Guilherme de Occam_Silvio Martins_Versão Final

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GUILHERME DE OCCAM: O Reconhecimento da Supremacia do Estado
Sílvio Martins*
RESUMO
Desde o século XII se assistia o fortalecimento de vários reinos, empenhados em consolidar sua
soberania frente o Império e a Igreja. No século XIV os Estados Nacionais intensificaram o
processo e se colocaram definitivamente como protagonistas da história política, acentuando o
declínio do Império enquanto poder universal. Ao mesmo tempo, o processo de laicização da
sociedade política levaria a profundas mudanças na concepção da autoridade pontifícia, também
consolidada nos últimos dois séculos, sob uma sólida base doutrinal. Neste cenário confuso e
instável, de intensa disputa pelo exercício da plenitude do poder político entre a Igreja e o
Império, Occam se tornou um dos mais proeminentes interlocutores no reconhecimento da
supremacia do Estado nas questões laicas ou civis. Para tanto, operou a definitiva separação entre
a fé e a razão e entre a filosofia e a teologia. Em sua arrojada teoria do poder, novos conceitos
foram elaborados e velhas hipóteses tiveram que ser revistas. Ao estabelecer a importância da
experiência para se conhecer a causa das coisas, antecipou ideias que no futuro alimentariam
algumas vertentes do cartesianismo, do empirismo e do criticismo.
Palavras-chave: soberania, estado, igreja, poder, política, teologia, filosofia, franciscanos,
disputas, império.
ABSTRACT
Since the nineteenth century we have witnessed to the strengthening of many kingdoms engaged
in consolidate their sovereignty front of the Empire and the Church. In the fourteenth century the
National States intensified the process and placed definitely as protagonists of political history,
accentuating the decline of the Empire as a universal power. At the same time, the process of
laicization of political society would lead to profound changes in the conception of the pontifical
authority, also consolidated the past two centuries, in a solid doctrinal basis. In this confused and
unstable scenario of intense dispute by exercise of the fullness of political power between Church
and Empire, Occam has become one of the most prominent interlocutors in the recognition of the
supremacy of the state in secular or civil affairs. For that, he operated a definitive separation
between faith and reason and between the philosophical and theological. In his bold theory of
power, new concepts were developed and old assumptions had to be revised. To establish the
importance of the experience to know the cause of things, anticipated future ideas that fueled
some aspects of Cartesianism, of empiricism and criticism.
Keywords: Sovereignty. State. Politics. Theology. Philosophy.
*
Professor na Faculdade de Direito de Alta Floresta (FADAF). Ms. Ciências Jurídico-Filosóficas. Ms. Ciências
Jurídico-Políticas.
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INTRODUÇÃO
No século XIV, os Estados nacionais intensificaram o processo de institucionalização do
poder monárquico, já bastante alargado nos dois séculos anteriores. Essa nova conjuntura
política, não só colocou o Império à deriva, mas levou à derrocada as pretensões da Igreja, que
arrogava para si a plena soberania nos campos civil e eclesiástico.
Apesar do poder e da força da Igreja, cuja influência há séculos ditava normas de conduta
para além do domínio eclesiástico, os novos reinos se tornaram soberanos e laicos. Através da
força e da legitimação, mobilizaram recursos humanos e jurídicos às suas pretensões,
promovendo uma recomposição de lealdades, até então solidamente estabelecida pelas velhas
tradições políticas e jurídicas.
As injunções do Imperador e o esforço da Igreja para recuperar o discurso e o poder
político, bateram de frente com os novos tempos e suas realidades sociais e políticas. Isto fez com
que a argumentação daquelas instituições se revelasse inadequada e despropositada no novo
cenário.
As querelas entre os reinos e a Igreja trouxeram para o debate não mais e apenas o
Imperador, mas estes novos protagonistas, agentes representativos do enfraquecimento da
autoridade imperial. Ao mesmo tempo em que saíam vencedores nas contendas com o Império e
a Igreja, evidenciavam o processo de afastamento da autoridade política papal.
Os sinais de declínio estavam por todo lado. A arenga fiscal entre Felipe, o Belo e o papa
era um dos indicadores que anunciava tempestades e turbulências políticas. A transferência da sé
apostólica para a cidade de Avinhão, sob a influência direta do soberano francês, onde se
manteve por setenta anos, era outro indício da desinquietação.
Occam construiu sua doutrina política neste cenário. A negação da plenitude do poder
papal relacionava-se, do ponto de vista do conjunto da sua obra, ao tema da liberdade. Ao abraçar
esta causa, pôs em cheque as formulações teóricas que davam sustentação à ideia de um poder
irrestrito do pontífice, provinda em geral da tradição patrística, que ao longo da Idade Média foi
sendo elaborada e solidificada através de inúmeras decretais e encíclicas.
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No século XIV estas questões vieram à tona com sua força explosiva. Os conflitos entre o
regnum e o sacerdotium, com o consequente enfraquecimento destas instituições, desgastadas e
perdidas em intermináveis arengas políticas, propiciaram a produção de uma série de escritos,
que se colocavam de um ou de outro lado, com os partidários do poder eclesiástico enfim, sendo
vencidos. A marcha inexorável de afirmação do poder civil e da força do Estado levou de roldão
as pretensões políticas do sumo pontífice.
Em toda sua obra, a questão dominante, quase sempre enfronhada nas querelas e disputas
entre o poder civil e eclesiástico e até mesmo nos escritos considerados da primeira fase, quando
se dedicou à filosofia e à teologia, têm como vertente a ideia da liberdade. Sob este ponto de
vista, a doutrina da negação da plenitude do poder do papa consistiria numa atualização particular
de um dos temas maiores de toda a sua produção intelectual e de sua vida.
Sua construção da ideia do poder papal vinculava-se à sua postura de caráter
epistemológico, presente em sua filosofia. Se, com fundamento no nominalismo, a Igreja era vista
como a soma dos indivíduos que constituíam o conjunto dos fieis, em detrimento da concepção
que a tomava como uma corporação, para Occam isto não passava de um conceito mental. O fato
é que a Igreja devia estar sujeita em sua organização e em sua autoridade e missão, à vontade de
seus membros individuais, pois o todo que ela era resultava da soma de suas partes.
A defesa do Império e dos governantes civis em geral e a recusa em reconhecer a
plenitude do poder do papa coadunavam com a liberdade evangélica. Afinal, o poder político
emanava, simultaneamente, de Deus e do povo. Deus, fonte de todo poder, transmitira-o aos
indivíduos, que instituiu o governante tendo em vista o bem coletivo. Portanto, o poder civil,
assim como a propriedade, não tinha nenhuma relação de causalidade com o pecado original,
porque se tratava de mera sucessão, que só foram apropriados por questão de conveniência.
Quanto ao poder político pretensamente conferido a Pedro por Cristo, não passava de uma
exegese amplificada do Evangelho de Mateus, feita pelos curialistas, que apregoavam a doutrina
da plenitudo potestatis do papa. No Brevilóquio esta análise é exaustivamente repassada, para
refutar os argumentos que seguiam nesta direção.
Do ponto de vista histórico, a renhida luta de Occam para delimitar os campos de atuação
da Igreja e do Império, revelou-se bastante original. Sua ideia de um consenso social para a
constituição do governante, mesmo o poder tendo origem primeira em Deus, representou, no
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contexto da sociedade cristã medieval uma postura inovadora e até certo ponto radical, embora,
também, profundamente tributária do pensamento de Agostinho e da mais antiga tradição
patrística. Sua concepção de que o poder não se originava, exclusivamente, da lei divina e
tampouco da lei natural, mas tinha origem direta no povo, o elevou ao patamar de criador da
ciência política. Nesse aspecto, ao afirmar a independência do poder civil e a origem popular do
poder, Occam se aproximou de Marsílio de Pádua, mas sem a radicalidade e a exuberância verbal
do aquinate.
A afirmação de que o poder provinha de Deus e do povo serviu para que o teólogo
reafirmasse a independência do poder civil dos governantes e do Imperador em particular,
perante a Igreja e o papa. Para rebater a doutrina de Egídio Romano, que afirmava que, embora
cada uma das instâncias possuísse atribuições e competências próprias, os dois poderes foram
conferidos por Deus e convergiam para a autoridade divina, cujo representante na terra era o
santo padre. Para o papa, então, deveria convergir o reconhecimento e a dependência das
autoridades civis e eclesiásticas.
Na Alemanha continuou a atacar a Igreja e seus pontífices. Escreveu vários opúsculos
questionando a infabilidade do papa, apontando que a autoridade do líder era limitada pelo direito
natural e pela liberdade dos liderados. Acreditava que o indivíduo era plenamente capaz de fazer
suas opções, consciente do que era certo ou errado, não necessitando da Igreja para lhe apontar os
passos na jornada.
Sua última obra, Sobre o poder dos imperadores e dos papas, foi escrita quando seu
protetor já se encontrava alijado do comando do império. Luis da Baviera morreu impotente
diante da aliança entre seus inimigos e logo em seguida o próprio Occam veio a falecer em
Munique. Encerrava-se o último período de disputas acirradas entre as duas maiores forças
políticas da Baixa Idade Média: o Império e a Igreja. A partir de então, um novo fenômeno
haveria de engendrar os fatos políticos, com a ascensão das monarquias absolutistas, que se
assentariam no princípio da soberania territorial, sob a proteção de exércitos nacionais.
O Sacro Império Romano Germânico, embora tenha sobrevivido até o século XIX, não
possuía mais o caráter de poder universal. Ainda que sua força fosse apenas nominal, quando do
surgimento dos estados nacionais, ainda assim, era uma referência e uma latitude no mosaico
político e jurídico do Ocidente. A afirmação das soberanias nacionais fez com que o Império se
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tornasse apenas uma concepção, sem jamais conseguir sobrepor-se a qualquer das monarquias em
consolidação.
A Igreja passou, progressivamente, a submeter-se ao aparelho de Estado, ainda que aqui e
ali se insurgisse contra o poder civil. Não tinha mais volta. Nas suas fronteiras e em todos os seus
flancos era atacada pela imensa onda, nascida em seu meio e em seu ventre gerada, chamada
Reforma. Não lhe sobrava energia para intrometer-se nas questões de Estado, perdida que estava
em sua própria conservação.
Sua produção se inseriu dentro da conjuntura de uma época tumultuada. Realizou-se em
função das circunstâncias que o teólogo vivia no momento. Talvez, por isso, não se observa a
sistematização de uma teoria política. Sua obra deve ser lida e entendida à luz do contexto
especial em que viveu. Por isso, também, embora não fosse tão virulento quanto Marsílio de
Pádua, sua obra é polêmica, pois tinha uma destinação precisa e estava embebida do calor dos
fatos, não permitindo que os aspectos teóricos surgissem de maneira ordenada expondo uma
teoria política concatenada e mais consistente.
1 GUILHERME DE OCCAM: FRAGMENTOS DE UMA VIDA E OBRA
O século XIV viveu profunda estagnação econômica, resultado da má gestão acumulada
no século anterior, com graves repercussões no campo social e incertezas no espaço político. A
pobreza, o desemprego e a ignorância supersticiosa das massas pareciam destinados a perpetuar
de vicissitudes uma geografia humana de fome e miséria, que arrastou a Europa para guerras
brutais e intermitentes (NICHOLAS, 1999, p. 522).
Tudo isso, porém, pareceu insignificante diante da pandemia de peste bubônica que
assolou a Europa em meados deste século, deixando marcas profundas no continente. Mas tal
praga só assumiu proporções bíblicas devido a uma série de fatores, como as condições precárias
de habitação, higiene, superstição e principalmente ignorância.
Na sua obra Decamerão, Boccaccio forneceu um retrato vivo da doença, que entrou pelos
portos da Itália e se alastrou como um impiedoso rastilho de pólvora: “Afirmo, portanto, que
tínhamos atingido já o ano bem farto da Encarnação do Filho de Deus de 1348, quando, na mui
excelsa cidade de Florença, cuja beleza supera a de qualquer outra cidade da Itália, sobreveio a
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mortífera pestilência. Por iniciativa dos corpos superiores ou em razão de nossas iniquidades, a
peste atirada sobre os homens por justa cólera divina e para nossa exemplificação, tivera início
nas regiões orientais, há alguns anos. Tal praga ceifara, naquelas plagas, uma enorme quantidade
de pessoas vivas. Incansável, fora de um lugar para outro e estendera-se, de forma miserável, para
o Ocidente” (BOCCACCIO, 1991, p. 9-10).
Os Estados nacionais continuaram o processo de institucionalização do poder
monárquico, já bastante alargado desde os séculos XII e XIII, evidenciando o declínio do Império
enquanto poder universal, a que se somou o processo de laicização da sociedade política, o que
levaria à mudança na concepção da autoridade papal. Fizeram frente com maior eficácia às
prerrogativas do poder eclesiástico, também consolidadas nos dois séculos anteriores sob uma
sólida base doutrinal, laboriosamente erigida pelos teólogos eclesiásticos. O universalismo da
Igreja, que lhe conferia caráter de totalidade e a forma de império, foi rompido e substituído pela
República Christiana, submetida à autoridade jurisdicional do sumo pontífice (SABINE, 1964, p.
312).
Apesar da influência e domínio eclesiásticos, os novos Estados se tornaram autônomos e
soberanos, intensificando o processo de consolidação da autoridade real através da força e da
legitimação. Querelas entre os reinos e a Igreja trouxeram para o debate não mais e apenas o
Imperador, mas novos protagonistas, agentes representativos do enfraquecimento da instituição
imperial que, vencedores nas disputas, também evidenciavam o processo de declínio da
autoridade política papal (PACAUT, 1989, p. 136). Os novos soberanos mobilizavam recursos
militares e jurídicos às suas pretensões, promovendo uma recomposição nas lealdades até então
estabelecidas pela tradição política e jurídica, como foi o conflito entre Felipe, o Belo, e
Bonifácio VIII.
Desde fins do século XIII e as primeiras décadas do século XIV, a Igreja se esforçava
para recuperar o discurso e o exercício de sua autoridade, nos mesmos parâmetros do pontificado
de Inocêncio III. Mas a realidade era outra e a argumentação revelou-se inadequada e
despropositada para os novos tempos e suas conjunturas sociais e políticas. A presença de vários
soberanos empenhados em consolidar a soberania em seus reinos emergentes, a que se aliou a
burguesia e a pequena nobreza, forçou o aparecimento de uma nova cultura política.
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A transferência do papado para a cidade francesa de Avinhão, pelo papa Clemente V, em
1309, refletia esse aspecto de ampliação do poder das monarquias, em detrimento do Império e da
própria Igreja, já que tal mudança havia sido patrocinada por Felipe, o Belo. Apesar das
tentativas dos papas que se sucederam, entre eles João XXII, Bento XII e Clemente VI no sentido
de sobrepor a autoridade da Igreja aos poderes civis, o contexto social e político não se revelava
propício às pretensões da Igreja.
Clemente V restabeleceu as boas relações com Felipe, o Belo e o apoiou na disputa que
este travava com seu primo e rei da Inglaterra, Eduardo III, ao longo da Guerra dos Cem Anos e
também com o imperador Luis da Baviera, contra quem seus dois antecessores nutriram
animosidades sem conta e fizeram dura oposição.
O espírito laico se manifestou na política de enfrentamento à Igreja, em novas regras
morais e sociais e no termômetro enlouquecido dos sátiros, que perambulavam pelas feiras e
cidades chamando atenção para suas pantomimas e quadras anticlericais, cada vez mais bizarras,
afoitas e contundentes.
