o céu se rasga, rasga-se o véu do templo: a nova - PUC-Rio

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Departamento de Teologia
O CÉU SE RASGA, RASGA-SE O VÉU DO TEMPLO:
A NOVA PROPOSTA RELIGIOSA DE JESUS
Aluna: Lídia Maria Carneiro de Resende
Orientador: Geraldo Dondici Vieira
Introdução
Muitos estudos são feitos, recentemente, sobre vários textos da Sagrada Escritura. A
importância destes está nas diferentes possibilidades de abordagem que facilitam a
compreensão e abrem novos caminhos para a hermenêutica.
Será trabalhado um texto de um dos livros do Segundo Testamento, mais
precisamente, de Marcos, ou seja, um dos Evangelhos.
Marcos foi o primeiro a compor seu escrito, afirma a maioria dos pesquisadores do
Segundo Testamento. Seus escritos e uma “fonte Q” (do alemão Quelle - “fonte”) – com ditos
e discursos de Jesus – dão origem a muitos textos de Mateus e Lucas, assim pensam vários
estudiosos dos Evangelhos.
A chamada teoria das duas fontes pode ser apresentada conforme o esquema gráfico a
seguir:
Mc
Mt
Fonte Q
Lc
O Evangelho atribuído a Marcos apresenta uma composição literária rica em
simbolismo. Analisá-lo, cuidadosamente, é um caminho para traduzi-lo para nossos dias e
facilitar a compreensão de sua mensagem para nós hoje.
Nossa pesquisa fundamenta-se nas citações 1,10 e 15,38 de Marcos. Vamos propor
uma possível compreensão do verbo σχίζω (rasgar), presente nos versículos citados e pode-se
considerar uma chave de leitura para demonstrar quem é Jesus no Evangelho de Marcos.
Objetivos
Demonstrar que o movimento “rasgar” (σχίζω) é uma chave de leitura que
abre e fecha o Evangelho de Marcos, um simbolismo que ajuda a
compreender a proposta religiosa de Jesus nesse Evangelho.
Aprofundar uma dinâmica literária do Evangelho de Marcos, que é a da
inclusão.
Metodologia
Numa primeira fase, as unidades serão estudadas separadamente, fazendo-se, de cada
uma a delimitação – com a colocação e comentário das perícopes que as antecedem e das
posteriores, e uma análise da própria unidade dentro do seu contexto. Será feito, também, o
estudo lexicográfico das unidades e seu aparato crítico.
Esta etapa é seguida pela análise comparativa das duas unidades, buscando uma
conexão pelo verbo principal: rasgar.
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O estudo aprofundado do verbo é imprescindível para a demonstração dessa
possibilidade entre as duas unidades, que possibilita um entendimento bem significativo do
Evangelho atribuído a Marcos.
Não se omite um estudo minucioso de elementos simbólicos presentes nas unidades.
Faz-se um comentário sobre os céus de Mc 1,10 e a necessária distinção dos dois véus
do Templo (Mc 15,38) para maior esclarecimento e maior compreensão do que se quer
ressaltar.
Trabalha-se ainda um aprofundamento dos sentidos literário e teológico do texto.
A apresentação do conteúdo do Evangelho de Marcos presente entre as duas unidades
e que ajuda a revelar a nova proposta religiosa de Jesus é, também, de muita importância na
pesquisa.
As unidades escolhidas
São duas as unidades de nosso trabalho que serão analisadas num primeiro momento
separadamente: Mc 1,10 e Mc 15,38.
A. Mc 1,10
É a unidade que relata a manifestação escatológica da obra salvífica de Deus no
ministério de Jesus, o Ungido pelo Espírito Santo. [1]
O texto grego de Marcos 1,10: kai. euvqu.j avnabai,nwn evk tou/ u[datoj ei=den scizome,nouj
tou.j ouvranou.j kai. to. pneu/ma w`j peristera.n katabai/non eivj auvto,n\ é traduzido ao
Português, segundo a Bíblia de Jerusalém por: “E, logo ao subir da água, ele viu os céus se
rasgando e o Espírito, como uma pomba, descer até ele”.[2]
Delimitação da perícope
Insere-se entre a apresentação de Jesus, vindo da Galiléia, para ser batizado por João
no Jordão e o relato sobre a voz que vem dos céus manifestando ser Ele o Filho amado.[3]
Perícope anterior
Para entender melhor nossa unidade, estendemos mais ao texto que a antecede.
Trabalhamos a partir da pregação de João Batista, situada em Marcos logo depois do título do
seu Evangelho, em que cita textos proféticos que se referem ao Precursor.
Em sua pregação, João proclama “um batismo de arrependimento para a remissão dos
pecados”.[4]
O lugar de anúncio de João é o deserto da Judéia e realiza o batismo no rio Jordão,
para onde se dirigem muitas pessoas: de “toda a região da Judéia e todos os habitantes de
Jerusalém”. [5]
O evangelista descreve o Batista, colocando em relevo a forma como se vestia e o que
comia. João começa a anunciar um novo tema. Fala não mais de uma atitude que seus
contemporâneos deveriam tomar, mas anuncia uma pessoa. Seu anúncio é de alguém de quem
ele é o precursor, do qual não é digno de desatar-lhe as sandálias, aquele que “batizará com o
Espírito Santo”. (Mc 1,8)
Ainda paira o mistério sobre aquele que João anunciava, até “que Jesus veio de
Nazaré” (Mc 1,9) e já não há dúvida: É ele! Deus mesmo se pronuncia a seu favor.
O sentido desse relato não consiste em descrever a sagração de Jesus como Messias,
___________________
1 SCHNACKENBURG, Rudolf. O Evangelho Segundo Marcos. Petrópolis: Vozes, 1983, p.25.
2 Bíblia de Jerusalém, Nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2002.
3 Cf Mc 1, 9.11
4 Cf Mc 1,4
5 Cf. Mc 1,5
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e muito menos em explicar a origem de sua consciência messiânica, mas em apresentá-lo
como o esperado das nações, aquele em quem Deus se faz presente.
Contexto
A unidade se insere no contexto do Batismo de Jesus, logo depois da pregação de João
Batista, que anuncia a sua chegada. O evangelista faz uma introdução ao momento,
enfatizando que Jesus vem para ser batizado por João, e sob este signo dá início à sua vida
pública. O batismo de Jesus inicia um novo êxodo. Jesus é a consumação da revelação que se
inicia no Primeiro Testamento. Ali foi transmitida por muitos intermediários, sobretudo os
profetas. João é o profeta que encerra o Primeiro Testamento e inaugura o Segundo,
quando apresenta ao próprio Messias, por quem “o céu se rasga”. Por Ele, o mistério de
Deus já não é apenas um conhecimento de fé, mas uma visão direta. Jesus é, ao mesmo
tempo, o autor e o objeto da promessa. Seu batismo por João inicia seu ministério como
Messias. Ao sair Jesus da água se tem a confirmação de que Ele é o enviado pelo Pai.
O batismo de Jesus por João não simplesmente O colocou no movimento do Batista.
Aconteceu algo muito maior: “[...]ele viu os céus se rasgando, e o Espírito, como uma pomba,
descer até ele”. O Espírito do Divino desce sobre o homem de Nazaré, que tem a natureza de
Deus; é a própria presença de Deus entre os homens e mulheres.
Nesta cena do batismo, Jesus tem uma carta de apresentação: ele não é somente um
homem da Galiléia, lugar de onde não se pode esperar nada de bom. Jesus é o Filho de Deus
e, no seu batismo, se compreende que Ele tem uma grande e importante missão a cumprir.
Perícope posterior
Na cena do Batismo, ainda se escuta a voz vinda do céu: “Tu és o meu Filho amado,
em ti me comprazo”. Dela fala Gerard Stephen Sloyan:
A voz celeste é uma forma comum de narração, principalmente na vida
dos grandes homens de Israel, para indicar uma revelação ou o sentido
de missão confiada a alguém. O conteúdo destas palavras é uma série de
alusões ao Antigo Testamento a fim de mostrar o sentido do messianismo
de Jesus. Ele é o “amado” semelhante a Isaque (Gn 22,12.16). O Filho
de que fala o Sl 2,7 e o Servo anunciado por Is 42,1-2 .[6]
Antes de iniciar a missão, Jesus se retira para o deserto. Era um costume entre seu
povo que se retirassem aí os escolhidos para uma missão, como em preparação a esta. O
deserto tem uma importância muito grande como lugar da experiência de Deus, do encontro
profundo com Ele. Para lá Jesus é conduzido pelo Espírito e é tentado por Satanás. O Espírito
que Jesus recebeu no batismo o acompanha, e por Ele vence as tentações, tem forças de
permanecer quarenta dias entre animais selvagens, ou seja, resistindo às forças do mal, à
desolação. A presença de animais selvagens pode evocar também ao livro do profeta Isaías
que coloca seu entendimento sobre o reinado do Messias, onde haverá paz e harmonia entre
todas as criaturas. Eis o texto:
Então o lobo habitará com o cordeiro,
e o leopardo se deitará com o cabrito.
