recordação, no "pathos" da práxis da vida
cotidiana234. Assim é estabelecida a função recordatória da nossa carne. Nela, através da
práxis, da atualização dos "poderes" nos quais nos encontramos originalmente dados,
recordamos nossa condição de filhos no Filho. Esta recordação é nossa salvação.
Definitivamente a carne se manifesta como eixo da salvação. Ao esquecimento radical
da nossa condição de filho, opor-se-á, portanto, o caminho soteriológico da recordação,
via práxis, no pathos cotidiano que se dá somente através da carne. Isto equivale,
teologicamente, à esperança do segundo nascimento, proposto magistralmente por Jesus
a Nicodemos e vivido, sacramentalmente, no batismo. Este segundo nascimento foi
interpretado pela tradição cristã a partir da capacidade kenótica de nos despojar do
homem velho e nos revestir do homem novo, teologia batismal de Paulo (Fl 4,17-24; Gl
3,23-29). Assim, a recordação da nossa condição de viventes na Vida supõe uma práxis
desinteressada, ou melhor, despreocupada com as coisas do mundo. Para isto, temos que
voltar à obediência da fé através da qual nos situaremos numa escuta primordial do
mandamento do amor imanente na nossa carne. Somente assim será possível fazer a
vontade do Pai235. Trata-se de um caminho mistagógico que somente pode ser trilhado
na escuta atenta da palavra de Deus. Por meio desta arquiescuta diária, nas vivências
mais ordinárias do dia a dia, o Espírito de Deus vai nos configurando à vontade do Pai.
Fazer a vontade do Pai é deixar que se cumpra em nós a vida em abundância.
Isto somente acontece com a ação ética que percebe no próximo uma carne viva como a
minha. O caminho ético cristão é aquele que, abandonando a preocupação com as coisas
do mundo, corre em direção à carne semelhante à sua para afirmar nela a vida (parábola
do bom samaritano). Segundo Henry, aqui se encontra a riqueza das obras de
misericórdia da tradição cristã. Isto porque, através delas, pratica-se o esquecimento do
egoísmo transcendental236e a recordação da nossa condição de filho, ao se colocar entre
parênteses a preocupação com o mundo. Assim temos que a resposta sobre a pergunta
234
Cf. Henry, Incarnation, p. 263.
Cf. HENRY, C'est moi la vérité pp.205-209.
236
Egoísmo transcendental é apenas outra formulação para se referir à ilusão transcendental do ego.
235
148
que se refere à possibilidade do segundo nascimento, ou seja, de sair do esquecimento
da nossa condição de filho, desta espécie de alienação, somente pode ser encontrada no
viés da práxis situada na Fenomenologia da Vida. A ética cristã, contudo, não está
baseada num mero altruísmo radical. Ela é, sobretudo, o exercício de um poder que não
tem sua origem em nós, mas que é a possibilidade de todo exercício de poder. Assim,
nascer outra vez tem a ver com a atualização deste poder, com a ação focada na práxis
da caridade ou misericórdia e não nas preocupações deste mundo em que todo agir pode
ser visto e julgado pelos homens em sua ilusão transcendental. As obras de misericórdia
nos fazem desviar do egoísmo transcendental. Acontece, então, um segundo
esquecimento. Trata-se do esquecimento do próprio ego, que nos conduz ao reencontro
com a Vida Absoluta, fonte e origem de todo poder. Este reencontro com a Vida
absoluta é o que a fé cristã chama de salvação. Destarte, afirma-se, segundo a tradição
cristã, a salvação como graça que deve ser atualizada, aceitada em cada gesto e ação
que, aparentemente ordinárias, escondem a extraordinária graça, em relação às outras
criaturas, de poder ser um vivente, um filho da Vida, autorizados por ela a agir, ou seja,
a viver. A aceitação da salvação vem pela atualização dos poderes, leia-se como dons,
que recebemos da Vida. Ocorre, segundo Henry, uma substituição do atuar do ego, no
seu ego-ismo transcendental, preocupado consigo mesmo, para o atuar original da Vida,
fundamento último do próprio ego e de todo atuar. Segundo o autor:
Dado que o atuar é fenomenológico, também é fenomenológico
o processo desta substituição, aquele que pratica a misericórdia
experimentou em si a irrupção da vida.237
Experimentar a irrupção da Vida, que é Deus, em si mesmo, via obra de misericórdia,
constitui o caminho de santidade proposto pela tradição cristã. O ápice deste
experimento nos levaria a dizer como Paulo, parodiando Gl 2,20: já não sou eu quem
atuo, é o Archi-filho quem atua em mim. Portanto, testemunhamos a necessidade de
uma nova filosofia da ação que parta da Fenomenologia da Vida, pois o princípio da
ética cristã não se faz inteligível na Fenomenologia do mundo.
