os fundamentos da bioética - Revista

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Volume 4, Número 4, Ano 4, Julho 2011
Revista Pesquisa em Foco: Educação e Filosofia
ISSN 1983-3946
OS FUNDAMENTOS DA BIOÉTICA
Bernardo Alfredo Mayta Sakamoto. Professor Adjunto de Ética e Filosofia Política da
Unioeste/PR. Doutor e Mestre em Filosofia pelo IFCH/Unicamp,
RESUMO
A Bioética trata dos problemas éticos suscitados pelas manipulações com seres vivos. Os
fundamentos da Bioética têm natureza prática, são úteis. Eles são: a não maleficência, a
beneficência, a autonomia e a justiça. A Bioética considera-os em todos os casos submetidos à
avaliação. Os fundamentos constituem o referencial teórico para justificar as normas da
Bioética.
Palavras-chave: Éticas, Bioética, manipulação, seres vivos,
ABSTRACT
The Bioethics deals with the ethical problems agitated by the manipulations with livings
beings. The fundaments of the Bioethics have practical nature, are useful. They are: not
maleficence, the beneficence, the autonomy and justice. The Bioethics considers them in all
the cases submitted to the evaluation. The fundaments constitute the theoretical referential to
justify the norms of the Bioethics.
Key-words: Ethics, Bioethics, manipulations, livings beings.
INTRODUÇÃO
A primeira relação que encontramos entre a Filosofia e a Bioética é que as duas são racionais,
isto é, estas apresentam seus princípios e fundamentos com rigor e coerência lógica.
A Filosofia é a “mãe de todas as ciências”, é a tentativa racional de explicar o mundo y las
diversas manifestações do homem, ela se apresenta como o conhecimento mais antigo do
homem. A filosofia é a disciplina que problematiza, questiona, interroga: o que é o mundo? o
que é o homem? qual é a origem do mundo e do homem? qual o destino do homem? qual o
sentido da vida?
A Bioética é uma disciplina recente, não tem mais de quarenta anos e é o estudo dos
problemas éticos suscitados pelas pesquisas, manipulações com seres vivos e, suas aplicações
feitas principalmente por biólogos e médicos. Ela faz uma reflexão crítica sobre as situações e
conseqüências da manipulação humana no referente à vida. Nesta reflexão surgem varias
tendências que abarcam diversos setores da sociedade, daí sua característica interdisciplinar.
A Bioética envolve as disciplinas como a ecologia, a antropologia, a biologia, a ética, a
psicologia, a sociologia, o direito, a educação, a teologia etc.
A Bioética trata de questões como: é justificado utilizar os seres vivos nos
experimentos? Existe a legitimidade moral do aborto ou da eutanásia? quais as implicações
profundas da pesquisa e da prática no campo da genética? etc. Por tentar dar resposta a estas
questões, a Bioética possui um discurso normativo pois, como toda ética, tenta orientar
através de normas de conduta.
Num primeiro momento, a Bioética, questiona, debate, analisa, esclarece e explica questões
éticas, indica métodos de reflexão, destaca valores e princípios sobre determinados problemas
específicos. Num segundo momento, a análise ética conduz a uma tomada de decisão prática
acompanhada de recomendações precisas. Estas decisões sobre a vida, o interesse do homem
por prolongar sua existência, a preocupação com o planeta e o futuro da humanidade fazem
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que a Bioética interesse a todos os setores da sociedade. Por sua abrangência, a Bioética é
uma das disciplinas que alcançou maior difusão no começo de milênio. Na atualidade existem
Comitês de Ética em quase todos os países do mundo.
Para compreender a relação existente entre Bioética e Filosofia apresentaremos em primeiro
lugar, a origem e o significado da ética, em segundo lugar, a evolução da ética até a Bioética
e, por último, a Bioética e seus fundamentos teóricos.
1.
A
ÉTICA
ENQUANTO
REFLEXÃO
FILOSÓFICA
SOBRE
O
COMPORTAMENTO HUMANO
A ética surge na Grécia antiga como o saber que nos ensina a forma de agir para obter a
felicidade em nossas vidas (eudaimonia). A ética (do grego ethos, costume, hábito) é a
sabedoria prática (phrónesis) que delibera sobre o que é bom e conveniente em nossos atos,
daí sua utilidade, pois ela serve para conduzir nossas ações. A ética apresenta-se como a
capacidade verdadeira e raciocinada do agir humano com respeito às coisas que são boas ou
más para o homem.
