OPINIÃO DOUTRINÁRIA Prof. Gustavo Tepedino Professor Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutor em Direito Civil pela Universidade de Camerino (Itália). Professor Visitante das Universidades de Molise (Itália); São Francisco (Califórnia – EUA); e Poitiers (França); Pesquisador Visitante do Instituto Max Planck de Direito Privado Comparado e Internacional (Hamburgo – Alemanha). Membro da Academia Internacional de Direito Comparado. 1 Honra-nos Sindicato Nacional dos Editores de Livros – SNEL solicitando OPINIÃO DOUTRINÁRIA acerca da incidência da imunidade tributária prevista no art. 150, VI, d, da Constituição da República sobre o livro eletrônico. Para responder a tal indagação, dividiu-se a presente OPINIÃO DOUTRINÁRIA em dois eixos temáticos a seguir desenvolvidos, precedidos da síntese das conclusões alcançadas. 2 Síntese: No âmbito da evolução do conceito de bem jurídico, o livro desenvolveu-se e adquiriu também o formato eletrônico, intangível. Instrumento essencial para a tutela da liberdade de expressão, difusão do conhecimento, da arte e da cultura, constitui-se no conteúdo criado pelo autor. O livro, com efeito, afigura-se a obra, em si considerada, e não o suporte pelo qual é transmitido ao leitor. Seja registrado em áudio, traduzido no método Braille, impresso em papel ou codificado em arquivo digital, a obra é a substância, não o veículo. Nas diversas alternativas existentes para o registro e transmissão do texto, cuida-se de livro, com suas ideias e informações, expressas pelo Autor. Por isso mesmo, toda obra existe independentemente do instrumento material que lhe serve de base, podendo ser transmitida fielmente por meio de suportes distintos. Numerosos ordenamentos jurídicos, por considerarem a liberdade de expressão princípio fundamental, e por força da relevância da produção do conhecimento, da arte e da cultura no desenvolvimento social, têm criado dispositivos legais estimulando a distribuição e o consumo dos livros. Nestes casos, evidentemente, o que é incentivado é a difusão da obra ou do seu conteúdo, não já o suporte de divulgação da obra. Daí o fundamento para a imunidade tributária atribuída ao Livro (entendido como obra) no art. 150, VI, d, da Constituição Federal, a qual tem por escopo salvaguardar a difusão da cultura e a transmissão do conhecimento, como expressão dos valores contidos 3 nos princípios constitucionais da liberdade de expressão e de pensamento (art. 5º, incisos IV, IX, XIV, e art. 220 C.R.). Tal como o livro impresso, o livro eletrônico exerce idêntica função e finalidade, traduzindo a mesma obra, de modo a atrair, em conseqüência, a mesma disciplina jurídica aplicável, notadamente o art. 150, VI, d, da Constituição Federal. Em uma palavra, é o conteúdo (rectius, obra) e não sua forma de exteriorização que determina a qualificação de certo bem jurídico como livro. I. A dilatação do conceito de bem jurídico e sua perspectiva funcional. A noção do bem jurídico livro e sua destinação funcional. Concretização dos direitos à informação, à cultura, à liberdade de expressão e de pensamento. A inclusão do livro eletrônico no conceito de livro. 1. Os bens traduzem coisas que podem constituir objeto de direitos.1 Por outras palavras, consideram-se bens as parcelas da realidade (ou simplesmente coisas) que se mostram aptas a integrar o objeto de relações jurídicas. 2 Afirmou-se, por isso mesmo, que os “bens da vida – Lebensgüter –, quando submetidos à tutela jurídica, originando os bens jurídicos – Rechtsgüter Nesta esteira, dispõe o art. 810 do Código Civil italiano: “Art. 810. Nozione. Sono beni le cose che possono formare oggetto di diritti”. Na clássica definição de Clovis Bevilaqua: “Para o direito, bens são os valores materiaes ou immateriaes, que servem de objecto a uma relação jurídica” (Código civil dos estados unidos do Brasil, vol. I, Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1975, p. 269). V. tb. Carvalho Santos: “Em sentido lato, bens são tudo quanto é suscetível de se tornar objeto de direito; em sentido estrito, significa apenas as coisas que são objeto dos direitos, que formam o nosso patrimônio, ou a nossa riqueza” (Código civil brasileiro interpretado, vol. II. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961, pp. 7 e 8). 2 Na lição de Salvatore Pugliatti, o conceito de bem jurídico em sentido estrito exprime a síntese entre o particular interesse tutelado e a situação subjetiva predisposta pelo ordenamento jurídico como instrumento de tutela destinado a um sujeito particular (Beni (teoria gen.), in Enciclopedia del diritto, vol. V, Milano: Giuffrè, 1958, p. 174). 1 4 – tornam-se ponto de referência objetivo de determinado interesse humano, em relação ao qual corresponde uma situação jurídica atribuída ao titular para assegurá-los”. 3 Ou seja, os bens não são todas as coisas, mas apenas aquelas que podem formar o objeto de situações jurídicas subjetivas. 4 2. O bem se torna, nesta direção, ponto de referência objetivo da relação jurídica e, nesta medida, idôneo a satisfazer determinada necessidade humana merecedora de tutela por parte do ordenamento jurídico.5 3. Diante de tal premissa dogmática, o bem não se identifica com a coisa em sentido material (ou não jurídico). Resulta, necessariamente, de processo de individuação, de modo a determinar, no campo da realidade objetiva, parcela autônoma e unitária sobre a qual recaia interesse subjetivo cuja tutela justifique sua qualificação como bem jurídico. A partir de tal individuação, o bem, extraído da realidade tangível (suporte fático de incidência do direito), assume conteúdo e contornos inteiramente diversos da 3 Gustavo Tepedino, Multipropriedade Imobiliária, São Paulo: Saraiva, 1993, p. 92, na mesma perspectiva de Salvatore Pugliatti, ob. cit., p 167. 4 Como assevera Biondo Biondi: “Dal punto di vista giuridico-positivo, cosa è qualunque entità, materiale od immateriale, che sia giuridicamente rilevante, cioè sia presa in considerazione dalla legge, in quanto forma o può formare obietto di rapporti giuridici. Cosa è il riferimento oggettivo del diritto soggettivo” (Cosa (diritto civile), in Novissimo digesto italiano, vol. IV, Torino: UTET, 1957, p. 1009). 5 Pietro Perlingieri e Francesco Ruscello, Manuale di diritto civile, Napoli: ESI, 1997, p. 170 e ss. 5 realidade material, compatíveis com a função a que se destina. 6 Pela mesma razão, o bem jurídico pode representar coisas imateriais, incorpóreas ou intangíveis, a exemplo dos direitos autorais, da clientela, da marca, da informação, dentre outras.7 4. Na esteira da evolução tecnológica, a cada dia identificam-se novos bens jurídicos, notadamente imateriais, como as criações intelectuais, a informação, o know-how, os interesses difusos, a reclamarem disciplina jurídica. Como anotado em outra sede: 6 Sobre o tema, Alberto Auricchio inicia o mais profundo estudo sobre a matéria (La individuazione dei beni immobili, Napoli: Jovene, 1960) reproduzindo indagação frequente na manualística alemã: “Tício tem uma fazenda que se compõe de uma casa colonial, um jardim, quatro campos, duas pastagens e um bosque: quantos bens tem Tício?”. Em termos práticos, assim como a existência física de uma porção territorial, materialmente dividida em diversos sítios, e intermediada por vias de acesso, pode conter, juridicamente, um condomínio, um loteamento, ou uma propriedade única, o livro do qual se arrancam folhas, pode resultar em bens distintos, ou em uma resma de papel diversa de obra literária. Salvatore Pugliatti alude a obra clássica de Giuseppe Raimondi, em que um ancião cortava suas próprias unhas, recolhendo os pedacinhos “com afetuoso escrúpulo”, colocando-os em uma caixinha “daquelas que mantinham as mulheres para as recordações de família”. Motivado pelo “estranho afeto”, acrescenta Pugliatti, o universo recolhido “constituía uma coisa em sentido jurídico, um bem de sua propriedade” (Cosa in senso giuridico (b – teoria generale), in Enciclopedia del diritto, Milano: Giuffrè, 1962, v. XI, p. 58). 