O ensino de arte e educação física e suas implicações nos processos avaliativos: rumo às aprendizagens significativas Suzana Maria Barrios Luis* www.tvebrasil.com.br/SALTO/boletins2002/aas/pgm3.htm O texto discute a prática da avaliação formativa, a partir de conceitos como exercício metacognitivo, relação dialógica, aprendizagem significativa, destacando-se o papel do(a) professor(a) na contribuição para a formação cultural e autônoma do(a)s aluno(a)s. Queria ver sem ser vista. Ser vista fingindo não ver. (Cora Coralina, Variação) Começo nosso diálogo sobre o desafio de se construir uma prática avaliativa que efetivamente sirva ao desenvolvimento do processo de formação escolar do(a) aluno(a) e do trabalho pedagógico do(a) professor(a) com esse pequeno trecho de uma poesia de Cora Coralina, que soube tão bem falar da boniteza da vida cotidiana, cotidiana como é a própria experiência de avaliar(se). Como bem falou Sacristán (1998), é imprescindível um esforço por parte da escola, de seus profissionais e de seus alunos para que não separemos os tempos - e eu diria também os espaços, os modos e os sujeitos - de ensinar e de aprender. Segundo ele, nessa separação "a avaliação desintegra-se da aprendizagem, perdendo seu valor formativo no diálogo crítico entre professores/as e alunos/as" (p.339). Essa problemática nos remete ao desafio de tornar ao mesmo tempo a avaliação tão importante e intrínseca à análise, à recondução, à reorganização dos processos de ensinar/aprender, que ela não necessite ser destacada de tais práticas, em todos os sentidos que tal palavra nos mostre. A chamada "cultura da avaliação", atualmente tão presente nos processos educacionais e que, muitas vezes, tem condicionado as práticas curriculares, a organização do trabalho pedagógico escolar e as próprias práticas avaliativas na tentativa de adequá-las às exigências de tal "cultura", muitas vezes tem contribuído para a manutenção de uma avaliação escolar certificativa, classificatória, perdendo cada vez mais seu sentido pedagógico. Por outro lado, essa nossa preocupação caminha no sentido de reafirmar a importância que a avaliação tem como prática central no trabalho pedagógico, mas não por ser mais valiosa que as próprias finalidades desse trabalho, ou por estas finalidades se justificarem apenas pela iminência de serem avaliadas. A importância central da avaliação está em (dever) ser capaz de mediar a prática educativa, contribuindo significativamente para que as suas finalidades sejam alcançadas e, inclusive, possam até ser (re)significadas, mas fazendo-o sem ser vista, sendo vista fingindo não ver. Para que a avaliação ocupe seus espaço/tempo/forma relevantes do ponto de vista reflexivo, dialógico e criador no processo de formação escolar, suas atividades específicas devem ser pertinentes/adequadas e, sobretudo, significativas para não apenas interessarem como também desafiarem os alunos a mostrarem suas aprendizagens construídas e, indo além disso, avançarem no processo de construção do conhecimento (Hadji, 2001). Em outro momento (Luis, 2000), tivemos a oportunidade de discutir a respeito do desafio de se construir uma prática avaliativa significativa, apontando a necessidade de se questionar nossa própria concepção de conhecimento e de saber(es) escolar(es). Além de identificarmos o conhecimento e o saber escolar como social e singularmente construído por cada sujeito, eles devem traduzir uma complexa rede de significados, implicações e inter-relações - culturais, sociais, políticos, ambientais, estéticos, corporais - entre sujeitos, tempos e espaços. O caráter emancipador dessas inter-relações, pelas possibilidades de fomentar a compreensão e a atuação autônomas e críticas pelo sujeito/aluno(a) sobre sua realidade, pressupõe um saber escolar que valorize múltiplas linguagens e de forma articulada, portanto, não apenas as tradicionalmente valorizadas, como a lógico-matemática, a histórica, mas