1 de janeiro de 2011 – solenidade de santa maria mãe de deus

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HOMILIA DE ANO NOVO - 1 DE JANEIRO DE 2011 – SOLENIDADE DE SANTA MARIA MÃE DE DEUS – DIA
Pastores do mundo, sob o olhar da Mãe de Deus
Amados irmãos e irmãs, aqui reunidos na igreja catedral do Porto, e todos vós, que nos seguis
pela Rádio Renascença:
Como é habitual – e muito além de qualquer rotina -, celebramos em toda a Igreja Católica a
Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus e o Dia Mundial da Paz. Não se trata, de modo
algum, de simples justaposição de motivos; é antes decorrência lógica, como a própria
selecção dos trechos bíblicos escutados bem manifesta.
Na verdade, a paz, enquanto sentimento e experiência de harmonia profunda de todos para
todos e dentro de cada um de nós, só se pode encontrar onde a totalidade do real se ofereça e
apreenda, sem excluir qualquer dimensão do que somos, sonhamos e vamos conseguindo.
- Fronteiras largas e profundas tem a paz, pois não se atinge sem que chegue a todos e não se
alcança senão no mais íntimo e transcendente de cada um! Por isso, mais do que conquista, é
dádiva, recebida e partilhada, como a própria vida. Por isso ainda, requerendo a nossa reflexão
e coerência, não dispensa predisposição e acolhimento. Acolhimento, repito, da totalidade do
real, em autêntico “desenvolvimento” de todos os homens e do homem todo, para usar uma
bela expressão de Paulo VI.
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Alcança-se a paz quando cada ser humano tem liberdade física e psíquica para se descobrir a
si mesmo, como vocação pessoal e inter-pessoal, segundo as potencialidades gerais e suas
próprias. Quando essa mesma liberdade é possibilitada e estimulada, por uma pedagogia
familiar e social que a preencha com todos os contributos válidos da cultura e da civilização,
isto é, pelo acervo acumulado das múltiplas “conquistas” do espírito humano, que
efectivamente comprovaram ser verdadeiras, boas e belas para a generalidade das pessoas e
dos povos. Quando a organização política nacional e internacional se orienta para a
prossecução desse mesmo “bem comum”, oferecendo-o aos cidadãos, sem aprioristicamente o
limitar por ideologias redutoras ou impositivas, como seria o caso do laicismo ou do
fundamentalismo religioso. Trata-se de servir pessoas concretas, habilitando-as para a escolha
consciente e responsável; não se trata de governar as pessoas contra elas próprias,
escolhendo por elas e até antes delas o que houvessem de crer e fazer.
O Papa Bento XVI ofereceu-nos uma luminosa Mensagem para o Dia Mundial da Paz. Será
certamente matéria de reflexão atenta para crentes e não crentes, plena que está de motivos
indispensáveis, sobre “a liberdade religiosa, caminho para a paz”. Como este, que devo citar,
pela sua inegável oportunidade e precisão, quer quanto à formulação do direito, quer quanto às
suas consequências, aliás não unívocas: “A liberdade religiosa é também uma aquisição de
civilização política e jurídica. Trata-se de um bem essencial: toda a pessoa deve poder exercer
livremente o direito de professar, individual ou comunitariamente, a própria religião ou a própria
fé, tanto em público como privadamente, no ensino, nos costumes, nas publicações, no culto e
na observância dos ritos. Não deveria encontrar obstáculos, se quisesse eventualmente aderir
a outra religião ou não professar religião alguma” (
Mensagem
, nº 5).
E o Papa adianta depois, com igual clareza: “A mesma determinação, com que são
condenadas todas as formas de fanatismo e de fundamentalismo religioso, deve animar
também a oposição a todas as formas de hostilidade contra a religião, que limitam o papel
público dos crentes. Não se pode esquecer que o fundamentalismo religioso e o laicismo são
formas reverberadas e extremas de rejeição do legítimo pluralismo e do princípio da laicidade.
De facto, ambas absolutizam um visão redutiva e parcial da pessoa humana, favorecendo
formas, no primeiro caso, de integralismo religioso e, no segundo, de racionalismo. […] Por
isso mesmo, as leis e as instituições duma sociedade não podem ser configuradas ignorando a
dimensão religiosa dos cidadãos ou de modo que prescindam completamente da mesma” (Men
sagem
, nº 8).