O bezerro, o leãozinho e o gordo novilho andarão juntos
e um menino pequeno os guiará.
A vaca e o urso pastarão juntos,
juntas se deitarão as suas crias.
O leão se alimentará de forragem como o boi.
____________________
6 SLOYAN, Gerard S. Evangelho de Marcos. São Paulo: Edições Paulinas, 1975, p.16
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A criança de peito poderá brincar junto à cova da áspide,
a criança pequena porá a mão na cova da víbora.[7]
Retomemos o tema do deserto, abordado por Marcos. Este texto evoca outras
experiências de deserto e de retiro: o povo que passou quarenta anos no deserto, viveu e
venceu muitas dificuldades, teve muitas quedas, mas também fez a mais linda experiência do
amor fiel do Deus libertador, misericordioso e companheiro de caminhada. (Cf. Sl 95,8-10 ;
Dt 32,10). O profeta Elias também caminhou pelo deserto primeiro um dia; logo, “quarenta
dias e quarenta noites”.[8] Há ainda outros textos alusivos como: Os 2,16 e Gal 1,17.
Isaías 35,1s usa a imagem do deserto que floresce para falar do júbilo do povo
redimido.
Análise lexicográfica da perícope
Kai. euvqu.j avnabai,nwn evk tou/ u[datoj ei=den scizome,nouj tou.j
peristera.n katabai/non eivj auvt o,n
Texto
Classe gramatical
Kai.
Conjunção coordenada
euvqu.j
Advérbio
avnabai,nwn Verbo particípio presente ativo masculino
singular
evk
Preposição genitiva
tou/
Artigo definido genitivo neutro singular
u[datoj
Nome genitivo neutro singular comum
ei=den
Verbo indicativo aoristo ativo 3ª. pessoa
singular
scizome,nouj Verbo particípio presente passive acusativo
masculino plural
tou.j
Artigo definido acusativo masculino plural
ouvranou.j
Nome acusativo masculino plural
kai.
Conjunção coordenada
to.
Artigo definido acusativo neutro singular
pneu/ma
Nome acusativo neutro singular
w`j
Conjunção subordinada
peristera.n Nome acusativo feminino singular
katabai/non Verbo particípio presente ativo acusativo
neutro singular
eivj
Preposição acusativa
auvt o,n\
Pronome acusativo masculino 3ª. pessoa do
singular
ouvranou.j kai. to. pneu/ma w`j
Tradução
E
logo
subindo
de
a
água
viu
rasgando-se
os
céus
e
o
Espírito
como
uma pomba
descendo
sobre
ele
Análise do aparato crítico
Segundo Nestle-Aland, Novo Testamento Grego, na primeira perícope – Mc 1,10, a
expressão εις αυτόν (“sobre ele”), no versículo 10c, vem precedida do sinal Þ, indicando que
neste ponto há uma inclusão, isto é, uma inserção de palavras em um ou mais manuscritos.
Conforme pode conferir-se em Jo 1,33, a expressão apresenta a variante de και µενον (“e
____________________
7 Is 11, 6-8
8 cf. 1Rs 19,4a.8b
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permanecer"), atestada pelas seguintes testemunhas segundo os tipos de manuscritos: Uncial ‫א‬
(alef ), do século V; W, um dos textos bem considerados do Segundo Testamento, também
datado do século V e pelo minúsculo 33. A variante é testemunhada ainda por poucos
manuscritos latinos que divergem do texto majoritário e por uma parte dos manuscritos da
versão boáirica.
A segunda variante está sinalizada por ┌, indicando uma substituição simples de εις
(αυτόν) por επ (que também significa “sobre”), testemunhada pelo uncial ‫ א‬, vários textos
do Segundo Testamento, presentes nos outros três evangelistas, nos Atos dos Apóstolos,
várias Epístolas, manuscritos de versões latinas, pela família 1 da versão de Antioquia, pelo
minúsculo 33, pelo texto majoritário ou massorético e os manuscritos da versão siríaca.
Uma terceira variante sugere o próprio texto a expressão εις αυτόν, testemunhada por
escritos proto-alexandrinos, pelos unciais ί maiúsculos presentes em vários textos
dos Evangelhos, Atos dos Apóstolos e Epístolas, pela família do minúsculo 13, número 2427,
(datado aproximadamente do século XIV) e poucos outros manuscritos (de vários séculos)
que divergem do texto majoritário.
B. Mc 15,38
A mesma versão: Bíblia de Jerusalém nos traduz Kai. to. katape,tasma tou/ naou/
evsci,sqh eivj du,o avpV a;nwqen e[wj ka,twÅ (Mc 15,38) por “E o véu do Santuário se rasgou em
duas partes, de cima a baixo”.
Delimitação da perícope
Situada entre o acontecimento da morte de Jesus e o que um centurião diz a respeito
dele diante da maneira como morre.
Perícope anterior
Antes de Mc 15,38, nos é narrado pelo evangelista o último momento de Jesus na
cruz,quando dá um grande grito e expira (Mc 15,37). Diferindo de Lucas e assemelhando-se
mais a Mateus, Marcos não coloca aos leitores o conteúdo do grito de Jesus. Cabe a quem
fez uma caminhada com Ele ao longo do Evangelho até este momento, entender que grito é
este de Jesus.
Pode ser o grito do inocente que sofre pelos outros, para que aqueles por quem sofre –
que vivem aflitos, - para que por seu sofrimento sejam aliviados de sua aflição. É o brado
por libertação de todo sofrimento, dor e agonia; o grito de entrega total em favor da
humanidade. Jesus solta o grito de dor com todo homem e mulher que sofre e, como o povo
de Deus que vivia a aflição e a escravidão no Egito clamou e foi ouvido (Ex 3,7), grita por
mais justiça e pelo fim da opressão.
Jesus dá seu último grito e expira. É o total dom de si. Já não é possível entregar mais,
pois “não existe amor maior que dar a vida ” (cf. Jo 15,13).
Contexto
A unidade (15,38) está situada no contexto da morte de Jesus, onde a cruz é o lugar
escolhido, a forma de Deus mostrar um ato grandioso por aparente insignificância e fraqueza.
Mais ainda: Cristo crucificado é um “escândalo para os judeus e loucura para os gentios”.[9]
Pelo sangue derramado na cruz, Cristo nos resgatou [10], alcançou a reconciliação de
todo gênero humano e a pacificação de todo o universo. (cf. Cl 1,20)
John L. Mckenzie fala da “morte salvífica”, já conhecida na filosofia e na poesia dos
gregos. Encontramos na lenda e na história gregas relatos de homens que morreram
____________________
9 Cf. 1Cor 1,23
10 Cf. 1Cor 6,1;7,23; 1Pd 1,18-19
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defendendo seu povo, sua cidade. Não é difícil recordar este tema nos poemas de Homero,
que “têm uma mística de morte e de batalha que refletem a têmpera da idade heróica. Sente-se
esta mesma mística no Arco do Triunfo, no monumento de guerra de Edinburgh ou no
cemitério de Gettysburg”.[11]
Para a literatura grega, e, sobretudo, para a filosofia, tem muita importância a morte
de Sócrates, considerada injusta, sobretudo para os filósofos como Platão, que a conta de
forma comovedora. É a morte de um filósofo que é exemplo porque se conserva com o
espírito sereno diante de uma sentença injusta que lhe é aplicada.
Entre os romanos também há lendas de mortes heróicas. Pouco se entrevê desse
heroísmo no Primeiro Testamento, a não ser em Sansão.
A morte de Jesus só pode ser entendida dentro de sua missão de libertação numa
perspectiva de fé. Do contrário, é desprezível e sem valor; é a redução do homem à
decadência e ao fracasso.
Perícope posterior
O texto posterior à narrativa da morte de Jesus refere-se às palavras do oficial romano
que havia visto Jesus expirar e disse: “Verdadeiramente este homem era filho de Deus!” [12]
Quem se encontra de pé junto da cruz de Jesus é um pagão. Ele ouve o seu grito.
Vê como expira. Diante do fato, ele reconhece ser Jesus (Verdadeiramente!) filho de Deus.
