cuidado - Colégio Positivo de Arapoti

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CUIDADO
Garoto Apaixonado
Toni Brandão
CUIDADO
Garoto Apaixonado
Para Ovídio, meu pai,
e Maria Aparecida, minha mãe,
meus primeiros amores.
Agora eu tenho onze. Mas desde que eu tinha cinco anos, e
só sabia pensar com poucas sílabas, eu já achava que a
palavra amor é um substantivo muito complicado.
Tá certo que eu não pensava assim: substantivo. Eu nem
sabia o que era isso. Mas o que eu sentia, o amor que eu
sentia e nem sabia que se chamava amor, eu já achava uma
coisa muito estranha para alguém sentir.
Principalmente quando esse alguém era eu.
Mas antes de falar sobre isso, acho melhor falar de uma
outra coisa, que aconteceu antes do que eu you contar.
Como naqueles filmes, onde o diretor mostra uma cena
antes da história, para quem está no cinema entender
melhor o que vai começar.
Assinado
Antônio
A casa do meu pai fica na Baleia. A casa do pai
do Ale fica em outra praia: Boiçucanga. Mas
mesmo assim, desde que a gente se conhece,
quando a gente estava de férias, ou o Ale ficava comigo
na minha casa ou eu ficava com ele, na casa dele. Já que
não temos irmãos da mesma idade, um tinha praticamente
adotado o outro. A gente sempre f oi bastante amigos.
Nesse ano, o Ale tinha vindo pra minha casa com bike,
skate, walkman, bola de capotão número dois... e a prancha
de surf.
Bike, bola, skate e walkman eu também tenho. O que
eu nunca tive foi prancha de surf. Lá em casa até tem uma.
Do Dani, meu irmão mais velho. Mas eu nunca usei. Por
uma simples razão: eu não sei surfar. Pra falar a verdade,
eu nem sei nadar. E pra ser um pouco mais sincero, eu
morro de medo de água. Sempre tive. Rasinho, tudo bem.
Mas só até o umbigo. Mas eu gosto muito da praia. De
andar na praia. De jogar bola. De jogar conversa fora, na
areia. De ficar pensando e tudo.
O Dani, meu irmão, os outros caras, meu pai e meus
tios, e às vezes até a minha mãe, tiram um pouco de sarro
de mim por causa desse meu medo da água. O que é que
eu you fazer? Eu tenho medo mesmo.
Só quem nunca tinha tirado nenhum milímetro de
sarro de mim era o Ale. A gente se respeitava pra burro,
sabe?
- Olha, Tui: (esqueci de dizer que todo inundo me
chama de Tui, com acento no U) fica aí pensando naquela
gata da Luiza que eu you pegar umas ondas.
Quando ele não dizia pra eu ficar pensando na menina
que estava afim, ele dizia pra eu ficar fazendo alguma
outra coisa legal. Era pra eu não ficar muito sozinho enquanto
ele pegava ondas.
Só que naquele dia me deu um tipo meio besta de
coragem. Coragem de quem não tem menor idéia do que
está fazendo.
- Me ensina a pegar onda.
-Quê?
- É. Eu quero aprender.
- Mas você tem medo de ir pró fundo. Pra poder voltar
na onda, tem mesmo que ir um pouco mais fundo do que
você vai. Você tá cansado de saber.
- Mas eu também estou cansado de ficar pensando
na Luiza.
Eu não estava cansado de pensar na Luiza coisa
nenhuma. Eu nem pensava mais nela. Ela é vizinha da
nossa casa da praia da Baleia. Eu queria aprender a surfar
porque eu estava ficando praticamente interessado na
Maria Hercília. Uma supergata, que também é vizinha da
nossa casa, na Baleia, só que do outro lado. E eu sabia
que ela adorava surfistas. Eu queria impressionar a gata.
Jeito de surfista era superfácil de fazer (só imitar um pouco
o jeito do Ale). Cor, eu já tinha. Só faltava mesmo aprender
a surfar.
- Ensina ou não ensina ?
O Ale estava com o maior jeito de quem não queria
ensinar droga nenhuma. Achei estranho. A gente sempre
foi legal um com o outro.
- Acho melhor outro dia.
-E eu acho melhor hoje.
- O mar está meio bravo.
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Até aquela hora o mar estava mais do que calmo.
Estava tudo meio abafado. Parado.
— Qual é, Ale? Me ensina, vai.
O Ale, meio de saco cheio, enterrou o bico da prancha
na areia e sentou ao meu lado.
- Tá bom. Eu fico com você.
-Você tá surdo ou não lavou os ouvidos? Eu quero ir
pra água, aprender a surfar. E eu só tenho coragem de
pedir isso pra você. Será que dá pra você entender?
-Dá. E será que dá pra você entender que o mar está
meio bravo e que não demora muito vai cair a maior
tromba-d ’água ?
- Tromba-d’água é a sua cara, querendo me enrolar.
E óbvio que você não quer que eu também seja surfista,
pra se exibir sozinho para as gatas.
- Pára de viajar, Tui.
- Pára de viajar você, seu corintiano hermafrodita
de orelhinha furada.
”Corintiano hermafrodita de orelhinha furada” é um
ótimo start pra uma briga com o Ale.
- Não começa que depois você não agüenta. Sãopaulino
veadinho.
Só que eu já tinha começado! Foi aí que aumentou a
minha coragem besta.
Eu xinguei o Ale com um palavrão que eu não me
lembro agora, me levantei, peguei a prancha dele e quando
me virei pra ir pra água, o sacana do Ale me segurou pelas
canelas e eu caí de boca na areia. Ele estava muito bravo
comigo. Parecia que saía espuma pelos olhos e fumaça
pela boca, quer dizer, ao contrário.
- Nem se eu tiver que te atolar na areia, você não vai
entrar na água agora. Tá perigoso.
— Perigoso é você, seu pedaço de resto, que só porque
é mais forte do que eu, fica me prendendo pelas pernas.
Me larga, seu babaca.
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Aí a gente começou a rolar na areia. O Ale tentando
me segurar. E eu querendo me soltar. Eu dei um chute nele,
naquele lugar. Ele me deu uns doze socos. A gente nunca
tinha brigado antes. Eu nunca briguei com ninguém. Pra
/alarmais uma verdade, eu nem sei brigar. Só esses golpes
baixos, como chutes naquele lugar.
A gente ficou rolando na areia um tempão. Só o
barulho de um raio fez a gente se soltar. O maior que eu já
tinha ouvido. O raio aconteceu um milionésimo de segundo
antes de cair o maior temporal que eu nunca tinha pensado
que pudesse existir. Pelo peso, cada pingo de chuva
parecia que era um limão. Só se via gente saindo da água.
Correndo. E gritando assustados. Acho que era por medo
de se afogar, porque o mar começou afazer umas ondas
enormes e o vento levantava a areia, que ficava girando.
Tapamos os olhos com as mãos pra não entrar areia e
fomos correndo pra casa. Até deixamos aprancha na praia.
No caminho, era só árvores caindo, telhas voando. Tudo
superperigoso.
Nós chegamos sãos e salvos na varanda da minha
casa. Graças a Deus! Meu coração quase saía pela boca,
mesmo assim eu disse:
- Pó, cara. Obrigado! Você salvou a minha vida.
- Depois você me paga um sorvete.
Tinha alguma coisa de herói na cara do Ale e na
risadinha que ele deu.
Um sorvete é meio pouco pra retribuir quem salva a
vida da gente.
Ou não é?
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Capítulo 1
O primeiro dia de aula do ano é ao mesmo tempo igual
e diferente.
Diferente porque tem sempre aquele gostinho de coisa
nova. E igual, porque a gente vai ter que fazer as mesmas
coisas: conhecer o horário, ver a classe, o número, os
professores. E rever a galera de quem a gente só é um pouco
amigo e não encontra durante as férias.
Quase todo mundo tá um pouco queimado e sempre
tem alguma história das férias pra contar. Eu e o Ale tínhamos
uma super-história. Nem precisamos começar contando
porque todo mundo já sabia o que tinha acontecido.
Nós saímos até no Jornal Nacional, como dois garotos que
participaram do maior temporal que aconteceu no litoral
norte de São Paulo nos últimos cento e cinqüenta anos.
Logo que nós chegamos no pátio uns caras e garotas
formaram uma rodinha em volta da gente e ficaram nos perguntando
os mínimos detalhes. Nós tínhamos combinado
exagerar pelo menos cinco vezes tudo o que a gente falasse
pra ficar mais emocionante. Foi muito engraçado. Parecia
uma entrevista. Fizemos até pose de sobreviventes. É claro
que o Ale fez muito mais pose do que eu. Ele sempre faz.
Já estava quase na hora de bater o sinal quando o Ale
virou pra galera e disse que a gente ia interromper um pouco
pra copiar o horário das aulas.
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E eu completei:
- No recreio a gente continua.
A galera ficou supercuriosa, mas não quis dar muita
demonstração.
Na nossa escola, o horário de todas as classes fica
pendurado no mural do pátio coberto, ao lado da cantina.
Enquanto nós íamos pra lá, o Ale disse que ainda não
tinha visto nenhum aluno novo. Bem quando eu ia dizer ӎ
mesmo”, eu olhei para o mural e vi um boné vermelho que
nunca tinha visto. O boné estava virado pra trás e quase
encostava na mochila verde, Reebok, igualzinha a minha,
que estava presa nas costas do dono do boné. Ele estava
copiando o horário.
- Olha lá, Ale.
- Quem será?
Quando a gente foi se aproximando, deu pra perceber
que ele repetia em voz alta o que copiava. E também deu
pra perceber pela voz que não era ele. Era ela:
- Quarta-feira. Primeira aula, matemática, professor
João Paulo. Segunda e terceira, história, professora Meire.
Recreio. Quarta aula, biologia, professor Douglas. E quinta
aula, computação, professor José Carlos.
No ”computação professor José Carlos” já estava cada
um do lado dela. E deu pra ver que o boné também tinha
uma aba na frente. Boné com aba na frente e atrás? Igual
detetive! Ela estava com dois bonés. Um por cima do outro.
E nem notou que a gente estava espiando. E continuou:
- Quinta-feira. Primeira aula, inglês, professor Richard.
Segunda aula, geografia, professor Felipe. Terceira aula,
matemática, professor João Pedro. E quarta e quinta aulas,
português, professora Mônica.
Quando eu vi que os olhos pretos combinavam com o
nariz fininho, e que o nariz fininho combinava com a boca
bem redondinha, e que a boca bem redondinha estava
coberta com um batom bem vermelho, e que tudo isso que
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combinava era lindo, muito lindo, eu fui abrindo os olhos
devagar, até ficarem bem arregalados. Aí a minha boca
também começou a se abrir e só parou quando acabou a
elasticidade dos músculos dos lábios. E eu percebi que o
ar que saía da minha boca era bem quente. E que eu inteiro
estava ficando cada vez mais quente. Eu senti um tipo
esquisito de flechada invisível, no coração, e percebi que
ele estava batendo mais do que trash metal. Eu vi também,
em algum lugar dentro da minha cabeça, um sinal luminoso,
vermelho, de PERIGO!, que piscava sem parar. Tudo isso
porque eu tinha visto uma menina totalmente nova. E que
usava boné de menino. Dois. E um batom vermelho. Vivo.
E que essa miragem estava parada ao meu lado, falando
sozinha, que a última aula de sexta-feira era geografia de
novo, com o professor Felipe.
Aí, minhas pernas também entraram no ritmo do trash
metal. Tentei dar um tapinha na perna esquerda, pra ver se
parava. Foi com o meu barulho que ela me olhou pela
primeira vez. E foi abrindo os olhos devagar. Não
arregalando. Só abrindo os olhos. Como se ela quisesse
ver mais alguma coisa em mim. Dá pra entender? É
diferente de arregalar. É só abrir um pouco mais, sem
exagerar. Eu não conseguia fazer o som de nenhuma
palavra. Só barulhos. Aí ela falou:
- Eu estou te atrapalhando?
-Quê?
- Acho que você quer copiar o horário e eu estou na
sua frente.
Eu falei de novo:
-Quê?
Aí o Ale falou que ela não estava atrapalhando
ninguém, muito pelo contrário. E que eu tinha a mania de
ficar batendo na perna. E que ele (o sacana!) tinha mania
de mostrar a escola para as meninas novas do colégio, na
hora do recreio.
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- Quer que eu te mostre?
- Obrigada! No dia em que minha mãe fez a matrícula,
a coordenadora já mostrou.
