Integração e Nacionalismo na América Latina: o caso do Mercosur Gentil Corazza1 1. Introdução A ideia de integração dos países da América Latina acompanha o próprio processo de independência, liderado pelo libertador Simon Bolívar. Embora esta primeira matriz inspiradora da integração estivesse imbuída de um significado mais romântico e messiânico, ela permaneceu como um ideal integracionista, que perpassa toda a história e as experiências concretas de integração, até nossos diais. Uma outra matriz integracioista surgiu, anos mais tarde, no âmbito da doutrina Monroe resumida no slogan “América para os americanos”, que traduz uma concepção tutelada de integração, em que os Estados Unidos arvoram-se no papel de condutores e protetores da unidade (latino) americana. Essas duas matrizes traduziram as tensões históricas entre o monroismo e o bolivarismo, que de alguma forma ainda estão presentes nos projetos atuais de integração, como o Mercosul e a Alca. Dentro desta perspectiva, além de procurar resgatar as experiências históricas de integração, o objetivo principal deste texto é fazer uma análise das repercussões dos novos nacionalismos presentes em países, como Venezuela, Bolívia, Equador e mais recentemente o Paraguai, sobre o processo de integração latino-americana, especialmente sobre o caso do Mercosul. Considera-se que historicamente os nacionalismos dos mais diversos matizes, políticos e econômicos, constituíram-se em obstáculos e, muitas vezes, em causas do fracasso de muitas tentativas de integração. No entanto, em nossa avaliação, o ressurgimento de governos nacionalistas, desde os mais moderados, como o do Brasil e da Argentina, até os mais radicais, como o da Bolívia, Equador e Venezuela, não tem se apresentado como um obstáculo ao aprofundamento da integração, mas ao contrário, podem ser denominados, como nacionalismos de cunho integrador. Além disso, se não representam um obstáculo, nem uma ameaça de retrocesso, é inegável que os novos nacionalismos colocam um conjunto de questões, que no seu conjunto implicam um novo direcionamento ao processo de integração. Por um lado, os países menores e menos favorecidos com a integração, como é o caso do Uruguai, Paraguai e Bolívia, passaram a exigir medidas efetivas que atendam a seus interesses. Por outro, o 1 Economista, professor colaborador do PPGE-UFRGS e professor visitante da UNILA. ingresso da Venezuela no Mercosul parece ter impactos, cujas consequências ainda não podem ser corretamente avaliadas. Tendo em vista atingir esses objetivos, o texto foi estruturado da maneira como segue. No item 2, procura-se fazer uma breve análise histórica do processo de integração latino-americana, mencionando as diversas iniciativas, suas dificuldades e suas contribuições para o amadurecimento do ideal integracionista. No item 3, o tema analisado é o Mercosul, primeiro a evolução das relações históricas entre o Brasil e Argentina, depois a criação do Mercosul, em relação ao qual procura-se analisar seu significado e seus inegáveis avanços no processo de integração e, finalmente, analisa-se o momento de estagnação e crise, que atravessa o Mercosul; no item 4, procura-se fazer uma análise do impacto dos novos nacionalismos sobre o processo de integração da América Latina, em geral, e sobre o Mercosul, de modo particular. Finalmente, na conclusão, procura-se fazer uma breve síntese das questões abordadas no decorrer do texto. 2. Breve História da Integração Latino-americana Unasul, esta é a mais nova sigla representativa da integração latino-americana e significa União das Nações Sul-Americanas. Ela foi criada em 23 de maio de 2008, em Brasília, por representantes dos doze países signatários de um tratado, que ainda precisa ser ratificado pelos congressos dos países membros. Fazem parte da Unasul os seguintes países: Argentina, Brasil, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Colômbia, Equador, Peru, Chile, Guiana, Suriname e Venezuela. Pelo tratado de criação, a Unasul passa a ser mais um organismo internacional. As bases para a criação da Unasul já haviam sido lançadas em 8 de dezembro de 2004, durante a 3ª Reunião de Presidentes da América do Sul, na cidade de Cuzco, onde foi assinada a “Declaração de Cuzco”. Como em todas as iniciativas anteriores de integração, o objetivo principal da Unasul é propiciar a integração entre os países da América do Sul, nas áreas econômica, social e política. Na realidade, a Unasul corresponde a mais a um projeto estratégico brasileiro, que não começa do zero, uma vez que visa integrar o Bloco da Comunidade Andina de Nações e o Mercosul, mais o Suriname e a Guiana, a partir de um esforço de integração da infraestrutura viária, energética e de comunicações, unindo o Atlântico com o Pacífico, além da criação de mecanismos de negociação e concerto, com o objetivo final de criar uma ampla zona de livre comércio. Qual o significado prático e qual o futuro da Unasul? Terá ela o mesmo destino dos demais organismos, abandonados nos momentos de dificuldade, ou representa uma nova fase no processo de integração latino-americana, depois de tantas tentativas frustradas? Teriam finalmente nossos governantes apreendido as lições da história? Por que criar um novo organismo em vez de ampliar progressivamente o Mercosul, seguindo o exemplo da Comunidade Européia, tantas vezes apontada como modelo de integração? Estas são algumas das questões, que surgem quando analisamos a longa e tortuosa história da integração latino-americana, da qual fazemos, a seguir, um breve resumo. Podemos dividir as propostas de integração em dois grupos, de acordo com o seu grau de abrangência, mas geral ou mais restrito. Começamos pelas experiências de caráter mais geral, a Alalc, o Sela, a Aladi e a Unasul, mencionada acima. A Associação Latino-americana de Livre Comércio (Alalc), criada em 1960, através