também a artística, a estética, a corporal, a lúdica, assim como o pensamento criativo, intuitivo e inventivo. É nessa concepção mais ampla de saber escolar que inscrevemos algumas reflexões sobre o papel do ensino de Arte e de Educação Física e, conseqüentemente, dos desafios que estes encontram na avaliação escolar. Primeiramente, é importante destacar o compromisso que a formação escolar deve ter com a transmissão das culturas universal e local, entendidas não como acabadas, estáticas e únicas, mas como "memória viva" (Forquin,1993), como também cada uma com sua importância singular na formação do(a) aluno(a). E é nessa perspectiva que circunscrevemos o ensino de Arte e de Educação Física como espaços curriculares fundamentais na formação cultural, tanto estética, criativa, crítica, como lúdica e corporal. Esses espaços curriculares têm sua importância não só por trazer para o mundo da escola outras referências de pensar, agir e criar, ampliando as linguagens e saberes nela valorizados, mas, sobretudo, quando efetivamente se constituem referências através das quais os mais diversos campos do saber escolar se utilizam. Ou seja, como não seria significativa a aprendizagem da linguagem matemática caso as linguagens artística e corporal, em toda a sua complexidade, fossem utilizadas como referências de pensamento e para a elaboração das atividades de aprendizagem? Esses espaços curriculares, desde que integrados ao projeto político-pedagógico da escola (Taffarel et al., 2000), podem levar os professores(as) a "descobrir[em] aspectos capazes de estabelecer (...) as pontes e diálogos que garantam aproximações entre as culturas dos jovens [crianças e adultos] e a da escola [entre o universal e o local]. Entre o conhecimento racional e contemplativo e a ação, a percepção e a emoção" (Kenski, 2000: 127). Essas pontes e diálogos - essa articulação de diferentes formas de pensar e ver o mundo - são passos fundamentais para uma formação escolar significativa. Apontar para o papel fundamental da Arte e da Educação Física e de sua relação com outras áreas de conhecimento, implica refletirmos sobre o papel de uma avaliação escolar que legitime, que garanta e que aprimore a relevância dessas formas de conhecimento. Assim, temos a necessidade de que "a avaliação não seja vista como ponto de chegada, mas como ponto de partida para a construção de novas relações e rede de significados. Essa concepção pressupõe um processo Equipe de Educação Infanto-Juvenil – 2° segmento – Formação continuada – Tema: Avaliação Página 1/3 dinâmico de aprendizagem sempre em construção, o que nega a fragmentação, seja do ato de aprender, seja da avaliação" (Luis, 2000:36). Como ação intrínseca ao processo complexo de ensinar e aprender e, especialmente pela vinculação que o ensino de Arte e de Educação Física tem com a complexidade da formação humana, cultural, artística, corporal, a avaliação precisa superar a prática da cópia, do treino, da memorização, da reprodução de tarefas. Capacidade de compreensão crítica, de criação autônoma, de desenvolvimento do senso estético, de expressão corporal, de ludicidade, de articulação de idéias, de relacionamento inter-pessoal, de apreciação artística, de espírito de coletividade, entre outras, são práticas que privilegiam tanto o processo de produção de sentidos (aprendizagem significativa) da experiência de conhecer, ao desenvolverem a capacidade de o sujeito situar-se ativamente no mundo, como sua auto-responsabilização por sua formação. Esses princípios acima levantados nos remetem ao desafio duplo de criar momentos e atividades de aprendizagem e avaliação capazes de atribuir sentido às práticas curriculares e de formar aluno(a)s capazes de controlarem, analisarem e tomarem decisões sobre o próprio processo de aprendizagem. Isso é o que tem sido chamado de exercício de metacognição (Darsie, 1995; Perrenoud, 1998; Hadji, 2001), ou seja, a capacidade de