Qualquer menina com mais de dois dias de idade
perceberia que o Ale estava passando a maior cantada.
Mas o jeito que ela falou, devagar e simpática,
desconversou totalmente o que era uma cantada e ficou
parecendo só um convite. Ela puxou o tapete debaixo
dos pés do Ale, sem deixar ele cair. Depois do susto, ele
perguntou:
- Qual é a sua série?
- Quinta. E a de vocês?
Deixei o Ale continuar porque eu ainda não estava
totalmente recuperado.
-Também. A, B, C ou D?
-C.
- Que pena. A nossa é a A.
Ela disse:
-Ah!
Mas não era com pena. Era só um Ah! E que Ah! Uau!
Ela era demais! Aí ela olhou pra mim de novo:
- Você sabe se a gente tem dois professores de
matemática?
-Quê?
Eu só sabia dizer Quês.
- É que quarta o nome do professor de matemática é
João Paulo, e na quinta, João Pedro.
- Ah, acho que eles erraram.
(Eu esqueci de dizer que eu estava com a camiseta do
clube.)
- Eu sou sócia do mesmo clube que você. Quer dizer,
estou ficando. Meu pai comprou o título ontem. Nós
viemos de Presidente Prudente agora, sabe? E legal lá no
clube?
- Superlegal.
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Ela tinha perguntado pra mim, mas o Ale quis responder
na frente. Na hora eu fiquei quieto. Pode até ser
que ele tenha mais direito de responder a essa pergunta,
afinal, ele vai pró clube todo santo dia. Eu, na verdade,
gosto mais de usar a camiseta do clube do que de ir até lá.
Na camiseta tem um pinheiro desenhado e eu sou ligado
em árvores. E, naquela hora, estava começando a ficar
ligado numa menina de cabelos compridos, castanhoclaros,
que usa dois bonés, batom vermelho e que atende
pelo simpático nome de Camila.
- Ale, muito prazer.
- Pode me chamar de Tui.
Tocou o sinal.
- Tá bom. Se vocês quiserem, a gente pode se falar na
hora do recreio.
É claro que a gente queria. Ela foi pra Quinta C, e
nós, pra Quinta A. Eu não consegui prestar atenção em
quase nada do que o Ale e os professores disseram. Eu só
fiquei contando nos dedos os cento e trinta e cinco milhões
de minutos que duraram as três primeiras aulas.
O
r
19
Capítulo 2
Na terceira aula o professor Felipe, de geografia,
roubou cinco minutos do recreio tentando fazer a gente
entender que a estrela mais brilhante, vista da Terra, é a
Sirius A, Alfa Canius Majoris. Pó, o cara ia ter todas as
aulas do ano pra explicar isso. Ele tinha que usar justo os
cinco minutos daquele recreio?
Eu queria ser o primeiro a encontrar com a Camila
pra dizer a ela alguma coisa mais inteligente do que ”QUÊ”.
O Ale também estava doido pra encontrar a Camila.
Mesmo sem combinar, nós dois descemos voando as
escadas do colégio e atravessamos o pátio coberto a toda,
até chegar na cantina, onde a gente achava que ela estaria.
A cantina estava cheia. E com o maior cheiro de esfiha
de queijo no ar. Parece que todos os alunos de todos os
colégios, nos intervalos, só pedem esfiha de queijo. Nós
demos um role pela cantina, e nada.
O cheirinho de esfiha abriu o meu apetite. Mas eu não
podia perder tempo, pelo menos até encontrar a Camila.
Eu e o Ale estávamos saindo da cantina quando a pentelha
da Glaucia pára na nossa frente, com uma esfiha, de queijo,
na mão direita. Sem morder. Só saindo aquela fumacinha.
Ela queria saber mais detalhes sobre a tempestade
das férias. A gente já nem se lembrava mais disso e não
estávamos com a menor vontade de explicar nada pra nin20
guém. Só queríamos sair fora. Mas a Glaucia ficava na
nossa frente, igual a um muro. Fazendo perguntas. Ainda
bem que a Glaucia é daquele tipo de pessoa que pergunta
e responde ao mesmo tempo. A gente só tinha que dizer é
e não. Ficamos um tempão, tentando escapar. Mas aquele
muro, com aquela fumacinha cheirosa, não se mancava.
O Ale, que é mais descolado, inventou uma desculpa e
saiu, me deixando sozinho, emparedado. Se tem uma coisa
que eu não consigo fazer é atravessar muros. Eu dava um
passo pra um lado, a Glaucia também dava. Eu voltava,
ela também voltava. E o recreio passando. E o cheirinho
de esfiha aumentando a minha fome. Ela percebeu que
eu estava com fome e me ofereceu uma mordida da esfiha.
Nisso, passou um dos seiscentos caras por quem a Glaucia
diz que é apaixonada e ela esqueceu completamente
de ser muro e foi atrás dele. Me deixando sozinho, com a
esfiha e com a fumacinha. Eu mordi uma das pontas e
voei para o pátio descoberto. Estava um solzinho bem
legal. Logo eu vi que o Ale estava parado, procurando a
Camila com os olhos. Eu perguntei se ele queria um
pedaço da esfiha. Ele mordeu uma das outras duas pontas.
Nisso a gente combina bem: sempre começa comendo
esfihas pelas três pontas.
Mas nada da Camila aparecer. Tinha uns caras jogando
bola no meio do pátio. A gente se separou e cada um foi
pra um lado, pelos cantos.
O Ale disse que quem achasse primeiro chamava o
outro. Eu disse ”tá” e fui pela esquerda, enquanto o Ale ia
pela direita. Passei por um monte de gente que eu ainda
não tinha visto. Fui dizendo ”oi” e ”tudo legal” pra quase
todos. E ouvindo também um monte de ”oi” e ”tudo legal”.
Eu ia bem pela beiradinha pra não atrapalhar o jogo
dos caras e também pra não levar uma bolada. Eu tinha
combinado comigo mesmo que só ia morder a terceira ponta
da esfiha quando encontrasse a Camila. Como um tipo de
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recompensa. Às vezes eu combino algumas coisas comigo
mesmo! Bem nessa hora, eu reparei que tinha muito mais
gente em volta do jogo do que era normal no ano passado.
E que todo mundo ficava bastante animado quando a bola
ia pra um dos gols, exatamente pra o lado que eu estava
indo. E todo mundo que estava acompanhando a bola fazia
aquele coro ”é gol, é gol, é gol...” e no final, quando a bola
chegava lá, a torcida soltava aquele ahhhhhh...” de
decepção, porque o goleiro pegava a bola. Eu só ouvia os
barulhos. Não dava pra ver direito e nem eu estava
prestando atenção. Ouvi o ”é gol, é gol, é gol ...” umas
trocentas vezes. E sempre, no final, o ”...ahhhhhh...”. Mas
nada de eu encontrar a Camila. Já estava chegando perto
do gol quando ouvi mais uma vez: ”é gol, é gol, é gol...” e
resolvi dar uma espiada no jogo. Era o Jucá quem estava
com a bola. Ele estava na minha classe no ano passado. O
cara é muito bom. Ele vinha com a bola na maior moral. Já
tinha driblado o Caca, o Rui, o Kike, o Marcião e estava
passando pelo Pisco, um cara da sexta. O Jucá é muito
rápido no drible da vaca. Na maior manha, desviava a bola
pró outro lado e chegava lá antes do adversário. Costurou
todo mundo na maior moral.
Dava até dó dos caras. Eu estou cansado de dizer pró
Jucá que ele devia ser jogador profissional. Nosso time
(ele também é são-paulino, óbvio) tem uma escolinha pra
formar jogadores e eu sempre digo que o Jucá deveria
procurar os treinadores. Voltando pró jogo: não tinha mais
ninguém entre ele e o gol. Eleja estava com a cara de gol,
só faltava levar a bola até a rede. E faltava pouco. Ele estava
bem perto. O ”é gol, é gol, é gol... ” foi crescendo.
Crescendo. Só dava o Jucá, a bola, a trave e o goleiro. Eu
olhei no pé do Jucá pra ver ele mandar o maior chute. E ele
mandou. Era impossível não entrar. Tanto era impossível,
que depois que ele chutou, antes mesmo da bola entrar no
gol, ele foi pra galera, comemorar o gol.
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Só que no meio do pulo ele teve que engolir a alegria.
A galera soltou o ”...ahhhhhh...” de novo. O goleiro tinha
pegado a bola. E eu olhei pró gol, pra ver quem era o fera.
Quase caí pra trás. Era a fera. A Camila. Que segurava a
bola tranqüilamente e vinha na minha direção, sorrindo,
com uma camiseta igual à minha, com o agasalho do
Mickey amarrado na cintura e com os cabelos presos num
belo rabo de cavalo. O sinal de PERIGO! começou a piscar,
e bem mais rápido do que da outra vez. Ela estava muito
suada e mais linda ainda.
- Oi, Tui. Quer jogar?
E mais uma vez o burro aqui só conseguiu dizer QUÊ.
Ainda bem que ela não ouviu, porque tocou o sinal ao
mesmo tempo que eu falei.
Ouvir eu tenho absoluta certeza que ela não ouviu.
Mas alguma coisa ela pensou. Porque ela deu uma
risadinha. Deve ter sido pela cara de bobo que eu estava
fazendo. Eu ia rir pra ela também, mas não consegui. Aí,
sem me pedir nem nada, e com o maior charme que eu já
vi alguém dar uma mordida em uma esfiha, ela mordeu a
terceira ponta da esfiha de queijo que estava na minha mão.
E foi cumprimentar o Jucá e devolver a bola pra ele, que
era o dono dela (não da Camila, da bola!), porque, com o
sinal, era óbvio que o jogo tinha terminado.
O Jucá e os outros caras também estavam espantados
como aquela menina agarrava bem. Tem outras meninas
no colégio que às vezes batem bola com a gente, mas são
umas frangueiras. A Camila, não. Ela era demais.
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Capítulo 3
- Eu estou gamado por essa menina, cara. Desde
aquela hora em que a gente viu ela copiando o horário no
primeiro dia de aula, desde o primeiro minuto em que ela
apareceu na minha frente, com aqueles dois bonés, com o
batom vermelho, e o nariz arrebitado, e os lábios bem
arredondados, ela não sai da minha cabeça. E o quanto ela
é legal? Com aquele jeito de quem não quer nada e
consegue tudo. Se eu não fosse tão enrolado pra falar sobre
as coisas, não precisaria nem dizer que em poucos minutos
a Camila se tornou a menina mais interessante e espetacular
do mundo. E não é só pra mim. Em poucos dias ela virou
uma espécie de princesa, de rainha... não, melhor, superstar,
em poucos minutos a Camila já era a superstar da
escola. E como ela é charmosa! Até pra bater um fute... E
o que ela é inteligente! Ela devia estudar num colégio muito
legal lá em Presidente Prudente, porque ela sabe muito. E
sobre muitas coisas. E fala inglês bem. E gosta de imitar
sotaque baiano. E joga lixo no lixo. E sabe o que é um
quarto-zagueiro. Uma URV. Como se pega o vírus HIV. E
o que é UNICEF. E já viajou pra vários estados do Brasil.
Pra outros países também. Curte rock. Ela é tudo o que eu
sempre quis, mas só tinha encontrado juntando umas dez
meninas. E o jeito como ela olha pra gente... Essa gata
tem que ser minha. Só que ela não me dá a mínima bola.
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Quer dizer, ela me olha, conversa e tudo. Mas igualzinho
ela faz com todo mundo. Ela não é igual a Glaucia e Cia.
Ltda., que é só eu estalar os dedos, elas já fazem tudo o
que eu quero. Essa não vai ser mole, cara.
Essa fala com mais de duzentas palavras, parece que é
minha, mas quem disse isso tudo, numa conversa difícil pra
burro, foi o meu grande chapa, o cara que salvou a minha
vida, o Ale. Depois de uma semana de aula, quando todo
mundo (menos eu, depois eu explico) já estava superenturmado
com a Camila, o Ale aparece na minha casa e diz
que quer bater um papo comigo, que ele precisa muito da
minha ajuda. Como o cara sempre pedia a minha ajuda pra
coisas da escola, eu nem estranhei o que ele disse. Falei que
era só ele dizer qual era a dúvida. O Ale foi ficando meio
sério e dizendo que... bom, eu não you repetir o que eu já
escrevi lá no começo do capítulo. Seria aluguel demais. Não
é todo mundo que tem saco pra ouvir histórias de dor de
cotovelo, aquela dor que a gente sente quando está muito a
fim de alguém e percebe que não vai ter a menor chance. É,
porque tudo o que o Ale disse sobre a Camila, e até um
pouco mais de coisas, eu também estava sentindo. Desde
que eu tinha visto a Camila pela primeira vez, tinha mudado
tudo dentro de mim. Quando a gente se encontrava além do
pisca-pisca de PERIGO!, meu coração batia no joelho esquerdo
e em outros lugares bem estranhos pra um coração
bater! Meus olhos, meu estômago, eu inteiro; tudo estava
fora de lugar.