Terminando sua análise sobre a fenomenologia da encarnação, surge no
pensamento henryriano uma pergunta tão radical quanto necessária, a saber: como fica a
experiência do outro numa Fenomenologia da Vida? Este questionamento desemboca na
237
Ibid, p. 214.
149
reflexão pontual sobre a ética cristã. Para compreender o ser humano na sua relação
com os seus pares, Henry haverá de propor a mesma virada fenomenológica que ocorreu
em relação ao entendimento do corpo, que, a partir da Fenomenologia da Vida, não
mais é vislumbrado como corpo opaco, mas como carne viva. Assim, o autor
empreenderá sua análise pensando o pressuposto da relação com o outro no pensamento
clássico. Como bem poderíamos supor, após nosso percurso na compreensão do autor,
Henry advoga que a possibilidade de se relacionar com o outro classicamente se
encontra compreendida a partir da presença de uma mesma racionalidade que nos abre a
um mesmo mundo. É a Fenomenologia do mundo que coloca os pressupostos para a
relação com nosso semelhante no paradigma do pensamento tradicional. Assim, mesmo
para Husserl, a relação com o outro não pode ser pensada fora da relação intencional.
Não voltaremos aqui à problemática já discutida no primeiro capítulo sobre o fracasso
desta tese fundamentada em sua indigência ontológica. Apenas dizemos que o outro
compreendido a partir da relação intencional, é um outro objetivado, incapaz de ser
tocado na sua carne, pois a intencionalidade não pode alcançar a vida do outro nela
mesma, mas somente indicá-la238.
Sobre a relação com o outro a partir do Dasein heideggeriano, o problema se
encontra no fato de que ela se estabelece, segundo Henry, não a partir de uma análise
imanente do Dasein. Ao contrário, encontra seu ponto de partida no mundo, mais
especificamente nos "entes intramundanos", a partir de sua constituição não como
objetos puros, mas como objetos úteis. Portanto, entre eu e o outro sempre se interpõe
um ente útil a partir do qual me refiro a ele. Poderíamos pensar que o ente útil é o que
atualiza minha memória da existência do outro Dasein que não sou eu. Esta
omnipresença dos outros nas coisas mesmas do mundo haverá de fundamentar nossa
abertura ao mundo e aos outros. A questão que se coloca é que a relação com o outro cai
na mesma indigência ontológica de outrora. Pois o mundo pode mostrar os entes, mas
não os cria. Assim, o ente útil não pode se estabelecer como ponto de partida para a
compreensão do outro, quando é o fato mesmo da existência prévia deste outro que o
estabelece como um ente útil intramundano. Henry nos recorda, porém, que, segundo o
mesmo Heidegger, resulta questionável a possibilidade da relação neste horizonte de
exterioridade. Famosa é sua asserção de que "no mundo, a mesa não toca o muro"239,
pode, no entanto, no mundo uma carne tocar a outra? Voltando à análise da
238
239
Cf. HENRY, Incarnation, pp.339-340.
Ibid, p.345.
150
possibilidade de todo "poder" e do poder tocar, perante o fracasso da fenomenologia da
exterioridade pura, então, a relação com o outro passa a ser vislumbrada a partir da
Fenomenologia da Vida, na autorrevelação da Vida absoluta. Desta forma,
compreendemos, ao fim desta dissertação, que a relação com o outro só é possível a
partir do nosso nascimento transcendental, como um "eu posso" na Vida, na sua
autorrevelação. Assim dirá Henry em forma de pergunta:
A experiência do outro, não é a que um eu tem do outro eu?