do Tratado de Montevidéu, foi a primeira e mais importante tentativa abrangente de integração latino-americana. Seu objetivo principal era diminuir progressivamente as tarifas aduaneiras entre os países membros, até chegar à liberalização total do comércio da região num prazo de doze anos. No entanto, esta sua ambiciosa meta de integração, aos poucos, foi se debilitando por falta de vontade política e de condições objetivas para superar a herança histórica, marcada por guerras, conflitos e divergências políticas. O Sistema Econômico Latino-americano (Sela), criado em 1975, representa uma segunda e nova tentativa de relançar o ideal integracionista, uma vez verificado o esgotamento do sistema de integração preconizado pela Alalc. Este novo organismo abrangia a todos os países latino-americanos, inclusive Cuba. No entanto, durante a década de 1970, obstáculos de natureza política e econômica, como as divergências relativas ao aproveitamento dos recursos hídricos da Bacia do Prata, inviabilizaram sua consolidação, frustrando o aprofundamento do processo de integração na América Latina. A Associação Latino-americana de Integração (Aladi) foi criada em 1980, apenas cinco anos depois do Sela. Passaram a fazer parte da Aladi: Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Chile, Equador, México, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela. Este novo organismo procurou estabelecer bases mais realistas e flexíveis que permitissem a continuidade e o aprofundamento do processo de integração latino-americana. Sua meta principal era o estabelecimento de um mercado comum latino-americano. Neste sentido, passou-se a permitir a concessão de preferências tarifárias entre dois ou mais países da Alalc, sem a extensão automática das mesmas a todos os membros da Associação, o que viabilizou o surgimento de esquemas sub-regionais de integração, como o Mercosul. No entanto, foi justamente a flexibilidade introduzida pela Aladi, ao permitir que seus membros desenvolvessem iniciativas bilaterais ou multilaterais de integração, que enfraqueceu as iniciativas de integração mais abrangentes e favoreceu a formação de blocos regionais. No entanto, a formação de blocos regionais não pode ser vista apenas como conseqüência do fracasso das propostas mais abrangentes. Os dois processos são simultâneos e paralelos, como se pode ver, a seguir. O Mercado Comum Centro-americano (Mcca) foi criado em 1960, pelo tratado de Manágua, no mesmo ano da criação da Alalc. Passaram a fazer parte deste mercado comum regional os países da Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras e Nicarágua. Por um lado, se o reduzido espaço geográfico e o tamanho dos mercados de cada país operaram como um fator positivo de integração desses países, por outro a a fraqueza de suas economias, bem como as tensões e crises políticas internas de muitos desses países trabalharam no sentido contrário à integração. No entanto, um passo importante foi dado, em meados de 1993, quando o denominado grupo dos quatro, Nicarágua, El Salvador, Honduras e Guatemala formaram uma união aduaneira e estão empenhados em formar um mercado comum. O Grupo Andino (Gran) foi criado, em 1969, pelo Acordo de Cartagena, com a participação da Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela. Sua criação representou a segunda tentativa de integração de um grupo limitado de países, de acordo com sua posição geográfica. Como os demais organismos de integração regional, o Gran também passou por momentos de crise na década de 1980, no contexto da crise de endividamento externo que afetou toda a América Latina. Nos anos 1990, recebeu novo impulso a partir de uma política de livre comércio entre os países membros e de uma maior integração na economia internacional. Neste sentido, tratou-se de aperfeiçoar uma união aduaneira interna, com uma tarifa externa comum de nível bastante baixo, em vigor desde 1995, e de simplificação tarifária em geral. Do ponto de vista institucional, o Grupo Andino foi o que mais avançou em comparação aos demais organismos de integração regional da América Latina. Neste sentido, além da Corporação Andina de Fomento e do Fundo Andino de Reservas, que desempenham papel relevante no credito e financiamento dos países membros, foram também criados o Parlamento Andino, o Tribunal Andino de Justiça, o Conselho de Ministros e a Junta de Acordos de Cartagena. Nos últimos anos, o Grupo Andino passou a denominar-se de Comunidade Andina de Nações (Can). Nos anos mais recentes, países do Grupo Andino, como foi o caso do Chile e da Bolívia, estabeleceram acordos de livre comércio com o Mercosul, mas tem sofrido também o impacto do processo de criação da Associação de Livre Comércio das Américas (Alca). O Mercado Comum do Caribe (Caricom), foi criado em 1973, como organismo sucessor do Carifta (Caribean Free Trade Association). Este novo organismo foi integrado pelos seguintes países: Bahamas, Barbados, Belize, República Dominicana, Granada, Guiana, Jamaica, Monserrat, São Cristóvão/Neves, Santa Lúcia, São Vicente e Granadinas e Trinidad-Tobago. Esse conjunto de países, cujas economias se concentram em alguns produtos agrícolas de exportação e no turismo, mas que possuem entre si fortes nexos culturais, têm se esforçado para estabelecer uma colaboração mútua em vários setores, como o agropecuário, a energia, os transportes e o turismo, além da saúde, educação, esportes, cultura e administração pública. No entanto, ainda parece estar longe o momento de se alcançar a formação de um mercado comum e mesmo de uma união monetária, como é apregoado por seus membros. 