7 Sobre a conceituação de bens incorpóreos, registra Francisco Amaral: “Bens incorpóreos são os que têm existência abstrata, intelectual, como os direitos, as obras do espírito, os valores, como a honra, a liberdade, o nome. São criações da mente, construções jurídicas, direitos. Sua existência é apenas intelectual e jurídica. (...) São exemplos de bens incorpóreos o fundo de comércio, a clientela, as marcas de indústria, os privilégios de invenção, os desenhos e modelos industriais, o software, know-how e, como divulgação de conhecimento, de modo geral, a informação” (Direito civil: introdução, Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 312). V., ainda, Eduardo Espínola e Eduardo Espínola Filho, Introdução ao estudo do direito civil, vol. I, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1939, p. 518: “No direito moderno, são incorpóreos os bens que, constituindo verdadeiros e proprios objetos de direito, não teem uma existência material, tangível, corpórea; a expressão – quae in jure consistunt é entendida como applicavel aos bens que procedem, ou melhor, que são reconhecidos por abstração lógico-juridica; bens que o direito, por conveniência de seus fins, reconhece como existentes, mas que não teem consistencia material”. Na doutrina italiana, cf. Roberto de Ruggiero, Istituzioni di diritto civile, vol. II, Milano: Casa Editrice Guiseppe Principato, 1934, pp. 300-301. 6 “Com a evolução científica e tecnológica, novas coisas passam a ser incluídas no mundo jurídico, em número impressionante, tornando-se objetos de situações subjetivas: o software, o know-how, a informação veiculada pela mídia, os papéis e valores de mercado mobiliário, os elementos utilizados na fertilização assistida, os recursos do meio ambiente, incluindo o ar, mais e mais protegido como interesse difuso, dentre outros. A cada dia surgem novos bens jurídicos, ganhando significativa importância a distinção entre bens materiais, formados por coisas corpóreas, e os bens imateriais, constituídos por coisas incorpóreas que passam a integrar, quotidianamente, o patrimônio das pessoas”.8 5. Observa-se, assim, o redimensionamento da noção de bens – relativa e mutável, de acordo com o contexto sócio-econômico9 –, os quais compõem o patrimônio dos sujeitos e consistem em objeto de aproveitamento 8 Gustavo Tepedino, Teoria dos bens e situações subjetivas reais: esboço de uma introdução, in Temas de direito civil, t. II, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 138. Cf., ainda, Pietro Perlingieri e Francesco Ruscello, Manuale di diritto civile, cit., p. 170: “In una società a tecnologia avanzata, in continua evoluzione, dominata dall’industria e dal commercio, dai servizi e dalle idee, sempre più di frequente si individuano nuovi beni: il software (programmi per gli elaboratori), il know-how (procedimenti e conoscenze aziendali non coperti da privative), l’informazione in sé”. 9 Acerca da mutabilidade e dinamicidade do conceito de bem, anota Francisco Amaral: “O conceito de bem é histórico e relativo. Histórico, porque a idéia de utilidade tem variado de acordo com as diversas épocas da cultura humana, e relativo porque tal variação se verifica em face das necessidades diversas por que o homem tem passado. Nos primórdios, as necessidades eram puramente vitais, respeitantes à defesa e à sobrevivência do indivíduo e do grupo. As coisas úteis e apropriáveis diziam respeito à vida orgânica e material dos indivíduos. Com a evolução da espécie humana e o desenvolvimento da vida espiritual, expresso na arte, na ciência, na religião, na cultura, enfim, surgiram novas exigências e novas utilidades, passando a noção de bem a ter sentido diverso do que tinha primitivamente” (Direito civil: introdução, cit., pp. 309-310). 7 econômico, a demandarem tutela por parte do ordenamento jurídico. Na arguta constatação de Francesco Ferrara: “Quais bens são juridicamente protegidos depende da determinação das normas positivas em conexão com as condições de civilização. Por isso o conceito de coisa é relativo e mutável. Na vida moderna, a investigação dos bens se alargou, porque ao lado de simples objetos corporais surgiram criações intelectuais (produtos científicos, literários, artísticos) capazes de uma autônoma existência e desfrute econômico. O conceito de coisa se espiritualizou e de simples objeto corporal se elevou a elemento impalpável e suprassensível de nosso patrimônio”.10 6. De fato, a partir do exercício da titularidade sobre os bens, corpóreos ou incorpóreos, os sujeitos extraem as utilidades econômicas “Quali beni siano giuridicamente protetti, dipende dalle norme positive il determinare, in connessione alle condizioni di civiltà. Perciò il concetto de cosa è relativo e mutevole. Nella vita moderna la cerchia dei beni s’è allargata, perchè a canto a semplici oggetti corporali sono entrate delle creazioni intellettuali (prodotti scientifici, letterari, artistici) come capaci d’un’autonoma esistenza e sfruttamento economico. Il concetto di cosa si è spiritualizzato, e da semplice oggetto corporale si è elevato ad elemento impalpabile e soprasensibile del nostro patrimonio” (Francesco Ferrara, Trattato di diritto civile, vol. I, Roma: Athenaeum, 1921, p. 730). Mais adiante, minudencia o autor: “La cosa incorporale deve presentare interesse economico, avere autonomia, ed essere capace di giuridico assoggettamento alla signoria del titolare. Questo si verifica rispetto alle opere dell’ingegno. Le creazioni intellettuali che si estrinsecano in un lavoro letterario od in un’opera d’arte od in una scoperta sono dei prodotti autonomi capaci di proprio sfruttamento e disposizione. Tostochè si distacca dall’attività dell’autore l’opera artistica, scientifica ed industriale acquista un’individualità a sè, un’entità propria, diventa una res, se non configurata nello spazio, individualizzata nel campo intellettuale. L’autore dell’opera la tiene sotto la sua signoria, poichè egli solo ha il diritto di sfruttare i redditi che produce (nei limiti dalla legge assegnati), può disporne a favore di altri, insomma agire su di essa, come su un altro elemento del patrimonio. Tali produtti dunque valgono socialmente e nella concezione del commercio come beni esterni impersonali, aventi valore autonomo” (Francesco Ferrara, Trattato di diritto civile, cit., pp. 741-742). 10 8 pretendidas, 11 de sorte que as normas que irão reger o aproveitamento econômico dos bens serão determinadas de acordo com a finalidade e função que tais bens desempenham. 7. Deste modo, a disciplina das coisas não se afigura estática e imutável, mas varia segundo o bem e a relação jurídica na qual se insere. Dito diversamente, o ordenamento jurídico oferece mecanismos de tutela diferenciados consoante não apenas o bem, mas o conjunto de interesses ao qual se refere e que identifica a disciplina jurídica aplicável. 12 À guisa de exemplo, os bens públicos, que se encontram fora de comércio, não podem ser usucapidos; ou, ainda, os bens a princípio negociáveis podem sofrer, por força da autonomia privada, restrições mediante cláusula contratual que proíba a alienação. 