explicitar formas e especificidades de seus esquemas de pensamento, de analisar suas possibilidades, dificuldades, suas variadas formas de aprender/pensar em relação a contextos, professores e saberes diferentes e de conceitualizar algumas propriedades mais gerais que caracterizam suas formas de aprender, independentemente de contextos e saberes diferentes (Wolfs, 2000). O exercício de metacognição está circunscrito na capacidade de auto-avaliar-se, mas não no sentido que comumente é dado à auto-avaliação pelo(a) aluno(a), de dizer-se capaz ou não de algo ou de atribuir-se uma menção, mas no sentido de tomar consciência de seus próprios percursos de aprendizagem "com o fim de elaborar gestos de natureza corretiva, com o fim de ajustar-se" (Scallon, 2000). Assim, além de ser uma experiência comprometida com a construção da autonomia do sujeito, o exercício de metacognição está intimamente ligado à avaliação formativa, à avaliação que tem o compromisso com a garantia da aprendizagem e do sucesso do(a) aluno(a). Dessa forma, quanto mais nosso(a)s aluno(a)s forem levados a explicitarem suas necessidades, suas dificuldades, suas características e formas de aprender/estudar, tanto mais nos apontarão e a si próprios pistas de ação para superarem problemas e/ou avançarem e investirem naquilo que conseguem fazer mais facilmente. Nesse sentido, precisamos reconhecer que nosso trabalho pedagógico apresenta práticas avaliativas cotidianas que estão permeadas de múltiplos aspectos, em função da própria complexidade do ensinar e aprender, as quais constituem o que se costuma chamar de avaliação informal. Essa avaliação informal, superando o temor pela subjetividade, precisa ser cada vez mais valorizada, tornando-se seus critérios cada vez mais claros e as práticas de observação mais sistemáticas e abrangentes, a fim de que se constituam como fontes legítimas de decisões para nós professore(a)s e de reflexão metacognitiva para nossos aluno(a)s. Hadji (2001) nos fala da importância do "agir observando", um agir capaz de interpretar de forma pertinente os dados que, através de atividades, questionamentos, os aluno(a)s indicam sobre os seus processos de aprendizagem, implicando uma análise dos porquês que explicam o não desempenho, as hipóteses, a falta de atenção e mesmo o bom desempenho. Do contrário, corre-se o risco de a avaliação não enxergar as reais necessidades do(a) aluno(a), uma vez que a fecundidade da avaliação está em ser capaz de interpretar de forma crítico-reflexiva aquilo que muitos indicadores (exercícios, atividades, atitudes, etc), na maioria das vezes, apenas insinuam. A avaliação tem que ser um processo de "escuta sensível", como nos diz Barbier, na qual há um processo de implicação por parte do(a) professor(a), ou seja, na qual há uma necessidade de nós professore(a)s nos vermos implicado(a)s naquilo que o(a) aluno(a) faz, diz, aprende, sente e mostra através da avaliação, bem como a necessidade desta mesma estar implicada no processo de ensinar e aprender. Contribuindo um pouco mais para a nossa reflexão, Hadji (idem), apoiando-se em Barlow (1992), afirma que uma avaliação só será verdadeiramente formativa se houver uma comunicação útil, um "esforço para compreender melhor como as coisas se passam" (p.109). Aprofundando essa idéia nós afirmaríamos, apoiados em Freire, que essa comunicação útil só é possível numa relação dialógica entre professor(a) e aluno(a); primeiro porque ela permeia toda a relação pedagógica, segundo porque não há a preocupação única de verificar o rendimento escolar, mas de construir um diálogo sobre conhecimento, aprendizagem e experiência sociocultural. Essa relação dialógica tem implicações claras no exercício de metacognição por parte do aluno, ao ajudá-lo a refletir sem receios e sem autoprotecionismos sobre sua aprendizagem. Além disso, numa relação dialógica, há uma superação da lógica classificatória e punitiva da avaliação, na qual a