3. A Criação do Mercosul no contexto das relações Brasil-Argentina 3.1. A evolução das relações Brasil-Argentina O Mercosul foi criado oficialmente, em 26 de março de 1991, pelo Tratado de Assunção, assinado pelos quatro países do cone sul do Continente: Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. No entanto, a origem da formação do Mercosul pode ser localizada na reaproximação entre o Brasil e a Argentina, na segunda metade da década de 1980, depois de longos anos de desconfianças, rivalidades e conflitos. Em uma visão de longo prazo, essa aproximação foi um dos fatos mais importantes da história diplomática dos dois países. As relações entre o Brasil e Argentina constituem um campo privilegiado para se entender o processo de integração latino-americano e especialmente a formação do Mercosul, cujos avanços e recuos passam pelo estado das relações entre esses dois países e também pelo tipo de relações desses países com outros países, especialmente com os Estados Unidos. Podemos distinguir quatro períodos na história das relações entre Brasil e Argentina, que condicionaram o processo de integração latino-americano. Uma primeira fase pode ser situada no século XIX e foi marcada por uma ferrenha rivalidade, que remonta ao período colonial, quando Espanha e Portugal disputavam o Rio da Prata, rivalidade que continua, depois, nas Guerras Cisplatinas e pelo controle do território que hoje é o Uruguai. O império brasileiro praticou políticas expansionistas interferindo nos interesses da Argentina, Uruguai e Paraguai, procurando mantê-los divididos. A Guerra do Paraguai, embora tivesse colocado o Brasil e a Argentina do mesmo lado, não eliminou as desconfianças, medos e rivalidades entre eles. O prolongamento da guerra deveu-se, também, a esta rivalidade e falta de cooperação entre Brasil e Argentina e não apenas à dificuldade de derrotar o poderio militar do Paraguai. A segunda fase remonta aos anos 1950 e se caracterizou por uma série de tentativas de aproximação, em geral fracassadas, devido à impossibilidade de superar a carga de desconfiança acumulada ao longo de mais de um século, desconfiança esta muitas vezes residindo mais no imaginário do que em fatores reais. Assim, nos anos 1950, Perón propôs a Vargas a criação de uma união aduaneira entre Brasil e Argentina para ser, depois, estendida aos demais países sul-americanos. O projeto era muito semelhante ao Mercosul, antecipando-se em 40 anos ao modelo atual. Embora houvesse interesse por parte do presidente brasileiro, o tratado acabou por não ser assinado. Vargas mostrou-se sensível à proposta, mas não pôde levá-la adiante por motivos políticos internos, pois a oposição via na aproximação com Perón um apoio a um golpe visando implantar uma república sindicalista, no Brasil. O terceiro período é marcado pelos regimes militares das décadas de 1960, 1970 e parte da década de 1980, período em que voltaram a se acentuar as rivalidades, em parte decorrentes de posições nacionalistas que caracterizavam os governos militares. Nesta fase, a rivalidade assumiu contornos mais agudos, com a formulação de programas nucleares concorrentes. Uma quarta e última fase se define a partir do final da década de 1980 e se caracteriza pela superação progressiva das rivalidades, processo que vai desembocar na criação do Mercosul. Contribuíram para essa reaproximação a assinatura do Acordo Tripartite sobre Itaipu e Corpus (1979), para o aproveitamento da energia hidroelétrica, o apoio brasileiro à Argentina durante o conflito das Malvinas (1982) e os entendimentos na área da cooperação nuclear. Foi também importante a redemocratização da Argentina, em 1983, e do Brasil, em 1985. Depois dos primeiros passos, no final dos anos 1970, o espírito de entendimento prosseguiu com a Declaração de Iguaçu, assinada pelos Presidentes Sarney e Alfonsín, em 30/11/85, na qual se registravam as intenções de cooperação nas áreas comercial e nuclear. Foi também importante a assinatura da Ata de Integração Brasil-Argentina, em 20/7/86, que estabeleceu as bases do Programa de Integração e Cooperação Econômica (Pice), o qual tinha por objetivo promover a formação de um espaço econômico comum, por meio da abertura gradual e seletiva de setores produtivos específicos. O Pice, como se observa, é anterior à constituição da Apec (1989) e à assinatura do Nafta (1992). 3.2. A Criação do Mercosul O Tratado de Assunção, que criou o Mercosul, em 1991, definiu um projeto ambicioso de integração, pois envolveria não só a liberalização comercial de bens e serviços, como também a livre circulação de fatores de produção, a harmonização dos marcos jurídicos e institucionais, e a coordenação e políticas macroeconômicas e setoriais 2, além de suas dimensões política, social, educacional, trabalhista e democrática. Não há como negar que o Mercosul, ainda nos anos 1990, após um período de transição, em que predominou o pragmatismo e a flexibilidade, deu passos importantes no processo de integração entre os países membros, tanto em sua dimensão econômica e comercial, como em seus aspectos políticos e sociais. Como é sabido, além de um projeto de integração econômica e comercial, o Mercosul também pretende ser um projeto de natureza político-estratégica, com o objetivo de ir criando, progressivamente, pontos de contato cada vez mais estreitos entre os respectivos projetos de desenvolvimento nacional dos seus países membros. Trata-se, em outras palavras, de buscar convergências e aproximações entre as sociedades desses países, como embrião para futuras metas de integração política. É evidente que o Mercosul ainda é, sobretudo, um projeto de natureza econômico-comercial, e é natural que essa seja de momento a sua característica central. Na União Européia, recorde-se, as metas de integração política vieram em um momento posterior e, comparativamente ao grau de 2 No seu Artigo 1º o Tratado estabelecia: “A livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos entre os países, através, entre outros, da eliminação dos direitos alfandegários e restrições não tarifárias à circulação de mercadorias e de qualquer