Esta afirmação nos remete ao início do Evangelho de Marcos, onde Filho de Deus é o
título dado a Jesus (desde o começo). Por ela Marcos intitula seu escrito evangelístico. Deve
ser a profissão de fé de quem conheceu a Jesus, experimentou uma convivência com Ele, O
acompanhou de perto. É certo que ela revela a verdadeira identidade de Jesus. Mas, por que
Marcos a coloca justamente na boca de um gentio, de um oficial romano?
Há certamente várias interpretações que podem ser dadas como resposta a essa
indagação. Conforme o aparato crítico da Bíblia de Jerusalém, temos que:
Embora o oficial romano não tivesse possibilidade de dar a essa confissão todo
o sentido que nós lhe atribuímos, Marcos vê nela, certamente, o reconhecimento
por um pagão da personalidade sobre-humana de Jesus.[13]
Para Gerard S. Sloyan, diante da proclamação da morte de Jesus todos os gentios
devem chegar a um ato de fé, a ter essa mesma atitude do centurião.[14]
Análise do aparato crítico
Trazemos o texto grego de Mc 15,38 para facilitar a compreensão de seu aparato
crítico: Kai. to. katape,tasma tou/ naou/ evsci,sqh eivj du,o Þ avpV a;nwqen e[wj ka,twÅ
Nesta versão de Nestlé-Aland notamos a presença de Þ, símbolo que indica que há
uma inclusão de avpV (preposição genitiva de) em merh que também tem o sentido de sair de
uma parte até chegar a outra. Tal variante tem o testemunho nos Atos dos Apóstolos, algumas
Epístolas, na versão latina (parcial) e em vários manuscritos da vulgata.
Há também a presença do termo em textos do Primeiro Testamento, tanto nos livros da
Torah (Pentateuco), na literatura profética e na obra deuteronomista de história. Não se
encontrou registros de que ocorra na literatura sapiencial.
___________________
11 MCKENZIE, John L. Os grandes temas do Novo Testamento. Petrópolis: Editora Vozes, 1972,
p. 111.
12 Cf. Mc 15, 39
13 Nota x, referente a Mc 15,39 de A Bíblia de Jerusalém, Nova edição, revista. São Paulo: Edições
Paulinas, 1992.
14 Cf. SLOYAN Gerard S. Evangelho de Marcos. Edições Paulinas, São Paulo, 1975, p. 99
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Com essa análise, nos fica a pergunta: Há diferença entre as apresentações?
Podemos dizer que se trata de uma mudança de linguagem, uma mudança entre as
apresentações, conservando, porém, o seu sentido.
Essa relação entre os dois termos, encontrada em vários textos, amplia-se e se
clarifica em cada um deles.
Análise lexicográfica da perícope
Kai. to. katape,tasma tou/ naou/ evsci,sqh eivj du,o avpV a;nwqen e[wj ka,twÅ
Texto
Kai.
to.
katape,tasma
tou/
naou/
Classe gramatical
Conjunção coordenada
Artigo definido nominativo
neutro singular
Nome nominativo neutro
singular comum
Artigo definido genitivo
masculino singular
Nome genitivo masculino
singular comum
Tradução
E
o
véu
do
Santuário
evsci,sqh
Verbo indicativo aoristo rasgou-se
passivo 3ª. pessoa do singular
eivj
du,o
Preposição acusativa
Adjetivo cardinal acusativo
neutro plural de grau
Preposição genitiva
Advérbio
Preposição genitiva
Advérbio
avpV
a;nwqen
e[wj
ka,tw
em
dois
de
cima
até
embaixo
Análise comparativa entre Mc 1,10 e Mc 15, 38
Cada uma das unidades nos leva ao encontro de acontecimentos extraordinários se
tomadas simplesmente de forma literal. Contudo, compreender o sentido, o que está por trás
das palavras que os narram é fundamental. Tratamos de comparar as duas perícopes,
verificando a possibilidade de uma inclusão entre elas a partir do verbo σχίζω (rasgar).
Tanto no início como no final de seu Evangelho, Marcos faz uso de σχίζω (rasgar). A
primeira vez o texto nos traz o verbo no particípio presente (scizome,nouj) e a segunda no
aoristo (evsci,sqh).
Da mesma forma que no contexto do batismo de Jesus, no contexto de sua morte de
cruz, o verbo, na forma literal, está marcando um acontecimento extraordinário: foram vistos
“rasgando-se os céus”e “rasgou-se o véu do Templo”. Há uma conexão entre batismo e morte.
O batismo é também uma morte para a vida oculta e o surgimento para a vida pública. A
morte de cruz antecede o evento mais importante e nunca visto, que é a ressurreição.
No batismo, quando se rasgam os céus, manifesta-se aos homens e mulheres que Deus
está entre eles, que pela presença de Jesus se faz humano, humilde e servidor. Tendo-se
rasgado o véu do Templo, a face de Deus se mostra a todos. Já não há quem ou o que O
esconda. O templo vivo de Deus, cujo corpo foi rasgado na cruz é, à vista de todos, um sinal
luminoso, sem sombra de dúvida, de que não há nada maior que o amor e a vida que por Ele
Deus dá a toda a humanidade.
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Depois de rasgarem-se os céus, de lá se ouviu uma voz: “Tu és o meu Filho amado ...”
Quando Jesus grita e expira e se rasga o véu do Templo de cima a baixo, uma voz da
terra afirma: “Verdadeiramente este homem era filho de Deus!”. A voz vinda dos céus foi
ouvida, desceu à terra. Da terra agora sobe a resposta do homem, a afirmação convicta
(Verdadeiramente) de que a mensagem chegou até ele. Há ainda um caminho a percorrer.
Dizer que Jesus é filho de Deus não é o mesmo que afirmar que Ele é O Filho de Deus.
Porém, rasgaram-se os céus, rasgou-se o véu do Templo; estão abertas as possibilidades para
a compreensão de Jesus como a plenitude da revelação do Pai.
O verbo σχίζω (“rasgar”)
Em σχίζω (rasgar) encontramos nossa pesquisa no ponto mais alto, abarcando toda a
tentativa de compreensão do Evangelho de Marcos que queremos oferecer.
Este verbo principal dos dois versículos é encontrado em outros textos da Escritura
(textos bíblicos), bem como na literatura antiga, conforme especificamos a seguir:
A. No grego profano
Verifica-se σχίζω no grego profano quase sempre em sentido próprio: rachar
(lenha),
fender (a terra a rocha), despedaçar (o navio no mar). Colocamos como exemplo um dos
textos de Homero: ίσχισε δώδεχα µοίραί, “cortou-se em doze partes”(Hom., hymn. Merc.
128). Algumas vezes em sentido atenuado: separar (as águas do rio), dividir (o exército),
relacionado ao corpo que se subdivide em membros ou a bifurcação da estrada. É aplicado
raramente em sentido metafórico, referindo-se à diversidade de opiniões (Hdt. 7,219,2).
B. Na LXX
Na Septuaginta encontramos o verbo com o mesmo sentido em Is 36,22 e 37,1.
Algumas vezes esta expressão vem colocada com outro termo grego ίήγνυµι. É relacionado
também o similar διαρήσσω - “rasgar” (as vestes) de Gn 37,34, bem como 2Sm 1,11 e Jo
1,20, onde é usado no aoristo (διίρρηξεν). Portanto outra versão grega usa σχίζω e ίήγνυµι
pode ser uma tradução do hebraico bq‘ pela LXX. Convém mostrar que o equivalente
hebraico predomina quase sempre em sentido forte: romper, abrir, dividir, separar
violentamente. Podemos verificá-lo em diversos textos, como: no contexto salvífico de Ex
14,21, quando Deus opera por meio de Moisés fendendo as águas do Mar de Canes; na
profecia de Isaías 48,21, que relembra que o Senhor fendeu a rocha e fluíram as águas; em Zc
14,4 que fala do tempo em que o Monte das Oliveiras se partirá ao meio. Ocorre ainda uma
menção ao verbo (com κατα σχίζω) em 1Mc 1,56 que relata que eram rasgados os livros da
lei e ίπoσχίζωµαι (“Apartai-vos desta comunidade”), em Nm 16,21. Há, portanto, vários
termos relacionados ao verbo σχίζω.
C. No Judaísmo tardio
De alguma forma, no judaísmo palestinense, os verbos bq‘ e qr‘ se conectam com
σχίζω. Nota-se uma evolução do verbo veterotestamentário hlq (distribuir, dividir repartir),
que na esfera rabínica significa distinguir, sobretudo no que diz respeito à Escritura. Ainda
assim tem o valor de diferir, diferenciar-se (disputas e discussões a respeito da explicação e
aplicação da lei; diferença entre escolas rabínicas). Exprime uma situação similar à que é
indicada por σχίζω no grego profano.