Eu nunca tinha sentido nada igual. E enquanto ouvia
o Ale, parecia que era eu que estava falando, mas eu
estava é ouvindo. E ouvindo de um superchapa meu.
Um superchapa que não tinha deixado eu me afogar.
Um superchapa que tinha salvado a minha vida. E depois
de ouvir tudo isso desse superchapa, eu ainda tive
que ouvir:
- Me ajuda a conquistar ela.
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Aí mudou tudo! E pra pior! É como se eu fosse, por
dentro, um vulcão, um tufão, um ciclone, um abalo
sísmico... dava pra usar aqui uma bela lista com outros
fenômenos da natureza, eu até que entendo um pouco do
assunto, mas só esses já dá pra se ter uma idéia de como eu
estava por dentro. O que eu transpirei, dava pra encher
uma garrafa de Coca-Cola de dois litros. Só deu pra eu
dizer:
- QUÊ?
(Eu e o meu QUÊ.)
- Eu nunca te pedi nada, Tui.
Bela mentira! O Ale vivia me pedindo coisas. Mas na
hora eu nem me toquei disso. Eu só não queria que ele
percebesse o que estava acontecendo por dentro de mim.
Fiquei quieto e fiz cara de quem estava pensando. Eu estava
mesmo pensando. Mas não se eu ia ajudar o Ale ou não.
Eu estava pensando era num jeito de disfarçar.
- Tuizinho, o que é que você me diz?
Apelido no diminutivo é um golpe bem mais baixo do
que chute naquele lugar! Quem usa esse tipo de golpe tem
certeza que a gente é otário.
- Eu preciso fazer xixi. Espera um pouco.
Banheiro é um ótimo lugar pra se ganhar tempo.
Ninguém vai saber se a gente está mesmo com vontade de
fazer xixi ou não. Mas eu fiz. E lavei o rosto. Dei uma
espiada no espelho e a minha cara de bobo estava pior do
que nunca. Quase dei um murro no espelho. Mas ia
machucar a minha mão, e depois, eu ia levar uma bronca
da minha mãe, que também ia pensar que eu não estava
muito bem da cabeça, porque não se quebram espelhos
assim, sem mais nem menos. E parece que quem quebra
espelhos fica com azar durante sete anos. Azar, já bastava
aquele.
Voltei pró quarto disposto a dizer pró Ale que ia ser
impossível eu ajudar ele, porque eu também estava
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apaixonado pela mesma Camila que ele, e pelos meus
cálculos, muito mais, porque para o Ale, estar apaixonado
é gostar só uns quinze por cento. Não é igual a mim, que
sou um pouco exagerado. Quando eu coloquei o pé no
quarto, o Ale, que não é nada bobo, percebeu logo que eu
ia dar pra trás. Ele fez cara de bravo e disse, como se fosse
brincadeira, mas com a maior voz de quem queria que eu
percebesse, que não era brincadeira coisa nenhuma:
- Lembra do desenho do Aladim, que nós vimos o
vídeo lá em casa? Então, eu estava aqui pensando que a
gente podia fazer igual ao Aladim, quando ele salvou o
gênio da lâmpada. O gênio deu ao Aladim o direito de três
desejos. Como toda hora você diz que eu salvei a sua vida,
acho que eu também tenho direito a três desejos.
Aí ele amoleceu um pouco, porque viu que eu fiz cara
de quem estava caindo na conversa, e:
- Pó, Tui. Pra você, um cara tão esperto, arrumar um
jeito de chamar a atenção da Camila vai ser moleza. É só
pensar um pouquinho que eu tenho certeza que você vai
conseguir pagar sua dívida comigo. Só três tentativas, e eu
te dou sossego pra sempre. Ela nunca vai ficar sabendo.
Em vez de dizer sim de cara, eu fui pensando, e falando
aos poucos:
- ... pra atrair uma menina como a Camila... não
adianta pose de surfista... nem de bonitão... nem de
corintiano hermafrodita de orelhinha furada...
- Quer levar porrada, é?
- ... você tem que tocar o coração dela... com
inteligência... e mistério... tem que deixar a menina
interessada... curiosa... e não entregar o jogo de cara.
O Ale foi ficando maluco com o que eu dizia. E eu
também. Eu nunca tinha pensado aquelas coisas, Mas elas
foram saindo:
- Primeiro desejo! Pega papel e lápis.
Ele pegou e escreveu o que eu ditei:
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- ”Difícil entender o que você faz acontecer dentro
de mim. Tem coração batendo no joelho. Olho enxergando
em cotovelo. E estômago atravessado na garganta. Coisa
esquisita. Desarruma tudo. Mais do que o Tambora, o feroz
vulcão da Indonésia, que em 1815 provocou a maior
erupção que já existiu no mundo. Estou em erupção.
Até o primeiro dia de aula, o professor de geografia
poderia dizer que a estrela mais brilhante, vista da Terra,
era a Sirius A, Alfa Canius Majoris. Agora é você...”
- De onde você tirou isso, Tui?
- Inventei.
- Que coisa maluca. Será que ela vai gostar?
- A gente nunca sabe do que uma garota como a
Camila vai gostar.
_7
- Se eu fosse você, mandava sem assinar.
E ele mandou.
30
Capítulo 4
Acho que é bom eu começar falando sobre aquele
parêntese do capítulo três. Pra quem não se lembra, you
repetir, só que sem parêntese: menos eu, depois eu explico.
O ”menos eu” era sobre a Camila. E o depois eu explico, é
agora: eu queria dizer que quase todo mundo já tinha ficado
meio amigo da Camila, menos eu. Eu não conseguia me
aproximar muito dela. Só quando ela chegava perto de onde
eu estava é que a gente se falava. E pouco. Mas eu pensava
nela. E muito! Adorava ouvir as coisas que ela dizia e
alguém sempre acabava perguntando a ela as coisas que
eu gostaria de saber, então, eu já ficava sabendo. Pra que
ser óbvio? Pelas outras pessoas eu fiquei sabendo QUASE
todas as coisas, como por que ela se mudou pra São Paulo,
que ela também tem onze anos, que é do signo de Leão, que
ela tem dois irmãos mais novos e coisas desse tipo. Mas
pelas perguntas dos outros não dava pra eu saber que cor é o
restinho de cor que ela vê depois que fecha os olhos pra
dormir. Se tem alguma palavra especial que ela gosta de
dizer. Se ela pensa rápido ou devagar ... Dessas coisas, que
eu gostaria muito de saber, ninguém falava, e eu não tinha a
mínima coragem pra tocar nesses assuntos. E pelo visto
nunca ia ter! Ainda mais depois da bomba do Ale. O cara
colocou o maior pepino na minha mão. Ajudar ele a
conquistar a menina que eu quero pra mim.
31
Sacanagem! Mas ele tinha razão, eu estava devendo a
minha vida a ele. Se não fosse o cara me impedir de entrar
na água, eu nem teria tido a chance de conhecer a Camila.
Porque ele me salvou, eu tenho que ajudar ele. É uma
enrascada. Especialmente pra mim, que não sei ser sacana.
Quer dizer, especialmente pra mim, que sou um otário.
Um babaca. Mas também, mesmo se não tivesse a paixão
do Ale, eu não ia ter coragem de chegar junto da Camila.
Óbvio que não. Eu já tinha tido uma semana, sem saber da
paixão do Ale, e nada. É, eu não sou mesmo de nada. É
bom tirar essa frase, senão alguém vai pensar que eu sou
gay. you deixar a frase. Não sou gay, mas não sou de nada.
Foi a caminho da biblioteca que eu pensei nessas
frases. E em outras, como que ajudando o Ale a conquistar
a Camila; de algum jeito, eu estaria dizendo as coisas que
eu sentia por ela. Que era um tipo de prêmio de consolação.
Eu também pensei sobre o que a Camila tinha pensado
quando o Ale deixou o bilhete na classe dela, debaixo da
carteira, quando não tinha ninguém na sala. Será que ela
tinha aberto um pouco mais os olhos pra ler sobre o
Tambora, o vulcão da Indonésia, e sobre o coração que
batia no joelho esquerdo?
A biblioteca do meu colégio é superlegal, é só dar
uma procuradinha que eu sempre encontro um livro bacana
pra emprestar. Eu estava indo devolver um livro sobre o
Super Mário Bros., o personagem dos games. Um cara
chamado Todd Strasser escreveu um livro sobre ele. Muito
bom o livro. Se bem que nos games eu acho o Super Mário
Bros. bonzinho demais. Eu prefiro o Blanka, o monstro
verde do Street Fighter II, que foi criado na Selva Amazônica
e distribui dentadas e cabeçadas a dar com o pau.
Agora eu estava a fim de ler poesia. Eu nunca vi
ninguém que ficasse apaixonado que não desse pelo menos
uma espiadinha num livro de poesias.
- Tem As Coisas!
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A garota que cuida da biblioteca do meu colégio é
superlegal. Igual à própria biblioteca. Ela sempre me dá
umas dicas sobre novos livros.
- Do Arnaldo Antunes?
-É.
- Acho que está emprestado. Espera um pouquinho.
A Eidi, esse é o nome dela, pegou o Super Mário Bros.
que eu estava devolvendo e foi até uma estante, meio vazia,
onde ficam guardados os livros de poesia. E voltou logo.
- Está emprestado, Tui. Mas a menina deve devolver
hoje, eu... olha ela aí.
E a Camila entrou na biblioteca, com o agasalho do
Mickey amarrado na cintura, linda e com o livro As Coisas
nas mãos. Rapidinho o pisca-pisca de PERIGO! entrou
em ação.
- O que é que tem eu?
Eu não me lembro agora se a Camila disse o que é
que tem eu e abriu o sorriso ou se ela abriu o sorriso e
depois perguntou. Dessa vez eu senti o coração bater na
sola do pé esquerdo.
- O Tui quer emprestar o livro que está com você.
- Oi, Tui. Você também gosta de poesia, é?
Eu só respondi o ”oi” e fiquei olhando o jeito como
ela apoiou os cotovelos no balcão da biblioteca, jogou o
corpo pra frente e apertou um pouco os lábios, como se
fosse preparar terreno pra dizer alguma coisa pra Eidi.
-Eidi...
A Eidi olhou pra ela com cara de quem espera ouvir
alguma coisa errada.
- O que é que você fez, Camila?
-Eu?...
Um tempinho pra deixar a gente em suspense, e
continuou:
- ... eu risquei o livro. Não é bem riscar. Eu só anotei
três frases de uma poesia que eu gostei muito. É que eu
33
estava sem ter onde anotar e não queria esquecer. Mas já
apaguei, quase nem dá pra ver. Se tiver problema...
A Eidi achou um pouco de graça. Eu achei muita! A
Eidi falou:
- Deixa eu ver.
-É na página 51...
Ela abriu o livro e mostrou pra Eidi, enquanto ia
repetindo as frases da poesia que ela tinha anotado:
- ”O silêncio é o começo do papo”, ”O cachorro é um
lobo mais manso” e ”Tartaruga por dentro é parede”. E
que essas frases combinam com algumas coisas que eu
tenho pensado. Tem problema, Eidi? Se tiver, eu peço pra
minha mãe...
- Não, não tem problema! Nem dá pra perceber. Mas
é melhor não fazer de novo, tá? Nem todo mundo é tão
cuidadoso com os livros como você...
E a Eidi olhou pra mim, e continuou:
- ... e o Tui.
A Camila também olhou pra mim. Fiquei com uma
vergonha nessa hora!
- Tá legal. Desculpa, tá, Eidi?
Eu, que estava bem quietinho, soltei:
- Você sabe que essa poesia virou música?
Nem sei onde arrumei coragem pra dizer tantas
palavras pra Camila, mas eu disse. E ela me olhou curiosa:
- QUÊ?
Ela também sabia dizer QUÊ.
- É. O Arnaldo Antunes, depois que ele saiu dos
Titãs, gravou um disco, onde tem uma música chamada
”Cultura”, com essa poesia. Ela não começa dizendo que
”o girino é o peixinho do sapo”?
Ela estava superinteressada:
- Começa.