Para Aristóteles, a ética nos ensina como devemos agir bem. Para isto devemos possuir o
conhecimento teórico, saber o que é ética e que estuda. De tal maneira que, o homem dotado
de sabedoria prática deve também possuir inteligência e discernimento sobre as coisas a serem
feitas, isto é, o homem ético precisa do um critério para atuar, como Aristóteles nos diz:
Ora, todas as disposições que temos considerado [a classificação do
conhecimento humano] convergem, como era de se esperar, para o mesmo
ponto, pois quando falamos de discernimento, de inteligência, de sabedoria
prática, e de razão intuitiva, atribuímos às mesmas pessoas a posse do
discernimento, o terem alcançado a idade da razão, e serem dotados de
inteligência e de sabedoria prática (ARISTÓTELES, 2000, VI, 11; 1143a
25).
O homem criterioso ou inteligente é aquele capaz de conduzir suas ações com uma
disposição firme e constante para a prática do bem. O conhecimento da virtude (principal
tópico que estuda a ética, em contraposição ao vício) não é simplesmente uma preocupação
teórica, ao contrário, ela é importante porque nos permite escolher o melhor fim a atingir em
nossas ações: sempre agir com virtude e nunca com vícios. Assim, no estudo da ética
convergem-se os conhecimentos teórico e prático.
O conhecimento da ética, por um lado, constrói o caráter do homem e, por outro, faz que os
homens sejam conscientes e responsáveis dos atos que praticam. De tal maneira que, “O
homem é um princípio motor e pai de suas ações como o é de seus filhos” (ARISTÓTELES,
2000, III, 5 - 1113 b 15).
1.2 A virtude enquanto meio-termo
A ética como uma ciência prática preocupa-se com a conduta humana, seja numa
determinada sociedade ou no âmbito teórico. Na ética, os atos praticados com virtude são
qualificados de bons e os praticados com vícios de maus.
Para Aristóteles, todas as coisas que fazemos possuem uma finalidade. A finalidade
das ações humanas visa o bem. O maior bem é a felicidade (eudaimonia), a mais nobre e a
mais aprazível coisa do mundo. A felicidade é o resultado da prática da virtude. A felicidade
plena se atinge quando, ademais da prática da virtude, se obtêm bens exteriores: riqueza,
saúde, beleza etc. Contrariamente à felicidade, a infelicidade é o maior mal e o resultado das
práticas viciosas.
Para Aristóteles, as virtudes podem ser classificadas pela forma de sua aquisição: intelectuais
e morais. As virtudes intelectuais são os resultados do ensino, são muito artificiais, por isso
precisam de experiência e tempo para formar o caráter. As virtudes morais são adquiridas pelo
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hábito, costume ou experiência. Elas não são inatas, mas as adquirimos pelo exercício com os
outros, com o convívio.
A virtude é, para Aristóteles, como um meio-termo entre dois extremos viciosos, os vícios são
defeitos que se originam por excesso ou por falta. Em nossas condutas, a prática dos vícios se
apresentam como práticas nocivas: “Tanto a deficiência como os excessos de exercício
destroem a força; e da mesma forma, o alimento e a bebida que ultrapassam determinados
limites, tanto para mais como para menos, destroem a saúde” (ARISTÓTELES, 2000, II, 2 –
1104 a).
A prática do meio-termo, da virtude, mostra-se digna de louvor porque para estes atos
necessita-se do bom critério e maturidade. Mas, nem toda ação e nem toda paixão admitem
meio-termo como, por exemplo, na inveja, que é um vício mau em si mesmo. Também não
existe meio-termo nos atos injustos, pois neles não há virtude.
Aristóteles enfatiza que somente através da ação é possível que alguém se torne bom,
por isso, não basta ter o conhecimento da virtude para ser virtuoso. Assim, é pela prática dos
atos justos que se gera o homem justo, e pela prática de atos temperantes que se gera o
homem temperante:
Mas a maioria dos homens não procede assim. Muitos se refugiam
na teoria e pensam que estão sendo filósofos e se tornarão bons dessa
maneira. Nisso se portam como enfermos que escutassem atentamente seus
médicos, mas não fizessem nada do que estes lhe prescrevem
(ARISTÓTELES, 2000, II, 4 - 1105 b).