Não se trata para cada um deles de ter acesso não só aos
pensamentos do outro, mas de sua vida, de vivê-la de certo
modo? Não é esta a razão pela qual, por todas as partes e
sempre, tal experiência é primeiro afetiva, de maneira que, em
cada um, é a afetividade que lhe abre ou lhe fecha a esta
experiência? Não desempenha aqui a carne um papel principal,
neste patos que constitui a matéria fenomenológica da
comunicação, ao mesmo tempo que seu objeto?240
Contudo, segundo Henry, surge uma possível objeção. Esta se refere àquela
acusação de que a fundamentação da relação com o outro num eu, compreendido como
mônada, fechado em si mesmo, como muro inquebrantável, é o que impede
efetivamente não somente a compreensão, mas a mesma atualização da experiência do
outro. A Fenomenologia da Vida não ignora esta objeção, mas ao contrário, o tempo
todo se preocupa com ela. E sendo o cristianismo sua inspiração primordial, ele também
a livra desta terrível armadilha. Dessa forma, modestamente, na tentativa de
compreender tal objeção e lhe oferecer um horizonte hermenêutico adequado, nasce
exatamente a fenomenologia da encarnação. De fato, a relação com o outro ficaria
comprometida, se estivesse fundamentada apenas numa fenomenologia da "ação", uma
fenomenologia do "eu posso". Por isso, é preciso que se passe de uma fenomenologia da
carne à uma fenomenologia da encarnação. A partir desta, a relação com o outro "eu"
toma como ponto de partida não a própria carne, mas o que vem antes dela, a saber: a
vinda da Vida absoluta a uma carne na autogeração do Arquifilho, na autorevelação da
Vida absoluta. Segundo Henry:
240
Ibid, p.346.
151
Toda relação de um si com outro si requer como ponto de
partida, não esse si mesmo, um eu - o meu ou o do outro -, mas
sua comum possibilidade transcendental, que não é outra que a
possibilidade de sua relação mesma: a Vida absoluta.241
Podemos afirmar, portanto, que uma teologia mistagógica da corporeidade e da
ação, pensada a partir do crivo da ética cristã, como recordação da nossa condição de
filhos a partir da práxis carnal cotidiana, deve nos levar ao ápice do sentido cristão da
salvação. Esta se refere à divinização ou a nossa incorporação a Cristo. Contudo, este
processo de incorporação ao corpo místico de Cristo se dá, podemos concluir, por meio
da recordação da Vida na nossa práxis cotidiana. É neste sentido que o corpo se nos
aparece como caminho para Deus. Isto porque, ao atualizarmos os "poderes" da Vida
imanente na nossa carne, através das nossas ações, somos conduzidos ao magnífico
mistério da Vida. Daí que afirmamos a importante função mistagógica do nosso corpo
de carne. A partir daqui veremos que o corpo, como morada do Espírito, aponta para a
experiência do outro. Vislumbramos neste sentido, ainda que de forma tangencial, a
questão da autoafecção e da hetero-afecção em busca de uma alter-afecção. Tudo isto
nos abre ao horizonte da possibilidade da relação com o outro. Esta possibilidade se
encontra, segundo Henry, conectada à realidade denomina pela tradição cristã como
Corpo místico de Cristo. A relação com o outro no cristianismo não pode ser entendida
sem a compreensão teológica da salvação como divinização ou incorporação de cada ser
humano ao corpo místico de Cristo. Ao tratar da possibilidade da salvação numa
perspectiva mais ética, retomamos, a partir da exigência existencial da relação com o
outro, o tema da encarnação que continuará como chave hermenêutica do nosso
discurso. A relação com o outro, segundo Henry, não pode ser vislumbrada fora do
mistério da relação de interioridade fenomenológica recíproca entre a Vida absoluta e o
Primeiro Vivente. É nesta relação que todo ser humano possível se faz concebível.