- Então, é a mesma poesia. Minha mãe tem o CD...
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Os três pontinhos é porque eu fiquei com vontade de
dizer ”quer que eu grave pra você?”, mas minha coragem
acabou bem no ”CD”, e eu calei o bico.
Ela ficou um tempinho esperando porque estava na
cara que eu queria dizer mais alguma coisa. Mas eu engoli
seco. Até me engasguei um pouquinho. Mas foi bom. Eu
já tinha sentido que seria muito melhor pra mim se eu não
me aproximasse muito da Camila. Mas ela deu outro sorriso
bacana e disse:
- Eu you pedir pró meu pai me comprar o CD. Como
é o nome?
- Nome.
Ela entendeu de cara que esse era o nome do CD. É
claro que ela ia entender. E sorriu de novo, me olhando
bem dentro dos olhos, por uns sete segundos. Como os
olhos dela brilhavam! E a Eidi preencheu a ficha de
empréstimo. Eu assinei. Disse tchau para as duas e saí da
biblioteca bem devagar, ouvindo a Camila pedir emprestado
”só um minutinho”o livro dos recordes, porque ela queria
saber se o nome da estrela mais brilhante era mesmo Alfa
Canis Majoris. Quase que eu virei pra trás e disse que não,
que a estrela mais brilhante era ela. Mas eu já tinha dito.
Quer dizer, o Ale já tinha dito. Quando eu cheguei no pátio,
o pisca-pisca de PERIGO! foi se apagando devagar.
35
Capítulo 5
”Origami
dobre-me
faça de mim
um peixe, uma flor
ou um barquinho
não me incomoda
viver dobrado
desde que seja
ao seu lado.”
A Camila gosta de fazer origamis. Eu já tinha visto
ela com um livro que ensina a fazer vários tipos diferentes
de dobradura. E como ela também gosta de poesia, achei
legal misturar poesia e dobradura no segundo desejo. O
Ale não gostou muito. Ele disse que não tem paciência pra
ler poesia. Eu não entendo por que as pessoas dizem que
não têm paciência pra poesia, se nos livros de poesia tem
muito menos letras do que em outros tipos de livro. Mas o
Ale concordou, quando eu disse que era preciso ser
diferente toda vez que a gente mandasse bilhetes pra
Camila, já que ela é tão diferente. E também o cara estava
vidrado e não sabia o que fazer pra conseguir a menina.
Quando ela estava a uma distância de uns oito quilômetros
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ele já começava a babar. Eu também, mas tentava dar uma
disfarçada! Eu já tinha resolvido ficar fora da jogada
mesmo. Sabia que eu não tinha a menor competência pra
namorar com a Camila. Agora já dá pra eu falar uma outra
coisa: eu nunca tinha namorado. É. Nem beijinho, nem
nada. O Ale já tinha ficado com umas duzentas meninas.
Mas eu não. Eu era a fim e tudo, mas na hora agá, de ficar,
de beijar, eu sempre saía fora. O Ale dizia que eu era um
tipo de anjo. Eu não concordava muito. Só achava que ainda
não tinha aparecido a garota. Quer dizer, até tinha
aparecido, a Camila, mas ainda não ia ser com ela que eu
ia ficar. Eu achava uma grande pena, mas... não dava!
O Ale colocou o segundo bilhete na carteira da Camila
do mesmo jeito que tinha colocado o primeiro, no recreio,
quando não tinha ninguém na classe dela. Foi o dia do
teste para o coral. A escola estava mudando o ensaiador e
todo mundo que estava a fim de cantar ia ter que fazer um
teste. Mesmo estando gamado como ele estava, e sabendo
que a Camila ia fazer o teste, o Ale, como sempre, não
quis nem saber do coral. Ele dizia que coral é coisa de
bicha. Bela bobagem! Não tem nada a ver uma coisa com
a outra. Cantar é um grande barato. E lá no coral da minha
escola a gente canta umas musiquinhas bem legais. No ano
passado teve até uma música do Legião Urbana.
O teste ia ser depois da última aula de sexta-feira, no
auditório do colégio. Todo mundo já tinha avisado os pais
que o ensaio ia até as duas horas. Eu cheguei no auditório
com o Jucá, que além de bom no fute é bom de gogó. A
Camila estava sentada no auditório com a Gute, uma
menina da classe dela. Elas estavam num papo bem
animado. Pra ir me sentar, eu tinha que passar na frente de
onde ela estava. Eu ia fazer que não tinha visto. Mas ela
me chamou. Fiz que não escutei. Ela chamou de novo. E
se levantou. Eu pensei num prato de sopa de jiló, uma coisa
que eu detesto, e que sempre que you dormir na casa da
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minha avó ela me obriga a tomar pelo menos oito pratos.
Eu queria fazer uma cara bem feia. Acho que consegui,
porque ela até se afastou um pouco quando olhou pra mim
de frente. Eu tive que pensar na sopeira cheia, saindo
fumaça, eca!, pra conseguir dizer:
- O que é que você quer?
Pra pergunta sair pela minha boca do jeito como eu
disse, sem nenhuma educação, ela teve que passar por um
monte de cacos de vidro na minha garganta. Doeu pra burro.
Em onze anos de vida, eu nunca tinha sido tão mal-educado.
- Eu só queria te dizer que o CD do Arnaldo Antunes
é legal.
- E eu com isso?
Eu fui pior ainda na segunda frase. E ela fez cara de
um pouco sem-graça.
O Jucá e a Gute ficaram olhando ela ser tão legal e
eu ser tão mal-educado. Fui salvo pelo Luca, o ensaiador
do coral, que chamou todo mundo pra um papo. Ele tem
uma banda de rock e trouxe flauta, pandeiro e um monte
de outros instrumentos de percussão pra gente usar no
ensaio.
O teste ia ser super-simples: ele tocava uma música
no piano que tem no auditório e a gente tinha que
acompanhar, cantando a letra. Um de cada vez.
- Não precisa ter vergonha. O teste é só pra saber que
tipo de voz cada um tem, pra separar as vozes por grupo.
Quem canta mais grave ou agudo, etc.
Quando ele disse grave e agudo, alguns de nós, inclusive
eu, fizemos cara de quem não tinha a menor idéia do
que era grave e agudo.
- Pra simplificar, grave é a voz mais grossa, e agudo,
a mais fina.
-Ah bom!
O ”ah bom!” de todo mundo encheu o auditório com
um som bem bonito.
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Todo mundo subiu no palco, jogamos as mochilas num
canto e fomos pra perto do piano. Tinha umas vinte meninas
e uns doze caras mais ou menos, e o Luca deu uma
cópia da letra da música do teste pra cada um. Era uma
música chamada Ciranda da Bailarina, de dois caras que
ele disse que são feras, o Chico Buarque e o Edu Lobo. A
música tem uma letra bem engraçada e conta a história de
uma bailarina, que parece que é um pouco metida.
O Luca chamava a gente pela lista de inscrição,
ensinava a melodia e dizia que pedaço da letra cada um
deveria cantar. O Jucá foi o primeiro:
-”Procurando bem
Todo mundo tem pereba
Maraca de bexiga ou vacina
E tem piriri, tem lombriga, tem ameba
Só a bailarina que não tem”.
Aí, o Luca mandou o Jucá para um lado e foi colocando
com ele outros meninos e meninas com as vozes parecidas
com a dele. Tinha uns cinco grupos diferentes. Eu dei uma
olhada de canto de olho pra Camila. De canto de olho, ela
percebeu, mas não me olhou de volta, e estava com uma
cara bem brava. Fiquei muito chateado. Mas, pelo visto,
eu estava conseguindo afastar ela de mim.
Quando o Luca chamou meu nome, eu disse que podia
me chamar de Tui, e ele pediu pra eu cantar:
- ”Todo mundo tem remela
Quando acorda às seis da matina
Teve escarlatina ou tem febre amarela
Só a bailarina que não tem
Medo de subir, gente ?
Medo de cair, gente
Medo de vertigem
Quem não tem...”
Era um pedaço meio difícil, mas eu aprendi rápido e,
modéstia à parte, cantei bem pra burro. O Luca fez uma cara
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meio curiosa e, em vez de me mandar pra algum grupo,
pediu pra eu ficar ali, ao lado do piano. Depois vieram a
Gute, a Glaucia, o Pisco, irmão gêmeo da Gute, e, é claro, a
Camila, que cantou a parte da letra que diz que todo mundo
tem um ”sujo atrás da orelha, bigode de groselha e calcinha
um pouco velha”, menos a tal da bailarina. Se eu disser que
ela foi quem cantou melhor alguém pode pensar que é
proteção. Mas não é. Além de tudo, a menina canta muito!
No final, a Camila fez até uma brincadeira dizendo
que achava impossível uma menina, mesmo sendo
bailarina, não ter uma calcinha um pouco velha.
Todo mundo achou graça, até eu, claro! Mas eu fui o
único que não riu. Quando a galera parou de rir, o Luca fez
uma cara parecida com a que ele tinha feito pra mim e
pediu pra Camila ficar ao meu lado. O pisca-pisca de
PERIGO! acendeu logo e eu soltei um ”Que droga!” de
quem não tinha gostado. Meio baixo, pra ninguém mais
ouvir, mas numa altura suficiente pra que a Camila
escutasse. Pra conseguir dizer o ”Que droga!”, tive que
pensar que eu estava sendo obrigado a tomar uma taça tripla
de sorvete de jaca, com cobertura de creme de barbear.
Quase vomitei. Ela fez cara de quem não estava entendendo
o meu jeito e ficou a uns quatro palmos de distância de
mim, como se estivesse com um pouco de medo de chegar
perto. Até aquele dia eu não tinha reparado no perfume
dela. E muito bomviu.
O Luca testou os três meninos que faltavam e todo
mundo já estava dividido em grupos. Menos eu e a Camila.
Ele explicou um pouco a diferença entre as vozes, e no
final da explicação olhou pra mim e pra Camila com uma
cara um pouco misteriosa.
-Vocês dois, que têm as vozes mais fortes e afinadas,
vão ser os solistas.
Quando ele disse que nós tínhamos as vozes afinadas,
a galera chiou. O Luca deu uma risada e disse que todos
41
eram afinados, mas nós dois éramos os mais afinados. E
que as nossas vozes combinavam. Alguém perguntou o que
era solista.
- Solista é quem canta sozinho alguma parte da música
que fica melhor em uma voz só do que no conjunto. Nós
vamos ter um solista, o Tui, e uma solista, a Camila.
Que fria! Eu ia ter que ficar perto dela. Que conversar
com ela. Que ensaiar com ela.
- Eu to fora.
Eu tive que dizer rápido, antes que a sopa de jiló
esfriasse e o sorvete de jaca derretesse. Todo mundo olhou
pra mim, menos a Camila. E o Luca perguntou:
- Por quê?
- you ter que ensaiar muito e este ano eu já estou
matriculado em muitos cursos: natação, arco e flecha,
capoeira, inglês... é muita coisa. Eu só queria ver como
era. Já vi. Quem sabe no ano que vem. Tchau, Luca.Tchau,
galera. Valeu!
Ninguém entendeu nada. Nem eu. Minha cabeça devia
estar a uns trezentos quilômetros por hora, e na curva. Eu
devia estar com uns cinqüenta graus de febre, porque estava
me sentindo quente pra burro. Aproveitei o silêncio, peguei
a primeira mochila verde que apareceu na minha frente, e
saí fora. Só quando estava no carro da minha mãe foi que
eu percebi que tinha pegado a mochila verde errada. Era
Reebok, igual à minha, mas era a da Camila.
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Capítulo 6
Naquele dia do ensaio do coral foi que caiu a ficha na
minha cabeça de quanto eu estava sendo ridículo, ignorante,
imbecil, burro e pelo menos mais uns trezentos adjetivos
negativos. Eu comprei uma ficha na cantina e liguei do
orelhão no pátio pra minha mãe me pegar mais cedo, porque
eu tinha saído do ensaio bem antes dele acabar. Eu ainda
não tinha percebido que a mochila era a da Camila e sentei
em cima dela, no pátio, perto do portão pra esperar minha
mãe chegar. E fiquei me lembrando do jeito estúpido como
eu tinha tratado a Camila e a minha frescura, saindo do
coral sem mais nem menos. Tive vontade de arrancar todos
os fios de cabelo da minha cabeça, um de cada vez. Mas
eu só ia ficar careca e não ia resolver nada.
Foi bem ali, sentado em cima da mochila da Camila,
perto do portão, que eu resolvi acabar com a palhaçada.