Esta institucionalização passou, ainda, pela criação de órgãos administrativos dentro da
burocracia governamental e pela criação de instrumentos jurídicos, que deram grande impulso à
tarefa de governar. No entanto, os agora fortalecidos governos monárquicos, não conseguiram
impedir o grande colapso social da ordem pública (MIRANDA, VI, p. 244).
Foram tempos de profundas angústias físicas e morais, de guerras dinásticas e do
reconhecimento da soberania dos Estados, ante uma nobreza e uma Igreja insidiosamente
resistentes. Intelectuais críticos, laicos e eclesiásticos, pronunciaram-se acerca de uma maior ou
menor fixidez dos limites de cada poder. Na extensa gama de temas doutrinais, o debate acerca
das ingerências da hierarquia eclesiástica nos assuntos de Estado saiu privilegiado. Notadamente
as questões relacionadas à soberania, concentraram as energias espirituais e seculares do
momento político vivido no conflituoso século XIV.
Na encruzilhada destas questões, que envolviam relações de poder entre a França, a
Inglaterra, o império e a Igreja e em meio às disputas que travavam os franciscanos, que se situa a
importância maior do pensamento político de Guilherme de Occam (1285-1349). O minorita,
teólogo e frade franciscano, considerado o último grande filósofo medieval e que se tornaria o
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mais notável e eminente representante da chamada escola nominalista, criada por Roscelino de
Compiègne, tomou parte no debate.
Seu nascimento, em uma aldeia do condado de Surrey, ao sul de Londres coincidiu com
momentos decisivos para a Igreja e o Império. Em 05 de julho de 1294, o sacro colégio,
composto por onze cardeais se reunia mais uma vez em conclave, agora em Perúsia, a cidade de
muralhas austeras, esculpida na alta encosta, escaldante no verão e coberta por denso nevoeiro no
inverno, porque em Roma mais uma onda de peste grassava de casa em casa.
Como vinha acontecendo nos últimos dezoito meses, a cúpula cardinalícia não conseguia
resolver o imbróglio e eleger um novo papa. As instâncias e exortações de soberanos, religiosos e
do povo cristão parecia não encontrar eco naquela câmara de prelados. Isso fazia lembrar a
eleição de 1271, precedida por três anos de intrigas, maledicências e conchavos, que só se
realizou quando o povo retirou o telhado do palácio onde o conclave se reunia, forçando uma
decisão.
Na atual cimeira o caso era mais grave, pois o colégio de cardeais estava dividido entre
duas grandes famílias romanas, os Colonna e os Orsini, que perpetuavam no embate a luta
facciosa que há tempos travavam e que tornou as ruas de Roma violentas e insalubres para a
segurança. Em lugares impróprios para ingênuos e desavisados.
O último papa reinante tinha sido um Orsini e outro da mesma família, parecia
completamente despropositado. Mas um Orsini jamais aceitaria abdicar desse imenso poder que
era o exercício do papado. Estavam empatados, sem conseguir atrair os cardeais neutros, que
circulavam pelas franjas do conclave e não queriam se comprometer com um dos lados. Em vão,
o idoso e doente cardeal Latino Malabranca, decano do colégio, fez ver a necessidade de os
cardeais esquecerem os interesses familiares, porque os tempos eram maus e turbulentos.
Inquietações de toda ordem anunciavam tempestades políticas e sociais. Latino foi cinicamente
ignorado e as infindáveis confabulações e maquinações continuaram.
Nenhum dos cardeais contava com a maioria de dois terços, por isso as eternas reuniões,
as inúmeras votações, os vários conchavos, em que promessas eram feitas e desfeitas ao sabor das
contingências do momento ou do acaso. Numa dessas conversas, Latino informou que recebera
uma carta de um velho eremita, com vaticínios escatológicos e ameaças declaradas de vingança
divina, se não elegessem logo um papa.
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De início fizeram troça do santo ermitão e da carta a Latino, como mais uma vulgaridade
entre tantas que vicejavam há séculos, com premonições e mensagens apocalípticas, que
recorrentemente falhavam. Latino, entretanto, no meio da conversa casual e quase debochada,
disse em voz alta: “Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, eu elejo papa o irmão Pedro de
Morone”. (DUPUY, 1655, s/p). Para espanto dos demais, cinco cardeais imediatamente
concordaram e o rústico eremita foi feito papa. O escolhido, Pedro de Morone, mais parecido um
místico insano dos primeiros séculos da Igreja, adotou o nome de Celestino V, mas em quinze
semanas renunciou ao cargo.
O novo e insólito papa, um anacronismo deslocado no trono mais esplendoroso da
Europa, escolhido em circunstâncias quase burlescas, amante da solidão e da meditação era,
também, fundador de uma ordem dedicada ao Espírito Santo, que se espalhava com notável
celeridade. Seus membros eram conhecidos como Espirituais e, embora a ordem tivesse recebido
unção oficial para existir, a alta hierarquia da Igreja via com enorme suspeita a devoção quase
fanática à pobreza e à simplicidade pregada e vivida por seus frades (DUFFY, 1998, p. 125).
Ignorando completamente a vasta organização da cúria, sua chancelaria e as funções de
Estado, do qual agora era o líder máximo, Celestino só não perdeu tempo quando tratou de
aumentar os privilégios de suas comunidades monásticas, em detrimento de outras, como a
vetusta Ordem dos Beneditinos e, em especial sua poderosa abadia de Monte Cassino, que foi
espoliada em favor dos espirituais radicais, o que semeou duradouras retaliações e ódios
posteriores tenazes.
Dez dias depois da abdicação de Celestino V, o sacro colégio se reuniu em conclave e
elegeu seu sucessor, Benedito Gaetani, que viria a se chamar Bonifácio VIII. O novo papa tinha
sessenta anos e era um homem de muitas lidas e posses, além de jurista notável. Recuperou a
estrutura hierárquica imperial da Igreja, considerando príncipes e reis meros súditos ou delegados
desse poder supremo nos assuntos espirituais e temporais. A doutrina hierocrática, que o novo
papa adotava, e que Occam considerava despótica, pregava a submissão incondicional do poder
civil ao poder eclesiástico.
Celestino foi obrigado a seguir com o séquito de Bonifácio, que não tinha nenhuma
intenção de permanecer em Nápoles, onde o ex-papa transformou o grande Castelo Nuovo,
fortaleza de cinco torres, que ainda hoje domina o local, na sua nova Sé. Naquele reino
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estrangeiro, Bonifácio se sentia ameaçado pelo bando de monges e pelo povo, que viam malograr
profecias recentes de um governo divino e de uma época comandada pelo amor
(CHAMBERLIN, 2005, p. 85-123).
A caminho de Roma, a cidade grande e hostil, Celestino e um pequeno grupo de
discípulos conseguiram escapar, tomando o caminho de volta para as desoladas montanhas.
Entretanto, a Itália havia ficado pequena demais para ele e Bonifácio. Chegando à costa adriática,
tomou um barco para a Grécia, mas uma tempestade fez a embarcação retornar. Em meio ao
murmúrio dos monges que o acompanhava e o alarido público da gente tagarela do povo, foi
reconhecido e preso. Ao ser levado a Roma e à presença de Bonifácio, o ancião lançou a este o
anátema, cuja precisão haveria de maravilhar as gerações futuras: “Entraste como uma raposa.
Reinarás como um leão e morrerás como um cão” (ANALECTA, 1890, p. 147-200).
Occam atraído pela Ordem franciscana recordava ser aquela a que melhor interpretava o
autêntico sentido do Evangelho, embora naquele momento os frades menores estivessem
profundamente divididos, com uma grande parte deles se alinhando com a corrente espiritualista.
Essa vertente dentro da ordem franciscana era influenciada pelos ensinamentos do místico
Joaquim de Fiori, que assegurava que a Igreja e a humanidade haviam entrado em seu terceiro e
definitivo tempo, a era do governo do Espírito Santo, quando o protagonismo espiritual passaria
da hierarquia episcopal para os monges, que estariam livres de todas as amarras doutrinárias.
Este conflito que vinha se arrastando há décadas, foi aguçado em 1250 quando, para
escândalo da Igreja, o geral da ordem franciscana, Juan de Parma, aderiu às ideias de Fiori.
Depois de sete anos de indisposições, Parma foi destituído do comando da ordem, sendo
substituído por Boaventura, de quem Occam tinha profunda aversão e até mesmo explícita
ojeriza, pela sua postura em defesa da hierarquia eclesiástica e sua dura oposição às pretensões
dos espirituais. Estes se submeteram às determinações do papa, mas as feridas provocadas por
Bonifácio VIII não se fechariam de imediato. Em estado latente esperava melhor momento para
reaparecerem mais vigorosas e combativas na Reforma protestante do monge Martinho Lutero.
Quando Occam tomou o hábito dos frades mendicantes, dedicando-se à filosofia e à
teologia, já havia se inteirado destas questões de grande perturbação. Logo assumiria o
protagonismo no debate e partiria para a guerra declarada à Igreja, que mais uma vez se curvava
às circunstâncias de uma época em clara falência moral e espiritual. Daí sua simpatia para com os
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espirituais e sua profunda aversão a João XII, eleito papa depois de um longo e desgastante
conclave e disposto a exercer, desde o primeiro momento, um governo despótico na Igreja e no
mundo.
Durante o pontificado de João XXII, a Igreja chegou ao auge do centralismo em torno da
figura do pontífice, característica que impregnaria todo o papado do período avinhoense.
Enaltecendo a grandeza da instituição pontifícia e sua superioridade frente o império, pois o
poder civil provinha do poder eclesiástico, bem como cabia ao papa instituir, controlar e julgar o
imperador, João XXII também intensificou seu controle sobre nomeações de bispos e sobre as
ordens monásticas, além de estender a toda Europa um eficiente sistema de tributação, as anatas
papais, e reorganizar o código canônico.
Em Avinhão, os papas puderam se dedicar à administração da Igreja, erguendo uma
poderosa e sofisticada burocracia, que pôs a máquina das finanças nos trilhos, ao mesmo tempo
em que a afastou das intrigas romanas, em que viviam metidas as tradicionais famílias de nobres
patrícios. Em Avinhão a Igreja pode, com mais facilidade, criar e operar com eficácia seu centro
jurídico e administrativo.
Occam também tinha apreço especial pela ordem de São Domingos, que havia dado
origem a uma corrente mística e pregava o encontro imediato de cada indivíduo com a realidade
de Deus. Eckhart, o líder dessa vertente espiritualista ensinava que no mais profundo da alma
havia uma chispa, um fragmento do entendimento divino, um recanto onde o espírito estaria
perpetuamente alojado e onde ninguém, inclusive nenhum papa podia chegar.
Seus discípulos tiravam proveito destas proposições, que haviam aberto uma fenda no
pensamento escolástico clássico, constituindo o que ficou conhecido como devotio moderna. As
novas incursões doutrinárias dos modernos, que tinham o frescor de um novo século, defendiam a
ideia de que as inteligências ordenadoras do universo eram desnecessárias, pois o movimento
circular e uniforme dos corpos celestes era causa suficiente de sua continuidade. Atreviam
mesmo a afirmar, aplicando o duplo princípio, que os céus permaneciam estáveis, enquanto a
terra girava diariamente em torno de si mesma.
Segundo outro princípio de economia, era mais racional supor que só a terra rotacionava
com movimento uniforme, porque seria extremamente complicado um sistema onde milhares de
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corpos girassem sem cessar, mantendo ao mesmo tempo um ritmo contínuo, sem que nenhum
corpo celeste se adiantasse ou se atrasasse na sua órbita.
A ciência dos modernos logo extrapolou os limites de Paris e Oxord, chegando à
Alemanha e à Itália. Em 1397 triunfou na universidade de Cracóvia, onde um século depois
Copérnico conheceu as teorias sobre a rotação da terra, principalmente através dos escritos de
Nicolau de Oresmes, que no século IV já havia identificado tal fenômeno. Em 1543 Copérnico
publicou a obra Das revoluções dos corpos celestes, na qual expôs sua teoria heliocêntrica,
colocando o sol no centro do sistema solar. Com isso, o cientista contrariava a teoria geocêntrica
e os partidários das teses de Aristóteles e Ptolomeu.
No ano da posse de João XXII, Miguel de Cesena foi eleito geral da ordem franciscana.
Isso possibilitou nova entrada dos espirituais em cena. As ideias de Fiori foram ressuscitadas e
sua pregação de que o governo dos homens e da Igreja devia se apoiar na absoluta pobreza de
Cristo e seus apóstolos, que sempre negaram a si mesmos o exercício de qualquer poder
mundano.
A escolha de Cesena representou um grande golpe às pretensões do papa que, como
muitos outros pontífices, fazia do trono de São Pedro um meio extremamente eficaz de acumular
riqueza, mas, sobretudo, por conferir ao vigário de Cristo um poder onipotente sobre toda a
cristandade. Ademais, o testemunho de pobreza dos frades menores começava a atrair as atenções
do povo, que via sua causa com simpatia e carreava contra a hierarquia eclesiástica críticas
contundentes e enfáticos protestos. A reação de João XXII à eleição de Cesena foi imediata e
radical. Os espirituais foram excomungados.
Em sua breve passagem pela magistratura pontifícia, Celestino V havia autorizado os
espirituais a formarem um grupo à parte dentro da ordem, a dos ermitões pobres, dirigido por
Angel de Clarino. Porém, seu sucessor, Bonifácio VIII, não estava disposto a tolerar esse
clamoroso testemunho de pobreza e humildade, que acentuava anda mais sua personalidade
agressiva, seu caráter deformado e seu desejo desenfreado de poder, riqueza e domínio. Além
disso, vários grupos espirituais passaram à interpretação apocalíptica e escatológica da História e
em tom profético e milenarista pregavam a ressurreição de São Francisco, como prelúdio de uma
nova era. De um só golpe o papa suprimiu a corrente que propunha viver a fé dentro do espírito
de pobreza de São Francisco, dos discípulos e de Cristo.
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O nominalismo surgiu como um movimento de contestação ao realismo dos universais
reais dos platônicos e dos universais como ideias abstratas fundadas nas coisas concretas
individuais, em termos aristotélicos. Roscelino contestava a objetividade dos conceitos
universais, para ele meros nomes ou sopros de voz.
Aluno de Roscelino em Loches, seu mais eminente discípulo e depois crítico foi Pedro
Abelardo. Mestre em Paris era um dos poucos leigos a se destacar em teologia e filosofia,
normalmente áreas dominadas por professores e pensadores eclesiásticos. Abelardo se tornou a
figura mais exuberante no primeiro período da escolástica, gozando de enorme simpatia por parte
dos alunos, que vinham de todas as partes da Europa para escutá-lo. Isto lhe granjeou oposição e
críticas entre os que dele discordavam ou simplesmente o invejavam pela sua grande
popularidade (ABELARDO, 2006, p. 83).
A estes percalços, juntou-se a tragédia de amor da sua vida, quando enamorado de sua
aluna Heloísa, com ela teve um filho e casou secretamente. Sobrinha do cônego Fulbert, que era
contra aquela relação, Abelardo foi emasculado a mando do prelado, retirando-se para o mosteiro
de Saint Denis. Instado por seus discípulos retornou ao magistério, mas por causa do seu
pensamento racionalista e contrário à doutrina da Santíssima Trindade, em 1221 foi condenado
no Concílio de Soissons. Amargurado com tantas desventuras, passou a uma vida de
perambulações, da qual resultou sua obra mais famosa: História de minhas calamidades.