8. Para cada bem, portanto, definido com sua específica destinação, finalidade e função, o ordenamento reserva regime jurídico que o singulariza. A respeito da utilidade da coisa, assinala Biondo Biondi: “Se è vero che la sostanza del diritto soggettivo è data dall’interesse, è chiaro che l’interesse si riferisce alla utilità che può fornire la cosa. L’utilità si deve ricollegare all’uomo non nella sua entità fisica o biologica, ma nelle sue relazioni sociali. Non ogni utilità o interesse implica il concetto giuridico di cosa; occorre che si tratti di interesse socialmente apprezzabile nella comune coscienza sociale, tale da giustificare l’attrazione nell’orbita del diritto, in guisa che sia o possa diventare diritto soggettivo” (Cosa (diritto civile), in Novissimo digesto italiano, vol. IV, cit., p. 1009). 12 Pietro Perlingieri e Francesco Ruscello, Manuale di diritto civile, cit., p. 171. 11 9 9. Na hipótese em exame, indaga-se acerca da qualificação do livro eletrônico (também denominado e-book) como bem jurídico equivalente ao livro impresso 10. O livro, por sua importância histórica na difusão do conhecimento, da arte e da cultura, constitui-se em instrumento privilegiado de manifestação do pensamento e da liberdade de expressão, princípios constitucionais inseridos, com deliberada insistência, no rol das garantias fundamentais do ordenamento brasileiro (art. 5º, incisos IV, IX, XIV, e art. 220 C.R.).13 Consiste no conteúdo de informação concebido pelo autor. Em outras palavras, o livro, seja de que espécie ou gênero for, afigura-se a obra em si considerada, e não o suporte mediante o qual é transmitido. 11. Seja impresso em papel, reproduzido em áudio, estampado pelo método Braille ou codificado em arquivo digital, a obra é a mesma. Nas “Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; (...) IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; (...) XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional; (...)” “Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição. (...)” 13 10 diversas alternativas existentes para o registro e transmissão do texto, cuida-se do mesmíssimo livro, com as ideias e informações expressas pelo autor. Por isso mesmo, toda obra existe independentemente do instrumento material que lhe serve de veículo, podendo ser transmitida por meio de suportes distintos. 12. Em tal cenário, destaca-se a criação do livro eletrônico, o qual consiste no livro em formato digital, cuja noção prescinde do papel ou de qualquer outro suporte tangível. 14 13. Dito de outro modo, o livro eletrônico traduz a versão eletrônica do livro impresso, de sorte que as obras literárias são transferidas ao usuário final em meio eletrônico (suporte intangível ou imaterial) por intermédio de operação conhecida como download ou por outra tecnologia de transferência de arquivos, mediante a concessão de licença de uso privado, sem direito de reprodução ou qualquer outra forma de exploração, comercial ou não, alteração ou criação de obras derivadas. Sobre a imaterialidade do e-book, anota a doutrina: “Com a internet, uma obra literária escrita não necessita, obrigatoriamente, ser reproduzida originalmente sob a forma de impressão gráfica, uma vez que se pode copiar no editor de texto o que já está escrito em algum lugar – como ocorre com os milhões de e-books já à disposição, com obras de todo o mundo – ou simplesmente escrever um romance, um conto etc. diretamente no editor de texto, fazer um upload e publicá-los pela Internet, sem que sejam fixados em qualquer suporte material palpável, porém acessível, constituído por um conjunto eletrônico de dados, ou seja, armazenados na memória de algum servidor, (...) sem que jamais assumam a forma gráfica de livro” (José Henrique da Rocha Fragoso, Direito autoral: da antiguidade à internet, São Paulo: Ed. Quartier Latin do Brasil, 2009, pp. 129 e 130). 14 11 14. Tal como o livro impresso, tradicionalmente concebido, o livro eletrônico apresenta conteúdo equivalente, exercendo a mesma finalidade e função de difusão da cultura e do conhecimento, de modo a diferir tão somente na forma de exteriorização: o livro eletrônico é digital, imaterial e intangível, ao passo que o livro impresso se revela por meio de papel, fisicamente existente e palpável. 15. A identificação do livro eletrônico, portanto, como livro não depende de operação analógica ou de interpretação extensiva em relação à disciplina do exemplar impresso, sendo ele próprio livro, tout court, em decorrência da evolução do conceito primitivo de livro e da forma de utilização deste bem jurídico. 16. De outra parte, o livro eletrônico não se confunde com os insumos a partir dos quais se fabrica o livro (tinta, máquinas e equipamentos mecânicos destinados à impressão de livros, componentes eletrônicos para a produção do livro etc.), tampouco se corporifica em CD ou outro meio material de acesso a seu conteúdo, cuidando-se de bem incorpóreo autônomo, que com os aparatos eletrônicos não se confunde. 12 17. Por desempenhar a mesma finalidade e função, o livro eletrônico é modalidade contemporânea de livro, a atrair as mesmas normas que disciplinam o livro impresso, do qual somente se distingue pelo modo de consulta e de acesso ao seu conteúdo. Nesta perspectiva, o conceito de livro não pressupõe o papel, podendo apresentar diversas formas de exteriorização, desde que se preservem a sua finalidade e função. 18. A perspectiva funcional acima enunciada impõe leitura evolutiva da legislação setorial, de modo a tornar compatível o texto legal com as inovações tecnológicas. Ao editar a Lei 10.753, de 31 de outubro de 2003 (Lei do Livro), o legislador conceituou o livro para certos fins, nos termos do art. 2º, caput, in verbis: Art. 2o. Considera-se livro, para efeitos desta Lei, a publicação de textos escritos em fichas ou folhas, não periódica, grampeada, colada ou costurada, em volume cartonado, encadernado ou em brochura, em capas avulsas, em qualquer formato e acabamento. 13 19. Preocupado com a realidade sócio-econômica da época, o legislador considerou como livro textos impressos, não periódicos, reunidos por grampos, cola ou costura, independentemente de seu formato ou acabamento. 20. Já o art. 1º, II, da mesma Lei estabeleceu como diretriz da Política Nacional do Livro: Art. 1º. (...) II – o livro é o meio principal e insubstituível da difusão da cultura e transmissão do conhecimento, do fomento à pesquisa social e científica, da conservação do patrimônio nacional, da transformação e aperfeiçoamento social e da melhoria da qualidade de vida; 21. O dispositivo acima transcrito reconhece e proclama a função precípua do livro de difusão da cultura e transmissão do conhecimento, como expressão dos valores contidos nos princípios constitucionais da liberdade de expressão e de pensamento (art. 5º, incisos IV, IX, XIV, e art. 220 C.R.).15 15 A função do livro como veículo de transmissão da cultura e de manifestação do pensamento, bem como de promoção das liberdades constitucionais é tratada, na doutrina e jurisprudência, no âmbito da discussão acerca da imunidade tributária assegurada ao livro no art. 150, VI, “d”, 14 22. Atento à finalidade e função do livro, interpretados à luz dos valores constitucionais, o parágrafo único do art. 2º da Lei do Livro ampliou, embora de maneira não exaustiva, o conceito de livro contido no caput do mesmo dispositivo, para compreender outros bens que realizem a mesma função do livro, a exemplo de álbuns para colorir e atlas geográficos. É ver-se: da Constituição da República. Como assinala Aliomar Baleeiro, “a imunidade do art. 19, III, da Emenda nº 1/1969, traz endereço certo à proteção dos meios de comunicação de idéias, conhecimentos e informações, enfim, de expressão do pensamento, como objeto precípuo. Livros, jornais e periódicos são veículos universais