outra medida equivalente; o estabelecimento de uma tarifa externa comum e a adoção de uma política comercial comum em relação a terceiros Estados (...); a coordenação de políticas macroeconômicas e setoriais (...); e o compromisso dos Estados-Partes de harmonizar suas legislações, nas áreas pertinentes, para lograr o fortalecimento do processo de integração”. integração atingido nos campos econômico-comercial, seus avanços continuam a ser tímidos. O Mercosul já abarca, de forma incipiente, é verdade, áreas como a coordenação de políticas externas, a cooperação em matéria de segurança internacional, a cooperação em matéria de segurança interna e de assuntos judiciários e da educação. Nesta perspectiva, foi criado o Mecanismo de Consulta e Concertação Política (Mccp), com o objetivo, entre outros, de buscar coordenar posições sobre questões internacionais de interesse comum e de fortalecer os mecanismos de consulta e cooperação sobre temas de segurança e defesa existentes entre seus membros, e promover sua progressiva articulação. Em julho de 1998, através do Protocolo de Ushuaia, o Mercosul mais Chile e Bolívia aprofundaram a cláusula democrática, transformando-a em condição necessária para participar dos compromissos do bloco sob pena de exclusão. O Mercosul tornou-se, em outras palavras, garantia relevante da consolidação dos regimes democráticos em nossa sub-região. Nas crises de 1996 e de 1999, no Paraguai, a atuação conjunta dos países do grupo foi elemento importante para assegurar a manutenção da integridade das instituições democráticas naquele país. Em dezembro de 1997, foi assinado o Acordo sobre Seguridade Social do Mercosul. Em 1998, foi também assinada a Carta Sócio-Laboral do Mercosul, que consagra direitos trabalhistas reconhecidos em convenções internacionais, e institui mecanismo de acompanhamento e controle de sua aplicação. Como conseqüência, já em abril de 1999, foi assinado o primeiro contrato coletivo de trabalho dentro do bloco entre a Volkswagen e os sindicatos de metalúrgicos do Brasil e da Argentina. Foram obtidos avanços também nas áreas do reconhecimento de títulos e graus universitários, coordenação e cooperação em segurança pública, supervisão da atividade de seguradoras e coordenação macroeconômica. O processo de integração dotou-se de uma dimensão social e trabalhista indispensável ao processo de construção de um Mercado Comum. Nesse sentido, foi criado através do Protocolo de Ouro Preto o Foro Consultivo Econômico e Social (Fces) com a participação de organizações da sociedade civil, representando trabalhadores e empresários. Em sua dimensão econômico-comercial, além de um natural ceticismo, descrença e desinteresse por parte dos empresários, o Mercosul enfrentou sérias e naturais dificuldades, tais como a instabilidade macroeconômica dos países signatários e a dinâmica de reestruturação produtiva própria ao processo de integração. Houve a eclosão da crise do México, em dezembro de 1994, na semana seguinte à assinatura do Protocolo de Ouro Preto, e as suas implicações, principalmente, ao longo do primeiro semestre de 1995, foram determinantes da flexibilização do Mercosul na medida em que houve uma deterioração significativa das contas externas dos países signatários do Mercosul. A conjuntura brasileira durante a maior parte do período de transição era particularmente difícil. O Presidente Fernando Collor, que assinou o Tratado de Assunção, foi afastado do cargo, em outubro de 1992 e a área econômica do Governo passou por contínuas alterações. O quadro econômico em 1991/92 era de "estagflação". Do lado argentino, o período inicial de implementação do Mercosul coincidiu com o lançamento do "Plano Cavallo", pelo qual a Argentina atrelou sua moeda ao dólar, com valor paritário. Ao mesmo tempo, a economia argentina iniciava vigoroso período de expansão. Tal conjunção de fatores - câmbio fixo e crescimento econômico - viria a provocar, naturalmente, dificuldades na conta de comércio. As importações argentinas expandiram-se fortemente, a partir de 1991, enquanto as exportações permaneceram, em um primeiro momento, praticamente inalteradas. As contas externas transformaram-se no elo frágil do "Plano Cavallo". Por outro lado, durante o "período de transição", a Argentina emitiu sucessivos sinais ambíguos quanto a uma eventual alternativa preferencial pela integração continental com os Estados Unidos, pois o seu comprometimento com o Mercosul não parecia ser uma opção consolidada. Por outro lado, a assincronia macroeconômica entre o Brasil e a Argentina viria a provocar elevados desequilíbrios na balança comercial bilateral. Enquanto a economia argentina crescia vigorosamente em 1992 e 1993, o Brasil apenas nesse último ano começaria a recuperar-se da "estagflação" de 1987-1992. Também as políticas cambiais divergiam radicalmente. Os elevados superávits em favor do Brasil davam origem a sucessivas dificuldades no processo de integração, especialmente ao longo de 1992 e 1993. De qualquer forma, até julho de 1994, o Mercosul ainda era uma incógnita. Sua progressiva afirmação deveu-se, assim, à vontade política dos Estados envolvidos, especialmente do Brasil e da Argentina. Importante para superar a fase de transição foi a reunião de Buenos Aires, em agosto de 1994, a qual decidiu que o Mercosul deveria buscar encerrar o "período de transição" com a constituição da União Aduaneira e não mais com a formação de um mercado comum, como fora previsto no Tratado de sua criação. Dois fatores importantes contribuíram para superar a fase de transição e prosseguir com as negociações: o lançamento do Plano Real e a valorização da moeda brasileira, que criavam uma perspectiva concreta de solução para o problema dos altos déficits argentinos na conta de comércio com o Brasil e a constatação gradual, por parte da Argentina, de que suas expectativas em