Em Londres, na década de 1320, Occam escreveu uma série de comentários sobre
Aristóteles e Porfírio, além das lições de Oxford, sobre as Sentenças de Pedro Lombardo e um
tratado sistemático sobre lógica. O agostianismo estava na origem do seu pensamento filosófico e
jurídico, assim como no de Duns Scoto, outro franciscano notório, do qual Occam se tornaria
discípulo e depois crítico e adversário. Levando o pensamento de Scoto às últimas consequências,
separou definitivamente a filosofia da teologia e a razão da fé, no momento em que eram
anunciadas as primeiras descobertas da ciência moderna (HESPANHA, 1998, p. 113).
Ambos contribuíram para a formação do pensamento jurídico futuro, influenciando as
ideias positivistas nos séculos XIX e XX (VILLEY, 1974, p. 4). Voluntarismo, antirracionalismo
e positivismo eram elementos que impediam a existência de uma ordem jurídica objetiva e
natural, por toda a Alta Idade Média, até o surgimento da escolástica, com São Tomás de Aquino
(TRUYOL Y SERRA, 1948, p. 28).
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Occam também se consagraria como fonte primeira da doutrina do direito subjetivo, pela
sua interpretação do conceito de ius, considerando-o como potestas do indivíduo. Sua metafísica
milenarista não tinha no Estado ou na Igreja o corolário moral e político, que estava centrado no
indivíduo.
Com a morte do Papa Bonifácio VIII, assumiu o trono Bento XI, cuja passagem meteórica
nada deixou de substancial ou significativo. Então Felipe, o Belo, fez eleger papa Clemente V,
cardeal francês submisso. Em 1309, o novo pontífice transferiu a sede do papado para Avinhão,
onde se manteve por setenta anos.
Clemente morreu em 1314. João XXII o substituiu e logo se pôs em conflito com os
espirituais, elementos radicais dentro da ordem franciscana, que pretendiam restaurar o que
chamavam a intenção de São Francisco. Debatiam com a Igreja questões relativas à posse de bens
materiais. Se historicamente Cristo e os apóstolos viveram em absoluta pobreza; a questão
prática, à luz dos cânones de fundação da ordem de São Francisco, da posse de propriedades e
bens materiais pelos seus frades mendicantes, da qual Occam fazia parte (KENNY, 2001, p. 213).
Também questionavam a ideia de que o papa era o proprietário nominal dos bens da Ordem,
dispondo esta somente do seu usufruto.
Ao reabrir o debate com a bula Quia nonnunquam, primeira de uma série, que culminou
com a Quia vir reprobus, de 1328, João XXII impunha séria derrota aos franciscanos, que
julgavam ter vencido a luta contra o secularismo e o usus pauper (LEFF, 1967, p. 51-166). Foi
essa bula, inspirada no pensamento de Herveu de Nedellec, superior geral da Ordem dominicana
que fez Occam entrar no debate e escrever Opus nanaginta dierum, onde refutou a bula papal,
ponto por ponto.
As proposições de Herveu haviam conquistado admiradores, se tornando um clássico no
discurso sobre a pobreza, com sua explícita equação entre dominium e jus e a comparação dos
homens sem dominium a animais. João XXII reformulou o ataque de Herveu, substituindo
dominium, que foi tomado em termos de direito pessoal. A tese do usus facti, que garantia a ideia
de extrajudicialidade dos franciscanos, seria demolida como uma questão moral e não como uma
mera relação com os bens exteriores (CULLETON, 2006, p. 99-111).
Na resposta a João XXII, Occam introduziu duas categorias novas: o ius poli e o ius fori
(direito do céu e direito do foro), cuja distinção foi feita por Agostinho e incorporada no
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Decretum por Graciano, agora entendidas como correspondentes ao direito subjetivo quanto ao
objetivo (MacGRADE e KILCULLEN, 1995, p. XVI).
O belicoso papa também intensificou os atritos com Felipe, o Belo, que se arrastavam sem
solução. A controvérsia foi deflagrada com a taxação fiscal do clero francês pelo rei, contestada
por Bonifácio na bula Clericis Laicos. Felipe venceu a contenda, sob o apoio nacionalista da
burguesia, da nobreza e do clero francês, que julgavam despropositadas as pretensões do papa e
ilegítima sua ingerência em assuntos internos da França.
Nesse embate, a Igreja francesa se colocou ao lado do soberano, aceitando a tributação
como justa. Disso resultou uma vasta literatura jurídica e política, que serviria para alimentar
teses diversas e debates infindos. A sustentação da supremacia papal, por Egídio Romano, foi o
exemplo de um último e grande esforço de atribuir ao papa o controle das questões temporais e
espirituais (ROMANO, 1989).
Em 1323, Lutterrell, chanceler da universidade de Oxford, que havia acusado o filósofo
de heresia, conseguiu que João XXII o convocasse à sede do papado, para se explicar acerca das
disputationes de Oxford. Um grupo de teólogos designados pelo pontífice, formado pelo
chanceler da universidade, dois bispos da ordem agostiniana e dois dominicanos analisavam
cinquenta e uma proposições contidas nos seus escritos, para determinarem se as mesmas
continham heresias, das quais era acusado. Depois de três anos de análise, a comissão condenou
sete pontos como heréticos, trinta e sete como falsos e quatro foram julgados temerários.
Entre as teses levadas à apreciação, uma das que mais causava resistência, inclusive
dentro da ordem franciscana e entre os espirituais, era o ataque do teólogo à ideia do mundo
físico que, segundo Aristóteles, se compunha de uma série de mecanismos, à semelhança de
relógios. Para o grego havia evidências de que a ordem cósmica seguia um movimento ordenado,
o que pressupunha uma série de inteligências separadas, comandadas por um Primeiro Motor que,
acima de todas elas, imprimia ao círculo das estrelas fixas uma rotação totalmente harmônica,
sincronizada e regular.
Occam não admitia essa concepção que servia de modelo para a estruturação da hierarquia
eclesiástica, tal como estava organizada, tendo o papa como Primeiro Motor e os bispos
comparados àqueles relógios, que faziam mover o cosmo. Seguindo as leis da economia, afirmou
que todo corpo celeste podia manter seu movimento, sem necessidade de motor algum, mas com
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a única condição de que desde o momento do seu surgimento ele já estivesse movendo-se. Isto
significava que a ordem cósmica não necessitava de nenhum deus e até a ideia de um Primeiro
Princípio, que punha em marcha o universo, desaparecia, por não ser necessária.
No campo espiritual, essas ponderações levavam à conclusão de que o modelo hierárquico
da Igreja, com sua pretensão à ordem temporal, havia se equivocado, por isso devia ser
substituído pela prática da piedade interior e da humildade, tal como pregado por Francisco de
Assis.
Quatro anos depois de iniciado seu processo em Avinhão, Occam, Cesena e a facção dos
espirituais resolveram tomar o partido do Imperador, que se achava em conflito com o santo
padre, a respeito da sucessão no Império. Luis da Baviera, ignorando a excomunhão que o papa
lhe aplicou e as inúmeras exortações à obediência, seguia em marcha para a Itália. O imperador
tinha em vista as ponderações de Marsílio de Pádua, segundo as quais as pretensões terrenas da
Igreja eram a causa da insegurança em que vivia a cristandade.
Os escritos de Occam se transformaram em objeto de grande controvérsia nos meios
religiosos. Tornou-se recorrente afirmar que, por causa dos mesmos, o filósofo teria sido
convocado a Avinhão, sede temporária do papado, no ano de 1324. Acusado de heresia, Occam
teria passado quatro anos ali, submetido à prisão domiciliar no convento local da sua ordem.
Contudo, nos últimos tempos essas informações foram questionadas. Novas pesquisas indicam
que Occam foi enviado à corte papal, mas para lecionar na famosa escola franciscana da cidade.
Ali, teria granjeado inimigos vários, entre os companheiros de vida acadêmica, especialmente os
seguidores de Tomás de Aquino, que acusaram o filósofo de ensinar heresias e cometer
estelionato intelectual.
Em 1327, por determinação do superior da sua ordem, Miguel de Cesena, analisou as
decretais e outros documentos pontifícios sobre a questão do poder político e a prática da pobreza
pela ordem franciscana, ou o direito de a mesma possuir bens materiais em usufruto da fé católica
(GRATIEN, 1947, p. 378).
Em Avinhão, durante sua permanência forçada na cidade, se envolveu de tal maneira nas
controvérsias, que sua situação se tornou insustentável. Em sua defesa do poder laico e por ter se
alinhado com a ala intransigente dos espirituais, na questão da posse de bens materiais, rejeitando
a mediação pontifícia moderada, desagradou tão potencialmente o papa, que se viu obrigado a
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fugir da cidade em 26 de maio de 1328, acompanhado de Cesena, superior da sua ordem,
Nonagrazia de Bérgamo, Francisco de Ascoli e Enrique Thalheim, navegando pelo Ródano em
direção à Itália.
Em Pisa se juntaram a Marsílio de Pádua e João de Jandum, outros dois exilados que já se
encontravam na cidade. Todos se colocaram sob a proteção do Imperador, também em conflito
com o papa, que questionava sua eleição para o comando do Sacro Império Romano Germânico.
Na recepção solene que o imperador promoveu àquela malta de foragidos, Occam falando em
nome do grupo teria exclamado: “Imperador, defenda-me com sua espada, que eu te defenderei
com a minha pena”.
Nos textos de Oxford, na sua maior parte reunidos na obra Ordinatio, Occam expôs a
essência do seu pensamento filosófico, assegurando que todo pensamento racional tinha por
fundamento a lógica, de acordo com o que nos era dado pelos sentidos. Como os sentidos só
conheciam o que era concreto, os conceitos universais eram apenas expressões linguísticas, que
serviam para dar vida a uma ideia, embora carecessem de realidade física.
Para se conhecer o universo, o homem devia usar da intuição como ponto de partida. Ao
adotar princípios econômicos no estudo da filosofia, estabeleceu que as entidades não deviam ser
multiplicadas além do necessário, pois a natureza, em si mesma, era econômica e não se expandia
em vão. Ou seja, a qualquer fenômeno não se devia aplicar nenhuma causa que não fosse
logicamente subjacente e dedutível da experiência sensorial.
Esta argumentação, que ficaria conhecida como a navalha de Occam, era uma máxima
que valorizava a simplicidade na construção das teorias: “É vão fazer com mais o que se pode
fazer com menos”. A navalha, também conhecida como princípio da parcimônia, serviu para o
filósofo combater muitas das argumentações que os escolásticos utilizavam para explicarem a
realidade.
Ao abordar o tema do conhecimento, que Santo Agostinho tratou com base na doutrina da
iluminação, de inspiração platônica e São Tomás com a teoria da abstração, de influência
aristotélica, mas ambas deixando à margem a individualidade e a particularidade do objeto
conhecido, recusou as duas teorias. Para ele não havia possibilidade de conhecer diretamente a
essência do objeto e tão pouco a possibilidade de um conhecimento abstrato. Sua elaboração se
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baseou na intuição sensível, que permitia entrar em contato com a realidade individual e concreta,
o que ficou conhecido como nominalismo (PERINI SANTOS, 1996, p. 201).
Occam que nunca foi politólogo, mas teólogo teve que despender razoável esforço para
delimitar o âmbito de atuação do poder papal, o que exigiu a formulação de uma arrojada teoria
do poder, onde novos conceitos foram elaborados e velhas hipóteses tiveram que ser revistas. O
filósofo realizou a separação entre fé e razão; entre filosofia e teologia e ao estabelecer a
essencialidade da experiência para se conhecer a causa das coisas, antecipou ideias que no futuro
alimentariam algumas vertentes do cartesianismo, do empirismo e do criticismo.
A doutrina católica afirmava que o primeiro pastor universal da Igreja, o primeiro papa,
foi São Pedro, a quem Cristo disse: “Tu és Pedro e sobre esta pedra construirei a minha Igreja (...)
vou te dar as chaves do Reino dos céus, e tudo o que ligares na terra será ligado no céu, e tudo o
que desligares na terra será desligado no céu” (MATEUS, XVI, p. 18-20).
Em outra oportunidade, Jesus dirigiu-se ao apóstolo, exortando-o: “confirma a fé dos teus
irmãos e apascenta as minhas ovelhas, apascenta os meus cordeiros”. Com estas palavras, Cristo
conferiu a Pedro o primado e a missão de confirmar a fé, através de decisões doutrinárias,
governando os fieis como um pastor universal.
Com fundamento nas Escrituras Sagradas, o governo hierárquico da Igreja se estabeleceu
e se solidificou ao longo dos séculos, com os sucessores de Pedro no trono pontifício recebendo
tais prerrogativas de poder. A autoridade dos Apóstolos, agora chamados bispos estava, pois,
submetida à vontade do primaz de todos eles, o Bispo de Roma. Além disso, tanto Pedro quanto
Paulo foram martirizados e mortos em Roma, o que levou a Igreja local a ser reconhecida como
a cabeça das demais.
Pedro, o apóstolo, depois de ter exercido o episcopado em Antioquia, tornou-se o primeiro
bispo de Roma. Segundo a tradição cristã, após ser libertado da prisão em Jerusalém, empreendeu
viagem à cidade eterna e aí ficou até ser expulso, com outros cristãos e judeus, pelo Imperador
Cláudio. Então retornou a Jerusalém, onde participou da reunião de apóstolos que discutiam
sobre os rituais judeus. Depois disso foi novamente para Antioquia, como afirmou Paulo em sua
missiva aos gálatas. Inquieto em sua missão de evangelização perambulou por várias cidades, até
retornar a Roma, onde morreu por volta do ano 67.
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Todos esses fatos conferiram a Pedro e à Igreja de Roma o primado sobre todo o corpo
eclesiástico e sobre todas as dioceses. Dessa forma, o ministério de Pedro continuava em
exercício constante e ininterrupto pelos papas que o sucederam, assim como a missão dos outros
apóstolos continuava sendo cumprida pelos bispos que, unidos ao Papa, formavam a cabeça
diretiva da Igreja, o Colégio Episcopal. Depois da morte de Pedro, o conclave confirmou São
Lino como seu sucessor.
O exercício do poder político pelo papa e a condução dos assuntos de estado era tão
antigo quanto o estatuto secular que o engendrou. Isto podia ser demonstrado no enfrentamento
entre o papa Leão I e Átila, no ano 452. Mas foi com Pepino, o Breve, que esse poder cresceu
consideravelmente quando, em 754, o líder dos francos doou ao pontífice um extenso território,
que formaria a base dos Estados pontifícios. Na noite de natal do ano 800, Leão III coroou Carlos
Magno Imperador, criando as condições políticas para o surgimento do Sacro Império Romano
Germânico. Vem daí a tradição da coroação do Imperador pelo papa, que se manteve até Carlos
V, depois revivida na coroação de Napoleão Bonaparte.
Após a doação de Pepino, o papa se consolidou como proprietário de vastos territórios e
governante temporal, além de Príncipe da Cristandade, adquirindo notável proeminência na
Renascença, com os marcantes governos de Alexandre VI e Júlio II. Com a coroação de Carlos
Magno, o pontífice se afirmou como líder espiritual do Sacro Império, cuja relevância atingiu o
clímax com os papas Gregório VII e Alexandre III.
Como supremo pontífice, o Príncipe dos Apóstolos havia conquistado autoridade política
temporal, além de incontestável liderança espiritual. A bula Laudabiliter de 1155, que autorizava
Henrique II da Inglaterra invadir a Irlanda; abula Manifestus Probatum, que reconheceu a
independência de Portugal; a bula Inter Coetera, de 1493, que deu origem ao Tratado de
Tordesilhas e dividiu o mundo entre Portugal e Espanha; ou a bula Inter Gravissimas, de 1582,
que estabeleceu o calendário gregoriano, ainda em uso, são manifestações incontestes da
participação e intromissão do papa em assuntos essencialmente laicos, da órbita exclusiva do
poder civil.