dessa propagação de idéias no interesse social da melhoria do nível intelectual, técnico, moral, político e humano da comunidade” (Limitações constitucionais ao poder de tributar, Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 354). No mesmo sentido, afirma Roque Antonio Carraza: “São os fins a que se destinam os livros e equivalentes e, não, sua forma que os tornam imunes a impostos. Livros, na acepção da alínea d, do inc. VI do art. 150 da CF, são os veículos do pensamento, vale dizer, os que se prestam para difundir idéias, informações, conhecimentos etc. Pouco importam o suporte material de tais veículos (papel, celulóide, plástico etc.) e a forma de transmissão (caracteres alfabéticos, signos, Braille, impulsos magnéticos etc.)” (Importação de bíblias em fitas: sua imunidade: exegese do art. 150,VI, d, da Constituição Federal, Revista Dialética de Direito Tributário, nº 26, São Paulo, 1997, p.139). Cf., ainda, Caio de Azevedo Trindade, Constitucionalismo, tributação e direitos humanos, Rio de Janeiro: Renovar, 2007, pp.114 e 115: “A imunidade dos Livros, Jornais e Periódicos tem por fundamento proteger e efetivar direitos humanos de primeira geração, consagrados expressamente, em nossa Lei Maior, entre os quais: a liberdade de manifestação do pensamento, a liberdade de expressão, a liberdade de manifestação da atividade intelectual, artística, científica e literária independentemente de censura ou licença (art. 5º), a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber (art. 206). Trata-se de instrumento de concretização do Estado Democrático de Direito, regime em que o pluralismo político, a crítica e a oposição são instrumentos essenciais. A imunidade dos Livros é imprescindível para a disseminação da informação, da cultura e da educação, representando a proteção e efetivação das liberdades públicas, como instrumento de crescimento intelectual de todo o povo brasileiro”. Na jurisprudência, v., a título exemplificativo, STF, RE 221.239-6, 2ª T., Rel. Min. Ellen Gracie, julg. 25.5.2004: “A imunidade tributária sobre livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão tem por escopo evitar embaraços ao exercício da liberdade de expressão intelectual, artística, científica e de comunicação, consagrada no inciso IX do art. 5º da Constituição Federal. Visa também facilitar o acesso da população à cultura, à informação, e à educação com a redução do preço final. O constituinte, ao instituir a imunidade ora discutida, não fez ressalvas quanto ao valor artístico ou didático, à relevância das informações divulgadas ou à qualidade cultural de uma publicação. Da mesma forma, não há no texto da Lei Maior restrições em relação à forma de apresentação de uma publicação”. 15 Parágrafo único. São equiparados a livro: I – fascículos, publicações de qualquer natureza que representem parte de livro; II – materiais avulsos relacionados com o livro, impressos em papel ou em material similar; III – roteiros de leitura para controle e estudo de literatura ou de obras didáticas; IV – álbuns para colorir, pintar, recortar ou armar; V – atlas geográficos, históricos, anatômicos, mapas e cartogramas; VI – textos derivados de livro ou originais, produzidos por editores, mediante contrato de edição celebrado com o autor, com a utilização de qualquer suporte; VII – livros em meio digital, magnético e ótico, para uso exclusivo de pessoas com deficiência visual; VIII – livros impressos no Sistema Braille. 23. Os dispositivos acima aludidos hão de ser compreendidos à luz da ampliação do conceito tradicional de livro, considerando-se livro o bem que, expressão de criação intelectual, exerça a função de propagação da cultura, da informação e das liberdades de expressão e de pensamento, independentemente da forma de exteriorização.16 Sobre a ampliação do conceito de livro, observa a doutrina especializada: “O conceito de ‘livro’ evoluiu ao longo dos tempos. No princípio, quando inventado, a idéia de livro passava necessariamente por feixes de páginas encadernadas em formato retangular; atualmente, tal meio físico não é mais necessário. Podemos visualizar um livro na forma mecânica (em áudio, videocassetes, filmes, etc.) ou eletrônica (no computador, em disquetes, em CD-ROM e no Kindle). No futuro, outras mídias certamente serão citadas para inovar como nos depararemos com a cultura e a informação” (Ivo César Barreto de Carvalho, Imunidade tributária na visão do STF, in Revista de Direito Público, vol. 33, Porto Alegre: Síntese, 2010, p. 84). 16 16 24. Tais valores, como adiante melhor se examinará, coadunam-se com a orientação legislativa anteriormente exposta, a qual não destoa do entendimento longamente consolidado pelo Supremo Tribunal Federal e Tribunais Regionais Federais, que admitiu a imunidade tributária de publicações as mais variadas, independentemente da valoração de seu conteúdo ou forma de apresentação. Confira-se: “Álbum de figurinha. Imunidade tributária. Art. 150, VI, ‘d’, da Constituição Federal. Precedentes da Suprema Corte. 1. Os álbuns de figurinhas e os respectivos cromos adesivos estão alcançados pela imunidade tributária prevista no artigo 150, VI, ‘d’, da Constituição Federal. 2. Recurso extraordinário desprovido” (STF, RExt. 179.8939, 1ª T., Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, julg. 15.4.2008). “Constitucional. Tributário. Imunidade. Art. 150, VI, ‘d’ da CF/88. ‘Álbum de figurinhas’. Admissibilidade. 1. A imunidade tributária sobre livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão tem por escopo evitar embaraços ao exercício da liberdade de expressão intelectual, artística, científica e de comunicação, bem como facilitar o acesso da população à cultura, à informação e à educação. 2. O Constituinte, ao instituir esta benesse, não fez ressalvas quanto ao valor artístico ou didático, à relevância das informações divulgadas ou à qualidade cultural de uma publicação. 3. Não cabe ao aplicador da 17 norma constitucional em tela afastar este benefício fiscal instituído para proteger direito tão importante ao exercício da democracia, por força de um juízo subjetivo acerca da qualidade cultural ou do valor pedagógico de uma publicação destinada ao público infanto-juvenil. 4. Recurso extraordinário conhecido e provido” (STF, RExt. 221239, 2ª T., Rel. Min. Ellen Gracie, julg. 25.5.2004).17 25. Vale dizer: a jurisprudência pátria tem acolhido as novas formas de manifestação do livro que se descortinam na prática social, a exemplo do livro infantil, vez que tais veículos exercem a mesmíssima função dos volumes tradicionais, qual seja, a de divulgar a cultura, a informação e a de materializar as liberdades de expressão e de pensamento.18 17 No âmbito dos Tribunais inferiores, cf. TRF 2, AMS 200351010021552, 3ª turma especializada, Rel. Des. Paulo Barata, julg. 16.9.2008: “A jurisprudência consolidou-se no sentido de que a imunidade prevista no art. 150, VI, “d”, da Constituição Federal deve ser interpretada ampliativamente, sem possibilidade de censura quanto ao seu conteúdo, que não poderá ficar atrelado a fatores subjetivos, intelectuais, morais e religiosos do intérprete, pois caso a publicação seja atentatória à ética e aos direitos fundamentais caberá, em juízo posterior, a sua retirada de circulação. 5. Dentro desta exegese, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a imunidade dos álbuns de figurinhas (RE 221230/SP, Rel. Min. Ellen Gracie, D.J. 06/08/2004) e das listas telefônicas (RE 134071/SP, Rel. Min. Ilmar Galvão, D.J. 15/09/1992), e os Tribunais Regionais Federais vem perfilhando o entendimento segundo o qual estão abrangidos pela imunidade os livros eletrônicos (e-books) e os cd-roms didáticos ou científicos, diante do evidente avanço tecnológico após a promulgação da Constituição Federal de 1988. (...)” (grifou-se). 