relação a uma associação preferencial com os EUA (ou com o NAFTA) careciam de base concreta, pelo menos no curto prazo. Também não menos importante para explicar os resultados positivos do "período de transição" foi o modo de condução do processo negociador, com base nos princípios de gradualismo, flexibilidade e pragmatismo. Ao final do período de transição, o Mercosul já se havia tornado um projeto apoiado pelo conjunto da sociedade. Os empresários estavam comprometidos com o empreendimento, e com isso ajudaram a criar a teia de interesses concretos e recíprocos essencial para garantir a sustentabilidade do processo. A Reunião de Ouro Preto, em dezembro de 1994 daria a forma final aos últimos entendimentos para a entrada em vigor da União Aduaneira, a partir de primeiro de janeiro de 1995. Ainda que "imperfeita", "flexível" e "incompleta", parece válido afirmar que o inicio da União Aduaneira foi o principal momento de afirmação do Mercosul após a assinatura do Tratado de Assunção. Após o período de transição, o Mercosul inicia uma fase de rápido crescimento e se consolida como um novo e importante bloco econômico ao lado dos demais. Este crescimento e consolidação foram impulsionados pela expansão do comércio entre os seus países membros, como atestam os dados3. Assim, o Mercosul se tornou uma realidade econômica de dimensões continentais, com uma área total de mais de 11 milhões de quilômetros quadrados, um mercado de 200 milhões de habitantes e um PIB acumulado de mais de um trilhão de dólares, o que o coloca entre as quatro maiores economias do mundo, logo após o Nafta, a União Européia e o Japão. 3.3. Estagnação e crise do Mercosul No entanto, apesar dos avanços significativos realizados, a partir de 1998 o Mercosul entrou em um momento crítico, determinado, sobretudo, pelos choques externos, que abalaram as duas principais economias da região, a do Brasil e a da Argentina. Repetiuse, assim, a partir de 1998, em maiores proporções, o que já ocorrera após a crise mexicana de 1995. Os países do Mercosul foram fortemente afetados pela retração de liquidez nos mercados financeiros internacionais, e viram-se na contingência de redobrar energias para manter seus respectivos planos de estabilização. O impacto das crises financeiras 3 As trocas internas ao Mercosul passaram de US$ 5,1 bilhões em 1991 para mais de US$ 20 bilhões em 1997, havendo decrescido para perto de 18 bilhões de dólares em 2000. As exportações intra-Mercosul, que representavam 11,1% das exportações totais do Bloco, em 1991, chegaram a representar 25,0%, em 1998, declinando para 20,5%, em 2000. Já as importações intra-Mercosul em relação às importações totais do Bloco, que eram de 15,3%, em 1991, elevaram-se para 20,4%, em 2000, o que indica a internalização de uma parcela dos fornecimentos externos de suas economias para dentro do bloco, um fenômeno resultante da interpenetração de algumas cadeias produtivas na região, a exemplo do setor automotivo. Em vista disso, pode-se dizer que a integração abriu espaço a um processo de substituição das importações de fora do Mercosul. E a relação do comércio intra-Mercosul com o comércio total do Bloco, que era de 12,9%, em 1991, passa para 20,4%, em 2000, com um pico de 23,1%, em 1998. Entre 1991-96, o crescimento médio anual do comércio interno ao bloco havia sido de 27,3%, em comparação com uma taxa de 12,8% nos fluxos de comércio com outros países fora do bloco. Em 1997, o crescimento ainda seria, respectivamente, de 19,9 e 14,4%, mas já se observava, aqui, uma maior convergência na evolução dos fluxos intra e extra Mercosul. O crescimento do comércio dentro do bloco resultou tanto da redução de barreiras quanto da vigência da tarifa externa comum (Tec). Da mesma forma, os movimentos de capitais também se intensificaram, através de investimentos, trocas de ativos e de fusões e incorporações. Em 1998, por outro lado, pela primeira vez desde sua criação, as trocas intra- Mercosul apresentaram uma pequena queda, de cerca de 0,5% (21). Além do incremento acelerado do comércio inter-regional, a consolidação do Mercosul foi um fator importante para a atração de investimentos externos. Efetivamente, os investimentos diretos estrangeiros (Ides) na região, que no período 1984-89 representavam apenas 1,4% do total dos Ides, no período 1997-99 chegaram a representar 6,0% do total. Por outro ângulo, os Ides na região aumentaram de US$ 9,9 bilhões para US$ 55,3 bilhões entre 1995 e 1999. internacionais foi maior sobre as economias do Brasil e da Argentina. No contexto dessa crise, esses dois países tomaram decisões unilaterais que se refletiam negativamente sobre os demais membros do grupo. Logo no princípio de 1999, a mudança do regime cambial brasileiro e a forte desvalorização do Real adicionaram um novo elemento de dificuldades a um quadro que já não era fácil. Os parceiros do Brasil inquietaram-se fortemente com o que percebiam naquele momento como um risco de "invasão" de produtos brasileiros em seus mercados. Os setores empresariais dos países vizinhos passaram a exigir, de forma algo precipitada, a adoção imediata de salvaguardas ao comércio interno ao Mercosul. O ano de 1999 pode ser considerado como o momento mais difícil da integração regional desde a assinatura do Tratado de Assunção. Diante da combinação de uma série de circunstâncias difíceis e extraordinárias, em especial a desaceleração econômica no Brasil e na Argentina e o fim do período de sobrevalorização do Real, nem mesmo o compromisso político dos governos foi suficiente para manter inalterada a dinâmica do Mercosul. Juntamente com a crise econômico-comercial, um novo problema pairava sobre sobrevivência do Mercosul: a pressão dos Estados Unidos para acelerar a formação da Área de Livre Comercio das Américas (Alca). De início, a Argentina, e mais recentemente o Uruguai, têm mantido