A questão do poder político era recorrente no seu pensamento, sempre ligado ao tema da
plenitude do poder do papa, que arrogava a si as prerrogativas de autoridade civil e eclesiástica,
sem qualquer limitação ou embargo. Consequentemente, o poder religioso e o poder civil,
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personificados na pessoa do pontífice e do imperador haviam entrado em rota de colisão, o que
trazia inquietação e promovia disputas em boa parte da Europa ocidental (DE BONI, 2003, p.
113-128)
Em três de suas obras, nos seus títulos, a questão da plenitude do poder conferido ao papa
constituía sua preocupação central: Octo questiones de potestate papae, Breviloquium de
principatu tyrannico e De imperatorum et pontificum potestate (OCCAN, 1997, p. 263-355).
Ainda no século XII e início do século XIII, sob a influência direta da cúria romana,
desenvolveu-se no seio da Igreja a doutrina hierocrática, que afirmava que o papa, enquanto
vigário de Cristo, assim nomeado quando da sagração de Pedro, se revestia de poderes
extraordinários e ilimitados, muito acima de qualquer outro poder, ainda que legalmente
constituído. Ou seja, somente através do sumo pontífice se constituía de maneira legal e legítima
todo poder, seja civil ou eclesiástico.
Esta doutrina, que aplicava a metafísica neoplatônica da unidade e da subordinação à
realidade política, fez com que emanasse, a partir da ideia do Uno, a derivação de que o poder
político também procedia de Deus, que descia em primeira mão à pessoa do Patriarca de Roma,
seu mais exclusivo representante na terra, para daí se estender às demais autoridades laicas.
Como agentes secundários do poder, todos os governantes eram inferiores a ele e, por isso, não
recebiam o poder diretamente de Deus, mas das mãos do Santo Padre.
Não se tratava de apontar o poder político como supérfluo ou mesmo desnecessário, mas
de afirmar que tal poder foi posto na ordem do mundo pelo poder religioso e que, portanto, devia
agir em consonância com o mesmo. Ou seja, o poder político só existia e se justificava dentro de
uma ordem religiosa e sob a supervisão do Bispo de Roma que, em casos de maior gravidade
podia, inclusive, depor governantes relapsos.
Documentos pontifícios de Inocêncio III, Gregório IX, Inocêncio IV e Bonifácio VIII,
juristas renomados, mostram como ao longo do tempo a teoria da plenitude do poder foi sendo
lapidada. A bula Unam Sanctam, de Bonifácio VIII, elaborada sob a influência direta da obra
Sobre o poder eclesiástico, de Egidio Romano, foi o coroamento jurídico e teológico daquela
doutrina, resumindo em si todas as pretensões da Igreja e do seu principal vigário (MIETHKE,
2005).
100
Para Egídio, assim como era atribuição do espírito comandar o corpo, competia à Igreja o
direito de zelar não só pela salvação espiritual, mas também pela vida terrena do homem. Se o
papa não utilizava o gládio temporal, não era por uma questão de direito, mas para não se dedicar
a funções secundárias, em detrimento das espirituais. Porém, jamais o papa deixou de ter a
espada temporal à sua disposição: “E, como é muito mais excelente e importante o domínio sobre
quem exerce o gládio do que o poder sobre o próprio gládio fica claro, da parte do próprio poder,
que é mais perfeito e mais excelente ter o gládio material à disposição do que para uso”
(ROMANO, 1989, p. 66).
Este ideólogo da plenitude do poder papal, cuja posição, pó si mesma, era insustentável,
quando tratou da posse de bens materiais, a colocou dentro da perspectiva da legalidade, que só
era legítima aos cristãos: “Os que são batizados pela Igreja, tornam-se justos possuidores de suas
posses e os que não são batizados e nem sujeitos a Deus são possuidores injustos; segue-se que
devemos reconhecer como vindas da Igreja todas as nossas posses e todas as nossas coisas
espirituais, nós que, batizados pela Igreja e espiritualmente renascidos, e pelos outros
sacramentos ficamos livres dos pecados, nos tornamos justos e possuidores devidos de nossos
bens” (ROMANO, 1989, p. 134).
Essa forma de absolutismo eclesiástico encontrou defensores em outros campos e searas,
que não os domínios da Igreja. Juristas e teólogos se dedicaram à escrita de numerosas obras,
com o intuito de justificar aquela teoria de grande apelo papal, mas combustível para alimentar
conflitos e desordens no Império e nos reinos que se formavam.
Tiago de Viterbo foi o primeiro a escrever um tratado sistemático sobre a Igreja. O
franciscano Álvaro Pais, na sua obra De statu et planctu ecclesiae, representou a última e grande
tentativa de defesa da plenitude do poder pontifício (PAIS, 1988, v. I-VI). Mas foi Egídio
Romano, no seu Ecclesiastica potestate, quem construiu a mais relevante e sólida teoria do poder
absoluto do papa (ROMANO, 1989).
Pouco antes de Occam se debruçar com paixão sobre estas questões políticas que
afetavam a vida prática de governantes e súditos, Marsílio de Pádua já havia se atirado em
renhida oposição às pretensões da cúria romana, num desconcertante e abrasivo ataque. Marsílio
buscou no pensamento de Aristóteles, Cícero e Averroés, as armas com que foi ao combate.
101
Trouxe a filosofia para os níveis e limites da razão, impedindo que argumentos teológicos se
imiscuíssem no discurso filosófico.
Com essa direção escreveu o Defensor da Paz, cuja teoria política estava embebida das
ideias de Aristóteles acerca da comunidade política. Como o filósofo grego, Marsílio concebeu a
sociedade humana como circunscrita em si mesma e para si mesma suficiente. Capaz, por suas
próprias potencialidades e ação, de atingir a felicidade neste mundo, no aqui e agora da vida
prática de cada individuo.
Do ponto de vista político, Occam defendeu pontos bastante semelhantes aos de Marsílio.
Ambos convergiram para os mesmos ataques a João XXII. No Brevilóquio sobre o principado
tirânico, recorreu a um arsenal de fontes, todas as possíveis, desde o direto natural e canônico, até
o ensinamento dos grandes mestres da teologia e o direito romano e divino, revelado nas
Escrituras. Não se tratava de buscar fontes com menor ou maior quilate para subsidiar os ataques,
mas em construir uma muralha jurídica contra as teses dos que defendiam a plenitude do poder
do papa (OCCAM, 1988).
Occam, entretanto, era essencialmente um teólogo, que se banhava em filosofia. Portanto,
era impossível aceitar a argumentação vigorosa e viperina do homem de Pádua, que se tornaria
seu colega de exílio na corte do imperador Luis da Baviera, embora ambos se encontrassem nas
mesmas trincheiras, apontando suas armas críticas poderosas às pretensões do papa.
Outras fontes de inspiração sugeriam argumentos que alimentavam sua ação contestatória.
Dentro da própria ordem franciscana, o movimento dos espirituais crescia vigoroso e se mostrava
em plena potência em suas discussões. A defesa que fazia da pobreza de Cristo e da sua Igreja
anunciava uma instituição que, no futuro, seria pobre e voltada exclusivamente para as questões
apostólicas e missionárias, longe do burburinho e dos negócios do mundo laico (FALBEL, 1995,
p. 221; DE BONI, 2003, p. 215-254).
O dominicano João Quidort, na sua obra Sobre o poder régio e papal, também ofereceu
um manancial de argumentos e proposições contra o poder pontifício. Seu tratado foi posto a
lume entre 1302 e 1303, durante o conflito fiscal entre Bonifácio VIII e Felipe, o Belo. A
estratégia de se fazer publicar tal escrito, no calor da contenda, em que duas autoridades
arrogavam direitos que consideravam soberanos, serviu de combustível para alimentar
intermináveis discussões teóricas, insultos e acusações (QUIDORT, 1989, p. 122).
102
Quidort fazia distinção entre a origem meramente humana do poder civil, fundado na
predisposição natural do homem para a vida na polis e a origem divina do poder espiritual,
instituído por Cristo.
O poder civil, afirmava Quidort, era por natureza e essência limitado, pois só podia chegar
e atingir até onde alcançava a força repressora do seu braço armado. Já o poder eclesiástico, por
sua natureza divina, era um poder ilimitado, pois a palavra que o caracterizava e o legitimava,
não possuía barreiras que a impedia em qualquer recanto da terra. Cabia ao soberano presidir o
poder civil, enquanto o poder eclesiástico pertencia a Cristo, do qual o Metropolita da Província
Romana era mero ministro, representante ou instrumento.
Embora o poder espiritual, pela sua essência possuísse maior dignidade, daí não se podia
inferir que dele resultava o poder temporal, ou que este àquele estivesse submetido direta ou
indiretamente. Entre ambos existia um oceano a separá-los, uma lógica independência de
domínios e atribuições. Não se devia arrogar ao papa esse poder absoluto e universal, pois até
dentro da Igreja essa plenitude não só era contestada, mas definitivamente ausente.
Para corroborar essa verdade, bastava consultar as Escrituras, as maiores fontes da
doutrina cristã, para constatar que Cristo, enquanto homem, não possuiu plenitude de poder.
Nenhum poder havia conferido senhorio a Cristo, como senhor de reinos e principados, ou
proprietário de todo ou qualquer bem. Aqueles poderes, que Ele possuiu como filho de Deus e
salvador do mundo, não foram transmitidos ou conferidos a Pedro e aos seus sucessores no trono
pontifício.
Para Quidort, foram seis os poderes legados por Cristo à sua Igreja:
a) de consagração da eucaristia;
b) de administrar os sacramentos;
c) o ofício do apostolado;
d) de correção do pecador no foro externo pela repreensão e até mesmo pela excomunhão, mas
sem força coercitiva;
e) de distribuir os ministros quanto à jurisdição eclesiástica;
f) o direito de receber o necessário para a vida.
Em seu tratado não negava o primado da autoridade do vigário de Cristo na Igreja, nem
colocava a mesma a serviço ou a reboque do poder civil, mas modernizando o pensamento de São
103
Tomás, pregava a existência de duas ordens, ou de duas esferas de poder independentes e não
excludentes, apontando de forma clara e objetiva o espaço de atuação de cada uma delas.
A partir desses pressupostos desmontou a teoria da plenitude do poder do papa, tão
meticulosa e matreiramente elaborada, até ser lapidada e constituir-se em doutrina, ao longo de
vários pontificados. Sua crítica, porém, não era meramente de conformação política, como duas
décadas mais tarde faria Marsílio de Pádua, mas de caráter essencialmente teológico e eclesial.
Seu pensamento promoveu uma reorientação radical na maneira de tratar esses temas
(ULLMANN, 1962, p. 16). Aristóteles foi trazido para discutir as esferas de poder, fazendo com
que se compreendesse “uma versão igualmente plausível de hierarquia ao dar para a separação
entre os dois poderes uma base metafísica” (BLACK, 1992, p. 54).
Quidort conseguiu provocar grande impacto na Igreja, causando um desconforto
fenomenal na ortodoxia católica, temente do estrago que o conteúdo dos seus escritos e o poder
de sua argumentação poderia causar. Os ataques a Egídio Romano e a outros adversários, muitas
vezes transformaram as teses desses opositores em risíveis ponderações, em frágeis construções
que não se sustentavam à luz da razão e da lógica, materializando de maneira radical o
rompimento com as teses hierocráticas da Igreja. Para ele a excomunhão, quando imposta aos
príncipes seculares em geral, só acarretaria na sua destituição do poder, se esta fosse a vontade do
povo, pois a sociedade política, o Estado, era uma instituição puramente humana em todos os
seus sentidos.
No seu contundente tratado sobre o poder régio e papal, a crítica se estendeu a Egídio
Romano, Jacques de Viterbo, Henri de Crémona e a Tolomée de Lucques e sua obra
Determinatio compendiosa de jurisdictione imperii (SHNÜRER, 1938, p. 124). De maneira
severa, sem a mínima concessão aos propósitos universalistas do papado e do império,
estabeleceu os limites de cada poder, sua jurisdição como espaço de atuação e os fins para os
quais foram criados e ou estabelecidos.
Ignorando as perorações de Dante, que defendeu a universalidade do império, para que a
paz e a unidade fossem mantidas, Quidort propôs novos caminhos e soluções para que os dois
poderes pudessem coexistir pacificamente. Sua ideia estava ligada à concepção de um poder
político voltado para as questões locais e não para o modelo de um império universal, cujos
estertores se anunciavam na marcha acelerada de formação dos Estados nacionais.
104
Como outros pensadores medievais, Quidort se baseava na Bíblia e nos doutores da Igreja
para construir sua obra política, mas dentro de uma realidade que estava à sua vista, ou seja, a
contenda entre o rei francês, que passou a tributar o clero de seu país e o papa, inconformado com
essa atitude que considerava agressiva e de intromissão numa área secular e exclusivamente da
sua competência: “E, mesmo que o príncipe tome tal medida, com a intenção de prejudicar,
mesmo assim lhe é lícito, se previr com argumentos prováveis ou evidentes que o papa se tornou
seu inimigo ou que convocou os prelados para com eles planejar algo contra o príncipe ou o
reino. É lícito ao príncipe repelir o abuso do gládio espiritual como o puder, mesmo se usando
para tanto o gládio material, principalmente quando o abuso do gládio espiritual se converte em
um mal para a república, cujo cuidado incumbe ao rei. Em caso contrário, não haveria razão para
este levar o gládio” (QUIDORT, 1989, p. 123-124).
A intervenção de Quidort foi sobremaneira especial, à medida que distinguiu duas
questões cruciais. A primeira refere-se à obrigação do príncipe para com a república, que ele tem
a responsabilidade política e jurídica de defender, pois foi com esse objetivo, também, que a
autoridade foi instituída. O novo nesta afirmação foi conferir aos Estados nacionais em formação,
um tratamento jurídico próprio, elevando-os à condição de sujeitos de direito, cujos interesses se
antepunham a quaisquer outros, inclusive do Império, cuja primazia foi deslocada.
Sem o saber, Quidort construiu a mais perfeita e radical concepção da soberania, ao
conferir a cada reino ou república os atributos próprios de uma ordem política soberana, ou seja,
cada Estado era soberano em sua jurisdição em face dos demais. A segunda, dentro da órbita do
pensamento medieval tradicional, foi a concepção do governante como minister, ou seja, servidor
da lei. Suas ideias a respeito da propriedade e das consequências políticas e jurídicas que
resultavam da sua posse, se transformaram em elementos indispensáveis à criação de uma teoria
individualista, de fundo cristão, conforme o pensamento político dominante, desde o século XIV
até o XVIII.
A resposta papal a esta séria ingerência da ordem civil foi resuscitar os argumentos do
papa Gelásio I, de que existiam dois gládios, um terreno e outro espiritual e que ambos estavam
nas mãos do pontífice. Para não parecer submisso às determinações de Felipe, não restou a
Bonifácio VIII, que se viu derrotado, outra saída, que não o debate teórico sobre as condições,
funções, limites e prerrogativas de cada poder na esfera política da cristandade.
105
Entre 1290 e 1304, quando da contenda política entre Felipe, o Belo e Bonifácio VIII, os
tratados Sobre o poder régio e papal, de Quidort e Sobre o poder eclesiástico, de Egídio Romano
se constituíram nas duas principais e divisoras fontes políticas da sociedade europeia medieval.