Assim que eu chegasse em casa eu ia ligar pró Ale e dizer
tudo a ele e pronto. Não. Eu não ia esperar chegar em casa
pra ligar pró Ale. Eu ia ligar lá mesmo, no pátio. Me
levantei, comprei outra ficha e fui pró orelhão. Tinha umas
meninas jogando bola perto do orelhão. Sabe como é
menina! Elas não se contentam só em jogar bola, elas
precisam fazer isso gritando. Mas eu não ia desistir. Disquei
o número da casa do Ale. Chamou três vezes, a irmãzinha
dele atendeu.
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A gente diz irmãzinha pra provocar a Carú, ela tem
nove anos. Eu tive que falar um pouco alto:
- Oi, Carú. É o Tui, chama o Ale, por favor.
- Eu posso até chamar, mas ele não vai ouvir.
- Por quê?
- Ele não está em casa. O Ale passou no clube com o
nosso pai pra pagar a manutenção. Quer deixar recado?
- Diz pra ele ligar urgente pra minha casa, porque eu
preciso falar com ele. Diz que é sobre a Camila.
- Ai, você também, é? Ele só fala nessa menina!
- Tá bom, Carú, você não esquece?
- Mesmo se eu esquecer não vai ter problema. Acabei
de anotar no bloquinho aqui da sala.
- Obrigado, tchau, um beijo!
- De nada, tchau, outro!
Quando eu joguei a mochila no banco de trás do carro
da minha mãe, pelo barulho diferente, percebi que tinha
alguma coisa errada. Peguei ela e abri. Agenda amarela.
Não era minha. Quando eu li o nome, quase que explodi.
- O que foi, Tui?
- Nada mãe, peguei mochila errada.
Eu disse que sabia quem era a dona e que ela morava
perto de casa e que eu poderia devolver depois, de bike.
Minha mãe disse pra eu ir logo porque às quatro horas
mais ou menos a gente ia pró sítio da minha avó. Eu disse
”tá” e fiquei bem quieto, curtindo e decorando o número
do telefone da Camila e calculando quantos passos de
distância tinha entre nossas casas. Ela mora bem perto
de mim.
No começo foi bom pensar isso, mas depois lembrei
que eu ia ter que falar (seria melhor escrever do que
enfrentar!) com a Camila de novo. E depois de ter sido tão
mal-educado com ela. Qualquer pessoa que não fosse feita
de pelo menos oitenta por cento de adjetivos negativos,
como eu, teria achado ótima a troca. Mas eu vi como mais
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um problema. Eu estava com a mochila dela. Cheia de
segredos. Mexo ou não mexo? É claro que eu não mexi!
Ser medroso é pelo menos trinta por cento dos meus oitenta
por cento de adjetivos negativos.
No caminho de casa, cheguei até a pensar que eu
poderia deixar pra devolver a mochila pra Camila depois
de falar com o Ale. É, porque se eu estivesse liberado de
conquistar ela pra ele, quem sabe me desse mais coragem
pra começar a conquistar ela pra mim. Resolvido! E como
eu ia dizer pró Ale? Fui ensaiando por dentro, sem falar, só
pensando, pra minha mãe não ouvir: ”Sabe Ale...” Não,
”sabe Ale” não, porque ele não sabia. ”Ale, eu preciso te
dizer um troço, cara!” É, assim é melhor: ”. . . um troço,
que eu estou sentindo... que pode até mudar nossa
amizade”. Não de novo, ”que pode mudar nossa amizade”
ia parecer que eu já queria que a amizade mudasse, e eu
não queria. O cara era brother, tinha até salvado a minha
vida. Na hora, eu podia até falar isto pra ele: ”Eu sei que
você salvou minha vida e que ajudar alguém a conquistar
alguém vale menos do que salvar a vida, mas eu não posso
continuar te ajudando a conquistar a Camila...”
-Acorda, Tui!
- Quê, mãe?
- Nós já chegamos. Estava dormindo, é? Olha lá, o
seu amigo Ale está te esperando na portaria do prédio.
Eu desci do carro antes da minha mãe entrar com ele
na garagem e fui me encontrar com o Ale, que já tinha me
visto e veio correndo pró meu lado. Quando eu coloquei
os pés no chão, parece que ele estava mais fundo. Minhas
pernas estavam tremendo um pouco. Eu tinha pegado a
mochila da Camila no carro, mas deixei minha coragem
lá. O Ale estava supercurioso e animado. Falava rápido pra
burro:
- Meu pai ligou pra casa do clube pra pegar recados e
a empregada disse que tinha um recado seu anotado; como
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era sobre a Camila, eu vim correndo. O que foi? Descobriu
um jeito de...
- Pára, Ale!
Eu não estava conseguindo nem ouvir ele direito.
Quando eu disse o ”Pára...” me deu um pouco de coragem
de novo, mas no ”...Ale!”, cadê ela? Já era.
- Pára o quê, cara? Eu estou doido para saber o que é
que você quer me falar de tão importante sobre a minha
gata...
Aí ele olhou pra mochila na minha mão:
-... Opa! Essa mochila não é sua, e eu conheço ela
muito bem! É da minha gata. O que aconteceu, Tui?
Ele ficou me olhando curioso e sério um tempão,
parecia que estava com um pouco de medo e muito
preocupado. Estava o clima certinho, o silêncio certinho
pra eu entrar com a fala que eu tinha ensaiado no carro da
minha mãe:
- Ale, eu preciso te dizer um troço, cara. Um troço
que eu estou sentindo...
- Sentindo? Você está doente? Quer que eu salve a
sua vida de novo?
Não sei se ele percebeu o que eu ia dizer e jogou meio
sujo, mas só sei que eu não consegui dizer que ia sair fora
e, como se eu tivesse feito tudo de propósito, como se eu
tivesse só esperando ele chegar pra entregar pra ele, eu
joguei a mochila da Camila nas mãos dele e disse, meio
triste, mas disfarçando:
-Aqui está o terceiro desejo. Nós trocamos de mochila
no ensaio. Na agenda dela tem o endereço, telefone e tudo...
não vai ter mais ninguém da escola na casa dela. Se você
não conseguir que ela preste atenção só em você, desiste,
porque você não está com nada, cara.
Eu fui subindo as escadinhas que tem na portaria do
meu prédio. Parei no terceiro degrau.
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- Ah, devolve a minha mochila na segunda. Daqui a
pouco a gente vai pró sítio da minha avó e não tem lição
pró final de semana.
O Ale disse tchau, mas eu não respondi e continuei
subindo os degraus bem devagar. Minhas pernas estavam
superpesadas. Minha cabeça também. E o meu coração,
muito mais.
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Capítulo 7
Triste em tudo. Triste no caminho do sítio, que é lindo.
Triste na rede da varanda do sítio. Triste na cachoeira que
tem no rio que passa pelo sítio. Triste em volta da fogueira
que o Dai, meu irmão mais velho, fez numa noite lá no sítio.
Triste vendo as galinhas passarem com os pintinhos em
fila. Triste escutando um tico-tico cantar na minha janela.
Triste comendo os doces deliciosos de mamão, de manga,
de goiaba, de caqui, de laranja e de tudo que a mulher do
caseiro do sítio sabe fazer. Triste colhendo limão-cravo no
pé. Triste andando de bicicleta com o Dani. Triste ouvindo
o barulho da chuva no telhado. Triste olhando para o vidro
traseiro do carro do meu pai enquanto a gente voltava do
sítio. Triste na cama, em casa, antes de dormir. Triste na
escola na segunda. Na terça. Na quarta. Na quinta. Na sexta.
No sábado. No domingo. Na outra semana inteira. E na outra
também. E também parecia que ficavam tristes todos os
lugares onde eu pisava, passava, parava, encostava, olhava e
cheirava. Eu pensei que fosse ficar triste para sempre.
Eu tinha resolvido me afastar um pouco do Ale
também, até porque o cara andava muito ocupado. Com a
Camila. Eles não estavam exatamente namorando. Mas
depois daquele dia da mochila, ficaram bem amigos e o
Ale sempre dizia, nas poucas vezes em que a gente
conversava, que ela já estava no papo.
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Às vezes eu cruzava com a Camila nos corredores, no
pátio e em outros lugares do colégio. Era só oi e tchau! Eu
achava que ela estranhava um pouco o meu jeito, mas eu
tentava não pensar muito nela. Com o Ale eu era obrigado
a bater um pouco mais de papo porque a gente estava na
mesma classe, tínhamos que fazer lição, trabalho, essas
coisas. Mas papo mesmo, só quando eu conseguisse
esquecer a Camila.
Estava difícil pra burro. Ainda bem que eu tinha me
atolado de cursos. Isso me deixava bastante ocupado. Até
arco e flecha eu ia começar a fazer. No clube. E as aulas
iniciavam numa terça-feira. Meu pai me deixou na porta
do clube depois do almoço e a minha mãe ia me pegar às
quatro, depois de levar o Dani ao dentista.
No caminho, meu pai veio me dizendo que ele e a
minha mãe estavam começando a se preocupar comigo.
Porque eu andava muito quieto, comendo pouco, e as
minhas notas no primeiro bimestre não estavam lá essas
coisas.
- E pra que tanto curso de uma vez, Tui? Que pressa é
essa?
- É que eu... não sei explicar, pai. Daqui a pouco eu
melhoro.
- Você está fugindo de alguma coisa?
- Tá parecendo, é?
- Eu you tocar num assunto que se você não quiser a
gente não conversa ainda, tá?...
Aí o meu pai disse que ele e a minha mãe tinham certeza
de que eu estava descobrindo o amor, e que, pelo meu
jeito, eu não estava sabendo direito onde colocar esse
sentimento.
- Tá tão na cara assim, é?
- Cara de apaixonado, Tui, é igual camiseta de time
de futebol. Só de dar uma olhadinha, todo mundo já percebe
pra que time a gente torce. Só de dar uma olhadinha pra
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sua cara, a gente percebe que tem paixão aí. E isso é bom,
filho. Por que você não curte?
- É um pouco complicado, posso te explicar depois?
- Mas não muito depois, porque nós estamos
começando a ficar preocupados de verdade, hein, Tui?
- Tá legal.
Falar um pouquinho sobre o assunto com o meu pai
me deixou mais animado. Quase aliviado. Eu sabia que
poderia falar com ele melhor depois. Mas o alívio durou
pouco. Na entrada do clube eu dei de cara com o Ale e a
Camila. Eles estavam de maio, muito alegrinhos pró meu
gosto, e iam pró lado da piscina. De longe parecia mesmo
que os dois estavam se entendendo. De perto também,
porque assim que o Ale meu viu, eles vieram me encontrar.
Eu não estava a fim de papo, mas seria muita ignorância
ser mal-educado de novo. Eu tinha resolvido que nunca
mais ia ser mal-educado pra afastar alguém de mim. Falta
de educação, eu acho, não combina comigo. Falta de
coragem, sim!
- Oi, Tui. Se eu soubesse que você vinha, tinha te
dado carona.
A Camila abriu um pouco mais os olhos e também
disse oi. Mas um oi meio distante. Parecia que ela não
queria muito papo comigo. Ela estava demais dentro
daquele maio cor-de-abóbora! Uau! Que corpo! Uau! Que
bronzeado! Uau! Que linda! O pisca-pisca de PERIGO!
piscava tão rápido que eu fiquei até com medo de acontecer
um curto-circuito dentro de mim.
- Obrigado, Ale, o meu pai me trouxe.
- Que milagre, você aqui.
- É que eu you fazer um curso de arco e flecha.
Parecia que a Camila queria dizer que legal, mas ela
não disse, só o Ale, que completou:
- Depois da aula, vai lá pra piscina cruzar a gente.
-Acho que não. Tenho medo de levar um choque!
51
Eles fizeram cara de quem não tinha a menor idéia
sobre o que eu estava falando, disseram tchau e foram pra
piscina, felizes da vida. Me deu tanta bronca da alegria
dos pombinhos que na hora eu desejei que caísse a maior
tempestade. E caiu. Do nada, em menos de um segundo,
desabou o maior toro. Gostei. Mas não fiquei achando que
era eu que tinha feito chover. Foi aí que aconteceu uma das
coisas mais esquisitas da minha vida até hoje. Eu deixei a
minha mochila num dos armários do vestiário e fui pra
sala onde seria o curso de arco e flecha. A mesma sala
onde as meninas têm aula de jau,. Tem um monte de
espelhos, barras e um equipamento de som meio antigo. A
sala fica no final do corredor, no quarto andar do prédio do
clube. Dei uma espiada numa folha colada na porta com o
nome do curso: ”arco e flecha”, e o nome do professor:
”Pedro”. Embaixo do nome do professor, uma lista com
uns dez nomes, entre eles, o meu. Entrei na sala. Vazia. As
janelas estavam abertas, mas por causa da chuva forte,
estava um pouco escuro lá dentro. Sentei no chão e fiquei
olhando pró espelho, fazendo umas caretas. Pelo espelho
eu via que a chuva lá fora estava aumentando, que estava
escurecendo mais. E começou a ventar. O tempo me fez
lembrar da chuva lá na praia, nas férias. E o vento ficou
mais forte, tão forte que a porta até bateu. Com o barulho
eu levei um susto, mas passou logo. Escureceu mais. E dálhe
vento. E dá-lhe chuva. E nada de outros alunos chegarem.