uma certa ambiguidade entre um apoio mais firme para o fortalecimento do Mercosul e uma adesão à formação da Alca. O Brasil, pelo contrário, sempre deixou clara sua posição de, primeiro, fortalecer o Mercosul, para depois negociar em conjunto e em melhores condições sua entrada na Alca. No entanto, a formação da Alca pouco avançou. Em novembro de 2006, por ocasião da Cúpula de Presidentes Americanos, em Mar del Plata, o que se viu não foi mais um governo americano todo poderoso, pressionando os demais países para aderirem à Alca, mas um governo que já não consegue mais mobilizar o projeto da Alca, nem mesmo com a ajuda de alguns governos latinos mais submissos. O bloqueio mais forte à Alca veio principalmente por parte da Venezuela, mas que acabou contaminando os demais países membros do Mercosul. Face a essas dificuldades, o governo Bush mudou, então, de estratégia, atuando sobre governos mais débeis e susceptíveis de coerção, como os pequenos países da América Central, mas também o Chile, a Colômbia e o Peru, propondo tratados bilaterais de livre comércio. A nova estratégia dos Estados Unidos, na verdade, já conseguiu fracionar os espaços regionais da América Latina: o México é membro ativo do NAFTA, o Mercado Comum da América Central também já assinou um Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos, exemplo que outros países latinos têm mostrado desejo de seguir. Na verdade, isto não significa que os Estados Unidos tenham abandonado a Região à própria sorte, ou que a América Latina tenha deixado de ser considerada área natural de influencia ou de exercício da hegemonia imperial dos Estados Unidos. Mudou apenas a estratégia, não os objetivos imperiais. 4. O Mercosul face aos novos nacionalismos O processo de integração dos países latino-americanos significou vencer obstáculos oriundos de posições nacionalistas dos governos desses países, pois a integração significa uma certa perda de soberania, em troca de ganhos oriundos da própria integração. As experiências concretas de integração da América Latina se depararam com ondas de nacionalismo, de variados matizes. Uma primeira onda nacionalista se identifica com a própria luta pela independência dos países latino-americanos, ainda no início do século XIX. Tratava-se de um nacionalismo mais de natureza política, necessário para consolidar os novos Estados independentes. Uma segunda onda surgiu nos anos 1930 e, especialmente após a II Guerra Mundial, com o início da industrialização, que se apoiou num nacionalismo econômico, associado ao nacional desenvolvimentismo. Depois, vieram os movimentos nacionalistas de esquerda, ligados à Revolução Cubana, bem como os nacionalismos de direita, associados aos regimes militares dos anos 1960, e 1970, onde prevalecia a ideologia de fortalecimento do poder nacional. Finalmente, na virada do século, assistimos ao ressurgimento de novos governos nacionalistas, de diferentes matizes, em vários países latino-americanos, como a Venezuela, Bolívia, Equador e Paraguai, empenhados em defender seus respectivos interesses econômicos nacionais. Esta nova onda nacionalista, à primeira vista, não parece opor-se ao processo de integração. Ela cobra, isto sim, uma maior abrangência em termos sociais e um maior aprofundamento da integração, de modo a beneficiar, sobretudo, os países menores e mais pobres da região. O objetivo deste tópico é analisar de que forma esses movimentos nacionalistas afetam o processo de integração latino-americana, especialmente o Mercosul. Destacamos, de início, algumas características gerais para, depois, analisarmos seus aspectos específicos. Antes de tudo, porém, é necessário contextualizar internacionalmente os recentes movimentos nacionalistas, justamente no momento em que se propaga a ideia de que a globalização significa o enfraquecimento e mesmo do fim dos Estados nacionais. Fiori (1997:132) lembra, a propósito, a contradição de que a morte dos Estados nacionais é anunciada justamente num momento em que vêm ocorrendo três fenômenos na direção oposta: o aumento da concorrência inter-estatal pela conquista do espaço internacional, o aumento das lutas por autonomia e aumentou do número dos próprios Estados independentes, com o fim do sistema soviético. Lembra, ainda, o autor que, nascidos no Século XVI, os Estados Nacionais só vieram a se universalizar no Século XX, passando dos 30 ou 40, no início do século XX, para os quase 200 atuais. Podem-se distinguir três levas: logo depois da Primeira Guerra Mundial, depois da Segunda Guerra Mundial com o fim do império soviético. O autor afirma também que é necessário distinguir Estado e soberania. A partir do núcleo inicial de Estados, cuja soberania teve uma abrangência “extraterritorial”, os que vieram depois sempre foram semi-soberanos. Na verdade, esses Estados não são menos soberanos hoje com a globalização frente ao capital mundial do que foram no início e ao longo de sua história. Por isso, conclui: “A globalização não está eliminando os estados, apenas está redefinindo as suas hierarquias e seus espaços e graus de autoridade no exercício de suas soberanias” (Fiori, 1997: 134). É neste contexto maior que se pode entender as particularidades da nova onda nacionalista da América Latina. Em primeiro lugar, deve ser destacado que as ações nacionalistas recentes em vários países latino-americanos, em geral, são promessas de campanha eleitoral e representam reações ao fracasso das políticas neoliberais implantadas nas últimas décadas do Século XX, mas não podem ser desconectadas da falta de perspectivas oriundas do processo de integração para os países mais pobres da região, como a Bolívia, o Paraguai e mesmo o Uruguai. Basta lembrar a intenção do Uruguai de firmar acordo de livre comércio com os Estados Unidos e a pronta intervenção do governo brasileiro, alguns dias antes da visita do presidente