O verbo σχίζω aplicado raramente por Fílon e somente com valor atenuado (divisão
da esfera celeste em zonas planetárias, alma repartida em sete partes e outros exemplos.
Flávio Josefo aplica o verbo em sentido forte (Teudas promete interromper o curso do
Jordão).
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D. No SegundoTestamento
Além das duas vezes citadas em nosso estudo de Marcos, σχίζω é aplicado outras
sete vezes no Segundo Testamento, sendo cinco nos evangelhos: em Mt 27,51 e Lc 23,45 no
mesmo contexto da morte de Jesus referindo-se ao rasgão do véu do Santuário; em Lc 5,36,
na parábola de Jesus: “Ninguém rasga um retalho de uma roupa nova para colocá-lo numa
roupa velha; do contrário, rasgará [...]”; Jo 19,24 refere-se à decisão dos soldados sobre a
túnica de Jesus: “Não a rasguemos, mas tiremos a sorte, para ver com quem ficará”; em 21,11,
por ordem de Jesus, Simão lança a rede no mar e a recolhe “cheia de cento e cinquenta e três
peixes grandes”; kai. tosou,twn o;ntwn ouvk evsci,sqh to. di,ktuon (“e apesar de serem tantos, a
rede não se rompeu”). No livro dos Atos dos Apóstolos σχίζω aparece duas vezes da
seguinte forma: evsci,sqh de. to. plh/qoj th/j po,lewj( kai. oi` me.n h=san su.n toi/j VIoudai,oij( oi`
de. su.n toi/j avposto,loij, que se traduz: “Dividiu-se, porém, a população da cidade: uns
estavam com os judeus; outros com os apóstolos” (14,4) e também: tou/to de. auvtou/ eivpo,ntoj
evge,neto sta,sij tw/n Farisai,wn kai. Saddoukai,wn kai. evsci,sqh to. plh/qoj, “Apenas disse
isto, formou-se um conflito entre fariseus e saduceus, e a assembleia se dividiu” (23,7).
Aparece ainda a forma substantivada do verbo (sci,sma, que é “rasgo”, “rasgão”,
“remendo”) em Mc 2,21 e paralelo: Mt 9,16, enquanto Lc 5,36 , como vimos, tem outra
construção verbal: primeiro utiliza sci,saj, verbo no aoristo (“rasga”); logo o verbo no futuro,
sci,sει (“rasgará”).
E. Na Igreja Antiga
Referindo-se à Igreja antiga é, possível encontrar a presença de σχίζω entre os
apócrifos, no Evangelho gnóstico de Tomé (logion 77). Entre os Padres, em Santo Inácio de
Antioquia: εί τιί σχίζοντι ίίολουίεί, βασιλείαν ίεοί οί ίληρονοµεί εί τιί ίν
ίλλοτρίί γνώµί περιπατεί, οίτοί τί πάίει οί συγίατατίίεται, “se alguém se separa
(um cismático), não herda o reino de Deus; se alguém vai rumo a uma doutrina estranha, não
concorda com a paixão” (Inac., Phld.3,3).
Sentido do verbo σχίζω
O verbo σχίζω tem uma fisionomia própria para ser identificado nas duas unidades, o
que já se pode perceber pelo demonstrado até aqui.
Tal como é aplicado em Mc 1,10, σχίζω relaciona-se com o ίνοίγω - “abrir” (os
céus) de Isaías 63,19. Já Mc 15,38, com διαρρίγνυµι - “rasgar” (as vestes) de Gn 37,34 e
similar em 2Sm 1,11 e Jo 1,20, conforme citamos anteriormente.
Procuramos descobrir de onde Marcos o buscou. Há esta possibilidade de 1,10
inspirar-se particularmente em Is 63,19: “Oxalá fendesses o céu e descesses”; porém o termo
σχίζω é uma tradução do hebraico qr‘. Pode ser, portanto, uma referência puramente lexical.
Outro entendimento que se dá à parte essencial do batismo de Jesus em Marcos (1,10)
– o céu que se rasga – é que se refere a uma revelação escatológica, um testemunho de que
Deus é favorável ao seu povo, através de seus mensageiros e, sobretudo, seu Ungido. Assim
se mostra nas visões do “céu que se abre”, conforme Ez 1,1; At 7,56; 10,11; Ap 4,1; 19,11.
Tomaremos um dos textos citados para relacionar ao texto de Marcos, na tentativa de
uma melhor compreensão do nosso tema:
“E [...] ele viu os céus se rasgando[...]” remete-nos muito bem a Ezequiel, que revela,
ao começar seu livro: “[...] quando me encontrava entre os exilados, junto ao rio Cobar, eis
que os céus se abriram e tive visões de Deus [...]” (Ez 1,1). Mesmo sendo utilizado em
Ezequiel o verbo ίνοίγω (abrir)... e não σχίζω (rasgar), essa ligação é possível.
Ezequiel se encontra entre outros exilados, às margens de um rio. Depois de abertos os
céus, tem visões de Deus. Os outros parecem não ter as mesmas. Quando Jesus se encontra
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entre a multidão que acorre ao batismo de João, ao subir da água, ele viu os céus se
rasgando. Da mesma forma, o texto dá a entender que outros não viram.
- Que sentido tem esta parte do primeiro capítulo de Marcos (1,10)?
Primeiro, não pensemos que se trate dos céus pura e simplesmente abertos no sentido
material. Recordemos a riqueza de simbolismo que pode estar por trás desta pequena parte do
corpo literário da comunidade marciana.
O rasgo no céu pode ser a forma encontrada pelo evangelista para descrever a
manifestação do novo, de que em Jesus acontece algo inesperado. Ele é a novidade plena do
Pai apresentada ao mundo para a salvação universal. Nele, Deus se manifesta efetivamente no
tempo, intervém na história e permanece identificado com aqueles de quem sempre foi
amparo e proteção. Em Jesus, realiza sua obra de maneira antes nunca vista, nunca esperada,
como jamais foi ouvido (cf. Is 64,3).
Embora Marcos não se empenhe em satisfazer aos que esperavam e desejavam um
messianismo grandioso, faz a apresentação de Jesus desta forma certamente para dar a
entender aos seus leitores que Ele é aquele por quem se rasgam os céus, ou seja, por quem se
rasgam as entranhas de Deus. Ele é o Filho Amado; e tudo o que Ele é, continuará a se
manifestar no ministério que veio realizar. A vinda de Jesus podia significar para a
comunidade o cumprimento da espera, do desejo já manifestado pelo profeta Isaías: “Oxalá
que fendesses o céu e descesses, - diante da tua face os montes se abalariam;” (cf. Is 63,19).
Essa bonita imagem que recorda os tempos difíceis em que o povo sentia a ausência de Deus é
agora retomada para dizer que se vive um novo tempo, pois em Jesus, Deus se faz presente no
meio do seu povo, manifestando seu amor e sua força de vida.
São Jerônimo diz a respeito do texto: (“E, logo ao subir da água, ele viu os céus se
rasgando[...]”):“Tudo isto, que foi escrito, foi escrito para nós, pois antes de receber o
batismo, temos os olhos fechados e não vemos as coisas celestes”.
E acrescenta:
“Nós mesmos, que nos encontramos aqui, vemos os céus abertos
ou fechados segundo a diversidade de nossos méritos. A fé plena
tem os céus abertos, mas a fé vacilante os tem fechados”.[15]
Rasgaram-se os céus. Agora vem Aquele que "tem as palavras de vida eterna" (Jo 6,
68), aquele que vem do céu e para lá retorna.
Diz o Livro 1 de Henoc 42,1-2:
“A sabedoria não encontrou lugar onde morar e foi sua
morada o céu. Saiu a sabedoria a morar entre os filhos dos
homens e não encontrou aposento. Voltou a sabedoria
a seu lugar e assentou-se entre os anjos”.[16]
Depois de rasgarem-se os céus, manifesta-se a estreita relação entre Jesus e o Pai,
entre Deus e a humanidade. Para tanto não importa saber quem no momento viu este
acontecimento. Em Jesus, todos são tocados, transformados e abençoados.
Esta maneira de Marcos narrar os fatos a partir de um simbolismo todo especial nos
aviva o interesse por conhecê-lo melhor. Prosseguimos nosso trabalho detendo-nos sobre o
símbolo do céu.