Nelas, ou em cada uma delas, cada poder podia mirar-se em si mesmo e colher os melhores
argumentos que o justificava e o consolidava, embora a marcha irreversível do tempo
consagrasse o Estado como senhor absoluto nas questões civis, remetendo a Igreja para o seu
papel institucional, limitado ao campo espiritual.
Seus ataques ao carcomido sistema que mantinha a Igreja e o Império funcionando,
atingiam os princípios morais e os valores culturais secularmente enfronhados e defendidos pelas
duas instituições. Sem colocar em questão os mais altos dogmas cristãos, Quidort disparou uma
flecha certeira e envenenada no coração do Cristianismo, obrigando a reforma, ou pelo menos a
reflexão no pensamento político e nas práticas religiosas, afinal “uma só é a Igreja, um só o povo
cristão, um só o corpo místico, mas não em Pedro ou em Lino, e sim em Cristo, que é a única
cabeça da Igreja em sentido próprio e no grau máximo, e de quem provêm ambos os poderes em
diversos graus” (QUIDORT, 1989, p. 112).
Mesmo com essas colocações, parece inacreditável que o seu autor não tenha sofrido
maiores represálias eclesiásticas, embora em 1304 lhe tenha sido negado a licença papal para
lecionar. Mas esta negativa não estava relacionada aos seus escritos e sim à sua posição teológica
em relação ao sacramento da eucaristia (NEDERMAN e FORHAN, 1992, p. 157).
No decorrer do século XIV, em defesa da plenitude do poder do supremo pontífice e em
continuidade às ideias hierocráticas dos séculos anteriores, desenvolveu-se o argumento de que,
sob qualquer hipótese, não se podia discutir ou disputar a respeito do poder papal. A consistência
autocrática dessa premissa se fundava em princípios jurídicos, hauridos do direito romano e
absorvidos pelo direito canônico. Nos dois códigos, a ninguém era lícito questionar a respeito do
juízo do príncipe.
Tal doutrina apoiava-se em pressupostos jurídicos lapidados nos séculos IV e V, segundo
a qual o bispo de Roma, titular da Sé primeira, não podia ser levado a juízo por nenhuma pessoa
ou autoridade. Se, numa hipótese absurda, fosse o papa interpelado, sua palavra fazia fé,
independentemente de qualquer prova, mesmo em contrário. Em assim sendo, consequentemente,
106
fazia fé sua palavra, quando o mesmo apontava quais eram os limites do seu poder, não cabendo
a ninguém discutir sobre isso.
Occam contestou tal arrazoado dizendo que devia ser tido como louvável disputar em
vista do exercício e da doutrina, “para que se convençam os que erram a respeito, por suprimi-la,
diminuí-la ou ampliá-la, mais do que convém, e para levar ao conhecimento do público o que
dela se desconhece”. Lançando mão de um texto de Santo Agostinho, que dizia que onde com
mais perigo se errava era no trato a respeito da Trindade, mas que, foi escrevendo sobre a mesma,
que os doutores da Igreja possibilitaram conhecer melhor a questão para, a partir do seu pleno
entendimento, poder refutar as muitas heresias, que ao longo do tempo se ergueram contra a
verdadeira fé cristã.
Para o santo, quanto mais elevada e profunda a questão, mais perigo oferecia aos
potenciais erros e incorreções. Por isso, mais se devia debruçar sobre o tema, com o cuidado de
não diminuí-lo ou de expandi-lo para além de seus exatos limites. O Sucessor do Príncipe dos
Apóstolos, afirmava Occam, devia ser o primeiro a obrigar-se, não apenas de conhecer os limites
do seu poder, mas observar tais fronteiras com precisão, pois, segundo o Direito, qualquer pessoa
era tida como culpada, quando ignorava as atribuições do seu cargo e agia com desídia em
relação às mesmas.
Ao estabelecer esses pressupostos, Occam introduziu no debate duas questões cruciais:
a) o que se entendia por plenitudo potestatis. Por plenitude do poder os teólogos ligados à cúria
defendiam a premissa de que Cristo havia concedido a Pedro e seus sucessores “tal poder, nos
âmbitos secular e espiritual de modo que, de direito, pudessem regularmente fazer tudo aquilo
que não se opõe à lei divina, nem à lei natural” (OCCAM, 1988, p. 283). Isso implicava em
reconhecer que o sumo pontífice não era apenas a maior autoridade sobre a terra, mas a única
autoridade em quem residia e concentrava todo o poder. Ou seja, o papa podia, por si, fazer tudo
o que as demais autoridades estavam aptas a fazer, porém, sem se submeter à desaprovação ou
reparação dos seus atos.
Para Occam, esse tipo de poder e seu exercício se constituíam em questões de nível
inferior, tendo em vista que a perfeição da autoridade estava diretamente ligada à dimensão da
liberdade das pessoas sobre as quais se exercia poder de império e mais intensamente ao trabalho
de valorização e promoção daqueles sobre os quais se governava.
107
A nobreza de um governante se media pela dignidade com que tratava os súditos e não
pela amplidão dos poderes conferidos ao mandatário. Não era pela potência da força coercitiva,
que se aquilatava a justiça de um principado, mas pelo grau de liberdade e quietude de que
usufruíam os súditos.
Um governante que tudo podia fazer desde que não contrariasse o direito natural e a lei
divina era um governante de escravos e não de homens livres. Se ao papa fosse conferida tal
autoridade, então “todos os cristãos, tanto os imperadores como os reis e seus súditos, seriam
escravos dele, no mais estrito sentido do termo, porque nunca houve nem haverá alguém que, de
direito, tenha maior poder sobre qualquer homem do que aquele que sobre ele pode tudo o que
não repugna ao direito natural e ao divino” (OCCAN, 1988, p. 115).
Ora, isso não se ajustava à dignidade do papa, que possuía o maior e mais perfeito dos
princípios, porque não era senhor de escravos. Por isso mesmo não era aceitável atribuir a ele
pleno poder.
De outra feita, relembrando a função primordial do teólogo, que era fazer a exegese das
Escrituras, valendo-se para tanto de princípios da razão, chamou a atenção para a questão da
posse pela Igreja de bens materiais. Propriedades, posses, jurisdições e direitos civis do papa e da
Igreja não encontravam amparo nas Escrituras, que sequer os mencionavam como direitos reais.
Nesse campo devia-se consultar a História e os arquivos documentais que registravam essas
transações de cunho puramente comercial ou fruto das inúmeras doações feitas pelos fieis. Esse
imenso patrimônio de São Pedro, também advinha de concessões, de privilégios e cartas de
imperadores, reis, príncipes e muitos devotos (OCCAN, 1988, p. 109).
A Igreja, portanto, possuía duas espécies de poder. De um lado o poder espiritual
conferido a ela por Cristo, tendo em vista a salvação, cuja extensão se estendia ao papa e deste à
hierarquia religiosa. De outra natureza, havia o poder civil instituído pelos homens para bem
viverem neste mundo. O poder sobre as coisas do mundo físico, sobre os bens materiais, não foi
recebido pelo papa através de Cristo, pois o próprio Cristo, enquanto homem não o possuía. A
Igreja enquanto na posse de bens materiais, os havia conseguido através de fontes puramente
humanas.
Pelas Sagradas Escrituras e pelas palavras dos padres da Igreja, ficava fácil constatar que
Cristo, enquanto homem, não se arvorou em senhor de impérios e reinos. Pelo contrário,
108
reconheceu a autoridade de César e pagou-lhe os tributos de praxe. Também não transformou seu
primeiro apóstolo em príncipe ou instituidor de principados ou em alguém com poder para
investir reis e imperadores, ou de destituí-los por qualquer motivo.
Cristo não instituiu reinos e nem os legitimou, muito menos delegou ao papa os instituir,
para que fossem considerados legítimos. Reinos e principados sempre existiram, muito antes que
se conhecesse a graça da salvação e se proclamasse o advento da nova fé e da própria existência
da Igreja enquanto instituição. Fazendo couro a Agostinho, os reinos deviam ser levados à conta
de bens menores, inferiores à generosidade divina, que depois do pecado original concedeu a
perspectiva da salvação, embora a sua existência fosse necessária para que os homens pudessem
conviver pacificamente entre si.
Revendo Santo Agostino, fazendo a exegese das Escrituras e revisitando São João
Crisóstomo, que afirmava em sua obra De sacerdotio: “os que são juízes fora, quando submetem
os maus, demonstram neles muito poder, e retiram-nos constrangidos da pravidade dos antigos
costumes; na Igreja, porém, é necessário converter para melhor vida não o coagido, mas o
aquiescente, pois que não nos foi conferido pela lei tal poder, de modo que possamos coibir os
homens de praticar delitos” (OCCAN, 1988, p. 131).
Para refutar as teses dos curialistas, que também partiam do mesmo principio, apontou
que restava cristalino que o papa não possuía plenitude de poder sobre bens materiais. Entretanto,
era necessário apontar qual a extensão da autoridade papal em relação aos bens espirituais. Nesse
quesito, o doutor venerável estabeleceu distinção absoluta entre a noção de poder político e poder
espiritual. O poder temporal possuía como característica essencial capacidade legítima de
coerção, que punia aqueles que transgrediam a lei (OCCAN, 1966, p. 109-111).
Quanto ao poder espiritual, não possuía força de coação alguma, podendo apenas
admoestar, expulsar da comunhão, mas nada mais do que isso. Não se convertia ninguém à força,
já que a mesma era fruto da aceitação, da vontade livre de cada um. Para a vida cristã virtuosa
eram atraídos os aquiescentes de coração. Ninguém podia ser constrangido a ela.
Para Occam, a expressão poder, quando se tratava da Igreja, estava sendo usada em
sentido equivocado, porque se tratava de um poder que não possuía capacidade de coagir os
homens. Além disso, considerava que o governante civil devia possuir muitas posses e era
legítimo que usufruísse dos privilégios e benesses desse poder. Entretanto, o governante era
109
alguém escolhido pela inescrutável sabedoria divina, que se legitimava tendo em vista sua ação
voltada para o bem de todos.
Quanto ao poder eclesiástico, não passava de um ministério, um trabalho edificante a
serviço da salvação eterna. O principado papal só foi instituído pela sua grande utilidade em
proveito dos súditos e não por causa de honras e glórias ou da utilidade e proveito temporal das
benesses, que o trono papal propiciava.
Em outra passagem da sua obra, sob a clara influência de Bernardo de Claraval, em quem
muito se inspirou, Occan reafirmou que o poder concedido por Cristo ao papa era meramente um
poder espiritual, que se referia aos fiéis e não aos infiéis: “(...) é da competência do papa e de
todos os bispos, em geral, fazer tudo aquilo que é próprio e indispensável aos cristãos, no tocante
à leitura da Escritura, à pregação da palavra de Deus, à organização do culto divino, e tudo aquilo
que é necessário e próprio dos cristãos, a fim de que possam vir a alcançar a salvação eterna; e
tais coisas não há entre os infiéis” (OCCAN, 1988, p. 301).
O poder em Occan era limitado pela liberdade. Na Igreja esse poder era limitado pela
liberdade evangélica. A liberdade para ele era parte constitutiva do ser humano, de tal maneira
essencial que, se o homem fosse privado dela, deixaria de ser homem, como lembrou Scoto.
Como parte vital da existência, essa qualidade era um bem e um direito que antecedia à
criação do Estado e o surgimento da própria Igreja. Nenhuma lei seja de qualquer natureza,
jamais poderia tanger esse bem. O papa não podia sob qualquer pretexto, tirar direitos que ele não
havia concedido a alguém. Por isso, ele “não pode privar as outras pessoas de gozarem das
liberdades, as quais lhes foram concedidas por Deus ou pela natureza” (OCCAN, 1988, p. 146).
A liberdade era a chave com que Occan rompeu com a concepção de plenitude do poder
do papa. Liberdade e plenitude do poder eram conceitos que se contradiziam, que se excluíam
mutuamente: “a plenitude do poder é algo que destrói tanto o cristão quanto o cidadão, porque
lhes rouba a liberdade” (DE BONI, 2003, p. 305). Para ele, a doutrina da plenitude do poder não
era apenas incompatível com a liberdade, mas verdadeira heresia. O papa podia, sim, em matéria
religiosa, ser julgado pelos fieis e em concilio, mas ao mesmo não restava nenhum poder
jurisdicional sobre os súditos de qualquer governante. Pelo rigor do direto ou pela sua
interpretação hermenêutica, não era possível apelar do juízo civil ao papa (OCCAM, 1988, p. 61).
110
b) na segunda questão interrogava a quem competia indagar sobre o poder papal. Para responder
era necessário saber por qual direito o soberano do Estado do Vaticano, como autoridade, estava
constituído. Ora, observava o teólogo, a raiz do poder pontifício não encontrava apoio no direito
natural, que sequer se referia a esse tema. Portanto, tais direitos deviam ser extraídos do direito
positivo divino ou humano.
O direito positivo divino só podia ser encontrado nas Escrituras Sagradas; o humano, nas
leis que os homens fizeram no longo percurso da civilização, tanto no âmbito civil, quanto no
eclesiástico. Desta conclusão, resultava que o papa possuía certos poderes por direito divino,
outros, por direito humano. Entretanto, os direitos laicos do pontífice resultavam de concessões
por parte de imperadores e príncipes. Não podia, então, o papa, com base no direito canônico,
fundamentar seu poder de ordem, de pregação, de receber da comunidade o poder de sustento,
pois esses poderes foram conferidos por Cristo, por direito divino e não por legislação humana e
o direito canônico era legislação humana, tal qual o direito imperial.
Para Occam, quando da ocorrência de disputas entre o Imperador e o papa, quanto ao
poder que cabia ao pontífice por direito divino, não podia o mesmo arrogar a seu favor o direito
canônico, nem ao Imperador cabia invocar a legislação do império. Assim agindo, estariam
legislando em causa própria, ainda mais quando se considerasse que ambos tinham o poder de
legislar e, desse modo agiam em seu próprio interesse.
Depois dessas ponderações, em que discorreu sobre os aspectos jurídicos da questão,
Occam formulou a resposta àquela interrogação: “Que poder, quanto, em que casos e sobre quem
o papa possui, por direito divino e concedido só por Cristo, compete principalmente aos teólogos
investigar, não a outros, a não ser na medida em que são levados a tomar algo da teologia”.
O significado dessa asserção revelava sua consciência dos problemas cruciais que
atormentavam sua época e geravam constantes conflitos e inquietações políticas e sociais. Muitos
outros teólogos medievais viveram a mesma angústia com os descaminhos da Igreja e sua ação
mais jurisdicional que pastoral. A questão da pobreza e da simplicidade, abandonadas pela
hierarquia eclesiástica, não era mera preocupação de literatos, juristas e intelectuais. Tratava-se
da afirmação de uma pretensa soberania, que se erguia paralela ao poder imperial e arrogava a si
os privilégios e atribuições de ordem temporal.
111
Para que se tenha maior dimensão e compreensão desta e de outras pendências
envolvendo a Igreja e o Estado é necessário lembrar que o Cristianismo, historicamente, não
surgiu como uma instituição que possuía um código de crenças e normas jurídicas. Aquela
confissão surgiu a partir de um grupo de pessoas que acreditavam nos ensinamentos de Cristo e
que, ao longo dos séculos, foram dando vida e explicitando essas lições de fé, ao mesmo tempo
em que buscavam formas de administrar seus interesses comunitários, dentro da nova religião.