E nada de professor. E dá-lhe raios. Trovões. Parecia
tempestade de filme. Minha cara no espelho foi ficando
com medo.
-Tui.
Pelo espelho eu não via ninguém. Virei o pescoço pra
trás e fiquei arrepiado. Um cara mais ou menos da minha
idade, muito cabeludo, totalmente pelado, descalço, estava
sentado no parapeito de uma das janelas. O cara segurava
um arco e tinha uma aljava, aquele tipo de sacola onde os
52
arqueiros guardam as flechas, pendurada no ombro
esquerdo. As flechas dentro da aljava brilhavam igual a
ouro. Dei uma piscada de quem achava que não estava enxergando
muito bem. Ele deu um sorriso. O arco e as flechas
do cara não eram iguais aos arcos e às flechas que eu
estava acostumado a ver no clube. Pareciam bem mais
antigos. Olhei no espelho de novo e nada de ver o cara lá,
só quando eu me virava de costas. Pensei no Conde Drácula.
Mas o cara que estava ali comigo tinha a maior cara de
gente boa. Pouco provável ser um vampiro. De repente,
ele saiu da janela flutuando e aterrissou ao meu lado. Claro
que eu quase caí pra trás. Aí, o tal cabeludo peladão deu o
arco e uma das flechas pra eu segurar. Eu segurei. Eram
bem leves.
- Mais firme. Segura o arco com mais firmeza, mas
sem perder a leveza. E coloca a flecha com todo cuidado.
Agora escolhe um alvo. E mira. E quando tiver certeza de
ter mirado certo no seu alvo, deixa que a flecha vá buscar
o que você deseja. A flecha é a sua vontade, que vai até o
alvo e traz ele pra você.
Achei esquisito pra burro aquele papo, mas fiz o que
ele disse. Só que a flecha caiu no chão, perto dos meus
pés, como se eu não tivesse dado impulso nenhum para
ela, e se partiu em dois pedaços que brilhavam pra burro.
E eu senti uma pequena dor no coração. O tal do cara deu
outra risadinha simpática, pegou os pedaços no chão e
juntou as partes que tinham se quebrado. Elas se juntaram
e a flecha ficou novinha em folha. Será que ele era mágico?
- De novo, Tui. Com calma.
E eu fiz. E as partes caíram de novo.
- Acho que eu não you me dar muito bem com este
curso.
- Vai sim. Você tem tudo pra acertar o alvo. E você
sabe disso, desde o primeiro dia de aula, no seu colégio.
-Quê?
54
- Firmeza, leveza e cuidado pra organizar a vontade
do seu coração.
-Você está falando de arco e flecha ou sobre a Camila?
- Eu estou falando do único assunto que eu conheço.
Não entendi o que ele quis dizer. Fui ficando suado e
com mais medo:
- Eu pensei que você fosse professor de arco e flecha.
Tchau!
Saí rapidinho da sala. Dei um espiada na folha de papel
colada na porta e fiquei de cabelo em pé. Alguém tinha
riscado o nome do professor com um giz de cera vermelho
bem vivo e tinha escrito por cima um outro nome, que eu
nunca tinha ouvido falar: Eros. De fora da sala, dei mais
uma olhada pró cara e ele deu outro sorriso simpático. No
maior pau, desci as escadas pulando os degraus. E quando
cheguei lá embaixo, saí correndo na chuva e dei umas
dez voltas no clube. Pelas quadras descobertas, pista de
cooper e tudo o mais. Na minha cabeça eu ouvia a voz do
cara dizendo ”firmeza, leveza e cuidado pra organizar a
vontade do seu coração...” e via o rosto da Camila sorrindo,
fazendo caretas e outras expressões que eu já tinha visto
ela fazer. Até que passou o susto, eu fui pró vestiário e
tomei um banho morno. Mas mesmo assim, peguei um
belo resfriado.
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Capítulo 8
Atchim! Foi o que eu mais disse naquela semana.
Eu fiquei mal pra burro com o resfriado. Até tossi, coisa
que quase nunca faço. Na escola eu dizia pra ninguém
chegar muito perto, pra eu não passar o vírus da gripe.
Foi aquela gripe com nome de presidente. Um país onde
se compara o presidente a uma gripe é porque as coisas
não vão bem...
E o cara que eu cruzei no clube! Ele não saía da minha
cabeça. Eu precisava saber quem era o tal do Eros de
qualquer jeito. Um vampiro não era. O professor de arco e
flecha de verdade também não. Um fantasma? Também
não tinha cara. Tudo o que eu pensava, não combinava.
Até que eu tive a idéia de procurar no dicionário da
biblioteca do meu colégio. E foi na última palavra da
terceira coluna da página 546 da primeira edição do
dicionário que eu fui descobrir quem era aquele cara. No
dicionário dizia que, na mitologia grega, Eros era o nome
do deus do Amor. Poxa! O cara é um deus e foi me dar aula
de arco e flecha no clube? Deve ter algum engano. E que
história era aquela de...
-... mitologia grega?
Eu falei ”mitologia grega” um pouco alto para uma
biblioteca! É, porque eu tinha levado um susto. O tal do
Eros era um tipo de deus do amor, de uma coisa que não
56
tinha a menor idéia do que era: mitologia grega. Ainda
bem que eu falei um pouco alto. A Eidi levantou os olhos
de uma revista que ela estava lendo e me perguntou:
- O que foi, Tui?
Ela era a melhor pessoa pra me ajudar. Eu fui até a
mesa dela com o dicionário aberto na página 546 e disse:
- Eu li aqui que o Eros é o deus do amor na mitologia
grega, Eidi. Eu não sei o que é isso, mitologia grega.
Atchim!
A Eidi disse ”saúde” e falou pra eu procurar na letra
M do dicionário.
E eu procurei:
- Está aqui, na página 931: Mitologia - História
fabulosa dos deuses, semideuses e heróis da Antigüidade
greco-romana.
- Deu pra entender?
- Acho que não.
- São histórias e personagens fantásticos, cheios de
aventuras fabulosas, que ajudam a explicar a origem, as
idéias e os grandes feitos do povo grego e do povo romano,
que você vai estudar num dos próximos anos. É um tipo de
folclore. Todos os povos têm sua própria mitologia com
lendas, heróis, deuses, etc. Eros, por exemplo, é o deus do
amor na mitologia grega. Um deus bem sapeca, diga-se de
passagem. Na mitologia romana, ele aparece com outro
nome, Cupido, e é bem mais comportado. Como se fosse
um anjo.
Aí eu me lembrei que já tinha ouvido falar em Cupido
várias vezes. Mas em Eros, nunca.
- Quer dizer que são lendas, que esses personagens
não existiram?
- Que são lendas, isso são. Agora, se eles existiram
ou não, vai depender da capacidade de acreditar de cada
um. É crer pra ver! Mas por que o Eros?
- É que... eu queria saber mais sobre ele.
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A Eidi gostou do meu interesse, foi até uma das
prateleiras e trouxe um outro dicionário, só sobre mitologia
grega. E ela me ajudou a ler e a entender que o Eros, o
deus do amor, era filho de Afrodite, também chamada de
deusa do amor, pelo menos na mitologia grega, e uma das
forças mais importantes do mundo. E no livro de mitologia
o Eros estava descrito exatamente como eu tinha visto ele.
Foi aí que eu tive certeza absoluta de que estava pirado. Eu
tinha que parar com aquela história de ficar apaixonado.
Isso estava me deixando doidão. A Eidi estalou os dedos
na frente dos meus olhos pra eu voltar a prestar atenção
nela, deu uma risadinha bem esperta e perguntou:
- Levou alguma flechada do deus do amor, é?
Eu ri como se tivesse achado graça na gracinha dela,
mas pra mim, não tinha a menor graça, o assunto era sério
pra burro. Mas eu tive que disfarçar, claro!
- Obrigado, Eidi.
- De nada. E toma vitamina C, que essa gripe está
derrubando.
Eu tinha resolvido que não ia contar nada sobre ele,
pra que ninguém, além de mim mesmo, pensasse que eu
estava pirado. Pensando bem, eu não estava levando uma
vida muito normal, só pensando na Camila e na Camila com
o Ale. O amor estava me deixando um pouco fanático. Eu
tinha que tirar a Camila da minha cabeça, de qualquer jeito.
Eu só não sabia por onde é que ela ia sair, mas que ela ia,
isso ela ia. Falar com os meus pais? Ainda não. Era melhor
dar mais um tempo. Mas é difícil, viu, tirar alguém que entra
pela cabeça da gente e ocupa o coração, a atenção e tudo.
Na segunda aula de arco e flecha eu nem fui. Disse
aos meus pais que tinha desistido do curso porque não tinha
nada a ver comigo, e eles acreditaram. Mas acho na verdade
que arco e flecha não combina mesmo comigo. Como disse
o Eros, tem que ter firmeza, leveza e cuidado para acertar
os alvos. Eu não tenho nada disso!
58
Eu também tinha resolvido ser menos ridículo e
conversar um pouco mais com o Ale, pra ir aceitando a
idéia dele namorando com a Camila, pra coisa ir ficando
normal e pra eu ir voltando ao normal. Engraçado! O Ale
fazia questão de me dizer toda hora que as coisas entre ele
e a Camila estavam rolando superbem, mas eles ainda não
namoravam. Por quê? Mas eu só me perguntava por dentro.
Eu não queria comentar isso com o Ale.
Na escola onde eu estudo tem atividades culturais extras
o ano inteiro. Quem quiser, pode aprender capoeira,
escrever livro, dançar, cantar e até fazer teatro. A não ser
dançar, que eu não levo muito jeito, resolvi fazer o que eu
tinha falado pró Luca, ensaiador do coral, e me matricular
mesmo em todas as atividades, preencher o meu tempo,
me atolar de coisa pra esquecer a Camila e não ficar pirado.
Pró coral eu não poderia voltar porque ia pegar mal, mas
capoeira, oficina de literatura e grupo de teatro, tudo isso
eu estava a fim de fazer.
Iam começar os ensaios de uma peça no grupo de
teatro. Acho legal teatro porque a gente pode ser outras
pessoas, experimentar como são outras pessoas, ver as
coisas por outro lado. Isso abre um pouco a cabeça da gente.
Eu tinha certeza imediata e absoluta que a Camila também
ia estar por perto, mas eu ia tentar não deixar isso me
atrapalhar. Afinal, eu tinha que tocar a minha vida pra frente.
Mesmo sendo um babaca, não ia poder passar a vida inteira
na fossa.
Como nas outras atividades extras, os ensaios iam
ser fora do horário de aula, à tarde, e quem ia dirigir a
peça era a professora de educação artística, a Lúcia. A turma
era quase a mesma do coral. Tinha uns caras que estavam
no auditório no primeiro dia de ensaio que eu tinha certeza
que era só de farra. No segundo dia, eles já iam desistir.
Eles só estavam lá porque as meninas mais bonitas do
colégio sempre fazem parte do grupo de teatro. E. Elas
59
têm vontade de ser atrizes de TV ou modelos, e acham que
fazer teatro no colégio é um bom jeito de começar. Elas
têm um pouco de razão: pra quem levar os ensaios a sério,
pode ser uma experiência legal. Depois dos ois e tudolegais,
sentei numa poltrona do auditório do lado da Gute,
que perguntou por que eu não voltava pró coral, que estava
superlegal. A Gute falou mais outras frases que terminavam
com ”ai”, mas eu não me lembro agora. Ela adora falar
rimado. Eu só me lembro que depois ela perguntou se eu
não tinha visto a Camila. Essa frase, é claro, eu não ia
esquecer.
-Não. Atchim!
- Saúde!
- Obrigado!
- A Camila deve estar com o Ale. O menino não
desgruda do pé dela.