Perante os outros, a virtude é uma ação voluntária que obtêm louvor. Os atos viciosos,
geralmente são ações involuntárias que ocorrem sob compulsão e ignorância, eles produzem
censura, reprovação, perdão ou piedade. Assim, depende de nós praticarmos atos nobres ou
vis, ou então, depende de nós sermos virtuosos ou viciosos. Lembremos que, para Aristóteles,
o homem é responsável pelos seus atos como na procriação de seus filhos. Fica esclarecido
que as virtudes são voluntárias, pois está em nosso poder o agir ou o não agir de tal maneira.
Nós somos senhores de nossos atos.
1.3 As virtudes éticas.
Aristóteles enumera na Ética a Nicômacos as principais virtudes:
1. A coragem (andréia) é o meio-termo em relação aos sentimentos de medo e de confiança.
2. A liberalidade (eleuteriótes) surge em relação ao dar e receber dinheiro. É o meio-termo
entre o excesso, que é a prodigalidade; e a deficiência da liberalidade, que é a avareza.
3. A magnificência (megaloprépeia) é a virtude relacionada com a riqueza, com o dinheiro
dado em grandes quantias. A magnificência é o meio-termo entre os excessos da
vulgaridade e do mau gosto.
4. O justo orgulho (megalopskhia) é o meio-termo em relação à honra e à desonra. O excesso
é a “vaidade oca”; e a deficiência, é a humildade indébita.
5. A calma (praótes) é o meio-termo em relação à cólera; aquele que excede é o irascível, o
que fica aquém é o pacato.
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6. A veracidade (alétheia) é o meio-termo no tocante à verdade. O exagero desta virtude é a
jactância, o que subestima a veracidade apresenta-se com falsa modéstia.
7. A amabilidade (filía) é a virtude que dispõe o caráter para agradar às pessoas de maneira
devida e amável. O excesso da amabilidade produz o obsequioso, a deficiência converte à
pessoa em mal humorada.
8. A modéstia (aidémôón) é a virtude em relação à moderação de nossas paixões. Aquele que
se excede na modéstia é o acanhado. Aquele que mostra deficiência de modéstia é o
despudorado.
9. A justa indignação, (némesis)- é o meio-termo entre a inveja e o despeito. Esta virtude está
em relação à dor ou prazer pela boa ou má fortuna dos outros. O excesso produz a inveja;
a deficiência é o despeito.
10. A justiça (dikaiosíne) é a disposição de caráter que torna as pessoas propensas a fazer e a
desejar o que é justo. A justiça é a virtude completa e a maior das virtudes. É virtude
completa porque pode exercer sua virtude sobre si e sobre o próximo. Por isso se diz que
somente a justiça, entre todas as virtudes, é o bem do outro, visto que é possível fazer o
que é vantajoso a um outro. O homem somente é justo quando age de maneira voluntária e
consciente.
2. DO ANTROPOCENTRISMO ÉTICO À BIOÉTICA
Como vimos, a concepção de ética tem suas raízes na antiga Grécia. Mas, não podemos deixar
de observar que experimenta também, uma série de influências como o pensamento judeucristão. Este considera como virtude principal o amor fraterno e a preocupação pelos outros:
“Amarás a teu próximo como a ti mesmo”.
Na renascença, a ética ocidental recebe influência dos livres pensadores que pretendem
fundamentá-la racionalmente, sem argumentos religiosos. Na modernidade surge o
Humanismo: o homem é a única criatura racional, ele domina com seu conhecimento, é a
época da exaltação da razão, da projeção do eu racional como o eu dominador: “o saber é
poder, é domínio sobre a natureza e outros povos”.
Este antropocentrismo na ética considera o homem como o centro ou a medida do
Universo. É a teoria finalística que acredita que todas as coisas estão aí para favorecer a vida
humana. O antropocentrismo já se apresentava em algumas reflexões éticas antigas, mas na
ética moderna chegam a seu ápice. Na época contemporânea (herdeira legítima da
modernidade) o antropocentrismo ainda se conserva, tanto que, hoje, a ética que impera em
ocidente permite a agressão a outros homens, outras culturas, animais e meio ambiente, em
nome da felicidade. Contra esta perspectiva surge a Bioética.