18 Cf., neste sentido, TRF3, Ap. Cív. 168847, Turma Suplementar da Segunda Seção, Rel. Juíza Eliana Marcelo, publ. 4.10.2007: “1. Discute-se a declaração de inexistência de relação jurídico-tributária entre a União Federal e a autora, tendo por objeto o pagamento do Imposto de Importação, do IPI e da multa, decorrente da não apresentação da guia de importação, no ato do desembaraço, relacionada à importação de livros infantis de natureza didática, tidos pelo Fisco, porém, como brinquedos. (...) 6. Analisando a mercadoria ‘sub judice’, cujo exemplar se encontra juntado aos autos da ação cautelar, são desnecessárias outras provas para aferirmos tratar-se de livro, muito embora possua no seu bojo a controvertida ‘caixinha redonda, que acionada mecanicamente com um dedo, dá início a execução de uma música, com a intermitência de umas luzes que acendem e apagam, durante aproximadamente 30 segundos’, 18 26. Diante de tais circunstâncias, os dispositivos da Lei do Livro hão de ser interpretados à luz do conceito dinâmico e finalístico de bens jurídicos, compatível com o atual contexto sócio-econômico, no qual se verifica rápido avanço tecnológico, tendo em conta a finalidade e a função exercida pelo livro, não já sua forma de exteriorização. 27. Em conseqüência, o conceito de livro deve ser compreendido e analisado – repita-se – de acordo com o momento histórico, traduzindo bem jurídico que se ampliou inegavelmente, na perspectiva dinâmica e funcional, não já estática, em que se deve compreender a teoria dos bens. Por isso mesmo, o conceito de livro contido no art. 2º, caput, da Lei do Livro, há de abranger o livro eletrônico que, além de realizar a mesma função e finalidade do impresso, se mostra, ainda, ambientalmente sustentável, devendo, também por essa razão, ser estimulado e protegido pelo ordenamento na realidade contemporânea. esta caixinha mostra-se como mero acessório, dentro do contexto apresentado, pois o livro vem acompanhado de estampas, gravuras, figuras ilustrativas e de textos impressos, não se podendo desconsiderar que a sua finalidade é a de tornar o aprendizado um processo lúdico e não enfadonho, em relação à faixa etária a que se destina, abrangendo, assim, os fins preceituados pelo Texto Maior. 7. Saliente-se que a imunidade prevista constitucionalmente independe do modelo ou tipo do livro, devendo, portanto, alcançar a mercadoria aqui discutida, especialmente frente a precedentes do Colendo Supremo Tribunal Federal, quanto à imunidade conferida ao álbum de figurinhas. 8. Apelação e remessa oficial improvidas” (grifou-se). V. tb. TRF3, REOMS 97030546994, 6ª T., Rel. Juiz Lazarano Neto, publ. 1.10.2007. 19 II. Definição da disciplina jurídica aplicável a partir da função desempenhada pelo bem. Incidência das normas que disciplinam o livro sobre o livro eletrônico. Emprego dos conceitos de direito privado pela autoridade fiscal (art. 110, CTN). Aplicação da imunidade tributária contida no art. 150, VI, d, Constituição Federal ao livro eletrônico. 28. Consoante o exposto, o livro eletrônico exerce a mesma finalidade do volume impresso, como obra intelectual destinada a transmitir objeto de criação humana. Igualmente, sua função fundamental é concretizar as liberdades constitucionais de expressão e pensamento, além de difundir a cultura e a informação, tudo a justificar a tutela a seu livre acesso como direito fundamental. Por tal razão, há de se aplicar ao livro eletrônico a disciplina jurídica incidente sobre o livro impresso.19 A título de ilustração, o adquirente 19 Como leciona Pietro Perlingieri, é a função que determina a disciplina jurídica aplicável: “Em toda a noção jurídica encontra-se uma estrutura e uma função. Dá-se o mesmo com a relação jurídica. Esta, no perfil funcional, não é nada mais que um regulamento, isto é, a disciplina de opostos centros de interesses relacionados, de maneira que tenham uma composição ou hamonização (contemperamento). A relação é a disciplina, regulamento dos interesses vistos na sua síntese: é a normativa que constitui a harmonização (contemperamento) das situações subjetivas. Ela apresenta-se como o ordenamento do caso concreto; não é casual, de fato, a definição de ordenamento como sistema de relações. A relação é, no seu perfil funcional, um conjunto de cláusulas, preceitos, prerrogativas, atribuições, isto é, um regulamento. O aspecto normativo conflui naquele funcional. A obrigação pecuniária caracteriza-se por ter como conteúdo a prestação de uma quantia em dinheiro; ela, no seu aspecto estrutural é o relacionamento – expresso em termos de contraposição – entre a situação creditória e aquela debitória. Esta relação, porém, é neutra, não exprime ainda o porquê da sua existência, a função prático-social à qual responde. Falta o aspecto causativo da obrigação pecuniária, o seu regramento, a disciplina que a caracteriza. Se se limitasse ao aspecto estrutual, isto é, à relação entre as situações, não seria possível individuar efetivamente a disciplina, a função daquela obrigação. Ela assume uma disciplina: o aspecto funcional e aquele causativo exprimem a mesma exigência, isto é, individuar e completar uma relação entre situações subjetivas. O credor, segundo seja a causa uma ou outra, tem, ou não, determinados poderes, obrigações: poderá agir para a resolução (art. 1.453 ss. do Cód. Civil), 20 do livro eletrônico não poderá reproduzir, alterar ou explorar a obra, em violação aos direitos do autor protegidos pela Lei 9.610, 19 de fevereiro de 1998.20 29. Em especial, há de incidir sobre o livro eletrônico o mesmo tratamento tributário destinado ao livro impresso, no sentido de evitar qualquer obstáculo político ou econômico à sua publicação, com destaque para a vedação ao poder de tributar contida no art. 150, VI, d, Constituição da República: Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...) VI – instituir impostos sobre: (...) poderá defender-se excepcionando a inadimplência da outra parte (art. 1.460 Cód. Civil)” (Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional, Rio de Janeiro: Renovar, 2002, pp. 116 e 117). 20 “A proteção dos direitos autorais estende-se às criações intelectuais, expressas sob qualquer forma. O texto legal é amplo, pois define que estas criações podem ser expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, seja este tangível ou intangível, conhecido ou que invente no futuro” (Danneman, Siemsen, Bigler & Ipanema Moreira, Comentários à lei de propriedade intelectual e correlatos, Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 507). 21 d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão. 30. Aludido dispositivo estabelece a imunidade tributária para os “livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão”, proibindo a incidência de impostos sobre esses bens, com o escopo de assegurar a liberdade de comunicação e de pensamento e de salvaguardar a educação e a cultura, valores caros ao constituinte brasileiro. A respeito da ratio do dispositivo, o Plenário do Supremo Tribunal Federal assim se pronunciou no julgamento do Recurso Extraordinário n. 174.476-6, de relatoria do Ministro Maurício Corrêa: “Portanto, a imunidade tributária relativa aos livros, jornais, periódicos e papel destinado a sua impressão, vedando a incidência de impostos (ICMS e IPI) sobre esses bens, é objetiva e incondicionada, com o fito de assegurar a liberdade de comunicação e de pensamento, objetivando proteger a educação e a cultura, bem como para impedir que através de imposto se possam exercer pressões de cunho político. É objetiva, visto que somente considera o fato gerador e não o sujeito passivo da relação tributária”. 