Eu não entendi se: a) ela estava com ciúme da Camila,
b) se ela estava a fim do Ale ou c) se ela estava tentando
dizer que a Camila já não agüentava mais o Ale. Quando
eu ia escolher uma das alternativas, o Ale e a Camila
entraram no auditório na maior felicidade, que nem naquele
dia do clube. Eu fiquei achando que a Gute estava é
com ciúme do Ale; eu sempre achei que ela fosse um pouco
a fim dele, como a maioria das meninas do colégio. A
Camila fez sinal pró Ale, pra eles sentarem do meu lado,
perto da Gute, mas o cara fez que não com a cabeça, um
não um pouco assustado. E a professora Lúcia começou:
- Este ano nós vamos montar um dos textos mais
bonitos da história do teatro. Nós vamos fazer uma
adaptação da peça Romeu e Julieta, do escritor inglês
William Shakespeare, que viveu na Inglaterra, de 1564 a
1616. Alguém já ouviu falar em Romeu e Julietal
Todo mundo balançou a cabeça dizendo não. Menos
a Camila, que levantou o braço direito.
-Eu já.
61
Bem nessa hora que ela disse ”eu já”, eu soltei um
espirro barulhento e todo mundo, até ela, olhou pra mim.
Fiquei um pouco envergonhado, eu tinha atrapalhado a
menina
- Desculpa, foi sem querer.
Eu tive que falar! Mas ela não precisava abrir aquele
sorriso lindo pra dizer:
-Não foi nada...
E um pouco mais animada, ela continuou:
-... É a história de amor entre dois jovens, de duas
famílias inimigas. Eles se apaixonam e o amor deles faz as
famílias voltarem a se entender. A história é bonita, mas
também muito triste, porque eles, que têm o amor dentro
deles, morrem no final, sem aproveitar muito esse amor.
Eu assisti Romeu e Julieta em vídeo, com a minha mãe.
Ela até me disse que esse tipo de história triste tem um
nome, ai, como é mesmo?... Me lembrei, é tragédia.
-Atchim!
Dessa vez, eu pedi desculpa só com uma risadinha. A
Camila me deu outra risadinha. Em vez de ficar contente,
eu fiquei muito triste. E com medo de morrer, igual numa
tragédia, e nunca aproveitar meu amor. Na hora eu me
esqueci que tinha resolvido esquecer dela! E eu fiquei mais
triste ainda quando me lembrei daquele filme, Meu
Primeiro Amor, com o Macaulay Culkin, que fez também
os dois Esqueceram de Mim. No Meu Primeiro Amor ele
morre, porque é alérgico a picadas de abelhas e é atacado
por um enxame, quando vai a um bosque, sozinho, procurar
o anel que a menina que ele gosta perdeu. É um filme muito
triste. A menina não tem mãe, perde o melhor-amigo-quasenamorado
e tudo.
A professora adorou a explicação da Camila e
perguntou se ela achava que conseguiria fazer o papel de
Julieta, que era um papel importante, que tinha que decorar
62
muitas falas e tudo. A Camila ficou superanimada, mas
deu uma bela disfarçada:
- Posso tentar.
- Então já temos a Julieta.
E o Ale olhou pra mim e disse rapidinho:
- E também já temos um Romeu: eu.
Naquela hora achei que ele estava com medo de mim.
Estranho! Mais estranho ainda ele querer ser o Romeu, o
papel principal. Ele nunca fez parte do grupo de teatro.
Pensei que a professora fosse dizer isso a ele, só que ela
olhou pró Ale e pra Camila juntos, pensou em alguma coisa
e falou:
- Tá bom. Você será o Romeu, e ela, a Julieta. Tem até
cena de beijo!
- Ooooooba!
Só o Ale disse oba. Todo mundo achou graça, menos
eu, que me afundei na poltrona, triste pra burro. A Gute
ainda disse:
- Você é muito mais Romeu do que aquele menino
bobo chamado Alexandre Sampaio de Moraes, o ridículo
número 7 da Quinta A.
Em vez de responder, eu espirrei de novo. E fiquei
esperando a professora me dizer que tinha esquecido de
mim, porque eu estava afundado na poltrona, mas que tinha
um papel pra mim, era pequeno, mas tinha. Eu ia ser o
primo de terceiro grau do Romeu. Eu disse que estava legal
e peguei uma das cópias do texto da peça. Nós sentamos
no palco, numa roda, e começamos a ler a peça em voz
alta. É bem agitada, logo no começo tem uma bela briga
entre os Montechio (família do Romeu) e os Capuleto
(família da Julieta). Eu ia aparecer na briga, mas não ia
dizer nada. Depois tem uma festa, um baile de máscaras,
onde o Romeu e a Julieta se conhecem e se apaixonam.
Eles dizem coisas muito bonitas um pró outro. No baile de
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máscaras eu também aparecia e não dizia nada de novo.
Depois tinha outras cenas legais. Em algumas delas eu
também aparecia, mas ainda não dizia nada. Quase que
dormi durante a leitura, porque na peça inteira eu só tinha
uma fala. Eu só ia dizer um ”QUÊ?”, na penúltima
cena. Dizem que a vida gosta de imitar a arte. No dia do
primeiro ensaio da peça, comecei a achar que a coisa não
era bem assim.
64
Capítulo 9
A pior coisa que deve ter pra um ator de verdade é
fazer papel pequeno, com poucas falas, numa peça. Dá
até pra dormir. No meu caso, um primo de terceiro grau
do personagem principal e que só dizia um ”QUÊ?” na
penúltima cena, eu poderia ter levado um sleeping e tirado
boas sonecas durante os ensaios. Eles eram um pouco
demorados. Por causa do Romeu. Meu querido amigo Ale
não conseguia fazer nada direito. Parecia que o cara não
prestava a menor atenção no que estava fazendo. O
Romeu, durante a peça, corre, pula muro, dança, faz um
monte de coisas. Nas partes movimentadas o Ale ia bem,
mas na hora de fazer coisas mais calmas, ele se atrapalhava
todo. Eu, como não fazia quase nada, ficava só prestando
atenção. Na cena do baile de máscaras, quando o Romeu
conhece a Julieta, é um momento bonito pra burro. No
meio da bagunça da festa, eles vão se aproximando e Ale
ia bem; quando ele tinha que olhar bem dentro dos olhos
da Camila, quer dizer, da Julieta, só tocar as mãos dela
de leve e se apaixonar, o carajá segurava firme, como se
ela fosse fugir... Não tinha o menor clima de quem estava
se apaixonando.
Um dia a professora Lúcia, pra tentar fazer ele entender,
até perguntou se ele nunca tinha se apaixonado.
Fiquei até com dó da cara de sem graça que ele fez. E nas
65
falas então! Até o Ale conseguir entender coisas que os
apaixonados dizem, como o Romeu dizer pra Julieta que o
olhar dela era mais perigoso do que vinte espadas juntas, a
Camila já estava totalmente desanimada. Quando alguém
tirava um pouco de sarro do Ale, a professora Lúcia brigava
com a pessoa e dizia que ninguém ali era ator de verdade,
que todo mundo estava aprendendo e tudo. O que era
verdade, mas o cara estava indo muito mal.
Apesar do Ale, eu estava indo muito com a cara do
Romeu. O cara era mesmo bacana. Fazia de tudo para estar
com a Julieta e dizia pra ela e sobre ela coisas muito legais.
O autor da peça, o William Shakespeare, era muito
inspirado pra bolar aquelas falas!
A professora Lúcia estava fazendo uma montagem
bem simples da peça, com poucos cenários. A peça se passa
no século XVI, e nós íamos usar roupas parecidas com as
roupas dos príncipes e princesas. Cada um tinha que trazer
o figurino, a roupa que a gente ia usar, de casa até na véspera
do dia da peça.
Por causa do tamanho do meu papel, eu pensei em
sair do grupo, mas ia ter que explicar pra tanta gente o
porquê e tudo, e como eu já tinha saído do coral, ia ficar
com fama de furão. Achei melhor segurar a barra, pelo
menos eu estava vendo a Camila.
Eu ainda não conseguia falar direito com ela, mas ver
a Camila de vez em quando nos ensaios, não era nada mal.
Eu pensei até que estivesse começando a esquecer ela.
Mas logo eu vi que não, que eu só estava congelando o
meu sentimento. Igual quando a mãe da gente coloca um
prato no freezer. Ele não acabou, só está guardado. Um
dia, nos ensaios, eu fiz uma coisa que complicou um pouco
a minha vida. Numa cena entre o Romeu e a Julieta, depois
que a Julieta termina uma fala dizendo ”cuida de mim”, o
Ale, quer dizer, o Romeu, tinha que dizer ”para sempre.
Me chama de amor e este será o meu nome, não mais
66
Romeu”. Mas o Ale não conseguia dizer a frase. Saía tudo,
menos essa frase. Eu, que estava sentado na beirinha do
palco, meio perto dele, e já tinha decorado a fala na primeira
vez que eu tinha lido, soprei pra ele. Ele me olhou animado,
repetiu, e o ensaio continuou. Claro que parou mais umas
duzentas vezes, mas chegamos ao fim daquela cena. No
final do ensaio, o cara chega pra mim, me chama num canto
e me pede, com a maior cara-de-pau, como se depois de
ter ganhado a Camila ele não tivesse mudado totalmente o
jeito comigo, como se ele nunca fizesse questão de me
deixar longe da Camila, como se aquele dia na portaria do
meu prédio ele não tivesse sido um sacana e usado ter
salvado a minha vida pra eu não dizer pra ele que eu também
estava apaixonado pela Camila, como se ele não estivesse
sendo o cara mais falso dando aquelas risadinhas falsas
pra mim pra mostrar que ele era muito meu amigo e que
não tinha percebido a coisa que estava estampada na minha
cara igual estão estampados nas camisetas os símbolos
dos times de futebol; o cara vira pra mim, num canto,
como eu já falei, e pede, com a maior cara-de-pau, que eu
também já falei, pra eu ajudar ele a decorar as falas. E
ainda usou a Camila como desculpa. Ele disse:
- Olha, Tui, não é nem por mim que eu estou te pedindo
isso, é pela Camila. Eu não quero que a menina passe
vergonha na frente da escola inteira, na frente da família
dela inteira... me ajuda?
E mais uma vez eu, o oitenta por cento adjetivos negativos,
o garoto com o coração batendo no joelho, o garoto
com os olhos enxergando nos cotovelos e o estômago atravessado
na garganta, dei mais um espirro, porque ainda
estava um pouco resfriado, e disse sim. Mas dessa vez
com uma diferença: eu não estava dizendo sim por causa
da minha amizade com o Ale; na verdade, a cara da nossa
amizade tinha mudado muito. Eu falei sim por causa da
Camila. Eu sei que para o Ale isso não tinha a menor im67
portância, ele só queria fazer bonito pra ela e tudo. Eu queria
preservar a Camila. Não que a Camila estivesse ameaçada
de extinção. Ela estava ameaçada de passar vergonha.
- Mas ninguém pode saber, tá, Tui?
Nos dias em que a gente ensaiava, depois dos ensaios,
eu ficava com o Ale, lendo e tentando fazer ele entender
por que o Romeu teve que fugir de Verona, a cidade onde
ele morava na Itália. Por que ele se escondeu na casa do
Frei Lourenço, um amigo dele, e ficou esperando a Julieta
lá, para eles se casarem escondido. Por que ele teve que
fugir depois de se casar com a Julieta. Por que o Frei
Lourenço inventou a história da Julieta tomar um veneno
falso, pra pensarem que ela estava morta de verdade, e ela
não ter que se casar com outro cara. Por que o Romeu, não
sabendo que a Julieta estava só se fingindo de morta, se
mata de verdade. Por que, depois de ver o Romeu morto, a
Julieta também se mata de verdade. E por que, de tanta
tristeza, as famílias fazem as pazes. Mas os filhos apaixonados
já estão mortos. E as falas todas em que o Romeu
fala de amor, eu fui ajudando elas entrarem na cabeça do
Ale, fui dizendo com ele, pró cara aprender a repetir. E
ele ficando cada vez mais alegre por estar decorando as
falas. Tão alegre, que nem percebeu que junto com as falas
do Romeu, foram saindo da minha boca alguns vírus da
gripe com nome de presidente. Eu também não percebi,
mas eles saíram! E que esses vírus foram entrando nele
junto com as falas do Romeu. E ele foi pegando o meu
resfriado, com nome de presidente. E mesmo já estando
um pouco frio, porque já era o final do outono, ele
continuou tomando gelado, usando camiseta regata, e o
resfriado foi se complicando mais do que tinha sido comigo.