____________________
15 SAN JERONIMO, Comentário al Evangelio de San Marcos, Biblioteca de patrística, Editorial
Ciudad Nueva, 1995, Madrid, España, pp 34-35
16 MACHO, A. Diez. Apócrifos Del Antiguo Testamento IV. Madrid: Ediciones Cristiandad, 1984, p. 70
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O céu – οὐρανὐὐ (ouranos)
Nos escritos de autores gregos como Homero, οίρανίί (ouranos)tem o significado
de “abóbada celeste”, “o firmamento”. O céu é o tudo em Platão; o cosmos, a terra. Afirma-se
ainda que o céu abrange tudo, é divino. Os céus estrelados, considerados como habitação dos
deuses, ficaram sendo o ponto da partida para a investigação da existência e do
conhecimento absoluto.[17]
Descreve-se na literatura antiga o céu em contraste com a terra. Também aí, a terra ou
as montanhas são descritas em contraste com o mar; a terra é colocada acima do hades.
No judaísmo é fortemente enfatizado o céu (“em cima”) contrastando com a terra (“em
baixo”). O céu é o lugar onde habita Deus e a habitação do homem é a terra. Encontramos no
Primeiro Testamento várias referências a esse respeito, sobretudo nos Salmos. Colocamos
aqui alguns deles: Sl 2,4; Sl 8,2; Sl 18,10.14; Sl 24,2-3; Sl 104,2. Não é este, porém, o
principal interesse religioso do povo. Mais importante que a habitação do Senhor é que Ele
tem um cuidado e um carinho todo especial por Israel diante das nações. A experiência de
Deus que desce para encontrar-se com o povo no Sinai (Ex19,18), já na teologia do
Deuteronômio é substituída: é a partir do céu, lugar de sua habitação, que YHWH olha seu
povo, fala com ele e o abençoa (Dt 4,36; 26,15). Para a fé de Israel é também de suma
importância que YHWH seja reconhecido como o Deus criador dos céus e da terra (cf. Gn
1,1; Is 42,5; Sl 33,6). Por outro lado, existe também um paralelismo entre o que há no céu e o
que há na terra como, por exemplo, as doze constelações que há no céu e as doze tribos (de
Israel), sem as quais a terra não pode existir. Podem ser encontradas no Primeiro Testamento
várias comparações relacionadas a céu-terra. Citamos como exemplo o texto de Isaías:
Quanto os céus estão acima da terra, tanto meus caminhos estão acima
dos vossos caminhos[...] Como a chuva e a neve descem do céu e para lá
não voltam, sem terem regado a terra, [...] tal ocorre com a palavra que
sai da minha boca: ela não volta a mim sem efeito;
sem ter cumprido o que eu quis
realizado o objetivo de sua missão.[18]
Quase sempre, ouranos aparece na LXX como tradução de samayîm (hebraico, plural
de perfeição). No judaísmo posterior, prevalece o conceito oriental de vários céus (Tb 8,5;
2Mc 15,23; Sb 9,10; etc). e o livro 1 de Henoc 39,3 nos diz que o céu tem borde.[19]
Encontramos ainda outra perspectiva no livro 1 de Henoc 39,1 – sobre a forma de
união que se dará entre o céu e a terra: Nesses dias ocorrerá que descerão os filhos dos eleitos
e santos do alto céu, e será sua semente uma com os filhos dos homens.[20]
Não se pode constatar que no Segundo Testamento céus e terra – Deus e mundo –
oponham-se radicalmente. Encontramos, pelo contrário, uma apresentação de Deus como o
Senhor de tudo, dos céus e da terra. Alguns textos, ainda, apresentam um paralelismo, como
o do Pai Nosso: “venha o teu Reino, seja feita a tua vontade na terra, como no céu” (Mt 6,10);
e o que se refere a Jesus e o ministério de Pedro e dos discípulos: “o que ligares na terra será
ligado nos céus, e o que desligares na terra será desligado nos céus” (Mt 16,19; cf. Mt 18,18).
Sobretudo nas parábolas de Mateus, há muitas referências ao Reino dos céus ligado a uma
realidade terrena (cf. Mt13,24.31.33 etc). Pode ser considerada contraste a distinção que
aparece algumas vezes entre Deus, que é santo e o mundo que está envolto em pecado; a ideia
_______________
17 BROWN, Colin ⁄ COENEN, Lothar (orgs). Dicionário Internacional de Teologia do Novo
Testamento. 2. Ed. v.1– São Paulo: Edições Vida Nova, 2000. pp. 341.
18 cf. Is 55,9-10.
19 “Nesses dias me arrebatou uma tempestade de vento da face da terra e pôs-me no borde dos céus”
MACHO, A. Diez. op. cit., p. 67.
20 op. cit., p. 66
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de que o espírito do mundo é contrário ao Espírito de Deus (1Co 2,4) e que as preocupações
pelas coisas do mundo afastam de Deus (1Cor 7,33).
Mesmo o filósofo alemão Immanuel Kant encontra uma forma de conectar céus e
terra. Em uma de suas obras, refere-se ao “céu estrelado” em conexão com uma realidade que
está no ser humano:
Duas coisas enchem o ânimo de admiração e veneração sempre novas e
crescentes, quanto mais frequentemente e com maior assiduidade delas
se ocupa a reflexão: O céu estrelado sobre mim e a lei moral em mim.[21]
O véu do Templo
“E o véu do Santuário se rasgou em duas partes, de cima a baixo” (Mc 15,38)
E quais os motivos do véu do templo ter se rasgado de alto a baixo?
Antes desta há outra pergunta ser feita. É preciso saber qual dos véus do Santuário
rasgou-se.
O Templo dos judeus, construído por Salomão na cidade de Jerusalém, como também
o tabernáculo tinha dois véus: um externo e um interno.
O primeiro era a cortina de entrada, que ficava entre o átrio e o tabernáculo (Templo),
conforme Ex 40,33. Este não tinha um valor cultual; era visível por todos, pois apenas
separava o Santo dos ambientes externos. Em hebraico era chamado de Mãsak; feito “de
púrpura violeta, púrpura escarlate, carmesim e linho fino retorcido, obra de bordador” (cf. Ex
26, 36). Este véu estava erguido por “cinco colunas de acácia” recobertas de ouro e “cinco
bases de bronze” fundido (cf. Ex 26,37).
O véu interno (em hebraico, pãrokêt; algumas vezes usa-se o mesmo termo mãsak) era
confeccionado de “púrpura violeta e escarlate, carmesim e linho fino retorcido” bordado com
querubins. Para suspendê-lo foram feitas “quatro colunas de acácia recobertas de ouro” e com
bases de prata. Era o véu que servia de separação entre o Lugar Santo e o Santo dos Santos
(cf. Ex 26,31-35; 40, 21 etc); entre o lugar da glória de Deus e o homem pecador (cf. Lv 16,
2). Apenas os sacerdotes que entravam no Santo para a oferta do incenso podiam ver este véu
(cf. Lc 1,9). O véu existe também no Templo de Herodes. Este véu tinha um significado
cultual. Na realização dos sacrifícios, algumas vezes ele era aspergido com o sangue dos
animais.
Há entre os judeus quem diga que este véu tinha 30 centímetros de espessura e várias
juntas de bois não conseguiriam rompê-lo. No entanto, rasgou-se de cima a baixo quando
Cristo morreu.
Esta é a opinião de muitos exegetas: que na morte de Jesus, rasgou-se de alto a baixo
o véu (xatapetasma) interior do templo de Herodes (Mc 15,38). Encontramos na carta aos
Hebreus certamente uma referência ao véu interior do templo (6,19), que se explicita
fortemente em 9,3, onde é chamado “o segundo véu”. O véu que podia ser ultrapassado
apenas pelos sacerdotes e os sumo sacerdotes, pessoas puras e habilitadas para adentrar o
Santo dos Santos, se rasga e ao povo é revelado o que o véu escondia.
Outros estudiosos têm razão de afirmar que o véu que se rompeu foi o externo. Pois, se
ninguém tinha acesso ao Santo dos Santos a não ser os sacerdotes e sumos sacerdotes,
somente no véu exterior poderia ser visível, perceptível a outras pessoas que não estes, algum
sinal, como se afirma sobre o rasgo de alto a baixo.
Não somente o Evangelho de Marcos e os outros Evangelhos que se referem ao rasgo
do véu do templo (Mt 27,51; Lc 23,45), tratam do assunto do Véu. No Primeiro Testamento o
livro do profeta Isaías (25, 7) e no Segundo Testamento, a Segunda Carta aos Coríntios (3,13_______________
21 KANT, I. Crítica da Razão Prática. (Trad. Artur Morão). Lisboa: Edições 70, 1986, p. 183.
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16), nos esclarecem que o propósito de um Véu é encobrir a vista. Era costume antigo o
uso do véu pelas mulheres, ainda que entre as israelitas não o fosse de forma habitual (cf. Gn
12,14; 26,7), mas em algumas ocasiões (Gn 24,65; 38,14; Is 3,17-19).