Para observar como surge a Bioética no contexto histórico veremos, em primeiro
lugar, algumas das teorias holísticas das éticas antigas e modernas. Em segundo lugar, o
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antropocentrismo da ética e, por último, o surgimento da Bioética sobre as éticas
antropocêntricas.
2.1 O holismo na antigüidade
a) O universo como animal vivo em Platão. É interessante perceber que desde sua
origem as éticas ocidentais refletiram sobre a unidade do mundo (holismo: do grego holos,
totalidade. O homem formando parte da totalidade harmônica do universo). Por exemplo, no
Timeu, Platão explica que o universo era um animal vivo, um sistema, na qual as suas
diferentes partes (uma delas é o homem) formam a totalidade bela e organizada de: “O
mundo, esse animal dotado de alma e de razão” (PLATÃO, 2001, 30c).
O universo é um sistema vivo, nas quais todas as partes aparentemente isoladas (homens,
animais, vegetais e meio ambiente) estão relacionadas formando o todo. O mundo para Platão
é um animal, mas muito diferente dos seres vivos que conhecemos, ele diz:
[O mundo, esse animal vivo] de olhos não necessitava, pois do lado
de fora nada ficou visível; nem de ouvidos, porque fora dele, também, nada
havia para ser percebido. Do mesmo modo, ar respirável não o envolvia, não
necessitando ele, igualmente de nenhum órgão, ou fosse para receber
alimentos, ou para expeli-los (PLATÃO, 2001, 30c).
Platão concebe o mundo como uma totalidade na qual a vida resulta da composição e
coordenação das funções particulares dos órgãos que o compõem. Assim, o homem é parte
integrante do universo, ele deve compreender e respeitar a natureza vivendo em harmonia
com ela.
b) A natureza enquanto paradigma ético. As fábulas são um antecedente da ética por
ilustrar preceitos em forma breve. Estas são narrações que na sua parte final apresentam uma
“moral”, um ensino de normas de conduta. Os personagens das fábulas de Esopo geralmente
são os animais e os fenômenos naturais, por exemplo: a formiga, o leão, o sol e o vento etc. O
objetivo das fábulas é transmitir a ordem da natureza e daí extrair preceitos, normas e regras
de conduta para nossas ações: “sejamos trabalhadores como a formiga e não indisciplinados
como as cigarras”, “conheçamos a astúcia para não cair na predação das raposas” etc.
Na modernidade, Baruch Espinosa identificava Deus com a natureza, ambos possuíam
idêntico estatuto e, por tanto, respeitar a natureza era respeitar Deus. David Hume, o maior
empirista britânico, afirmava que os homens são animais que têm sentidos, paixões e razão.
Para Hume, os animais domésticos, comparados como os humanos, eram como crianças antes
dos dois anos, totalmente dependentes dos pais e com falta da linguagem.
c) A fraternidade universal de São Francisco. Na religião cristã, São Francisco de
Assis (1182-1226) apregoava a irmandade com os animais e a natureza, “irmão sol, irmã lua,
irmão lobo”. O Cântico das Criaturas é um hino da irmandade universal:
Louvado sejas, meu Senhor,
com todas as tuas criaturas,
especialmente o senhor irmão Sol,
que clareia o dia
e com sua luz nos alumia.
Todos estes pensadores: Platão, Esopo, Spinoza, Hume e o místico São Francisco viam que o comportamento humano precisa do
respeito à natureza, aos animais e ao meio ambiente.
2.2 O Antropocentrismo na Ética.
a) A hierarquia humana. Nas éticas antigas, dos gregos e romanos, existiu
antropocentrismo. Eles denominavam “povos bárbaros” aos povos não hegemônicos. Os
gregos e romanos eram sociedades escravocratas, todos os homens não eram iguais, uns
nasciam para ser amos e outros escravos. Na Política, Aristóteles justificava a sociedade
escravocrata afirmando que, “a natureza fez uma hierarquia entre os seres humanos”. Na
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família, por exemplo, encontramos uma ordem “natural”: o homem como o “chefe da
família”; a mulher subordinada ao homem; os filhos, subordinados ao pai e mãe e; os
escravos, subordinados ao homem, a mulher e os filhos.
b) Os animais não pensam, logo não sentem. Na modernidade, René Descartes
(1596-1650) teve uma enorme contribuição na filosofia moderna, fundamentou a razão como
princípio da filosofia. O homem é um ser eminentemente racional: cogito ergo sum “penso
logo existo”. Para Descartes, o homem possuía duas substancias completamente distintas: o
corpo (substancia extensa) e a razão ou espírito ou alma (substancia inextensa).