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Creio que, quando assimilarmos esta doutrina - que o Papa não deixa de referir, no seu
conjunto, a afirmações fundamentais quer do Concílio Vaticano II (1965), quer da Declaração
Universal dos Direitos do Homem (1948) -, nos poderemos reencontrar muito mais, também
como sociedade portuguesa, para aproveitarmos os recursos que cada um proporcionará ao
conjunto, pessoal e conjugadamente; e para que a administração pública possa distribuir
melhor as contribuições de todos para todos, do modo mais subsidiário e solidário possível, na
educação, na saúde e na segurança social, dentro do Estado que também todos
democraticamente integramos. E isto mesmo, tanto nas instâncias que dependem directamente
da referida administração, como nas que resultam da espontaneidade social de famílias e
instituições reconhecidas, que igualmente servem e acrescentam o bem comum, por vezes
com grande excelência de resultados e inestimável generosidade pessoal, potenciada pelas
respectivas convicções religiosas e humanitárias.
Como atrás aludi, a sequência dos trechos bíblicos desta Solenidade de Santa Maria Mãe de
Deus dá-nos a maior fundamentação de tais motivos. Não os forçamos, são eles mesmos que
nos reforçam a convicção expendida. Sigamo-los brevemente:
Ouvimos a antiga bênção, que Moisés aprendeu do próprio Deus e tão bem ressoa neste
começo de ano. “O Senhor volte para ti os seus olhos e te conceda a paz!”. Isso mesmo de
algum modo “ouviu” a humanidade, desde que ganhou consciência de si mesma: as mais
antigas expressões de lucidez e engenho referem-se a algo mais do que o imediato, deixaram
em artefactos e paredes de grutas sinais e apelos dum mais além que garantisse –
apaziguasse! – o aquém, sofrido ou temido. A admirável marcha de verdadeiros progressos
que hoje preenchem a cultura, a ciência e a técnica, deram muito mais consistência ao que
garantimos por nós, mas não dispensam um “olhar” benévolo que não nos deixe sós.
“Olhar de Deus”, ainda antes e depois de qualquer expressão verbal, determinante ou
proponente, que a divina pedagogia requeira. Expressão primeira e envolvente de amor criativo
e acolhedor. Como a alvorada que promete o Sol, como o brilho que distingue as coisas, como
o incentivo que alenta sempre. Olhar que reluz nos insubstituíveis olhos maternais que
envolvem cada geração humana e que aqui agradecidamente evocamos em todas as mães
onde nasce e nascerá este “ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2011”.
Foi envolto neste olhar de Deus Pai, rebrilhante no de uma singularíssima Mãe humana, que o
Filho de Deus nasceu no mundo, como São Paulo referiu em breve versículo de duradoura
lição: “Quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho nascido de uma
mulher e sujeito à Lei, para resgatar os que estavam sujeitos à Lei e nos tornar seus filhos
adoptivos”.
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- Duradoura lição, que sempre reaprenderemos e havemos de aprofundar! É tão recorrente
imaginarmos Deus e revela-se tão difícil aceitá-Lo assim, agora “nascido de uma mulher”,
igualado a nós para nos integrar, ao seu inaudito modo, na própria vida divina... Na verdade, a
absoluta simplicidade de Deus liberta-nos das infindas complicações e enredos com que –
mesmo a pretexto de “religião” – nos detemos no que afinal é apenas e excessivamente nosso.
No “Filho de Maria”, renascemos como filhos de Deus, na simplificação absoluta da religião,
que apenas sondaríamos antes: “E porque sois filhos – continuava São Paulo -, Deus enviou
aos nossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: ‘Abá! Pai!’. Assim já não és escravo,
mas filho. E, se és filho, também és herdeiro, por graça de Deus”.
É também assim que, da liberdade religiosa – sempre indispensável, mas ainda algo exterior -,
Deus nos eleva em absoluta libertação, numa verdadeira e íntima relação, ou “religião”, de
co-herdeiros com Cristo. Esta é a libertação propriamente cristã, no Espírito de Cristo, o “Filho
de Maria”, a Santa Mãe de Deus.
Mas é no Evangelho escutado que podemos deparar com a autêntica súmula de quanto
celebramos hoje. Num rápido esboço apenas:
Contava São Lucas que “naquele tempo, os pastores dirigiram-se apressadamente para Belém
e encontraram Maria, José e o Menino deitado na manjedoura”. Assim mesmo Os devemos
encontrar também, com a urgência que certamente sentimos. E por aquela mesma ordem:
primeiro, viram a Mãe, que O recebera de Deus, como novo começo e perfeita libertação do
mundo, pois é em Cristo e nos que vivem em Cristo que finalmente a criação inteira respirará
isenta. Como disse São Paulo, noutro passo: “Pois até a criação se encontra em expectativa
ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus […], para alcançar a liberdade na glória
dos filhos de Deus” (cf. Rm 8, 19-21).