Conforme vimos o véu do tabernáculo encobria, ocultava da vista o Santo dos Santos.
Em 10,20, o passar através do véu (que servia para esconder do povo o que se passava no
Templo) para o Santo dos Santos é comparado com o caminho da vida do cristão, o qual, pela
virtude da encarnação de Jesus (véu=carne), penetra no santuário celeste ou a glória de Deus.
É por Jesus, sacerdote e vítima, que se abre o caminho para o Santo dos Santos (cf. Hb 10,19).
A profecia de Isaías 53,10 e também o evangelho de João (10,18) parecem encontrar
um ponto comum sobre o que se realiza com a morte Jesus: Ele entrega sua vida como livre
oferta, na fidelidade a Deus, para garantir mais vida a toda a humanidade.
Voltamos à nossa questão do início deste capítulo:
E quais os motivos do véu do Templo ter se rasgado de alto a baixo?
No instante da morte de Jesus rasga-se o véu do templo de alto a baixo. Esse
rompimento de cima para baixo revela que quem o realizou foi Deus e não o homem. Só de
Deus podem vir atos como este. Os homens são apenas instrumentos nas mãos de Deus para
que possa realizar através deles seus propósitos. Não havia poder humano nenhum sobre
Jesus. Unicamente o poder de Deus que fez da morte de seu Filho um sacrifício divino.
Somente na morte de Jesus é que o véu se rasgou. E não foi um rasgo pequeno.
Rasgou-se em dois, de alto a baixo, dando a todos os seres humanos uma abertura direta ao
Santo dos Santos (cf. Hb 10,19-20). Cristo é a via de acesso ao Pai. Ele é “o caminho, a
verdade e a vida” (cf. Jo 14,6). Tem a vida em si mesmo para que por Ele possam viver todos
aqueles que o ouvem, ou seja, que obedeçam à sua voz, sua palavra (cf. Jo 5,25-26). A
crucificação e morte de Cristo não dão ao cristão razão para desanimar da caminhada. Sua
carne rasgada abriu para nós o caminho do Céu. Depois da morte há a ressurreição. E é por
sua morte e ressurreição que Cristo nos reserva não simplesmente o perdão dos pecados,
senão que por Ele nos é transmitida “toda a plenitude de Deus” (cf. Ef 3,19 e Cl 2,10). É por
causa dele que quem crê deve encher-se de esperança e continuar perseverante na vida
comum, na intimidade com Deus, no fazer o bem (cf. Hb 10,21-25) e ter a confiança de
chegar ao trono da graça (Hb 4,16).
Jesus dá um grande grito e expira. E o véu do Templo se rasga. É através da infusão da
natureza do Filho de Deus nos demais filhos, que estes são conduzidos à presença do Pai (cf.
Hb 2,10). Não há outra maneira de elevação do homem à plenitude da vida senão por meio de
Jesus (ver Ef 1,23). E assim, na morte de Jesus se dá o paradoxal acontecimento do véu que se
rasga – se divide – para nos unir, por Ele, ao Pai e ao Espírito.
O “Véu rasgado” supõe a revelação do que estava velado no judaísmo do Primeiro
Testamento, o que estava oculto aos olhos, mente e coração do povo. A morte de Jesus, marco
em sua obra de redenção, reabre a todos a casa de Deus.
Citamos para ilustrar a afirmação o apócrifo livro 1 de Henoc 46,2-3:
“Perguntei a um dos santos anjos, que ia comigo e me mostrava todos os
segredos, acerca daquele Filho de homem, quem era, de onde vinha e
porque ia com o “Princípio de dias”. Me respondeu assim: - Este é o
Filho de homem, de quem era a justiça e a justiça morava com ele. Ele
revelará todos os tesouros do oculto, pois o Senhor dos espíritos o
elegeu, e é aquele cuja sorte é superior a todos eternamente por sua
retidão ante o Senhor dos espíritos”.[22]
Outra lição que tiramos do acontecimento do véu é que o Templo já não é suficiente
______________
22 Cf. MACHO, A. Diez, op. cit., p. 71-72
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para esconder nada, ou melhor, já não se pode ocultar da vista do povo o que lá acontecia.
Não há espaço para camuflar, para esconder a corrupção, a limitação de uma instituição que
se voltava mais à exploração do povo que à defesa de sua vida. Com o véu da religião
aparente abafava a corrupção reinante nos seus dirigentes. Até o último instante Jesus
denuncia; mais ainda: desvela completamente e faz aparecer de forma clara a verdade
escondida atrás das estruturas.
Em um dos seus escritos, Fr. Isidoro Mazzarolo aborda este tema e declara:
A morte de Jesus inaugura outro templo, outro sacerdócio e outro culto
superior ao existente. Para os cristãos, o templo dos judeus perdeu o
sentido e a lei ficou submissa à leitura e interpretação feitas por Jesus,
assim, esse rasgo que se faz na cortina do templo, decreta a falência
deste tipo de culto e inaugura uma religião de comunidades e comunhão
(At 2,42-46; 4,32-36). [23]
O rasgo do véu vem libertar Israel do ritualismo da antiga aliança representada pelos
objetos guardados no lugar santo e dar-nos acesso direto junto ao Pai (Ef 2,18).[24]
É o próprio Jesus o novo Templo. Nele há o encontro entre Deus e o ser humano.
Os acontecimentos entre o rasgar-se do céu e o rasgar-se do véu em Marcos
Quando Marcos declara que os céus se rasgam sobre Jesus (1,10), põe em manifesto
que é Ele o Messias prometido, aquele sobre quem João declarava vir batizar no Espírito (e
sob este signo está o início de sua vida pública). Isto é ressaltado na sua obra para chamar a
atenção do leitor para a estreita relação que há entre Jesus e o Pai, entre Deus e a humanidade.
Em 15,38 ratificará amor grandioso de Deus, rasgando o véu do Templo pela morte de Jesus,
que é o Cristo, cabeça das coisas do céu e da terra (cf. Ef 1,10).
Por razões teológicas, convém retomar o conteúdo de Marcos presente entre nossas
duas unidades (Mc 1,10; 15,38), conforme abordamos no início do trabalho. Tal apresentação
nos leva a uma melhor compreensão da nova proposta religiosa de Jesus abordada neste
estudo.
Deter-nos-emos em acontecimentos mais importantes para o nosso tema, sobretudo
concernentes à vida pública. Portanto, não tocaremos a perícope das tentações que aparece
imediatamente após o batismo e algumas outras.
Os versículos 14-15 do primeiro capítulo tocam um tema importantíssimo para o qual
os céus se abrem: o Reino de Deus. Jesus anunciou e inaugurou o Evangelho do Reino. E
começou a partir dos mais simples.
Jesus principia sua missão anunciando a plenitude, o cumprimento do tempo, quando
Deus, tendo realizado todas as promessas, “muitas vezes e de modos diversos” (Hb 1,1) ao
longo da história, entrega-se agora de forma total.
Prossegue o anúncio: Está próximo. O Reino está chegando porque Jesus inicia sua
missão entre o povo. Ele inaugura o tempo da chegada do Reino, um tempo novo, tempo de
graça. Porém, o Reino não é uma realidade que chega e se amaina; segue um dinamismo, tem
uma progressão, um crescimento. O Reino é sempre o já e o ainda não. É o que está presente
e ao mesmo tempo se está construindo. Chega como algo pequeno, de forma silenciosa,
despretensiosa e depois abarca a todos. Ele nos interpela e desafia a cada momento. O Reino
de Deus começa e termina nele, no autor da vida e de todas as coisas. O Reino é comunhão e
______________
23 MAZZAROLO, Isidoro . Evangelho de Marcos. Estar ou não estar com Jesus. Rio de janeiro, Mazzarolo
editor, 2004 (p 49)
24 VINCENT, Mons. Albert (Professor honorário da Faculdade Católica de Teologia da Universidade de
Estrasburgo). Dicionário Bíblico. São Paulo: Edições Paulinas, 1969. p. 497
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participação no mistério da misericórdia, do amor desinteressado de Deus por nós, por todos e
cada um dos seres humanos e por toda a criação. É o Reino de Deus porque nos leva a fazer a
experiência da salvação que Ele nos dá através de seu Filho Jesus. Fundamenta-se na pessoa
de Jesus Cristo.