Segundo o pensamento cartesiano, o homem possui seu fundamento na razão (penso,
logo existo) e não na parte corporal. Os animais e outros seres vivos são meros corpos, são
autômatos ou máquinas desprovidos de razão, o animal não pensa, logo não sente: “E isso não
prova somente que os animais possuem menos razão do que os homens, mas que não possuem
nenhuma razão” (DESCARTES, 2000, p.83). Para provar sua teoria, Descartes maltratava
publicamente aos animais e justificava sua conduta dizendo que, os gritos dos bichos não
eram de dor, eram como o barulho que faz a mesa ao quebrar-se. Mas, esta crueldade com os
animais não é unicamente de Descartes, foi uma característica própria da época mecanicista.
c) O homem senhor da natureza. Ademais de Aristóteles e Descartes como fundadores do
antropocentrismo, podemos mencionar Francis Bacon (1561-1626). No Novum Organum,
Bacon declarou que “Saber é poder”, isto significa que o conhecimento deve demonstrar-se
no domínio. Esta nova filosofia inaugura “a razão instrumental”, contraria à mera razão
contemplativa dos antigos gregos. Bacon nos diz: “Conhecer é poder”, a ciência surge como
instrumento do guerra e de dominação. Pelo lema de Bacon, a natureza está aí, perante nós,
para ser dominada e servir a nossas necessidades e fins.
O antropocentrismo na ética teve em Bacon o fundamento do desrespeito pela natureza, que
justifica as guerras, poluição dos rios e mares, o desmatamento das florestas, a extinção das
espécies, entre outras. A teoria cartesiana servirá para fundamentar aquelas teorias que
carecem de consideração pelos animais: utilização das “cobaias” nos experimentos e outras
formas de desrespeito à vida. Com a hierarquia existente entre os seres humanos, defendida
por Aristóteles, justificou-se a dominação e extermínio dos povos.
2.3 A emergência da Bioética sobre as éticas antropocêntricas
A Bioética estuda os problemas e implicações éticas originadas pelas pesquisas científicas em
biologia e medicina. Ela enfrenta um novo campo de interrogações éticas surgidas pelas
práticas tecnocientíficas em biomedicina: seja em humanos ou nos reinos animal e vegetal. A
Bioética nos diz como devemos agir frente à eutanásia, às técnicas de fecundação artificial, à
clonagem humana, ao mapeamento genético etc.
A Bioética caracteriza-se, em primeiro lugar, pelo diálogo transdisciplinar entre a medicina, a
ética, o direito e a teologia, biologia, educação etc. Ela propicia um espaço de interação onde
as diferentes comunidades de pensamento podem dialogar e discutir as questões produzidas
pelo desenvolvimento biomédico (do aborto à experimentação humana, passando pela terapia
genética e a fecundação artificial).
Em segundo lugar, a Bioética apresenta-se sob a forma de normas que se decidem pelo
consenso das Comissões de Ética. Estas tomam em conta as conseqüências e o contexto
particular de cada situação, respeitando os direitos humanos. As novas tecnologias fizeram
ressurgir temas filosóficos que não consideravam as éticas antropocêntricas: que sentido tem a
vida e qual o papel do homem frente à natureza? Estes questionamentos fizeram repensar a
responsabilidade humana. A razão não privilegia ao homem, pelo contrário lhe dá maior
responsabilidade perante as outras criaturas e à natureza em geral.
Os problemas sociais são também de responsabilidade da Bioética, como destacou o VI
Congresso Mundial de Bioética, realizado em Brasília em 2002, que teve como tema geral
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“Poder e Injustiça”, o que demonstra a enorme preocupação dos bioeticistas pelas
desigualdades políticas, sociais e econômica entre os povos do mundo. As desigualdades
geram centralização de poder nos paises ricos e a injustiça nos paises pobres.