Tocamos aqui o cerne do mistério da nossa fé sobre a encarnação e a salvação. Assim se
advoga que a relação com o outro deve ser compreendida primordialmente onde ela
acontece originariamente, a saber: no seio da Vida, longe da estrutura ek-stática do
mundo. Sobre isto afirma o autor:
241
Ibid, p.347.
152
Esta interioridade fenomenológica recíproca do vivente e da
Vida absoluta no Verbo de Deus nos permite compreender o
que agora nos importa, a relação original que se estabelece entre
todos os homens, a experiência do outro em sua possibilidade
última. Se o Verbo é a condição na qual todo Si carnal vivente
vem e pode vir a si, não é, ao mesmo tempo, a condição de todo
Si carnal vivente distinto do meu, o caminho que se deve tomar
necessariamente para entrar em relação com ele, com o outro?
A Vida absoluta revela ser aqui, em seu Verbo, o acesso
fenomenológico ao outro si, igual que é para mim mesmo
acesso ao meu eu (ou ao si que sou).242
A afirmação de que o acesso fenomenológico ao outro não pode acontecer fora do
Verbo da Vida aponta para a Verdade fundamental constitutiva da nossa condição
humana. Esta se refere ao fato de que todos nós fomos gerados, como Si
transcendentais, primordialmente juntos nesta Vida única e absoluta do Verbo na
Arquipassividade de sua Arquicarne. Então, segundo o autor:
O ser juntos nesta Vida única e absoluta do Verbo - na
Arquipassividade de sua Arquicarne -, de todo Si transcendental
carnal e vivo, é o que constitui o conteúdo fenomenológico
concreto de toda relação entre os homens, o que lhes permitem
entender uns aos outros antes de que se encontrem, o que
permite a cada um entender ao outro como este se entende a si
mesmo [...] É a Vida em seu Verbo a que une a todos os
viventes e torna possível seu encontro como seu único
princípio. É esse princípio que torna possível, por sua vez, toda
forma de relação histórica, trans-histórica ou eterna entre
eles. 243
Este "ser juntos" primordial, estabelecido como a condição de possibilidade de
toda relação com o outro, não deve levantar a suspeita de que nossa individualidade
seja, no fundo, uma ilusão. O ser juntos não supõe a dissolução da individualidade.
Aqui está, segundo Henry, a fantástica originalidade do cristianismo, pois a unidade
242
243
Ibid, p.352. O parêntese é nosso.
Ibid, p.353.
153
absoluta entre estes Si(s) transcendentais não comporta de forma alguma a supressão da
individualidade. Vem à tona o mistério da geração singular de cada ser humano a partir
da Palavra viva do Pai, naquilo que a Fenomenologia da Vida determina de Ipseidade
originária do Primeiro Vivente, em outras Palavras, Cristo. A preciosidade da
singularidade de cada vivente é atestada pelas relações que Cristo estabelece com cada
homem e mulher que cruza seu caminho. É assim que dá atenção à Samaritana e que
chora por seu amigo Lázaro. É a partir daqui que se entende a questão, às vezes tão
esquecida, do "discípulo amado", amado talvez pela sua diferença, alteridade irredutível
que fascina o próprio Cristo. Narrativamente, a beleza da singularidade que somos pode
ser vislumbrada em muitas parábolas, mas de forma especial naquela que fala da paixão
do Pastor que sai à procura da ovelha perdida (Lc. 15, 4-7). É que ela é tão única que
vale o sacrifício de sair à sua procura. Na tradição mística, Deus se relaciona com o ser
humano a partir da sua singularidade, ele nos chama pelo nome.
Feita a observação desta nota sobre a riqueza da singularidade de cada Si
transcendental gerado na Ipseidade originária do Primeiro Vivente, voltamos à
afirmação fundamental que constitui o ponto de partida da relação com o outro e da
possibilidade da nossa incorporação ao Corpo místico de Cristo. Em Henry, o fato de
estarmos dados juntos, todos os Si(s) transcendentais na autodoação da Vida absoluta,
funda a possibilidade última não somente da nossa relação com o outro, mas também a
possibilidade mesma da nossa incorporação ao Corpo místico de Cristo. Assim nos diz
o autor:
O elemento que edifica, a <cabeça> desse corpo, é Cristo. Seus
membros são todos aqueles que, santificados e deificados nEle
e por Ele, pertencem-lhe doravante até o ponto de se tornarem
partes deste mesmo corpo, precisamente seus membros [...]