21 “O preceito constitucional há de merecer interpretação teleológica, buscando-se atingir, de forma plena, o objetivo visado, que outro não é senão afastar 21 STF, RExt. 174.476-6, Tribunal Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, Rel. p/ acórdão Min. Marco Aurélio, julg. 26.9.1996; trecho do voto do Min. Maurício Corrêa. 22 procedimentos que, de algum modo, possam inibir a produção material e intelectual de livros, jornais e periódicos. Sob o meu ponto de vista, a parte final do preceito, concernente à imunidade e à referência a livros, jornais e periódicos, não é exaustiva, e, tampouco, merecedora de interpretação literal, a ponto de dizer-se que somente se tem imunidade quanto à venda e aos atos que digam respeito diretamente ao papel utilizado. Tal óptica redundaria no esvaziamento da regra constitucional. (...) o objetivo precípuo que há de ser incansavelmente repetido é o de verdadeiro estímulo à veiculação de notícias e idéias, tal como inerente ao Estado Democrático de Direito”.22 “(...) é preciso interpretar a imunidade inscrita no art. 150, VI, d, tendo em vista os valores que a norma visa proteger: valores da cultura, da liberdade de expressão, de crítica, de informação. Ora, é incontestável que o livro, o jornal e o periódico estão a serviço de tais valores, certo que a proteção a esses valores é a tônica do constitucionalismo brasileiro”.23 “É preciso ter presente, na análise do tema em exame, que a garantia da imunidade estabelecida pela ordem constitucional brasileira em favor dos livros, dos jornais, dos periódicos e do papel destinado à sua impressão (CF, art. 150, VI) reveste-se de significativa importância de ordem político-jurídica, destinada a preservar e a assegurar o próprio exercício das liberdades de manifestação do pensamento e de 22 STF, RExt. 174.476-6, Tribunal Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, Rel. p/ acórdão Min. Marco Aurélio, julg. 26.9.1996; trecho do voto do Min. Marco Aurélio. 23 STF, RExt. 174.476-6, Tribunal Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, Rel. p/ acórdão Min. Marco Aurélio, julg. 26.9.1996; trecho do voto do Min. Carlos Velloso. 23 informação jornalística, valores em função dos quais essa prerrogativa de índole tributária foi conferida, instituída e assegurada”.24 31. Ressalta, ainda, a doutrina especializada sobre o fundamento do preceito constitucional: “(...) seu fundamento é político e cultural. Procura-se retirar impostos dos veículos de educação, cultura e saber para livrá-los de sobredobro das influências políticas, para que através do livro, da imprensa, das revistas, se possa criticar livremente os governos sem interferências fiscais. Por isso mesmo o insumo básico, o papel de impressão, está imune. Não por ser custo, senão porque, através dos impostos de barreira e do contingenciamento, poderia o Fisco embaraçar a liberdade de imprensa”.25 24 STF, RExt. 174.476-6, Tribunal Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, Rel. p/ acórdão Min. Marco Aurélio, julg. 26.9.1996; trecho do voto do Min. Celso de Mello. 25 Sacha Calmon, Comentários à Constituição de 1988: sistema tributário, Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 378. Assevera Aliomar Baleeiro: “A Constituição almeja duplo objetivo ao estatuir essa imunidade: amparar e estimular a cultura através dos livros, periódicos e jornais; garantir a liberdade de manifestação do pensamento, o direito de crítica e a propaganda partidária (...) o imposto pode ser meio eficiente de suprimir ou embaraçar a liberdade de manifestação do pensamento, a crítica dos governos e homens públicos, enfim, de direitos que não são apenas individuais, mas indispensáveis à pureza do regime democrático” (Limitações constitucionais ao poder de tributar, Rio de Janeiro: Forense, 2006, pp. 339 e 340). E, ainda, Hugo de Brito Machado, Curso de direito tributário, São Paulo: Malheiros, 1997, pp. 198 e 199: “A imunidade do livro, jornal ou periódico, e do papel destinado a sua impressão, há de ser entendida em seu sentido finalístico. E o objetivo da imunidade poderia ser frustrado se o legislador pudesse tributar qualquer dos meios indispensáveis à produção dos objetos imunes. Assim, a imunidade, para ser efetiva, abrange todo o material necessário à confecção do livro, do jornal ou do periódico”. 24 32. Deste modo, tendo em conta que o livro eletrônico realiza a mesma finalidade do livro impresso e idêntica função de propagação da cultura, divulgação de informação e concretização das liberdades constitucionais, há de se aplicar também ao livro eletrônico a imunidade tributária prevista no art. 150, VI, d, Constituição Federal. 26 33. Nesta esteira, confiram-se os precedentes dos Tribunais Regionais Federais: Na doutrina tributarista, a aplicação da imunidade tributária contida no art. 150, VI, “d”, Constituição da República ao livro eletrônico é ainda controversa. Os autores a favor da imunidade sustentam, em linhas gerais, a interpretação extensiva do dispositivo, para alcançar o livro eletrônico, como forma de conferir maior efetividade aos direitos fundamentais protegidos pela norma imunizante (Ricardo Lodi, A imunidade tributária do livro eletrônico e o pluralismo metodológico na interpretação do artigo 150, VI, d, CF, in Revista Trimestral de Direito Civil, no prelo da Editora Padma; Tércio Sampaio Ferraz Júnior, Livro eletrônico e imunidade tributária, in Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas, vol. 22, Ano 6, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998; Hugo de Brito Machado e Hugo de Brito Machado Segundo, Imunidade tributária do livro eletrônico, in Revista Jus Navegandi, http://jus.uol.com.br/revista/texto/1809/imunidade-tributaria-do-livro-eletronico. Acesso em 8.12.2010; Roque Antônio Carraza, Importação de bíblias em fitas: sua imunidade. Exegese do art. 150, VI, d, da Constituição Federal, cit., pp. 117-139). De outra parte, aqueles que se posicionam contra a imunidade tributária do livro eletrônico se baseiam na interpretação restritiva da norma constitucional, tendo em vista, basicamente, ser a imunidade exceção à regra de competência (Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho, A não-extensão da imunidade aos chamados livros, jornais e periódicos eletrônicos, in Revista Dialética de Direito Tributário, nº. 33, São Paulo, 1998, pp. 133-141). 26 25 “Constitucional. Tributário. Imunidade. Livros eletrônicos e acessórios. Interpretação teleológica e evolutiva. Possibilidade. 1. Na hipótese dos autos, a imunidade assume a roupagem do tipo objetiva, pois atribui a benesse a determinados bens, considerados relevantes pelo legislador constituinte. 2. O preceito prestigia diversos valores, tais como a liberdade de comunicação e de manifestação do pensamento; a expressão da atividade intelectual, artística e científica e o acesso e difusão da cultura e da educação. 3. Conquanto a imunidade tributária constitua exceção à regra jurídica de tributação, não nos parece razoável atribuir-lhe interpretação exclusivamente léxica, em detrimento das demais regras de hermenêutica e do ‘espírito da lei’ exprimido no comando constitucional. 4. Hodiernamente, o vocábulo ‘livro’ não se restringe à convencional coleção de folhas de papel, cortadas, dobradas e unidas em cadernos. 5. Interpretar restritivamente o art. 150, VI, “d” da Constituição, atendo-se à mera literalidade do texto e olvidando-se da evolução do contexto social em que ela se insere, implicaria inequívoca negativa de vigência ao comando constitucional. 