Há um chamado a crer no Evangelho, o próprio Cristo, enviado pelo Pai como Boa
Nova, salvação para o mundo, revelador do amor de Deus que conduz homens e mulheres à
conversão, os convida a colocar-se em atitude de filhos que diante do Pai querem vencer suas
fragilidades e fazer atenção à sua mensagem transformadora. São pessoas que entram no
processo da construção fraterna, com esforço contínuo na busca da fidelidade Àquele que é
fiel.
Jesus é a referência; é o ponto de chegada do que busca assegurar sua vida. Por Ele
vale a pena deixar tudo, imediatamente, para entrar no seu projeto de e dar uma colaboração
missionária. Seguir a sua voz é uma decisão acertada com a vontade de Quem nos chamou a
vida, de Quem O enviou até nós.
Por meio de Cristo, nos chega a plena revelação de Deus, que seguirá seu curso
através das comunidades, às quais será transmitida. Por meio da ação do Espírito nelas,
chegará a todas as nações.
São poucas as palavras de Jesus dentro da obra de Marcos. O que assegura a
identidade de Messias, mais que suas palavras, são seus atos, suas ações. É um Evangelho que
mostra a Jesus itinerante, sempre em movimento, atravessando cidades e povoados, indo ao
encontro das pessoas, transformando vidas e buscando deixar sempre nas pessoas uma marca,
uma vida melhor. Age de forma tal que as dispõe e as capacita a lutarem por uma sociedade
diferente, mais justa, solidária e fraterna.
A partir de sua prática, Jesus manifestará o agir de Deus que desce para salvar, libertar
o seu povo, como acontece no livro do Êxodo:
“Eu vi, eu vi a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o seu grito
por causa dos seus opressores; pois eu conheço as suas angústias. Por
isso desci a fim de libertá-lo da mão dos egípcios, e para fazê-lo subir
daquela terra para uma terra boa e vasta, terra que mana leite e
mel[...]”[25]
A proposta de Jesus está pautada em valores humanos. Sua missão é defender a vida.
E a qualidade da vida depende da expulsão dos demônios que afligem as pessoas. As
dificuldades físicas das pessoas não são a única preocupação de Jesus, senão toda a situação
econômica, social, religiosa que torna a vida dos seus contemporâneos um fardo pesado.
Guiado pelo Espírito Santo, realiza curas. Onde Ele atua as pessoas tornam-se capazes de
retomar o hoje de suas vidas acreditando que a misericórdia divina completará a obra nelas
começada.
Ele ensina com sabedoria, com convicção, com “autoridade”. Seu ensinamento e suas
ações podem passar aos olhos velados simplesmente como um “espetáculo impressionante!”.
Porém, para aquele que vai entendendo que por Ele rasgaram-se os céus, suas palavras e
obras estão colocando em claro o porquê deste acontecimento: revelar a Deus. De fato, sua
presença comunica ao Pai. E a quem é inteligível esta mensagem, revelar-se-á (quase no final
da obra de Marcos) que é somente por Jesus, pelo acontecimento salvífico de sua morte e
ressurreição, que se rasga o véu e podem todos os filhos encontrar-se com o Pai num
“abraço”.
Em Jesus é possível fazer a experiência de Deus próximo ao homem. Unicamente
pelas virtudes de Cristo podemos ser partícipes da própria natureza divina (cf. 2Pd 1,4). Nele
____________________
25 Ex 3,7-8
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se reaviva a esperança dos oprimidos e pobres, os anawin, que têm a Deus como sua única
força e defesa, e para quem a certeza de Deus é seu único consolo. Ele é a rocha firme, em
quem se agarram diante das “tempestades” que se lhes apresentam.
Atitudes de Jesus como o sentar-se à mesa com cobradores de impostos e publicanos,
considerados “impuros”, sobretudo pelas castas religiosas, dignifica a essas pessoas e todas as
classes desprezadas. Ao mesmo tempo cria conflito, controvérsias. Em vários momentos, o
Mestre Jesus tem que responder a afrontas de fariseus e escribas; entre vários outros
episódios, é questionado até mesmo pelos discípulos de João e se vê sem o entendimento dos
próprios discípulos que escolheu para si. Há conchavos de grupos rivais entre si, mas que se
unem para planejar sua morte (cf. 3,6).
São vários os motivos das oposições e questionamentos dos que se colocam como seus
adversários. Entre eles estão questões sobre a lei e sobre o sábado. Marcos ressalta que, sendo
o Messias, Jesus é Senhor do sábado (cf. 2,28). E se mostra cada vez mais livre e com a
força de libertar as pessoas dos males que as afrontavam.
O grupo que Jesus escolheu e chamou de Apóstolos é em número de 12 (simbolizando
as tribos de Israel). Os chama para estarem com ele. São chamados a participarem como
novos membros da mais perfeita família de comunhão e amor que forma Jesus com o Pai e o
Espírito. Logo os enviará em missão; darão nova e frutífera colaboração; e a família se tornará
cada vez mais numerosa. Formar-se-á com aqueles que têm fé e se tornam capazes de
responder ao autor desta comunhão: o próprio Deus, que toma iniciativa e, por sua vontade, se
revela no Filho unigênito. Jesus é a luz do Pai que brilha sobre homens e mulheres, e que é
anúncio de uma nova realidade, uma história nova.
O processo de construção dessa nova história é longo. Depende da mentalidade, dos
corações, dos diversos “terrenos” que Jesus encontra. E sobre os quais também semearão seus
apóstolos, que serão missionários, no mais profundo sentido da palavra. Receberão instruções,
recomendações de seu Mestre para que a missão seja frutuosa. Tais recomendações são, ao
mesmo tempo, uma mensagem para a Igreja, para os continuadores de sua obra e missão em
todos os tempos da história que se segue após sua vinda.
Jesus é aquele que inclui a todos no seu “banquete” de vida, enquanto as autoridades
do seu tempo promoviam banquetes de exclusão e de morte. Mesmo os gentios serão
chamados ao banquete messiânico, porque a salvação de Deus é para todos. Por isso o povo
se entusiasma, e seus líderes, ao contrário, portam-se sempre como inimigos.
As ações de Jesus relembram algumas vezes a Moisés, e outras, a profetas como Elias
e Eliseu. A muitas delas se lê como realização das profecias, sobretudo de Isaías.
É também mencionada a figura do profeta Jonas, símbolo importante do Primeiro
Testamento. Mesmo depois de relutar com Deus, foi pregar em Nínive e através de sua
pregação veio a conversão daquela cidade. Jesus anuncia sua morte e ressurreição. Será o
grande sinal: como Jonas passou três dias no ventre do peixe, ele passará três dias no seio da
terra, mas ressuscitará, triunfará, vencerá a morte. Não haverá sinal maior que este. E Jesus o
diz claramente àqueles que o pedem.
A palavra de Jesus é desafiadora. As pessoas que quiserem seguir caminho com Ele
devem estar dispostas até mesmo a abandonarem as condições ordinárias da vida familiar e
social, a renunciarem a tudo e assumirem desinteressadamente a missão a elas confiada. A
história mostra que houve muitas respostas. A partir de um grupo pequeno que aderiu à
proposta de Jesus, formou-se uma comunidade viva e vivificante, presente e atuante no
mundo, levando a mensagem nova e renovadora que lhes fora entregue pelo Pai através de seu
Cristo.
Jesus tem uma maneira de ensinar simples, usando comparações que fazem perceber
as diferenças entre vida do povo e a vida que levavam seus chefes. O povo que vivia na
pobreza sentia alegria e esperança com a maneira de Jesus anunciar o Reino de Deus.
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O mestre de Nazaré ensina seus discípulos a rejeitarem a hipocrisia e toda atitude
destruidora da fraternidade, da amizade e da fé. Desta forma, manifestarão em que valores
deverão estar fundamentadas as comunidades que surgirão com sua pregação, suas atitudes e
testemunho de vida.
Os textos de Marcos 1,25-28; 2,10 revelam, pela atuação de Jesus e reação do povo,
quem ele é. Ele tem autoridade e poder de vencer o mal. Tem muita influência entre as
pessoas e a Ele são atraídos enormes agrupamentos humanos, as multidões. Chama a si
mesmo de Filho do Homem; porém, é reconhecido como o Messias (Cristo) por Pedro (cf
8,29), como Filho de Deus pelo Pai (1,11; 9,7) e pelos homens (15,39). É a mesma
apresentação que o próprio evangelista faz dele desde o início.
Até mesmo os demônios o reconhecem como “o Santo de Deus” (1,24) - por ele se
santificam as pessoas e o mundo; para eles é também o “Filho de Deus” (3,11), “filho do Deus
Altíssimo” (5,7).