Contudo, aos membros de seu corpo, a cada um dos que, dados
a si mesmos na auto-doação do Verbo, somente viverão da Vida
infinita que se experimenta nesse Verbo, a aqueles que se amam
Nele de tal maneira que é a Ele a quem amam em si mesmos, a
Ele e a todos aqueles que estão com Ele, ser-lhes-á dada a Vida
eterna. Nesta Vida que chega a ser a sua, serão salvos. 244
244
Ibid, pp.357-358.
154
Desta forma, constatamos maravilhados que o sentido cristão da salvação desemboca,
em Henry, numa teologia do corpo místico de Cristo. Contudo, esta reflexão haverá de
nos remeter sempre, em uma Fenomenologia da Vida, ao mistério da geração de cada Si
transcendental vivente no processo de autogeração da Vida fenomenológica absoluta.
Antropologia, protologia e soteriologia (escatologia) formam o núcleo duro da reflexão
henryriana sobre a Verdade do Cristianismo proclamada na tese que provocou nossa
investigação, a saber: a encarnação.
Da Vida que é Deus se diz que é fundamentalmente relação. A compreensão da
Trindade na fé cristã passa irremediavelmente por este crivo. Deus é amor porque o
amor é sempre a possibilidade de sentir-se a si mesmo sentindo o outro, e de sentir o
outro sentindo-se a si mesmo. Portanto, se Deus é relação, aquele "si" a quem gerou (ou
a quem criou segundo sua imagem e semelhança), em seu Si primordial (na linguagem
cristã, seu Filho), também se encontra radicalmente determinado pela possibilidade
transcendental da relação. Henry dirá que os homens, gerados no seio da Vida, em si
mesma relação, encontram-se situados neste "ser-com" que sempre os precede. Sendo
que este "ser-com" é primordial à própria Vida absoluta em sua Ipseidade originária.
Segundo o mesmo autor, todos os homens estão vivos "em uma única Vida, como vários
si (no plural) na Ipseidade de um mesmo e único Si".245 Esta visão pode nos aproximar
da nossa fé no Corpo místico de Cristo, que também pode ser compreendido como
nossa vida singular incorporada definitivamente à sua fonte eterna que é o Deus vivo e
verdadeiro de Jesus Cristo. Contudo, tal incorporação a Cristo não significa o mergulho
no anonimato, a dissolução da ipseidade. A singularidade radical de cada ser gerado na
Ipseidade do primeiro "Si", continua sendo a intuição e o mistério mais fascinante do
cristianismo.
Desta forma, diante da pergunta sobre como fica minha relação com o outro,
sobre a possibilidade de que afetemos e sejamos afetados pela alteridade. O viés para
uma modesta resposta seria pensar que todos somos afetados pela Vida e que minha
relação com o outro se dá nesta Vida comum que nos afeta a todos. Neste sentido,
pensar que afetamos ou somos afetados originalmente pelo outro e modificados por ele,
pode nos levar a colocar no centro a ilusão transcendental do ego. Esta ilusão seria a
afirmação de que somos capazes de afetar alguém. Não somos o fundamento da nossa
afecção e portanto não podemos afetar o outro de modo originário. Primordialmente
245
Ibid, pp. 347-348. O parênteses é nosso.
155
somos afetados por uma mesma Vida que é a de Deus. Portanto, somente em sentido
segundo, nesta mesma Vida de Deus, podemos afetar, tocar e sermos tocados pelo
outro. Pois ele, assim como eu, está constituído, em sua transcendência corpórea, a
partir de uma corporeidade originária transcendental no seio da Vida, como imanência
da Vida na carne.