Bush, prometendo financiamento do BNDES para vários projetos daquele país. Em segundo lugar, os novos governos nacionalistas assumem claramente a defesa dos recursos naturais dos seus respectivos países. Em terceiro lugar, os protagonistas desta onda nacionalista não são mais as elites engravatadas e classes médias do passado, e sim a população pobre e, em algumas situações, preponderantemente indígena, como é o caso da Bolívia e, mais recentemente, do Paraguai. Em quarto lugar, ao que parece, esse novos movimentos nacionalistas não são movimentos anti-integração, mas a favor de uma nova forma de integração, uma integração nacionalista, ou seja um processo de integração que implique o desenvolvimento da infraestrutura de transporte, energia e comunicação do Continente. Não se trata de um nacionalismo de rivalidades, como foi no passado, nem de um nacionalismo isolacionista, mas de um tipo de nacionalismo integrador. Basta ver as inúmeras iniciativas de integração que vem sendo desenvolvidas através dos governos nacionalistas, especialmente da Venezuela e da Bolívia. Neste sentido, Sader (2007) define esse novo movimento nacionalista como “nacionalismo integrador” ou como “nacionalismo social progressista”, diferente dos nacionalismos tradicionais conservadores. Por sua vez, Genro (2007)4 acentua que a retomada dos nacionalismos na América Latina afeta o processo de integração sem, no entanto, colocar em questão a agenda da própria integração. Para ele, a nova onda nacionalista significa um desafio ao processo de integração, tornando a integração mais complexa, na medida em que a mesma se dá agora sob nova ordem política, onde novos governantes têm visões diferenciadas e interesses conflituosos. Esses novos nacionalismos traduzem uma reafirmação de projetos nacionais de desenvolvimento, os quais implicam numa redefinição dos padrões de integração. 4 “Retomada do nacionalismo na América Latina gera ''crise de integração'', diz Tarso Genro” Radiobrás, Brasília, 10/05/2006. http://www.radiobras.gov.br/abrn/brasilagora/materia.phtml?materia=264360 Último acesso em 25/4/2007. Um aspecto que pode ajudar a entender a natureza dos nacionalismos atuais, é que eles representam algum tipo de reação ao fracasso das políticas neoliberais associadas ao processo de globalização. Ou seja, em um mundo cada vez mais aberto, integrado e globalizado, pequenos países terão maiores dificuldades de defender seus interesses, atuando de forma isolada. Assim, na medida em que os novos nacionalismos tiverem um caráter isolacionista, eles representam um entrave à integração. Mas, uma primeira avaliação sinaliza a tendência à redefinição da integração e não seu questionamento. Na verdade, parece haver duas propostas de integração, uma mais tímida e moderada, liderada pelo Brasil, embora não esteja bem clara a proposta do Governo Lula para a Região, e outra liderada pelo Governo Chaves, que parece ter uma estratégia diferente para a América Latina. A diplomacia venezuelana envolve diversas frentes de atuação, como a frente atlântica, a caribenha, a andina e a amazônica. Todas elas visam tanto a implementação de importantes projetos de cooperação bilateral, como agilizar os processos de integração dessas diferentes regiões da América Latina. A Venezuela tornou-se membro pleno do Mercosul, em julho de 2006, e sua incorporação deve não só alterar o funcionamento do bloco, mas mesmo sacudir o Mercosul, embora não se saiba em que direção, ou seja, as consequências de seu ingresso parecem ser imprevisíveis, por uma série de razões: a importância de sua economia e suas fontes energéticas, mas principalmente por sua polêmica com os Estados Unidos. O risco é que o Mercosul se converta em uma região conflitiva com os Estados Unidos. Em suma, como sugerem Ferrari e Cunha (2006), o ingresso da Venezuela abre novas interrogações, tanto afetando as futuras relações entre Brasil e Argentina, como as relações do Mercosul com o resto do mundo, mas particularmente com os Estados Unidos. Na verdade, a presença da Venezuela tanto pode estreitar as relações por meio da construção do gasoduto de oito mil quilômetros, fortalecendo o eixo Caracas-BrasíliaBuenos Aires, servindo de exemplo para a integração continental, como pode acirrar os ânimos e as rivalidades, sobretudo ideológicas, entre países da região. Na verdade, a Venezuela ingressou no Mercosul para mudá-lo e substituí-lo por um novo projeto de integração de cunho mais abrangente, como declarou o próprio Presidente Chaves: “O Mercosul, ou o reformamos e fazemos um novo Mercosul ou também se acabará. Não é um instrumento adequado para a era em que estamos vivendo. Vamos enterrar nossos mortos, irmãos.” (Citado em Magnoli, 2007: 33). O modelo de integração proposto pelo Presidente Chaves se expressa na proposta da ALBA (Alternativa Bolivariana), um modelo de integração que ultrapasse o econômicocomercial e inclua a coordenação de estratégias sociais, ações que ataquem os “deficits sociais”, promovam a equidade e justiça, bem como iniciativas políticas, diplomáticas e de segurança. Em termos econômicos, o ingresso da Venezuela significa que o Mercosul passa a representar quase 80& do PIB latino-americano, mas seu ingresso tem mais um cunho político que econômico. Chaves pretende converter o Mercosul em um bloco anti-Estados Unidos. Trata-se mais de uma decisão presidencial, sem muita mobilização dos setores econômicos, sociais e políticos do país. Não passa despercebida, também, a forma como o Presidente Chaves tem interferido em assuntos internos dos outros países, estimulando rivalidades bilaterais entre países da região, como o conflito Venezuela-Peru, Venezuela-Colômbia, Brasil-Bolívia e Bolívia-Chile, eventos que por si só solapam as bases da integração, especialmente no caso do Mercosul. Por outro lado, e ao mesmo tempo, Chaves tem tomado inúmeras