Por outro lado, encontra-se em Marcos o aparente fracasso de Jesus (5,40),
considerado escândalo até mesmo para os seus familiares, os de sua terra (6, 2-5).
Muitas vezes Jesus responde com textos da Lei a pessoas e grupos que usavam estes
textos mas rejeitavam algumas de suas interpretações. Percebe-se no episódio com os
saduceus (representantes da aristocracia religiosa, um grupo mais conservador que os
fariseus) sobre a fé na ressurreição (Mc 12,18-27). Eles questionam a Jesus a respeito de um
texto da Lei (Dt 25,5ss) e Jesus lhes responde aplicando outro texto da Lei (Ex 3,2.6) e ao
mesmo tempo mostrando a realidade da ressurreição como novidade para o mundo: a vida no
Reino não termina.[26]
Jesus não despreza a Lei de seus antepassados, mas procura retomá-la para que seus
ouvintes possam compreendê-la dentro do novo espírito que Ele introduz. Nenhum ponto da
lei será anulado. Entretanto, Jesus ensina a aplicar a Lei com uma lúcida bondade,
defendendo incansavelmente o direito à vida que é dado por Deus a todas as pessoas. Com
Ele, a verdadeira Lei da vontade de Deus torna-se visível e palpável nos corações e na vida. É
trazida como anúncio de Boa Nova aos empobrecidos.
Este ensinamento seu deve ser transmitido para que se torne luz para o mundo,
ajudando as pessoas a crescer.
O ⁄A seguidor ⁄ a de Jesus navega no mar bravio do mundo com a certeza da presença
de Jesus que acalma a tempestade.
O Caminho de Jesus que rasga os céus é encarnado na realidade dura do povo, em
suas dificuldades e alegrias.
Da mesma forma que a missão de Jesus se dá através de palavras e ações, cabe a quem
tem contato com sua mensagem ouvir e agir. Às vezes são necessárias várias etapas para
assimilar a mensagem de Cristo. Num primeiro momento, não se enxerga bem e Jesus
continua agindo para que se possa enxergar claramente. Perseverando na caminhada com Ele
vai-se alcançando uma melhor e mais clara visão da nova mensagem, seu Evangelho.
A narrativa da morte de Jesus traz muitos elementos da Escritura, mostrando que nele
se cumpre o anunciado nas profecias e proclamado nos Salmos: sorteiam sua roupa (Mc 15,24
e Sl 22,19); zombam dele os presentes (Mc 15,29 e Sl 22,8; 109,25); oferecem-lhe bebida
azeda (Mc 15,36 e Sl 69,22). Todos esses sofrimentos e outras humilhações fazem de Jesus o
Servo Sofredor de Is 53,12.
Na parte final da obra de Marcos esclarece o que aos poucos foi sinalizando: Jesus é
Deus, e um Deus muito humano, que veio destruir o mal e a morte. Esta não tem poder sobre
Ele. Por Ele rasgaram-se os céus e rasga-se o véu do Templo. O poder de Deus o ressuscitou.
O Filho enviado pelo Pai, rejeitado pelos homens, pelos poderosos deste mundo, é
_______________
26 Cf. SLOYAN Gerard S., op. cit., p. 81.
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ressuscitado, glorificado por Deus. Nele se cumpre o que havia sido anunciado e preparado
desde a criação do mundo.
Conclusões
O verbo σχίζω (“rasgar”), presente nas unidades 1,10 e 15,38 de Marcos, é uma das
chaves de leitura deste Evangelho. Trabalhá-la nesta pesquisa foi uma oportunidade para
possibilitar (aos leitores das Escrituras Cristãs) o encontro e o enriquecimento com um
assunto pouco explorado pela exegese, favorece o crescimento da divulgação da Boa Nova
hoje.
Descobre-se que a Escritura não é uma simples literatura particular como produto de
uma história (embora tendo a história como espaço adequado para se chegar à compreensão),
mas é fruto de uma experiência comunitária, experiência de fé na revelação de Deus. O texto
é dinâmico, se dá num processo. Deve-se ter um olhar crítico sobre o panorama, voltar ao
texto e distinguir entre as hipóteses que ajudam e as que não ajudam a tornar-se vida a
mensagem de Jesus.
A nova proposta religiosa de Jesus é de um Deus próximo, caminhando com seu povo,
de um Templo sem véu. É importante não somente ter informação oficial sobre a nova
proposta de Jesus, mas ter mecanismos para descobrir os motivos reais, profundos, que
fizeram com que ela nos fosse apresentada por Marcos com tamanha riqueza simbólica. Todas
essas funções do Evangelho feito letra se entrosam mutuamente, embora seja necessário um
esforço contínuo e um trabalho árduo para colocá-las em vida. Os céus que se rasgam; o véu
do Templo que se rasga vêm da parte de Deus como seu divino apelo.
O leitor que o medita terá que dar o passo decisivo para aplicá-lo à sua situação
pessoal.
Marcos procurou contribuir para alimentar a fé das comunidades do mundo grecoromano (estudos afirmam que escreveu em Roma), sobretudo as mais desprezadas e
marginalizadas (pelas autoridades e pessoas instruídas), que tinham sido tocadas pelo
testemunho dos apóstolos e em especial do incansável missionário Paulo (Saulo) de Tarso,
antes fariseu, que se converteu ao Caminho de Jesus (no corpo do trabalho citamos várias
cartas paulinas e outras atribuídas ao apóstolo).
Quanto foi possível em tão limitado espaço, tratou a pesquisa de mostrar como a Igreja
primitiva, e por ela o evangelista, entendeu o significado da obra da Redenção segundo foi
fixado no evangelho de São Marcos para preparar o leitor para o seu encontro com Cristo,
autor e objeto da mensagem e sua reta atitude interior e atitudes externas, face ao apelo
divino.
A partir do que Jesus realizou, de como viveu entre Mc 1,10 e 15, 38, constatamos
como é importante considerar hoje o valor do tempo. Quanto mais nossos momentos forem
curtos, tanto mais devem ser saboreados com intensidade, vividos plenamente com boas ações
e palavras edificantes, aproveitados para amar e servir. Nossa vida se dá em continuidade a
uma história. E cada indivíduo é chamado a adotar práticas que dêem rumo novo, melhor, à
história que constroem a cada instante.
A atuante mensagem salvífica de Jesus deverá atingir a todos que têm sensibilidade
para ver e para ouvir todos os sinais de vida realizados por Ele através dos séculos da História
da humanidade. Não se trata de uma mensagem para guardar na memória. O mais importante
é abrir o coração e deixar-se encher pela Palavra de Deus. Fará experiência da salvação de
Deus, da mensagem de sua palavra divina aquele que for capaz de escutar a nova do que
aconteceu no passado, como mensagem que lhe diz respeito pessoalmente, no contexto de
realidade onde está inserido.
O cristão vive na sociedade com confiança e coragem para defender a vida, resistir aos
perigos e perseguições, combater os espíritos do egoísmo e consumismo que invadem tudo.
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Jesus veio para todos. Todas as pessoas têm algo a contribuir para tornar melhor a
família, a comunidade, o ambiente de trabalho, o lugar onde vive. Há sempre o que aprender e
o que ensinar.
Há muitas experiência de vivência de valores e gestos de fraternidade, solidariedade,
generosidade. A atenção a estas manifestações bonitas, positivas, é uma maneira de entrar na
dinâmica de Jesus, de sua nova proposta, no projeto do Reino.
É desejável destacar do projeto alguns valores para serem vivenciados e avaliados:
Falar a verdade, que é essencial.
Dialogar com o diferente com respeito e tolerância.
Assumir experiências concretas de serviço.
Abertura para a história de vida de cada um ⁄ a brote de forma tranquila
e com confiança.
Dar abertura e ter abertura na convivência com os ⁄ as outros ⁄ as.
Capacidade de administrar conflitos.
Respeito aos limites da intimidade do ⁄ da outra ⁄ a.
Solidariedade para com os outros.
Sensibilidade para descobrir nos gestos mais simples de entrega das
pessoas a presença de Deus.
Cuidado com o próprio ser, com os outros, com o planeta.
Cultivo de relações integradoras, construídas na responsabilidade e liberdade.
Criatividade, seriedade e credibilidade.
Da mesma forma que a essência da missão de Jesus é a vida, a grande missão do ser
humano é criar, reconstruir, recriar vida para que seja mais digna. Todos nós enquanto
pessoas, merecemos um clima bom para viver; e cada um é responsável para fazer a sua parte,
para construir uma sociedade, um mundo sobre alicerces de justiça e paz.
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