156
CONCLUSÃO
Ao término desta empreitada, para além da feliz sensação de tarefa cumprida,
resta-nos algumas considerações finais. A primeira delas se refere ao reconhecimento da
limitação de nosso discurso. Ao longo da pesquisa esbarramos em três fatores que
estabeleceram o horizonte limite deste trabalho. Em primeiro lugar, colocamos a
questão prática da temporalidade. Evidentemente, a eficácia da pesquisa, assim como
seu objetivo, encontram-se diretamente relacionados às condições temporais oferecidas.
Não reclamamos em absoluto mais tempo, tampouco justificamos uma possível
incompetência por falta do mesmo. Apenas ressaltamos que adequamos a possibilidade
de investigação ao tempo que nos foi oferecido neste exercício de dissertação. O
segundo fator diz respeito à nossa opção quanto à delimitação da empreitada. Como a
pesquisa toca diretamente temas complexos, tais como: encarnação, corporeidade,
fenomenologia, epistemologia, filosofia e cristianismo, para evitar divagações, em vista
da construção de um discurso mais coeso, delimitamos nosso trabalho a partir da
investigação privilegiada do discurso henryriano. Em alguns momentos fizemos
aproximações necessárias com outras reflexões como, por exemplo, as de Rahner.
Contudo, tais considerações foram realizada sem perder o referencial último da
pesquisa. O terceiro horizonte que delimitou e limitou nossa pesquisa está relacionado
ao aspecto bibliográfico. Efetivamente, constatamos um déficit de produções
acadêmicas no que tange à elucidação do pensamento henryriano e sua relação com a
teologia246. Neste sentido, assumimos o desafio de navegar pelos discursos da
246
Sobre a elucidação do discurso henryriano no âmbito teológico encontramos a tese doutoral de José
Luiz Furtado, já anteriormente citada, assim como seu artigo mais recente sobre o tema intitulado: "A
filosofia de Michel Henry: uma crítica fenomenológica da fenomenologia (Cf in
http://www2.ufpel.edu.br/isp/dissertatio/revistas/27-28/27-28-10.pdf). Especificamente sobre a relação do
pensamento de Henry e o cristianismo tivemos acesso ao conjunto de reflexões publicadas numa obra,
também já citada, intitulada Phénoménologie et christianisme chez Michel Henry. Ultimamente,
infelizmente ao término de nossa pesquisa, tivemos acesso a uma tese doutoral da Universidade de
Edinburgh que aborda o self henryriano na perspectiva religiosa. A tese, em inglês, possui o seguinte
157
Antropologia teológica e da Cristologia afim de oferecer, à comunidade cristã e à
comunidade acadêmica, uma interpretação que fosse autêntica e eficaz.
Manter o discurso aberto não é somente característica do pensamento que quer
avançar na busca da verdade, mas constitui também tarefa e exercício de honestidade
intelectual. Por isso, nesta ocasião, à guisa de conclusão, manifestamos, modestamente,
os possíveis alcances e limites da reflexão henryriana, apresentada nesta dissertação, no
que tange à sua colaboração para com a reflexão teológica propriamente dita. Quanto
aos limites, ou sobre algumas dificuldades do pensamento de Michel Henry, em sua
perspectiva de diálogo com o cristianismo, destacamos em primeiro lugar a polêmica
questão de sua resituação do termo "geração". Aplicado, em sua teoria, para se referir à
criação do homem em Deus, o termo geração pode levantar desconforto teológico, uma
vez que, tradicionalmente, ele foi reservado à linguagem trinitária para falar da geração
eterna do Filho como um da Trindade. Na proposta da elaboração de uma
fenomenologia radical, fascinantemente pensada à luz do anúncio cristão da encarnação
do Verbo, Henry proclama uma identidade, na carne, entre Deus e o homem, que o leva
a pensar a geração de todo ser humano a partir do Primeiro vivente, chamado, por nós,
Cristo. Esta identificação parece problemática porque não explicita a separação
constitutiva que existe entre Deus e sua criatura. Parece existir, portanto, no pensamento
henryriano, uma lacuna no que tange à explicitação do princípio de individuação. Sua
teoria carece, de fato, da salvaguarda da diferença entre a Vida absoluta e a vida
singular? Ainda que, desde nosso ponto de vista, não pareça plausível advogar um
panteísmo em Henry, constitui questão de honestidade intelectual apontar para o risco
possível desta interpretação. Ela, de fato, pode acontecer sempre que não se leve
suficientemente a sério o projeto henryriano da virada fenomenológica, inserido em sua
fenomenologia material247.