expectativa que o professor cria no processo avaliativo é a de fazer/ajudar/levar o(a) aluno(a) a aprender significativamente, o que contribui decisivamente para modificar a relação que esse(a) aluno(a) estabelece com o saber e com a própria avaliação. Essa relação com o saber passa de uma finalidade mercadológica - "eu tenho que estudar/aprender para ter boa nota" - para uma finalidade sociocultural e pessoal - "eu tenho necessidade, eu quero, eu gosto de saber sobre isso". Ainda para Hadji (idem), o momento do "feedback", ou seja, dessa comunicação entre professor(a) e aluno(a) deve ser institucionalizado, deve participar sistematicamente do processo avaliativo, permitindo "captar as reações dos alunos, suas questões sobre o sentido e o alcance do que foi dito pelo avaliador, seus pedidos de explicação sobre as apreciações e as notas" (p.110). E toda comunicação deve ser feita entre professor(a) e aluno(a), sujeito único, com necessidades e Equipe de Educação Infanto-Juvenil – 2° segmento – Formação continuada – Tema: Avaliação Página 2/3 qualidades específicas, uma vez que "a informação diferenciada dá a chance de que esse sujeito encontre julgamentos positivos sobre si, em alguma qualidade, que o motivem e valorizem seu esforço" (Sacristán, 1998: 315). Também a comunicação escrita pode e deve ser coerente com esses princípios formativos, no sentido de estabelecer um diálogo com o(a) aluno(a) e lhe dar pistas para reconhecer seus avanços e dificuldades. Os próprios registros formais dos resultados e da análise dos dados da avaliação podem corresponder à necessidade de avaliação processual. Numa perspectiva de aprendizagem como processo contínuo e de sistematizações em espiral, bem como de uma avaliação formativa, dinâmica, nenhum aluno é bom/ruim ou tem dificuldades, mas está bem ou mal, o que significa dizer duas coisas: uma, que qualquer interpretação do estado - provisório - do(a) aluno(a) implica uma tomada de decisão para a superação/avanço; e dois, que nenhum registro pode ser encarado de forma estática, sendo permitido e, sobretudo, necessário que ele traduza as práticas de ensinar e de aprender em sua dinamicidade. Diante desses elementos, apenas introdutórios, que discutimos sobre a importância da avaliação formativa, não poderíamos deixar de citar um instrumento de avaliação que é capaz de reunir qualidades como ser processual, dinâmico, trabalhar múltiplas relações de saberes e proporcionar elementos para o exercício metacognitivo e o diálogo professor(a)-aluno(a), além de possibilitar uma construção particular por parte do sujeito da aprendizagem: o porta-fólio. De acordo com Villas-Boas (2000), o porta-fólio é um instrumento privilegiado para o "desenvolvimento de processos ativos (seleção, comparação, auto-avaliação, parceria, estabelecimento de objetivos), mais do que produtos, o que constitui um dos seus pontos fortes" (p.5). Todo tipo de produção - escrita (descritiva, analítica, poética, etc.), pictórica, fotográfica, em grupo ou individual - pode fazer parte da constituição de um porta-fólio, que deve apresentar a sistematização do conhecimento pelo aluno de forma cumulativa e dinâmica, além de atender aos desejos e necessidades de complementação por cada aluno(a). A qualidade de ser cumulativa pressupõe a necessidade de acompanhar o itinerário do(a) aluno(a) em seus avanços e suas escolhas e a de ser dinâmica permite e impõe a necessidade de retomadas, idas e vindas sobre o que já se sabe e o que ainda não. E é aqui, em especial, o ponto onde se situa a característica mais especial do porta-fólio na contribuição para a formação de sujeitos críticos e autônomos: possibilitar o exercício metacognitivo, o controle sobre sua aprendizagem. Referências Bibliográficas: BARBIER, René. Abordagem Transversal: a escuta sensível em ciências humanas. Trad. Rogério Córdova. (mimeo.). DARSIE, Maria Marta P. 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