Primeiro Maria, para que o primeiríssimo Jesus pudesse acontecer no mundo, na nova terra
que Ela mesma figurava. Ainda aqui – e de que maneira! – se pode e deve falar de liberdade
religiosa, pois o consentimento de Maria à proposta única da Anunciação, significou a plena
realização da sua liberdade pessoal, capaz de ultrapassar justificados receios e
compreensíveis dúvidas, pela consentida rendição ao absoluto e humílimo poder de Deus:
absoluto e humílimo como o amor autêntico, que tudo oferece e sempre depende de quem o
aceite.
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Depois viram José, porque é necessário que alguém guarde e tutele os dons Deus aos
homens. É muito elucidativo verificar como grandes obreiros da recriação do mundo, através
da “recriação” da Igreja – Corpo de Cristo em crescimento –, se confiaram tanto a São José,
fosse Teresa de Ávila para reformar o Carmelo, fosse João XXIII para “aggiornare” a vida
eclesial.
De Maria e José, os pastores concentraram-se naquele “Menino deitado na manjedoura”, tudo
“como lhes tinha sido anunciado”. Em tal pobreza puderam entrever a riqueza divina, que
assim os libertava de qualquer exclusão que fosse. Num palácio nasceria um “deus” para os
grandes, como o César de Roma, rodeado de grandíssima corte. Numa manjedoura estava
Deus para todos, entre Maria e José, começando pelos pastores que acorriam. Assim na Santa
Madre Igreja, quando permanece livre e liberta, inteiramente disponível para acolher e cumprir
a palavra divina, como Santa Maria Mãe de Deus. Aí acorrerão os pobres de todas as
pobrezas, porque a eles é anunciada a Boa nova da perfeita libertação (cf. Lc 4, 18). E os
pobres trarão os ricos, feitos pobres também, finalmente seduzidos por um Reino que só aos
“pobres em espírito” se promete (cf.
Mt
5, 3).
Continuava o Evangelho, como temos de terminar por agora: “Quando O viram, os pastores
começaram a contar o que lhes tinham anunciado sobre aquele Menino. E todos os que
ouviam admiravam-se do que os pastores diziam”. Ninguém disfarça um espanto, ninguém
sufoca a alegria. Desde então se “começou a contar” a história viva daquele Menino e sua
Mãe. Ou melhor, essa mesma história se tornou História da Igreja, fermentação persistente da
liberdade do mundo.
Daqueles pastores nada mais sabemos, nem se foram sempre coerentes com o anúncio que
faziam. O mesmo se diga das muitíssimas gerações crentes que o mediaram até chegar a nós.
Uns sim, outros menos e outros, infelizmente, muito pelo contrário… Vale o mesmo anúncio,
como indispensável é quem o transporte e a liberdade para o fazer. E não é difícil apurar que
as próprias contrafacções do anúncio - que devia ser sempre tão libertador como o foi naqueles
primeiros dias - foram rejeitadas e superadas, antes de mais, por quantos se têm felizmente
somado como verdadeiras testemunhas do Evangelho de Cristo, para a libertação do mundo.
As contrafacções da religião não se corrigem com a ausência dela, mas sempre e só com
melhor religião.
Com Bento XVI, teremos até de constatar e afirmar: “Inegável é a contribuição que as religiões
prestam à sociedade. São numerosas as instituições caritativas e culturais que atestam o papel
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construtivo dos crentes na vida social. Ainda mais importante é a contribuição ética da religião
no âmbito político. Tal contribuição não deveria ser marginalizada ou impedida, mas vista como
válida ajuda para a promoção do bem comum” (Mensagem, nº 6).
Com estes sentimentos e reflexões, caríssimos irmãos e irmãs, continuemos a celebração de
Santa Maria Mãe de Deus – Dia Mundial da Paz. E tomemos para lema e missão de 2011 os
mesmos dos pastores de há dois milénios, pois cada crente se há-de tornar um constante
pastor do mundo, pelo cuidado solícito em relação a toda a obra divina: “Os pastores
regressaram, glorificando a louvando a Deus por tudo o que tinham ouvido e visto, como lhes
tinha sido anunciado”. - Sobre eles se alongava decerto o olhar maternal de Maria, como agora
nos envolve e encoraja a nós!
+ Manuel Clemente
Sé do Porto, 1 de Janeiro de 2011
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