A interessante compreensão da encarnação, delineada a partir da Fenomenologia
da Vida, pode também manifestar uma patente dificuldade teológica na hora de pensar a
questão da Kenosis. Nesta perspectiva, emergem alguns questionamentos cuja
relevância não se pode ignorar. O principal deles, de certa forma provocado por Henry,
em sua crítica sobre a cristologia das duas naturezas, esboça-se como segue: Como
interpretamos a vinda do Verbo a uma carne se a carne, como poder de afecção e
título: "Seeking the Sabbath of life: figuring the theological Self after Michel Henry" (Cf in
https://www.era.lib.ed.ac.uk/bitstream/1842/7810/1/Rivera2013.pdf.).
247
Cf.FURTADO, José Luiz. A filosofia de Michel Henry: uma crítica fenomenológica da fenomenologia.
In http://www2.ufpel.edu.br/isp/dissertatio/revistas/27-28/27-28-10.pdf)
158
autoafecção, pertence já à estrutura fenomenológica da própria Vida absoluta que é
Deus? A encarnação poderia então ser tomada como simples suprassunção da
Fenomenologia do mundo por uma Fenomenologia da Vida? Nesta perspectiva,
avançando já para o alcance da fenomenologia henryriana, no que tange à sua possível
contribuição para o fazer teológico, partilhamos da intuição de que a assunção de nossa
carne pelo Filho de Deus, não pode ser compreendida como kenosis no sentido de um
Deus que deixa de ser Vida. E a Vida, é concebida, segundo a fenomenologia
henryriana, como a essência do próprio Deus, ou seja, como divindade. Portanto, a
encarnação em seu movimento kenótico, precisa ser compreendida como a ação de um
Deus que se abaixa para encher nosso mundo com sua Vida. Sem situar a questão no
âmbito da Fenomenologia da Vida, podemos cair num duplo perigo: por um lado,
podemos incorrer no gravíssimo erro de desconsiderar a encarnação como verdadeira
kenosis de um Deus que vem para derramar Vida em abundancia. Do outro, podemos
lamentavelmente perder a oportunidade de haurir os possíveis frutos do pensamento
henryriano por considerá-lo, de algum modo, heterodoxo.
Uma das mais fascinantes possibilidades esboçada pela Fenomenologia da Vida
de Michel Henry, diz respeito à potencialidade de sua teoria em oferecer uma autêntica
hermenêutica sobre a condição humana primordial, a saber: a de sermos um corpo de
carne, seres encarnados. A emergência, em seu pensamento, de uma antropologia
fundamental, ancorada na Fenomenologia da Vida que, por sua vez, bebe avidamente
das fontes cristãs, parece-nos ainda mais oportuna. A fenomenologia da carne e da
encarnação, juntamente, ao autêntico conceito de transcendência como imanência da
Vida na carne, possibilita-nos vislumbrar futuras investigações sobre o tema da relação
entre corporeidade e teologia. Ao fim desta empreitada, advogamos que o pensamento
henryriano sobre a manifestação originária da Vida enquanto carne, pode nos conduzir à
elaboração de uma fecunda reflexão teológica sobre nosso modo de existir como seres
encarnados e irmanados na Vida. A Fenomenologia da Vida, tal como a explicitação de
sua nota fenomenológica essencial do "poder de autoafecção e alter-afecção", descortina
a possibilidade de pensar a abordagem teológica das nossas ações carnais, o que poderia
nos levar à formulação de uma autêntica Teologia do corpo. Esta, pensada à luz do
paradigma epistemológico da Inteligibilidade primordial, fecundaria o chão da
existência cristã, recolocando a encarnação e nossa vida na carne como dimensão
mistagógica de nossa fé em Cristo.
159
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