Aos primeiros problemas e conflitos decorrentes daqueles objetivos, buscava-se a palavra
dos apóstolos e, posteriormente dos anciãos. No final do primeiro século, o cânon dos livros
considerados de inspiração divina já havia sido compilado, se tornando a primeira fonte dos
ensinamentos cristãos para a vida, assim como já estava solidificado um modelo de administração
das comunidades eclesiais, numa espécie de federação de dioceses.
No século IV consolidou-se a autoridade teológica e disciplinar da Igreja, guiada pelas
diretrizes das Sagradas Escrituras, que se dividia:
a) nos sínodos, especialmente os concílios da ecumene;
b) nos chamados padres da Igreja;
c) no bispo de Roma.
Até o século XIII esta estrutura eclesiástica se manteve mais ou menos intacta, quando a
universidade, surgida no século anterior se consolidou em vários países da Europa, fazendo surgir
um novo elemento de crucial importância para a Igreja e para o debate: o professor de teologia,
que se dedicava integralmente ao estudo e ao ensino das Escrituras Sagradas e dos textos cristãos,
como os vários tratados sobre as sentenças de Pedro Lombardo.
A importância destes mestres, que pontificaram em várias universidades, conferindo à
cátedra de teologia um valor hoje inimaginável, cumpria, também, uma refinada estratégia no
projeto político da Igreja de atrair e formar quadros para a propagação da fé e o combate às
muitas heresias, que aqui e acolá brotavam. Suas determinações ou respostas às questões
teológicas adquiriram valor doutrinal, pois eram corroboradas pelo papa. Esta chancela pontifícia
fez com que esses docentes fossem consultados a respeito das mais importantes e complexas
questões sobre a fé e a vivência cristã.
A ação desses mestres fez com que se instaurasse no seio da Igreja um novo modelo de
autoridade que, sem ultrapassar a do papa, possuía considerável importância e ímpar notoriedade.
112
Sua função era recorrer aos argumentos da razão para clarificar e afirmar as verdades e dogmas
da religião. Foram esses mestres que, em 1277, redigiram o catálogo de erros em que se
fundamentavam os discípulos de Averroés. Sua presença no concílio de Basileia foi seminal para
as proposituras e decisões dali arguidas e levadas a cabo. Foram eles, os teólogos, que julgaram
heréticos os escritos de Occam, se agarrando em fragmentos do seu discurso, para condenar o que
lhes pareceu insultos a Deus e ao papa. No século XVI, sob a grua de suas observações Lutero
sofreu o peso da condenação por suas teses.
Occam era fruto desse mundo em conflagração e em debate, a que injunções sociais de
ignorância e medo deram o devido e colorido quilate. Sua teologia em ação lembrava questões
colocadas por Boécio, no século VI.
Santo Agostinho estabeleceu a posição da filosofia ante a teologia, como uma relação de
dependência. Para o santo, somente o conhecimento das coisas divinas se constituía em
verdadeira sabedoria, enquanto o conhecimento das coisas do homem permanecia na seara da
ciência, e voltava-se à sabedoria, como para seu télos. Ou seja, todas as coisas fora do campo
espiritual, pertencentes, portanto, ao campo da ciência, ainda, assim, deviam sua existência à
vontade divina que, para e por ela deviam se guiar.
Entretanto, para o santo que adotou Platão como guia intelectual, para além dessa
sabedoria extraída dos ensinamentos do filósofo grego havia a sabedoria da revelação,
muitíssimas vezes superior à melhor ciência humana cristã, pois esta sabedoria era Cristo, que se
fez homem para conceder a outros homens a salvação.
Da caudal e perene fonte de tradição neoplatônica, Agostinho extraiu o esforço intelectual
e fenomenal para integrar o conhecimento pagão com a doutrina sobre Deus e o Cristianismo,
além de se esforçar para demonstrar que as verdades filosóficas podiam ser superadas pela
sabedoria da fé cristã.
Para Boécio o problema fundamental que se colocava naquele momento era bem outro.
Sua preocupação era propor um debate no seio da própria Igreja, com fundamento nos princípios
da razão. Apesar das definições conciliares, as disputas doutrinárias eram cada vez mais tenazes,
envolvendo, inclusive, os dogmas que, por sua natureza, não podiam ser questionados ou postos
em suspeição. Nesse mosaico de muitas opiniões, os argumentos de autoridade emanados da
113
Bíblia, da tradição ou das decisões conciliares ficavam esmaecidos, perdendo vigor e substância.
Isso levava os membros da hierarquia católica e os cristãos à descrença e à confusão.
Boécio observava que apesar das definições conciliares, as disputas teológicas pela reta
compreensão da doutrina não haviam esmorecido, porque as mais diferentes leituras daquelas
proposições serviam como combustível para reforçar opiniões divergentes e ferrenha oposição.
Por isso, exclamava que para a solução dos problemas de compreensão, restava-lhe somente o
recurso à força cognitiva da razão e a sua capacidade de determinar conceitos e criar regras de
argumentação (LUTZ-BACHMANN, 2004, p. 7).
Seus cinco tratados teológicos e a Consolação da Filosofia se tornaram indicações claras
dessa linha de pensamento. Em todos eles, Boécio utilizou da gramática, da lógica e da metafísica
como armas poderosas, senão as únicas capazes de manter o nível e, portanto, ferramentas
exclusivas no debate.
Neste aspecto parece que Boécio era ressuscitado por Occam, já que este estava envolvido
até a medula com a questão dos poderes civil e eclesiástico. Entretanto, o doutor venerável havia
chegado a um impasse, na medida em que Estado e Igreja não chegavam a um acordo, mas
permaneciam entrincheirados em seus próprios argumentos e verdades. Como um prisma de mil
faces, os textos sagrados, lidos à lanterna do direito romano ou do direito canônico justificavam
as aspirações do imperador e do papa.
Occam, porém, elaborou uma nova proposta que mudava radicalmente o vértice da
questão e seu enfoque. Sem alterar o ponto de partida, que continuava sendo os textos bíblicos, já
que eram aceitos por ambas as partes como manifestação da palavra divina, restava como chave
para abrir esse armário, recorrer-se à exegese destes escritos, que devia ser confiada à autoridade
dos teólogos e não aos juristas e canonistas, muitos deles ideologicamente engajados e
interessados por um ou outro lado.
O caminho de Occam foi longo e maturado, exigindo que ele transmutasse muitos dos
conceitos então vazados na longa tradição das duas instituições. O próprio conceito de Igreja teve
que ser transformado, enquanto a explicação da relação entre fé e razão manteve-se inalterada.
Em suas primeiras digressões, a Igreja era tomada como sendo a Igreja romana, na qual se
encontrava a maior autoridade em questões de fé. Em relação à fidelidade, esta significava
irrestrita aceitação das decisões dessa irmandade (McGRADE, 1974, p. 28).
114
Diante de tantas vicissitudes e desordens no seio da Igreja e do Império, foi levado a
reconhecer que tanto a cúria quanto as demais instâncias da Igreja sofriam com as deficiências de
entendimento e aceitação, que impediam uma compreensão exata do poder de cada um no plano
fático. Além disso, eram constantes as interferências do papa em esferas que não lhe eram afeitas
e muitas as manifestações que não se sustentavam à luz das Escrituras, quando racionalmente
questionadas.
Isto fez com que ampliasse e valorizasse enormemente os espaços da razão em questões
de fé. Investido de ímpar autoridade, conferida pela cátedra de teologia, se viu numa posição
privilegiada, de onde podia discutir sobre e quais eram os poderes conferidos por Cristo a Pedro
e, através deste, aos seus sucessores apostólicos. Para ele, a Igreja era comandada por uma
autoridade instituída por Deus, mas, agindo contra os curialistas, embora reconhecesse seu papel
no controle da autoridade maior, asseverava que em suas várias instâncias, nenhuma estava
revestida da infalibilidade: “esta não pertence de modo próprio a ninguém, nem a uma instituição
nem a um indivíduo. Deus, na verdade, não prometeu a infalibilidade a um homem individual,
como o papa, nem mesmo a uma coisa abstrata, como é a autoridade papal, nem a um colégio
restrito, como o concílio geral e, enfim, nem mesmo a uma pura ficção, como é a ideia de Igreja
universal. Deus, prometendo a infalibilidade garantiu somente que a verdade não desaparecerá no
seio da comunidade cristã. Se o papa erra, outras pessoas ficarão fieis à verdade. Mas nós não
podemos saber quem serão” (GHISALBERTI, 1997, p. 299).
Com Occam, a verdade da fé se convertia numa incessante procura. Em encontrar Deus,
para procurá-Lo sempre, como afirmava Agostinho. Uma procura pelos caminhos da razão
hermenêutica. Esse era o trabalho árduo do teólogo. Só e exclusivamente dele: extrair da razão
os argumentos da fé cristã. Sua bagagem intelectual devia ser colocada à disposição da
compreensão crítica e correta dos textos sagrados. Nessa tessitura de labor acadêmico, razão e
razão se confrontavam. Discurso com discurso. Argumento com argumento, não sobrando
margem para qualquer tipo de condenação com base na decisão da autoridade do papa ou de
outro cristão. O que restava à Igreja e que se impunha à sua hierarquia era o reconhecimento da
verdade, ante as irrefutáveis leis da razão. No máximo, o que se podia reconhecer era a qualidade
de melhor ou pior posição, analisá-las em sua consistência, sem manifestar aptidão pessoal por
qualquer inferência, ou de que uma lição estava errada e a outra correta.
115
Sua permanência forçada no mosteiro dos franciscanos, em Avinhão, acabou se tornando
um marco divisor no conjunto da sua obra. No primeiro, anterior à sua estadia na corte papal,
predominou as preocupações filosóficas e teológicas. No segundo, que iniciou com sua detenção
na cidade francesa, as reflexões filosóficas e políticas assumiram a cena e dirigiram o teatro das
suas inquietações. Pertence ao primeiro período os Comentários às sentenças de Pedro
Lombardo, cujo conteúdo lhe valeu a ojeriza e a denúncia de heresia feita pelo chanceler da
universidade de Oxford.
Também fazem parte dessa época a Expositio super octo libros physicorum e a Summa
totius logicae, todos escritos antes de 1327. O primeiro sobre filosofia natural e o segundo sobre
lógica. No campo da teologia se destaca os Quodlibeta VII, nos quais tratou de questões como a
unicidade de Deus e a possibilidade de demonstrar sua existência, em consonância com as
opiniões contidas nos Comentários às sentenças de Pedro Lombardo.
Na segunda fase estão as polêmicas obras político-filosóficas, centradas em torno da
questão do poder civil e eclesiástico, destacando-se o Compêndio de erros do papa João XXII e
Diálogos, considerada sua principal obra neste período.
A doutrina pontifícia apregoava que o direito de propriedade tinha sua fundamentação na
lei divina. O parecer foi demolidor para o Papa! Occam considerou que a existência da
propriedade se devia à convenção e lei humanas, nada tendo de divino, estabelecidas para
equacionar a cobiça e os muitos atritos e conflitos dela decorrentes (DE BONI, 1983). Rejeitou
peremptoriamente a argumentação de João XXII, de que não era legítimo e justo a ninguém
“consumir o que não se possui”.
Considerou que as constituições pontifícias eram heréticas e, portanto, inaceitáveis, o que
colocava em cheque a própria condição de um suspeito conduzir a Igreja e velar pela sua missão
apostólica.
Apesar de reconhecer ao papa o “poder inteiro” no campo espiritual e no governo da
Igreja, rejeitou a doutrina da plenitude do poder que conferia ao pontífice a plena soberania nas
questões espirituais e temporais. Mais do que ninguém, em razão da natureza do seu cargo, o
sumo pontífice não estava livre para fazer tudo o que não fosse imoral ou proibido por Deus. Pelo
contrário, a ele se impunha a obrigação de respeitar direitos inalienáveis, como o direito dos
116
incrédulos e ateus. Ou seja, o papa estava, como qualquer súdito, atado aos direitos naturais e à
lei humana emanada pelo Estado.
A violação desses direitos podia até não levar ao seu julgamento regular, por quem lhe era
inferior no âmbito da Igreja, embora, ocasionalmente, nos casos de heresia ou de crime grave, um
tribunal humano pudesse ser constituído para apreciar a questão.
Dessa forma rejeitou a doutrina da infalibilidade papal. Se tal tribunal considerasse que o
Pontífice praticou heresia, o mesmo já deixou de ser Papa, ainda que mantivesse o título, por ser
algo na sua essência, incompatível com o ministério papal. No caso do cometimento de crime
grave, o soberano eclesiástico devia ser repreendido e até deposto da sua função e cargo.
Em relação ao governo secular, sustentou que o poder nascia do povo e não da Igreja,
dispensando o imperador e os demais governantes da confirmação e da unção espiritual do papa.
Portanto, também não podiam, em nenhuma hipótese, serem destituídos pelo pontífice.
Entretanto, estabeleceu uma exceção, quando e somente quando, atuando em nome do povo,
estava liberado para derrubar um governante injusto ou relapso, o que, aliás, era da competência
de qualquer um e não apenas do papa.
Sua teoria do povo como fonte do poder indica que ele não conferia o mesmo valor e os
mesmos atributos que Dante conferiu ao Império. Sua gestão relacionava-se com a questão da
transferência desse poder popular, não importando quem viria a receber essa delegação: “O poder
de instituir leis e direitos humanos esteve no princípio e de modo principal no povo, e o povo
depois o transferiu ao imperador. Assim, os povos, os romanos, por exemplo, e outros,
transferiram para outros o poder de instituir leis; às vezes para os reis, às vezes, para outros de
dignidade e poder menor e inferior. Tudo pode ser demonstrado pela história e pelas crônicas,
mas também pela Sagrada Escritura...” (OCCAM, 1988, p. 121). Não lhe interessava as fontes,
neste momento, mas a percepção da existência dos mais diferentes povos, cada um com sua
forma de governo e seu sistema jurídico e político (CALASSO, 1974, p. 275).
Aos governantes que ascendiam ao poder competia respeitar os direitos dos súditos, como
o direito de propriedade, embora competisse àquele anular esse ou qualquer outro direito quando
o bem geral assim o reclamasse.
Menos virulento e heterodoxo que Marsílio de Pádua, a quem criticou recorrentemente e
cuja concepção da soberania lhe era totalmente alheia. Para Occam era intolerável a ideia de que
117
todo poder coercitivo devia estar concentrado no governante. Também trabalhou com a
possibilidade de, ocasionalmente, os súditos poderem mobilizar poder suficiente para corrigir os
desmandos ou depor o governante que se tornou tirano.
No seu projeto político, que nada tinha da realidade das cidades-repúblicas da Itália, o
mundo precisava de um império e de um imperador – o Sacro Império Romano Germânico – pela
necessidade de uma autoridade e de um governo mundial soberano, como condição de garantia da
paz universal. Mas até o imperador, sustentava, estava obrigado a respeitar a independência dos
estados nacionais em formação e das cidades livres ou cidades-repúblicas.
Entretanto, Occam não estava laborando em searas novas, em ideias singulares. A maioria
destes temas já havia sido tratada por canonistas e teólogos do passado, que neles encontrou um
canal de vocalização especial, a que a conjuntura política da Europa deu o assento necessário,
fazendo com que estas ideias chegassem ao pensamento liberal da posteridade (KILCULLEN,
2010).