6. A melhor opção é a interpretação teleológica, buscando aferir a real finalidade da norma, de molde a conferir-lhe a máxima efetividade, privilegiando, assim, aqueles valores implicitamente contemplados pelo constituinte. 7. Dentre as modernas técnicas de hermenêutica, também aplicáveis às normas constitucionais, destaca-se a interpretação evolutiva, segundo a qual o intérprete deve adequar a concepção da norma à realidade vivenciada. 8. Os livros são veículos de difusão de informação, cultura e educação, independentemente do suporte que ostentem ou da matéria prima utilizada na 26 sua confecção e, como tal, fazem jus à imunidade postulada. Precedente desta E. Corte: Turma Suplementar da Segunda Seção, ED na AC n.º 2001.61.00.020336-6, j. 11.10.2007, DJU 05.11.2007, p. 648. 9” (TRF 3, AMS 200061040052814, 6ª T., Rel. Juíza Consuelo Yoshida, julg. 1.9.2004; grifou-se). “(...) 3. A imunidade do papel destinado à impressão de livros, periódicos e jornais foi instituída como forma de fomentar a liberdade de imprensa, estando positivada no art. 150, VI, “d”, da Constituição Federal de 1988. 4. A jurisprudência consolidou-se no sentido de que a imunidade prevista no art. 150, VI, “d”, da Constituição Federal deve ser interpretada ampliativamente, sem possibilidade de censura quanto ao seu conteúdo, que não poderá ficar atrelado a fatores subjetivos, intelectuais, morais e religiosos do intérprete, pois caso a publicação seja atentatória à ética e aos direitos fundamentais caberá, em juízo posterior, a sua retirada de circulação. 5. Dentro desta exegese, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a imunidade dos álbuns de figurinhas (RE 221230/SP, Rel. Min. Ellen Gracie, D.J. 06/08/2004) e das listas telefônicas (RE 134071/SP, Rel. Min. Ilmar Galvão, D.J. 15/09/1992), e os Tribunais Regionais Federais vem perfilhando o entendimento segundo o qual estão abrangidos pela imunidade os livros eletrônicos (e-books) e os cd-roms didáticos ou científicos, diante do evidente avanço tecnológico após a promulgação da Constituição Federal de 1988” (TRF 2, AMS 200351010021552, 3ª 27 turma especializada, Rel. Des. Paulo Barata, julg. 16.9.2008; grifou-se).27 34. Por outro lado, na aplicação da norma constitucional, releva a observância, seja pela autoridade fiscal, seja pelo intérprete, dos conceitos de direito privado, especificamente a definição do bem jurídico livro, a teor do que dispõe o art. 110 do Código Tributário Nacional: Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias. 35. Sobre o tema, registra a doutrina especializada: “Na verdade, esse dispositivo [art. 110 do CTN] nem precisava existir. Embora se tenha reconhecido o 27 V. tb. TRF 4, Apel. Reex. 200670080016850, 1ª T., Rel. Vilson Darós, julg. 6.5.2009; TRF 3, AMS 200161000221230, 3ª T., Rel. Juiz Nery Junior, julg. 17.9.2009; TRF 2, AMS 200151010245652, 3ª Turma especializada, Rel. Des. Paulo Barata, julg. 26.8.2008; e TRF 2, AMS 200151010129159, 3ª Turma especializada, Rel. Des. Paulo Barata, julg. 16.9.2008. 28 importantíssimo serviço que o mesmo tem prestado ao Direito brasileiro, não se pode negar que, a rigor, ele é desnecessário. Desnecessário – é importante que se esclareça – no sentido de que com ou sem ele teria o legislador de respeitar os conceitos utilizados pela Constituição para definir ou limitar competências tributárias. Mas é necessário porque, infelizmente, a idéia de uma supremacia constitucional ainda não foi captada pelos que lidam com o Direito em nosso País”.28 “(...) o conceito de direito privado utilizado pela Constituição Federal não poderá ser alterado pela lei tributária, por exemplo, os conceitos de ‘propriedade’, ‘transmissão’ e ‘serviço’ não podem ser alterados pelo legislador ordinário a ponto de estarem sendo tributados, respectivamente, a ‘posse’ (para fins de IPTU), a ‘promessa de compra e venda’ (para o ITBI) e a ‘locação’ (para o ISS). Se assim não fosse, estaria possibilitado ao legislador ordinário alterar a própria Constituição”.29 36. A observância dos conceitos de direito privado não decorre da subordinação do Texto Constitucional às normas infraconstitucionais, mas da subordinação do intérprete à unidade semântica que assegure coerência ao sistema. Trata-se de postulado essencial dos princípios constitucionais da 28 Hugo de Brito Machado, O ISS e a locação ou cessão de direito de uso, in RDIT, 1/151, jun/04; p. 846. 29 Gabriel Pinos Sturts, Tributação do comércio eletrônico: análise da incidência do ICMS, in RET 34/5, fev/04; p. 847. 29 Segurança Jurídica, da Isonomia e do Estado Democrático de Direito, a exigir compreensão comum das definições técnicas utilizadas para a incidência do direito positivo. Almeja-se assim equivalência semântica em face de situações semelhantes, para que se possa preservar o conhecimento das previsões normativas por parte da coletividade. Poder-se-ia falar, nesta direção, de subordinação linguística exigida pelo Constituinte para todo o ordenamento, que se vale de categorias forjadas pela teoria geral do direito privado, em nome da coesão sistemática indispensável às aludidas garantias constitucionais. 37. Ressalte-se, nesta mesma perspectiva, que o ordenamento jurídico se compõe por uma pluralidade de fontes normativas, apresentando-se necessariamente como sistema heterogêneo e aberto. Daí decorre a sua complexidade, que só alcançará a unidade caso seja assegurada a centralidade da Constituição, receptora da tábua de valores que caracterizam a identidade cultural da sociedade.30 30 Gustavo Tepedino, Normas constitucionais e direito civil na construção unitária do ordenamento, in Cláudio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento (coords.), A Constitucionalização do direito, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007, p. 307 e ss. Nas palavras de Perlingieri: “Se allora i modelli di validità degli atti devono confrontarsi col modello costituzionale di legitimità, questo primato non può non tradursi anche in centralità. La complessità, per divenire sistema, deve avere una centralità sulla quale fondarsi. (...) In un ordinamento complesso come quello vigente, caratterizzato dalla indiscussa supremazia delle norme costituzionali, queste non possono non avere una posizione centrale. Da tale centralità è doveroso partire per l’individuazione dei principi e dei valori sui quali costruire il sistema. La centralità non è cosa diversa dalla supremazia” (Complessità e unitarietà dell’ordinamento giuridico vigente, in Rassegna di diritto civile, vol. 1/05, Edizioni Scientifiche Italiane, pp. 202 e 209). 30 38. Assim sendo, em ordenamento complexo e unitário, mostra-se indispensável a unicidade interpretativa a partir dos valores constitucionais, devendo-se, nesta direção, respeitar os conceitos legítimos de direito privado, porque legais e democraticamente estabelecidos, não sendo dado ao intérprete alterá-los mediante ardis semânticos ou definições estranhas ao sistema, de acordo com os interesses em jogo. 39. O Supremo Tribunal Federal, em diversas ocasiões, reconheceu que a norma constitucional, ao aludir a determinado conceito do direito privado, quis a ele precisamente se referir, não se mostrando possível, por isso mesmo, alterar o seu conteúdo para criar noção peculiar ou setorial, sob pena de se violar, a partir da corrupção semântica, a Igualdade Constitucional, a Segurança Jurídica e o Estado Democrático de Direito. 