E virou começo de pneumonia, e no dia da peça ele
estava muito rouco, e em vez de ir pra escola o Ale foi
parar no hospital, com quarenta e um graus de febre, e teve
até que fazer inalação.
69
Quando eu cheguei na escola pra me preparar pra peça,
estava todo mundo meio preocupado. Não com o Ale,
porque todo mundo sabia que ele era bastante saudável e
estava medicado e tudo, mas com a peça. Eu levei um susto.
Bem nessa hora me deu a maior culpa. É, eu fiquei quieto,
pra ninguém se lembrar que eu estava resfriado e pensar
que tivesse feito de propósito. Não, eu tinha que falar
alguma coisa. E rápido.
- Sem o Ale, é melhor a gente adiar a peça. Logo ele
melhora!
Foi o que o burro aqui disse. E todo mundo começou
a concordar. Um pouco chateado, porque já estava tudo
pronto. É, mas quem ia fazer o papel de Romeu? Eu é que
não ia dizer que sabia todas as falas dele. Ainda mais que a
culpa do cara estar doente era minha! Eu não tinha esse
direito. Bem quando eu pensei que não tinha esse direito,
entra no auditório uma das moças 4ue trabalham na
secretaria do colégio. Ela estava com o telefone celular da
diretoria na mão e uma cara um pouco brava, como se
estivesse fazendo alguma coisa contra a vontade. Esqueci
de dizer que ela vinha na minha direção, e que ela parou
na minha frente, e que me deu o telefone pra eu segurar:
- Depois, mocinho, a diretora disse que vai querer
saber, em poucas e objetivas palavras, como é que o ”senhor”
descobriu o número do telefone celular da escola!
Antes de pegar o telefone, o oitenta por cento adjetivos
negativos aqui ainda disse:
-Quê?
- Tem um garoto querendo falar urgente com ”o
senhor”. Fale logo porque essa ligação é cara.
E eu coloquei o fone no ouvido esquerdo.
70
Capítulo 10
-Alô.
Eu pensei que era o Ale, pra me culpar pelo resfriado.
Mas não era. Quem queria falar comigo era o Eros, de novo.
-Você não está se achando importante demais, não,
garoto?
-Quê?
- Já tentamos de tudo: livro de poesia, futebol, batom
vermelho, troca de mochilas, ensaio de coral, tempestade
cinematográfica, gripe com nome de presidente, uma das
mais bonitas histórias de amor... até eu tive que aparecer e
estou tendo que voltar, no telefone celular. O que é que
você está esperando pra abrir o seu coração?
- Eu não posso.
- Até quando você vai se esconder atrás desse medo
bobo e vai ficar inventando desculpas?
- Não é desculpa.
- É, e você sabe que é. Você tem um compromisso
com o amor, Tui. Não é toda hora que ele acontece. E você
está deixando passar o primeiro grande amor da sua vida.
Em nome do quê? Do Ale? Você sabe que isso não é verdade.
Não é nenhuma prova de amizade o que você está
fazendo, se esconder atrás de um amigo. Ficar dizendo a
toda hora que o Ale salvou sua vida já não cola mais. Tem
aí um desafio e você não quer passar por ele. Azar o seu.
71
Congelar o que você está sentindo no freezer, como você
mesmo disse, não vai resolver. E o Ale não é nada sacana.
Ele está só lutando pelo que ele quer, e algumas das armas
dele quem está oferecendo é você. Quem está enfraquecendo
a amizade é você, e não ele. Sem seu medo bobo,
você teria as mesmas chances que ele, e a amizade de vocês
sairia fortalecida. Não precisa dizer nada, tem muita gente
aí perto e eu sei o que você está pensando. Mas quem te
garante que o Ale ”ganhou” mesmo a Camila? Será que
você não consegue ver nos olhos dela o quanto a menina te
admira e ficou triste com o seu jeito? Você tem, no mínimo,
a obrigação de oferecer o seu amor a ela. Se ela não quiser,
aí é outro papo. E, nessa altura do campeonato, se ela não
quiser, você terá contribuído para esse não-querer...
- Quer dizer que tudo o que aconteceu foi armado,
é?
- De alguma maneira, tudo é sempre armado.
-Ah!
A moça da secretaria bateu o pé no chão como se
mandasse eu ir logo.
- Eu tenho que desligar.
- Veja lá o que você vai fazer, garoto.
- Tá bom, agora tchau!
A gente já estava quase desligando. E eu disse:
-Ei...
- Diga lá, Tui.
- Obrigado pela dica.
- Depois você me paga um sorvete. Mas só um sorvete,
não fica achando que você me deve a vida...
-Tábom, tchau!
-Tchau!
Todo mundo estava meio curioso pra saber com quem
eu estava falando:
- Era um amigo meu...
Aí eu olhei pra professora Lúcia e disse meio tranqüilo:
72
- Eu sei todas as falas do Romeu.
A Camila deu uma risadinha bem feliz e disse:
- É mesmo?
E a professora:
- Acho melhor cancelar, está em cima da hora. Nem
dá tempo de ensaiar.
Todo mundo disse:
-Ah, não!
E a Camila:
- Eu ajudo ele em cena, se precisar.
As meninas foram pró camarim delas, e nós, os
meninos, fomos pró nosso. Como eu e o Ale somos do
mesmo tamanho, a roupa dele me serviu direitinho. Quando
eu já estava com a roupa de Romeu, fui até o palco dar
uma espiada por um buraquinho que tem na cortina. Fomos
nós mesmos que fizemos o buraquinho no ano passado.
Pra ver todo mundo chegar. Eu não devia ter ido. Estavam
lá, logo na primeira fila, meu pai, minha mãe, meu irmão
Dani, meus quatro avós, meus quatro tios e minhas três
tias. Nas outras filas eu fui reconhecendo os pais e mães
do Jucá, da Camila, da Gute e do Pisco e de todo mundo.
Tinham avós, avôs, tios, tias e alguns primos das outras
pessoas da peça. E estavam chegando os professores com
suas famílias. E a diretora com o marido e os filhos dela. E
os outros empregados da escola e tudo o mais.
O auditório estava ficando superlotado. Mais de
trezentas pessoas. Aquela coragem que eu ganhei depois
do telefonema com o Eros, tinha acabado de acabar. Mas
já era, todo mundo entrou no palco e ocupou os seus lugares.
A Camila veio bem pertinho de mim e disse:
- Merda!
-Quê?
- E o que os atores de verdade se dizem antes de
começarem uma peça. Foi a minha mãe quem me ensinou.
Ela já trabalhou em teatro.
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-Ah...
Quando a cortina abriu e acendeu aquele monte de
spots de luz na minha cara, foi que eu percebi que eu era
até um cara corajoso, porque parecia que eu tinha ensaiado
o tempo todo como Romeu. Eu estava seguro pra burro.
Enquanto o Romeu estava apaixonado pela outra garota, e
não pela Julieta, a coisa até que foi bem. Continuou tudo
bem, também, no baile de máscaras, quando o Romeu e a
Julieta se conhecem.
A coisa começou a complicar quando veio a primeira
cena de namoro de verdade. É quando o Romeu vai até a
sacada do quarto da Julieta e declara o amor dele e eles
conversam e se beijam e tudo. Eu tinha que entrar no palco,
subir por um murinho do cenário até a sacada e chamar
a Julieta. Eu entrei, chamei e ela apareceu, linda,
com os cabelos soltos, vestindo uma camisola azul e com
o batom vermelho mais bonito que alguém poderia estar
usando e disse:
Julieta (Camila) - É você que está aí, Romeu? Nega
o nome da sua família e o seu nome.
Se não tiver coragem, diz que
me ama, que eu nego o meu nome.
A Camila disse isso de um jeito tão legal, que eu fiquei
só admirando ela e esqueci de responder. Ela não achou
ruim. Deu um sorriso e repetiu a frase devagar, como se
fosse pra me acordar. Eu acordei, mas tinha esquecido
completamente o que eu tinha que dizer. Fiquei supernervoso,
sem saber o que fazer. De repente me deu um
clique e eu disse:
Romeu (Tui): - Difícil entender o que você faz acontecer
dentro de mim. Tem coração
batendo no joelho...
Quando os outros alunos que participavam da peça
ouviram que eu estava dizendo o texto errado, eles foram
chegando devagar no cantinho do palco, sem aparecer pró
74
público, mas pra espiar o que estava acontecendo. E a
Camila soltou um suspiro rápido e profundo, de surpresa,
e disse bem baixinho ”é você”. E depois de um pequeno
sorriso, de quem tinha descoberto uma coisa importante,
ela, se fingindo de Julieta, pediu:
Julieta (Camila) - Continua.
E eu continuei:
Romeu (Tui) - ... Tem coração batendo no joelho esquerdo.
Olho enxergando em cotovelo.
E estômago atravessado no meio da
garganta. Coisa esquisita. Desarruma
tudo. Mais do que o Tambora, o feroz
vulcão da Indonésia, que em 1815
provocou a maior erupção que já
existiu no mundo. Estou em erupção...
Eu dei uma paradinha, e ela pediu de novo:
Julieta (Camila) - Continua...
E eu fui até o fim:
Romeu (Tui) - ... Até o primeiro dia de aula, o professor
de geografia poderia dizer que
a estrela mais brilhante, vista da
Terra, era a Sirius A, Alfa Canius
Majoris. Agora é você...
As falas dessa cena eu não consegui mais me lembrar,
só como ela terminava. Eu e a Camila estávamos bem
próximos e eu tinha que abraçar ela. Eu abracei. E a gente
ficou se olhando bem dentro dos olhos. Eu deixei a minha
boca ir pra onde ela quisesse. E ela quis encontrar a boca
da Camila, que parecia estar esperando a minha. A gente
fechou os olhos um pouco menos de meio segundo antes
dos nossos lábios se encontrarem. E parece que alguém
tirou o chão dos nossos pés. E a gente ficou flutuando um
tempão, num lugar um pouco parecido com o céu quando
ele está estrelado. Fim.
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Agradeço a:
Camila, minha sobrinha, por me emprestar o nome;
Ale, por me emprestar um pedaço do nome;
Tui, por me emprestar o apelido;
Chico Buarque;
Arnaldo Antunes;
Zaba Moreau;
Mônica Costa;
Heloísa Prieto;
Ismael Moreira Júnior e
Eidi Abdala.
A Camila, o Tui e o Ale a quem agradeço aqui não se
conhecem. Cuidado: Garoto Apaixonado é ficção.
Qualquer semelhança com a realidade terá sido por acaso.
,f
77
O autor
Toni Brandão é formado em Comunicação pela Escola
Superior de Propaganda e Marketing de São Paulo. Tem
vários livros publicados, tratando sempre do comportamento
do pré-adolescente urbano e comunicando-se com
muita facilidade com esse público tão especial.
Os textos são narrados na primeira pessoa, envolvendo
o universo desses jovens que já não são mais atraídos pelos
playgrounds, mas que não sabem dominar os novos espaços
que se abrem à sua frente.
Trabalha também como jornalista, sendo criador e
colaborador de vários suplementos infantis.
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Títulos da série:
Guriatã, um Cordel para Menino Caça ao Lobisomen
Marcos Accioly Toni Brandão
O Segredo do ídolo de Barro O Anel de Tutancâmon t
Elisabeth Loibl Rogério Andrade Barbosa
Aventura no Egito Na Terra dos Gorilas
Elisabeth Loibl Rogério Andrade Barbosa
Férias no Castelo Assombrado S.O.S. Tartarugas Marinhas
Elisabeth Loibl Rogério Andrade Barbosa
O Vale dos Dinossauros O Casaco Negro
Elisabeth Loibl Rogério Andrade Barbosa
O Mistério do índio Voador Sangue de índio
Elisabeth Loibl Rogério Andrade Barbosa
Perigo na Grécia Edifício Rainha Leonarda
Elisabeth Loibl Luiz Antônio Aguiar
Nanica, Minha Irmã Pequena Hans Staden Toni
Brandão Viagens e Aventuras no Brasil
Luiz Antônio Aguiar
Aquele Tombo que Eu Levei
Toni Brandão Além da Neblina
Cândida Vilares e Vera Vilhena Q
Falando Sozinha jf
Toni Brandão O Velho da Montanha Uma
Aventura Amazônica
Foi Ela que Começou Ângelo Machado
Toni Brandão
Já Pensou se Alguém Acha
Cuidado: Garoto Apaixonado e Lê este Diário?
Toni Brandão NilzaRezende
Perdido na Amazônia
Toni Brandão
80
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