A Bioética, diferentemente das éticas antropocentristas, possui o compromisso e a
responsabilidade com o futuro da humanidade, com os animais, plantas e o meio ambiente,
em fim, a bioética assume responsabilidade com a preservação de nosso planeta. Ademais, a
Bioética distingue-se, das antigas éticas antropocêntricas, por ter efeito normativo nas
biotecnologias.
3. A FILOSOFIA DA BIOÉTICA
A Bioética pode ser entendida como uma amálgama de três concepções filosóficas modernas:
o jusnaturalismo, o princípio da dignidade kantiano e o utilitarismo.
3.1. O jusnaturalismo ou direito natural
O Direito Natural é um direito espontâneo que surge da própria natureza social do homem. É
constituído por um conjunto de princípios de caráter universal, eterno e imutável. São direitos
naturais: reproduzir-se, constituir família, os direitos à vida e à liberdade. Estes direitos
refletem exigências sociais comuns a todos os homens.
O Direito Natural é um direito legítimo, que nasce da própria vida humana, no seio do povo.
O adjetivo natural, aplicado a um conjunto de normas, já evidencia o sentido da expressão,
qual seja, o de preceitos de convivência criados pela própria Natureza e que, portanto,
precederiam às leis escritas ou ao direito positivo que são normas criadas e impostas pelo
Estado (jus positum).
O fundamento do Direito Natural reside na própria natureza humana. Para além da legislação
positiva há um Direito Natural formado por princípios imutáveis e verdadeiros que o homem
descobre graças a sua razão.
3.2 A dignidade humana
Para Immanuel Kant (1724-1804) cada ser humano é dotado de dignidade. A dignidade
humana consiste nas particularidades únicas do ser humano: razão, inteligência, sentimentos e
vontade de decidir. Nossa dignidade está dada pela capacidade de pensar, refletir, inventar e
executar nossos projetos. Nós podemos aprender, memorizar, dominar nossos impulsos, isto
é, somos capazes de dirigir nossa conduta ou comportamento. Também possuímos a
afetividade que nos permite amar a outros seres, comunicar-nos, aderir-nos a valores e,
sobretudo, nos dá consciência de nós mesmos e de nossa existência.
Para Kant, a Dignidade Humana é o conceito primordial que não distingue idade, sexo, etnia,
cor, crença religiosa ou política, situação civil ou econômica. Todos nós queremos ser
tratados como “alguém” e não como “algo”. Ninguém quer ser instrumento de outro. O
homem deve sempre levar uma vida digna e de autodomínio, uma vida de ser humano. Kant
na Fundamentação da Metafísica dos Costumes nos diz: “Age de tal maneira que uses a
humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outra, sempre e
simultaneamente como fim e nunca como um meio” (KANT, 2003, p.59). Em outras palavras,
nunca trates ao outro como meio, mas sim como fim.
3.3. O utilitarismo
O utilitarismo filosófico, de origem britânica, admite como útil tudo o que serve à vida e a sua
conservação, mediante acréscimo de felicidade e bem-estar. Cada ação deve atingir a
felicidade máxima, não só para o agente, mas para o conjunto da humanidade.
Jeremy Bentham (1748-1832), acreditava que a natureza dos homens é regida por dois
princípios: o prazer e a dor. A felicidade é o objetivo de todas nossas ações e, para unir nossa
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felicidade pessoal com a felicidade geral, existe o critério em medir a ação por suas
conseqüências individuais e sociais.
Bentham considerava que o princípio da utilidade pode proporcionar um critério científico
para nossas ações e, com isso, reformar a sociedade. O “cálculo felicíssimo” de Bentham
permite valorizar nossas ações pela quantidade de pessoas afetadas na ação. Assim, se
queremos avaliar uma ação, basta calcular a quantidade de felicidade ou dor que esta
produziu, este cálculo nos permite estabelecer a retribuição justa, segundo Bentham, dando ao
autor da ação a mesma quantidade de prazer ou de dor.
Na Bioética, o utilitarismo serve para calcular os riscos e benefícios nos pacientes, avanços na
biologia e os efeitos das biotecnologias.