iniciativas concretas que favorecem a integração em termos práticos: integração energética e de infraestrutura, como a criação da Petroamérica, Petrosul, Banco do Sul, o Gasoduto do Sul, etc. Um outro exemplo afirmativo da integração foi a proposta de criação do Banco do Sul. Esta proposta foi precedida de outras iniciativas, visando o financiamento de atividades e projetos conjuntos, especialmente por parte do Brasil e Argentina. Mas a Argentina apoiou de imediato a proposta de Chaves, ainda em fevereiro de 2007, enquanto que o Brasil, a princípio foi reticente e defendeu uma reativação dos bancos e mecanismos de financiamento regionais existentes. No entanto, face ao apoio argentino, o Brasil acabou por ceder e apoiar a criação do Banco do Sul. Já a questão dos sócios menores do Mercosul, como a Bolívia, o Paraguai e o Uruguai, deve ser analisada de forma diferente da questão venezuelana. O governo nacionalista da Bolívia tem procurado, sobretudo, recuperar a soberania sobre seus recursos naturais, o petróleo e o gás, onde se destaca o contencioso com a subsidiária da Petrobrás, que foi nacionalizada. Por isso, a questão boliviana parece afetar o Mercosul de forma diferenciada em relação à da Venezuela. A questão boliviana evidencia as insuficiências do processo percorrido pelo Mercosul e aponta para a necessidade de uma verdadeira integração econômica, que não fique apenas nos acordos genéricos de pouco significado efetivo. Ela aponta para a necessidade de uma integração mais sólida. Por outro lado, a atitude moderada do governo brasileiro, mesmo contrariando a agressividade de parte da grande imprensa e do empresariado nacional, certamente irá contribuir para atenuar possíveis impactos negativos sobre o processo de integração. No entanto, fica a interrogação sobre a necessidade de ações efetivas que possam beneficiar um dos países mais pobres da região. As críticas da imprensa brasileira foram dirigidas tanto à nacionalização em si, considerada anacrônica por muitos, bem como à forma moderada e tolerante da reação do governo brasileiro. O Presidente Morales foi tratado por muitos porta-vozes de interesses contrariados, se não de forma explícita, ao menos de forma implícita, como juridicamente incapaz. O paradoxo, como apontam Ferrari e Cunha, é que em relação ao caso boliviano, o Brasil se comportou como líder regional, tentando cumprir um papel estabilizador regional, embora o caso boliviano tenha levantado dúvida sobre o futuro da integração para setores econômicos brasileiros, mas também pode ser visto como exemplo de insatisfação com o processo de integração, insatisfação que também afeta outros países menores do bloco, como o Uruguai e o Paraguai. Nesta perspectiva, como sugerem Ferrari e Cunha (2006: 69): “A pergunta, a partir de uma ótica mais ampla, então, não é como resolver algum conflito específico, mas sim, se existe convencimento e políticas desenhadas, para que se perceba mais proveitoso para cada país o caminho conjunto que o isolado”. Além das divergências mais acentuadas, quanto ao papel do Estado e também quanto ao próprio modelo de desenvolvimento para a Região, há diferenças de ênfase e enfoques político-ideológicos. Mas, por outro lado, não se pode negar que há vários pontos de convergência entre Brasil e outros governos mais nacionalistas, como o da Venezuela, tais como o conceito de “globalização assimétrica”, a rejeição de uma Alca sem condições de reciprocidade comercial efetiva, etc. Em suma, um balanço do impacto dos novos nacionalismos no processo de integração do Mercosul sugere que seus aspectos positivos superam os riscos e os possíveis efeitos negativos. Por último, o ressurgimento dos nacionalismos latino-americanos significa, dentre outras coisas, um novo direcionamento no sentido de um aprofundamento e defesa conjunta dos interesses nacionais e, dentro desses, de integração de camadas sociais menos favorecidas. 5. Considerações finais Como foi possível observar no decorrer deste trabalho, o ideal integracioista surgido no período da independência dos países latino-americanos, no começo do século XIX, começou a materializar-se a partir da segunda metade do século XX, através das inúmeras experiências concretas de integração, umas de caráter mais abrangente, envolvendo a grande maioria dos países, outras de caráter mais regional. Dentre todas as experiências realizadas, as que mais aprofundaram o processo de integração foram as propostas da Comunidade Andina de Nações e o Mercosul. E, aproveitando as conquistas dessas duas experiências, foi aprovada a criação da Unasul, como uma nova entidade que visa integrar todas as nações da América do Sul. Neste contexto mais amplo de integração, o objetivo específico do texto foi analisar as repercussões dos novos nacionalismos latino-americanos sobre o processo de integração do Mercosul. Neste sentido, a conclusão maior importante foi no sentido de que eles, ao contrário dos nacionalismos do passado, possuem um caráter integrador e não isolacionista, o que implica numa maior abrangência e maior aprofundamento da agenda da integração, através da inclusão de questões sociais, a integração da infra-estrutura, e especialmente o atendimento dos interesses dos membros até agora menos favorecidos pelas medidas adotadas no âmbito do Mercosul. Neste sentido, é importante que as energias oriundas dos novos nacionalismos sejam canalizadas para um processo socialmente mais avançado de integração, que reforce ao mesmo tempo os interesses de todos os seus membros no interior do bloco e na competição global. Referências Bibliográficas CHUDNOVSKI, D. E FANELLI, J.M. (Coord.) (2001) El desafio de integrar-se para crescer. Balance y prospectivas del Mercosur en su primera década. Red Mercosur. Buenos Aires, Siglo Veinteuno de Argentina Editores. 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