Occam simbolizou o espírito inquieto, que desde o século XII dominou o espaço
acadêmico universitário. Em Munique continuou a atacar a Igreja e o papado. Escreveu vários
ensaios questionando a infalibilidade do papa, argumentando que a autoridade do líder é limitada
pelo direito natural e pela liberdade dos liderados, verdades estas firmadas nos Evangelhos. Que
um cristão não ofendia a Deus e nem contrariava os ensinamentos das Escrituras pelo simples
fato de se colocar ao lado do poder temporal, em disputa com o poder papal. Também escreveu
os Diálogos, sua obra mais importante, onde se revelou tão corrosivo quanto Marsílio, embora
mantivesse um estilo menos agressivo.
Menos cético, porém não menos defensor da liberdade, cuja teoria desenvolveu ao longo
dos anos, nos moldes de sua época, acreditava que o indivíduo era plenamente capaz de fazer
suas opções, consciente do que é certo ou errado, não necessitando, portanto, de nenhuma
interferência externa a lhe apontar os passos. Cada um tinha o direito de decidir sobre sua vida. A
liberdade em Occam era a possibilidade de escolha entre o sim e o não, a sagração do livre
arbítrio. Daí a denúncia daqueles que, em nome de Deus e da religião, passaram a usurpar essa
liberdade, dom da natureza humana, concedido por Deus (DE BONI, 2003, p. 305).
A ação humana situava-se em cada indivíduo e suas escolhas eram reais e concretas,
porque assim era a vida cotidiana de cada um, e não em entes universais. A vida do homem era
118
arte e razão e era por elas que ele devia agir. Portanto era da capacidade de escolha que cada um
exercia, por meio do livre arbítrio, que nasciam as responsabilidades de cada qual.
Na sua obra Ordinatio, o teólogo afirmou que todo conhecimento racional tinha
fundamento na lógica, de acordo com os dados proporcionados pelos sentidos. Criador da
chamada navalha de Occam, onde a intuição devia ser o ponto de partida para o conhecimento de
tudo o que existia no universo, também criou a máxima de que as pluralidades não deviam ser
postas sem necessidade. Que as necessidades não deviam ser multiplicadas além do necessário,
pois a natureza era por si econômica e não se multiplicava em vão.
Sua produção intelectual foi peculiar no sentido de explorar vários temas que, embora
interligados, pareciam não ter o propósito de criar um sistema ordenado. Como sói acontecer no
seu tempo, o teólogo apenas selecionava temas ou questões já debatidas por antepassados e
contemporâneos, lapidando-os da forma que achava mais adequada.
Nessa rotina de produção esmerada, recorrentemente apontava seus dardos para Henrique
de Gândavo e Scoto. Deste, rejeitou as ideias que tratavam da distinção formal, com exceção no
caso da divindade e a doutrina da individuação, segundo a qual um indivíduo era uma natureza
comum, que só se tornava individual em razão de uma diferença formalmente distinta de si. Para
Occam, o existente era individual em virtude de si mesmo, não necessitando, pois, de ser
formalmente individuado.
Seus escritos polêmicos e apaixonados, sem que para isso recorresse à retórica demente
dos virulentos opúsculos de outros contemporâneos mais temperamentais e menos precavidos,
esmiuçaram questões políticas e fizaram inserções filosóficas particulares.
Embora não propusesse a eliminação da Igreja ou a sua dissolução na estrutura do Estado,
esta carecia de reformulação e novas perspectivas no campo jurídico e político deveriam
delimitar sua área de influência e domínio: “A autoridade papal não se estende, segundo a regra,
aos direitos e às liberdades alheias, para que os possa suprimir ou perturbar, sobretudo as dos
imperadores, reis, príncipes e outros lacaios, porque os direitos e liberdades deste gênero fazem
parte das coisas do século e o papa não tem autoridade sobre elas. (...) É por isto que o papa não
podia privar ninguém de um direito que vinha não dele, mas sim de Deus, da natureza ou de outro
homem; ele não podia privar os homens das liberdades que lhe foram concedidas por Deus ou
pela natureza” (TOUCHARD, 2003, p. 231).
119
Occam não foi um dissidente do pensamento político medieval, que partia da concepção
de uma ordem divina e harmônica governando o mundo, sob o princípio da unidade. Igreja e
Império eram pensados com uma mesma e única origem divina, embora negasse a concessão de
qualquer intromissão eclesiástica na vida civil. A doutrina da soberania universal da Igreja foi por
ele abortada no âmbito do Estado. Inclusive salientou a necessidade de retirar da Igreja muitas
das suas atribuições espirituais, aproveitando o momento em que Igreja, Império, corporações e
os grandes senhores disputavam o poder político (GIERKE, 1975, p. 510; JELLINEK, 1981, p.
10).
Criticou a filosofia através da teologia, rebatendo as ideias que sustentavam o averroísmo,
cujo principal representante latino, Siger de Brabant, havia introduzido na Universidade de Paris,
a partir de 1255, especialmente na Faculdade de Artes, a que se juntou Boécio de Dácia e Bernier
de Nivelles. Professor em Paris, Siger construiu todo um sistema aristotélico interpretado à luz do
pensamento de Averroéss, na esteira de outros teóricos que o antecedeu e contra os quais se
ergueu a voz de Alberto Magno, que em 1256 escreveu De unitate intellectus, contra averroistas.
A reação ao pensamento do cônego Siger se fez imediata. Contra ele se ergueu os
dominicanos, nas pessoas de Alberto Magno e Tomás de Aquino. Dos meios agostinianos, São
Boaventura fez trombetear uma série de sermões proferidos em 1267, em Paris, denunciando
heresias no pensamento do cônego, que negava a imortalidade pessoal, substituída por uma
imortalidade da raça humana, eterna como o próprio universo, em contraponto com a doutrina
cristã. Mas foi na faculdade de teologia, para a qual São Tomás retornou em 1269, que se
ergueram espessos muros ao seu pensamento.
Embora concordassem quanto ao aristotelismo em geral, o confronto entre dois homens
notáveis, dentro da mesma seara aristotélica, resultou na projeção da universidade como lugar de
debate, até que Siger cedeu em seu radicalismo inicial e passou a adotar posições mais
moderadas.
Provada a existência de Deus, a partir dos argumentos tomados a Aristóteles e dos graus
de perfeição da Divindade, emprestados aos neoplatônicos e, estabelecidos os principais atributos
do Grande Arquiteto, Siger contra Tomás, assegurou que Deus criou, conserva e dirige o universo
necessariamente, porque assim convém a uma causa imutável e eterna. Portanto, o universo
criado existia necessariamente desde toda a eternidade.
120
Também eram eternos o movimento sideral e terrestre, a matéria, as espécies materiais, a
alma intelectiva, o movimento, o tempo e a geração. O universo se compunha de acontecimentos
coordenados e concatenados, sob a influência celeste. Os astros, depois de trinta mil anos
retornariam à mesma posição e fariam produzir os mesmos acontecimentos em todos os seus
pormenores, detalhes, minúcias e minudências.
A ação concreta contra o pensamento de Averroés se fez presente pelo decreto do bispo de
Paris, Etienne Tempier, de 10 de dezembro de 1270, no qual condenava treze proposições
averroístas. Em 1277, duzentas e dezenove proposições, que atingiam o peripatetismo em geral,
foram anematizadas pela Igreja.
Siger fez com que as duas ciências se colocassem em confronto, embora esse choque
fosse até desejado pelos averroístas. Finalmente acabou aderindo ao idealismo utópico de Dante,
pregando a monarquia universal. Alargou as teorias de Scoto, aprofundando a separação entre
teologia e filosofia, ao negar que as proposições teológicas pudessem ser aprovadas pela razão
(PEÑA, 1963, p. 300).
Na sua concepção, o poder tinha sua origem em Deus, mas residia no consentimento
popular, exercido pelos governantes, que deviam buscar o bem comum. De resto, Occam não
conseguiu se livrar do pensamento político geral da Idade Média e nem teve a mesma
importância que Marsílio, no estudo da soberania. No entanto, seu nome ao dele se ligou pelas
contingências políticas e históricas de um mesmo combate, cujo fim foi o reconhecimento da
autonomia humana e da supremacia do Estado. Seu pensamento exerceu grande influência ainda
no seu século e no seguinte.
A Idade Média com suas lutas entre o Estado e a Igreja e um pensamento político criativo
em sua heterogeneidade, anunciou o Renascimento ao mesmo tempo em que preparou a
construção teórica do conceito de soberania, com os atributos que lhe conferiu Jean Bodin
(SERRANO, 1983, p. 137).
Partindo de pressupostos gnosiológicos, Occam demonstrou a fragilidade das concepções
que pretendiam unir fé e razão. Para ele havia um oceano de argumentos que as distinguia e as
colocava num espaço particular de aplicação, como, aliás, São Tomás já havia defendido em suas
locuções. A razão não estava a serviço da fé, assim como a fé não necessitava da razão para
121
esclarecer seus próprios postulados, pois esta dependia única e exclusivamente da revelação. Por
isso, a razão não tinha nada a contribuir, esclarecer ou acrescentar à palavra divina.
A razão, por seu lado, sendo uma faculdade dada por Deus ao homem, para que este
agisse nesse mundo segundo os ditames dela mesma, nada tinha que tomar ou buscar na fé,
devendo recorrer a outras faculdades naturais e, exclusivamente com elas, obter os
conhecimentos necessários para uma vida boa e perfeita neste mundo.
A distinção entre fé e razão conduziu a uma separação radical, a um confronto que as
deixou em posição de combate. Occam foi chamado de anti-teológico, quando tratou de temas
sobre a fé. De voluntarista por firmar a preeminência da vontade sobre o entendimento e a uma
posição empírica radical, quando tratou da razão. A autonomia da razão em relação à fé,
proclamada por São Tomás, com ele se converteu em independência absoluta, em duas
substâncias heterogêneas e inconciliáveis, que teve consequências profundas e duradouras no
campo filosófico e teológico em que ele se moveu.
Da sua lavra saiu a mais veemente condenação aos que propunham uma filosofia
subsidiada pela teologia. As tentativas conciliadoras entre fé e razão, tão laboriosamente
trabalhadas por São Tomás, Boaventura e Scoto, no sentido de mediar razão e fé com elementos
aristotélicos ou agostinianos, através de elaborados contorcionismos intelectuais metafísicos e
gnosiológicos, não eram apenas inúteis, pois se tratava de matérias essencialmente incompatíveis
e danosas ao pensamento (REALE e ANTISERI, 1991, p. 615).
Sua explicação para essa dicotomia insuperável encontrava-se na razão de a filosofia
fundar-se na evidência lógica, enquanto a teologia estava fundamentalmente voltada para a vida
prática. A moral teológica só podia ser construída à luz da fé. A filosofia, ao contrário, jamais
poderia abandonar o campo da razão ou deste desvencilhar-se. Portanto, eram duas ordens
assimétricas, incompatíveis, ainda que caminhassem paralelamente, mas jamais numa mesma e
única trilha. Não se tratava de distinção, mas de separação, pois o saber racional se baseava na
clareza e na evidência lógica, enquanto o plano da doutrina teológica orientava-se pela moral e se
fundava
na
luminosa
certeza
da
fé.
Para ele não bastava que o conhecimento racional e o conhecimento teológico fossem
distintos, mas definitivamente separados. Ou seja, as verdades da fé estavam inseridas no campo
de tudo aquilo que não eram verdades racionalmente cognoscíveis. Portanto, tais verdades não se
122
constituíam em princípios que se demonstravam e que se concluam, não podendo servir de
premissas a nenhum silogismo: “O âmbito das verdades reveladas é radicalmente subtraído ao
reino do conhecimento racional” (REALE e ANTISERI, 1991, p. 615).
Sendo assim, a filosofia não era e jamais seria uma ciência subserviente ou atrelada à
teologia. Esta, por lhe faltar a evidência lógica e a demonstração racional em seus princípios e
essência, sequer podia arrogar a si o título de ciência. Sua existência baseava-se na força de
persuasão da fé, enquanto a filosofia estava indissoluvelmente atrelada à força e aos princípios da
razão. A teologia não passava de um complexo de proposições mantidas em vinculação não pela
razão coerente, mas unicamente pelo dínamo da fé. A razão, portanto, nada tinha a oferecer ao
dado revelado e nem podia esclarecê-lo mais, ou melhor, do que o fazia a fé.
As verdades da fé não passavam de dons, que Deus concedeu gratuitamente ao homem e
assim deviam permanecer e serem entendidas. Tentar, através da razão e da lógica mudar essa
constatação, não seria apenas desonesto, mas um trabalho de Prometeu, pois como dons, já foram
dados pela magnanimidade de Deus. Todas as verdades da fé, por serem reveladas, já traziam na
sua essência a marca do intangível e do incognoscível, levando à conclusão de que a razão
humana possuía um domínio próprio e uma função específica, totalmente diversos do campo e da
função da fé.
Ao tratar da onipotência divina, Occam estilhaçou com toda a metafísica da natureza, de
caris aristotélico ou neoplatônico. Se entre os atributos de Deus estava sua onipotência infinita,
que se estendia à sua liberdade criadora, qualquer comparação entre esse Deus onipotente e a
criatura finita servia tão somente para diminuir os atributos da divindade, além de revelar o
caráter soberbo de uma pretensão herdada do paganismo.
Sendo a onipresença de Deus ilimitada e tudo o que havia no universo era obra
contingente da sua infinita liberdade criadora, então não podia haver qualquer vinculação entre
Deus onipotente e a multiplicidade dos indivíduos finitos, em sua singularidade, além do elo que
nasce do puro ato de vontade criadora da parte de Deus. Sendo assim, Deus não era
compreendido em sua integralidade e potência pelos indivíduos, mas apenas vislumbrado ou
percebido em sua sabedoria infinita. Portanto, as proposições ou sistemas que tentavam construir
ideais, extraídos das formas platônicas ou de essências universais, propostos por Agostinho,
123
Boaventura e Scoto, como intermediários entre o Logos divino e as múltiplas criaturas eram
apenas resquícios da razão soberba e pagã (REALE e ANTISERI, 1991, p. 617).
Occam se bateu contra toda tentativa de comparar ou assemelhar a onipotência divina com
a contingência das suas criaturas. Eram duas realidades tão completamente díspares, que existia
um abismo intransponível entre elas e não uma participação entre o Deus onipotente e a sua
criatura finita. Portanto, era impossível, sendo as coisas criadas ao efeito da ação divina, a partir
delas pretender-se chegar à causa. Das criaturas a Deus não havia qualquer continuidade, pelo
simples fato de que Deus era um ser infinito e suas criaturas seriam sempre seres finitos.
Com ele a filosofia se desprendeu de qualquer laço e tornou-se uma ciência autônoma,
capaz de caminhar por si, independente de qualquer préstimo que lhe podia ser dado pela
teologia. Por conseguinte, o mesmo aconteceu com esta, que comportava todas as verdades
necessárias à salvação eterna, porque estas verdades eram do campo da sua especulação
(GILSON, 1995, p. 797).
Se a teologia nada tinha a oferecer à filosofia, esta, também, nada possuía em contributo
para com a teologia. Com Occam, as tentativas anteriores de se provar as verdades da fé pela
razão, agora se assentavam na constatação de que tais verdades não eram acessíveis à razão. Para
o venerável teólogo, a verdade não estava em compreender para crer, nem em crer para
compreender, mas, sim, em crer e entender (REALE e ANTISERI, 1991, p. 627).
Occam não pretendeu ou buscou depreciar a razão, mas situá-la nos seus exatos
parâmetros, domínios e limites. Quanto à teologia, realçou seu caráter transcendente em relação à
mesma razão, que em nada podia corroborar ou desbancar a beleza da fé. Pelo contrário, sua
presença neste campo a contaminava e a conspurcava de ruídos estranhos à sua essência. As
verdades da fé deviam ser aceitas pelo que elas resultavam e eram, pois a fé era o único
fundamento da vida e da verdadeira religião.