4. OS FUNDAMENTOS DA BIOÉTICA
Os fundamentos da Bioética têm natureza prática, são fundamentos úteis, eles são: a não
maleficência, a beneficência, a autonomia e a justiça. A Bioética considera-os em todos os
casos submetidos a sua avaliação. Os fundamentos da Bioética constituem o referencial
teórico para justificar suas normas.
a) O fundamento da não maleficência. Foi extraído do Juramento de Hipócrates e que
realizam ainda hoje os médicos (primum non nocere) “Nunca prejudicarei ou farei mal a
quem quer que seja. A ninguém darei remédio mortal nem conselho que o induza à
destruição”.
A não maleficência indica que devemos evitar causar qualquer dano às pessoas. É dever de
todo cidadão proteger os indivíduos ou a sociedade de todos os danos e evitar expô-los ao
perigo. Na área das ciências da vida, o pesquisador deve garantir que os prejuízos previstos
sejam evitados. Em algumas situações, o fundamento de não maleficência obriga causar o
menor dano aos pacientes e aos sujeitos de uma pesquisa.
b) O fundamento da beneficência. Extraído também do Juramento de Hipócrates:
“Aplicarei a medicina para o bem dos doentes, segundo o saber e minha razão”. Este
fundamento da Bioética significa agir em beneficio dos outros, em fazer o bem de outrem.
Não só fazer o bem, mas fazer o maior bem possível e ao maior número de pessoas. A
Beneficência nos exige, por um lado, evitar causar o mal e, por outro lado, maximizar os
benefícios e minimizar os danos. No contexto médico, é um dever agir no interesse do
paciente.
c) O fundamento da autonomia. Refere-se ao livre arbítrio das pessoas: cada indivíduo é
soberano sobre seu corpo e sua mente. Pela Autonomia exige-se, que os indivíduos devam ser
tratados como agentes autônomos e, em segundo lugar, que os indivíduos sejam protegidos
quando tenham autonomia diminuída (crianças, doentes, anciãos etc).
A pessoa autônoma é capaz de deliberar sobre suas metas pessoais e ser capaz de agir
segundo essas metas. Respeitar a autonomia é considerar as opiniões e escolhas de uma
pessoa, evitando a obstrução de suas ações, a menos que elas sejam claramente prejudiciais
para si mesmo ou para os outros. Duas condições são essenciais à Autonomia: a liberdade e a
ação. A liberdade é a independência do controle de influências e a ação é a capacidade de agir
intencionalmente.
A Autonomia exige igualdade de direitos ao cidadão: educação básica, moradia, segurança,
assistência médica, trabalho, entre outras, que são as condições básicas para o exercício da
cidadania.
d) O fundamento da justiça. Desde Aristóteles a Justiça é considerada a maior das virtudes
porque envolve todas as ações. A Justiça exige que se trate aos seres humanos de maneira
eqüitativa, no sentido de dar a cada qual o que lhe corresponde.
A Justiça é interpretada através da visão da justiça distributiva. Esta é considerada como
sendo a distribuição correta, eqüitativa e apropriada para a convivência na sociedade. Pela
justiça distributiva se trata às pessoas de acordo com suas necessidades e suas capacidades: os
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que precisam mais devem receber mais. A injustiça ocorre quando um benefício que uma
pessoa merece é negado sem uma boa razão.
Nas pesquisas das ciências da vida a Justiça questiona: quem deve receber os benefícios da
pesquisa e quem os riscos?
Podemos afirmar, a maneira de conclusão, que o fundamento da Bioética é a reflexão rigorosa
da atualidade, é uma das partes mais importantes da Filosofia em nosso tempo. A Bioética é a
reflexão sobre a vida, sem pretender chegar a uma discussão concluída ou última. Como a
filosofia, ela tenta encontrar a melhor fundamentação revendo sempre seus argumentos. A
Bioética, como a filosofia, é de caráter problemático e questionador, reflete sobre o futuro da
humanidade, questiona os objetivos e os métodos da ciência, respeita a dignidade e a
integridade dos homens.
A Bioética por seu caráter prático é útil, ainda mais, é indispensável para a toda atividade
profissional que tenha a ver com a vida ou prática social. As normas da Bioética têm que ser
respeitadas por todos.
REFERÊNCIAS
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