Talvez mais do que qualquer outro, trouxe em si os vários aspectos e as múltiplas
tendências que vicejaram na Idade Média e no século XIV. Sua originalidade, que havia sido
esquecida por muitos séculos foi recuperada nas várias instâncias e vertentes do conhecimento
lógico, científico e teológico, além do conhecimento físico e empírico da natureza.
A incisão profunda que operou, resultou na secção do pensamento, fazendo com que a
filosofia se separasse da teologia e o temporal do espiritual, com seus resultados políticos e
124
institucionais. Em seu pensamento paira o espírito laico, não laicista, ao trazer para o debate,
ainda que debilmente, a afirmação dos ideais de dignidade do homem, do indivíduo imbuído da
capacidade criativa e da cultura livre da censura e de quaisquer outras amarras. Todos esses
aspectos, que formavam um mosaico ou um grande prisma, nos seus muitos vértices, brotaram da
sua lavra intelectual, para se transformarem em matéria prima e substância no Renascimento.
Lutero foi fortemente influenciado por ele. Como Occam, também pregava a extinção das
tradições e dogmas que ao longo dos séculos foram sendo solidificados pela Igreja e conferidos
ao domínio do papa. Ambos pensaram no indivíduo comum como protagonista da sua vida e da
sua Igreja. Dessa forma, a revolução dos espirituais, tantas vezes abortada, voltou a surgir no
século XVI, com suas características radicais. Lutero liquidou com o poder do papa e da cúria
romana. Extinguiu indulgências, relíquias, cerimônias e ordens religiosas. Bastava ao crente
colocar-se em contato direto com Deus. Enfim, Lutero levou a sua doutrina a tais e extremos
limites, que Occam sequer havia imaginado em seus escritos mais revolucionários.
Com maestria, ousou confrontar São Tomás e sua genialidade intelectual. Enquanto o
mestre de Aquino, luz e referência desde o século XIII, sustentava que a fé e a razão eram
conciliáveis, embora estivessem em campos distintos do conhecimento, Occam propôs a
autonomia absoluta entre elas, criando a teoria da dupla verdade. Para ele o conhecimento era
individual e se encontrava em sucessivas subdivisões, assim como os universais, enquanto o
aquinate o dividia em abstrato-universal e concreto singular. Em Occam, os universais eram
apenas nomes, em São Tomás eram conceitos abstratos que expressavam a essência das coisas
conhecidas.
Para o minorita franciscano, criador de uma nova lógica, com base no princípio da
economia da natureza, não se devia multiplicar os entes, se isto não fosse absolutamente
necessário, estendendo sua crítica aos conceitos de substância, acidente, causa e efeito. Para o
mestre de Aquino, preso à lógica aristotélica, a distinção e a multiplicidade dos entes era uma
realidade tangível e, por isso, possível.
Em relação a Deus, o monge franciscano foi crítico das provas a posteriori da sua
existência, ignorando a argumentação contrária de São Tomás, que concebia tais provas a partir
da argumentação e demonstração a posteriori. Occam se colocou na raiz do individualismo
político e desarticulou a doutrina da plenitude do poder papal. Tomás se entrincheirou no
125
princípio do bem comum, como ação política e no respeito aos direitos individuais, mas sustentou
uma teoria, que sabia desgastada e incompatível com a realidade da sua época, a soberania do
poder político e espiritual do sumo pontífice.
Sua longa permanência na corte do imperador serviu de estímulo à produção de obras
políticas, sempre voltadas para a defesa do império e contra as ambições da Igreja. Como
Marsílio, acabou se tornando um conselheiro do império e algumas de suas obras responderam às
urgências específicas que se vivia no momento. Estão nessa categoria os tratados Pode um
príncipe, Coinsulta sobre uma questão matrimonial e Sobre o poder dos imperadores e dos papas.
Seu empenho, porém, não conseguiu evitar a queda de Luis da Baviera. Aliando-se ao
monarca francês e a outros príncipes eleitores, Clemente VI criou condições políticas que
precipitaram a queda do imperador. O desgaste provocado pelas sucessivas e controversas
questões políticas e os interesses de ocasião, assim como as disputas entre as grandes casas
dinásticas e senhoriais do império, permitiu ao papa tramar a deposição.
Em 1344 Clemente conclamou os príncipes eleitores a eleger um novo rei da Alemanha,
que posteriormente seria proclamado imperador. No dia 13 de abril de 1346, ordenou aos
príncipes que depusessem o imperador por meio de uma guerra justa e elegesse seu sucessor, o
que ocorreu no dia 11 de julho deste mesmo ano. Carlos de Luxemburgo foi o escolhido e em 26
de novembro coroado rei da Alemanha e imperador. Luis não conseguiu retornar ao trono, assim
como Occam jamais voltou à Inglaterra. Foi no calor dramático destes acontecimentos que
Occam escreveu sua última obra, intitulada Sobre o poder dos imperadores e dos papas, já que
ambos morreram em 1347.
Mais uma vez o tratado buscava provar que os papas de Avinhão extrapolaram os limites
de sua atuação, ao invadirem o espaço das autoridades políticas e atuarem para muito além das
suas prerrogativas e do que lhes era lícito. Violavam, também, os direitos dos fieis, à medida que
tentavam impor um domínio absoluto sobre sua conduta e sua vida. Enfim, o tratado era um
manifesto de radical oposição à ideia da plenitude dói poder pontifício: Sendo o império mais
antigo que a instituição eclesiástica, seu poder não poderia provir da Igreja e nem a ela submeterse. Embora o poder civil tenha sido instituído por Deus com o concurso da ordenação humana,
não cabia ao pontífice a plenitude do poder no campo temporal, pois “o império romano existiu
antes do papado; logo, em sua origem, não surgiu por intermédio do papa (...) Disso segue-se que
126
se o papa se intrometer em algo que é da alçada do império romano, contra a permissão daqueles
a quem compete tomar qualquer disposição relativa ao mesmo, ou proceder de outro modo,
diferente de como age em relação aos outros reinos, ou contra o que foi estabelecido pelos
imperadores, vago ou não o trono imperial, prejudica o império romano, metendo a sua foice em
messe alheia, porque ele não obteve tal poder sobre o império romano, nem por força do direito
divino, nem do humano. (...) Além disso, esses indivíduos, movidos pela ambição de doinar e
completamente cegos por tamanha fúria de avidez e de rapacidade, desejam submeter a si o
império romano, não deixando de favorecer, aumentar, suscitar e estimular novas discórdias,
sedições e guerras entre os príncipes e povos do império, as quais põem em perigo toda a
Cristandade, embora a própria verdade advirta: “Todo reino dividido contra si mesmo cai em
ruína” (Occam, 1989, p. 318).
Occam dedicou seus últimos anos à meditação e ao estudo, num convento em Munique,
de onde fazia publicar escritos, panfletos e opúsculos com denúncias a João XXII e seu sucessor
Bento XII, exortando para que ambos fossem defenestrados do trono pontifício. Ali morreu em
09 de abril de 1349, vitimado pela peste negra, deixando como herança a separação consolidada
entre fé e razão, entre teologia e filosofia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando o convulsionado século XIV foi remetido para os anais cronológicos do tempo, a
peste negra que dizimou a Europa em meados do mesmo, já havia amainado sua fome de corpos
e vítimas, embora suas marcas brutais perdurassem por um longo tempo. Judeus, leprosos e
estrangeiros foram apontados como contaminadores do mundo e perseguidos em campanha
cívica de preconceito, ignorância e medo.
Bandos de mercenários renegados vagavam errantes na prática de roubos e saques. Os
jacqueries promoviam rebeliões camponesas, atacando propriedades, no vácuo de poder que a
pandemia provocou em muitos lugares, agora à mercê da violência e do banditismo social.
As chuvas torrenciais, cuja intensidade durou dois anos, tendo como causa o desequilíbrio
ambiental, prenunciavam transformações que definiriam boa parte da agenda do mundo moderno
e sua preocupação com o meio ambiente.
127
Na política internacional, a Guerra dos Cem Anos, entre a Inglaterra e a França, consumia
os resquícios de energia, que não havia sido consumida pela grande pandemia, ceifando mais
vidas e braços que escasseavam na agricultura, enquanto a fome grassava e inquietava os campos
e cidades.
O Grande Cisma do Ocidente inquietava a Europa cristã, com seus vereditos
escatológicos e suas previsões catastróficas. Um papa em Roma, um antipapa em Avinhão e
outro apóstata em Pisa, cada um falando em língua incompreensível, com suas ameaças e
excomunhões, criou tamanha balbúrdia de fidelidades, que mais uma cimeira foi convocada e o
Concílio de Constança pôs fim à confusão.
Templários da poderosa Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Salomão
foram acusados de heresias, enquanto seu vastíssimo patrimônio era surrupiado por Felipe, o
Belo. Ninguém estava a salvo em meio à insegurança jurídica e política que a cobiça provocava.
Seu último Grão mestre, Jacques Demoley, haveria de morrer na pira pública, sem quebrar sua
fidelidade à Ordem e aos companheiros.
A revolução na arquitetura, com a introdução das ordenações matemáticas nas suas
formas: a abóbada de berço, a cúpula, o arco de volta perfeita. Fachadas almofadadas dando nova
vida aos palácios. Michelangelo e Donatello, autor de Davi. Ghiberte, o artista da Porta do
Paraíso, de Florença. O Livro das Maravilhas, de Mandeville. Nicole de Oresme e sua descoberta
da curvatura da luz, através da refração atmosférica. Melhor rigor das cartas cartográficas,
embora ainda apontassem o Cabo Bojador e sua fama de horrores, como o extremo do mundo e o
fim do caminho.
O século findava, mas não a trajetória comovente do homem, que construiu uma
civilização, em sua jornada de beleza e drama, abrindo trilhas em meio à ignorância, a cismas e
superstições. Inexoráveis anátemas. A morte e o dia do juízo, por um Deus cruel e vigilante;
fuxiqueiro e vingativo, que em seu livro de contas, nada deixava passar em vão.
Entretanto, as conquistas neste século perdurariam, como preciosas pérolas pescadas no
grande mar das convulsões. Foram muitas as disputas e os embates. As tragédias pessoais e
coletivas. Os enfrentamentos entre os poderes constituídos, que a história chamaria de querelas
entre o imperador e o papa. Foram muitas as lições guardadas nos anais da história humana, a
128
apontar a trajetória, a indicar o caminho, entre tantas trilhas possíveis. Foram vários os percalços
de nobres e plebeus; de intelectuais e ignorantes; de cristãos e ateus.
Neste século de perfídias e infâmias, de generosidade e redenção, Occam deixou sua
produção escrita, como um espelho a refletir o conjunto das transformações sociais e políticas de
então. No cruzamento da discussão da pobreza pela Ordem de São Francisco, com a causa do
Imperador, que se encontra o vértice da polêmica em que o teólogo se jogou com denodo e
paixão.
Para o frade minorita, as duas causas, ambas contra a Igreja e o papa, se resumiam numa
única questão: a defesa de direitos inalienáveis e invioláveis do Estado e do cidadão. O papa não
podia subtrair o direito de ninguém, pelo fato de não o ter recebido dele próprio, mas de Deus, da
natureza ou de outrem. Pela mesma razão, não podia privar outras pessoas de gozarem de suas
liberdades, as quais lhes foram concedidas por Deus ou pela natureza. Os espiritualistas
buscavam retornar à missão apostólica e à original pobreza da Ordem, enquanto o imperador
lutava por um direito garantido pelas leis divina e natural.
Seus ataques ao papa João XII e seus sucessores, incluindo sua defesa aos franciscanos
espirituais, enquanto paralelamente desenvolvia sua doutrina política na defesa do poder civil do
Império, trazia em suas linhas mestras a ideia da positividade do poder temporal. Em suas obras
de caráter político, Occam se dedicou a estabelecer os limites do poder imperial e dos poderes
civis em geral, através da delimitação do poder papal.
Historicamente, a perspectiva occamiana de traçar as esferas de atuação do regnum e do
sacerdotium, se revelou bastante original, dentro das condições e conjunturas do século XIV. Em
nenhum momento o teólogo negou a necessidade do poder como elemento estruturador da Igreja
e da sociedade política. A questão era o respeito aos limites que cada esfera de jurisdição
impunha a cada uma daquelas instituições. O papa não possuía nenhum poder, mas apenas
autoridade, ou seja, uma força moral que dispensava a força das armas.
Sua concepção, que se aproximava da ideia de um contrato, a partir de um consenso
social, para que o governo fosse constituído legitimamente, ainda que o poder tivesse sua origem
em Deus, era um elemento inovador, mas profundamente tributário da tradição na sociedade
cristã medieval. De outra feita, a questão do poder estava intimamente ligada à concepção da
129
liberdade, por isso valorizou o indivíduo, como agente capaz de distinguir o que era certo ou
errado, e conduzir-se de acordo com seu livre arbítrio.
Com fundamento no princípio da liberdade, um indivíduo só tinha poder sobre outro, se
este lhe concedesse tal direito, sendo que cada um era livre, inclusive para isso. O principado
papal não havia sido instituído para governar a humanidade e fazer substituir o Estado, nem para
auferir glória, honra e proveito temporal. Justamente por isso, tal principado deveria ser chamado
de ministrativo e não de dominativo.
Neste sentido, o poder passou a ser compreendido como um serviço prestado à
coletividade e voltado para o bem comum. Entretanto, se a autoridade, se transformasse num
tirano, o mesmo povo que a constituiu e que era a fonte primeira do poder, podia legitimamente
depor o governante. A ideia de que o governo devia ser entendido como um serviço, e dos mais
relevantes, levou o teólogo a afirmar que os atos praticados no exercício do poder político deviam
ser justificados e restringir-se ao exato feitio dos seus limites.
Occam promoveu uma inversão na hierarquia dos valores, privilegiando o povo em
detrimento do poder. Só conhecendo seus limites e os respeitando, o governante não caía em
abusos. Afinal, os homens em si mesmos, não precisavam do poder, à exceção daquelas situações
de maior complexidade, quando, sem ele, não podiam chegar a objetivos comuns. O poder
humano de constituir autoridade a si mesmo só se concretizou quando a instituição do poder civil
revelou-se ser o único modo possível para garantir o desenvolvimento pacífico e ordenado da
convivência humana.
À razão competia a conveniência de se instituir a autoridade, mas esta mesma razão foi
dada ao homem por Deus. Sendo assim, a instituição da autoridade, tal como a da propriedade
privada, enquanto determinada pela razão, derivava de Deus, embora de modo indireto.
Sua teoria de que o poder não se originava exclusivamente da lei divina e nem
meramente da lei natural, mas tinha sua origem direta no povo, o elevou ao patamar de criador da
ciência política e o colocou lado a lado com Marsílio de Pádua, embora as divergências entre eles
fossem significativas, inclusive na estética e no estilo.
Buscando seus referenciais na teologia e com estes instrumentos conduzindo toda a
discussão em torno da relação entre os poderes civil e eclesiástico, conferiu a eles o caráter de
serviço, como Gregório Magno já havia feito, inclusive acrescentando ao seu rol de títulos papais
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o de servus servourum Dei, para definir o bispo de Roma. Enfim, ao lançar mão das mesmas
fontes que eram utilizadas para a defesa da plenitude do poder do papa – a Sagrada Escritura, os
patriarcas da Igreja e as decretais -, Occam se colocou a pari e passo daqueles a quem criticou e
fustigou com gosto e vontade. Com certa melancolia e exasperação.
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