40. A título de ilustração, na análise do Recurso Extraordinário n. 466.343, no qual se discute a constitucionalidade da prisão civil do depositário infiel nos casos de alienação fiduciária em garantia, o Ministro Cezar Peluso, em seu voto, negou provimento ao recurso, ressaltando que, dentre outras razões, não há afinidade ou conexão teórica entre os dois modelos atinentes ao contrato de depósito e à alienação fiduciária em garantia, que permita sua equiparação. Tal conclusão decorre, à evidência, do exame dos conceitos de 31 depósito e de alienação fiduciária em garantia do direito privado, a denotar que a norma constitucional do art. 5º, LXVII, ao se referir a depositário infiel, teve em mira o conceito do direito privado. 41. Em outra ocasião, no julgamento do Recurso Extraordinário n. 390.840-5, o Ministro Cezar Peluso asseverou a necessidade de se recorrer a conceito incorporado pelo ordenamento jurídico com vistas a se determinar o sentido de termo empregado pela Constituição, sendo, em suas palavras, despropositado supor que a Constituição esteja se referindo a objeto extrajurídico: “Como já exposto, não há, na Constituição Federal, prescrição de significado do termo faturamento. Se se escusou a Constituição de o definir, tem o intérprete de verificar, primeiro, se, no próprio ordenamento, havia então algum valor semântico a que pudesse filiar-se o uso constitucional do vocábulo, sem explicitação de sentido particular, nem necessidade de futura regulamentação por lei inferior. É que, se há correspondente semântico na ordem jurídica, a presunção é de que a ele se refere o uso constitucional. Quando uma mesma palavra, usada pela Constituição sem definição expressa nem contextual, guarde dois ou mais sentidos, um dos quais já incorporado ao ordenamento, será esse, não outro, seu conteúdo semântico, porque seria despropositado supor que o texto normativo esteja aludindo a objeto extrajurídico. 32 (...) Apesar de parecer expletivo, ante a própria inteligência do sistema, o qual já não permite alteração da competência tributária pelo ente federado que a recebe, dada a rigidez constitucional, é, a respeito, peremptório o art. 110 do Código Tributário. (...) É claro que o preceito não serve a interpretar a Constituição, mas tem eficácia enquanto predica sanção de invalidez às normas tributárias que a contrariem nos aspectos enunciados. E não deixa de confirmar que a Constituição da República usa, implicitamente, conceitos de direito privado para definir ou limitar competências tributárias. Ao outorgar à União competência para instituir contribuição social sobre o faturamento, o constituinte originário indicou-lhe desde logo, de modo expresso, o fato gerador (hipótese de incidência) e a base de cálculo possíveis, interditando ipso facto à lei subalterna alargar ou burlar tais limites mediante subterfúgios lingüísticos ou conceituais, como, p. ex., alteração dos significados normativos incorporados pela Constituição”.31 42. Veja-se, ainda, trecho do voto do Ministro Marco Aurélio no Recurso Extraordinário nº. 166.772-9: “Realmente, a flexibilidade de conceitos, o câmbio do sentido destes, conforme os interesses em jogo, implicam insegurança incompatível com o objetivo da 31 STF, RE 390.840-5, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, julg. 9.11.2005; grifou-se. 33 própria Carta que, realmente, é um corpo político, mas o é ante os parâmetros que encerra e estes não são imunes ao real sentido dos vocábulos, especialmente os de contornos jurídicos. Logo, não merece agasalho o ato de dizer-se da colocação, em plano secundário, de conceitos consagrados, buscando-se homenagear, sem limites técnicos, o sentido público das normas constitucionais”. 32 43. Na mesma linha de raciocínio, firme na tradicional orientação da Suprema Corte, o Ministro Marco Aurélio, ao proferir seu voto no Recurso Extraordinário nº. 150.764, rememora decisão do Ministro Luiz Gallotti: “(...) é certo que podemos interpretar a lei, de modo a arredar a inconstitucionalidade. Mas, interpretar interpretando e, não, mudando-lhe o texto e, menos ainda, criando um imposto novo, que a lei não criou. Como sustentei muitas vezes, ainda no Rio, se a lei pudesse chamar de compra o que não é compra, de importação o que não é importação, de exportação o que não é exportação, de renda o que não é renda, ruiria todo o sistema tributário inscrito na Constituição”.33 32 33 STF, RE 166.772-9, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, julg. 12.5.1994. STF, RE 150.764, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julg. 16.12.1992. 34 44. Não se trata, evidentemente, de interpretar a Constituição Federal à luz da norma infraconstitucional, mas de respeito pelo intérprete ao exercício da competência legislativa constitucionalmente atribuída, dentro dos estritos limites legitimamente autorizados pelo Código Tributário Nacional. E tais limites constituem-se nas garantias, próprias do Estado Democrático de Direito, dos princípios da Isonomia – de modo que situações semelhantes não sejam submetidas à conceituação diferenciada – e da Segurança Jurídica – de maneira que o tratamento fiscal não surpreenda o contribuinte com a alteração obscura dos conceitos e da base de incidência tributária, a partir de subversão semântica. 45. Desta sorte, a autoridade fiscal e o intérprete hão de respeitar o conceito de bem jurídico delineado pelo direito privado, cuja evolução histórica, compatível com os avanços tecnológicos, permite que se compreenda como livro, ao longo do tempo, a obra intelectual transmitida por variados meios; do manuscrito ao impresso; do papiro ao papel; da tipografia à editoração eletrônica e, finalmente, ao meio eletrônico de veiculação, que se traduz no livro eletrônico. 46. Repita-se, ainda uma vez, que o livro eletrônico não se confunde com o CD ou com qualquer outro suporte material adotado para a sua leitura, 35 circunscrevendo-se ao arquivo digital, acessível aos usuários por meio de download ou outro modo de transferência. Por isso mesmo, não se aplica ao livro eletrônico a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que nega imunidade tributária aos insumos destinados à fabricação do livro,34 a exceção do papel destinado à sua impressão,35 ou aos vídeos, fitas cassetes, componentes eletrônicos e CD-room,36 justamente por se cuidar de hipótese 34 V., exemplificativamente, STF, RE 208638 AgR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1ª T., julg. 2.3.1999; STF, RExt. 324.600 AgR, 1ª T., Rel. Min. Ellen Gracie, julg. 03.09.2002; STF, AI 220.503, Decisão Monocrática, Rel. Min. Cezar Peluso, julg. 9.9.2004; STF, RExt. 509.279, Decisão Monocrática, Rel. Min. Celso de Mello, julg. 27.8.2007; STF, AI 724.291, Decisão Monocrática, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julg. 5.5.2009; STF, RExt. 613.430, Rel. Min. Joaquim Barbosa, 13.8.2010. 35 Sobre a interpretação do conceito de papel protegido pela imunidade constitucional, cf. STF, RExt. 174.476-6, Tribunal Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, Rel. p/ acórdão Min. Marco Aurélio, julg. 26.9.1996. 36 À guisa de exemplo, cf. STF, RExt. 431.701, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julg. 17.12.2009; STF, RExt. 517.077, Rel. Min. Cármen Lúcia, julg. 9.6.2010; STF, RExt. 330.817, Rel. Min. Dias Toffoli, julg. 4.2.2010; STF, RExt. 282387, Rel. Min. Eros Grau, julg. 23.5.2006; STF, AI 530.958, Rel. Min. Cezar Peluso, publ. 14.3.2005; STF, RExt. 416579, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julg. 17.12.2009. Neste particular, os Tribunais Regionais Federais, em contrariedade ao entendimento do Supremo, tem admitido a imunidade para os livros em CD-room. A título ilustrativo, cf. os precedentes a seguir: “O disposto no artigo 150, inciso VI, alínea ‘d’, da Constituição Federal se revela aplicável, uma vez que novos mecanismos de divulgação e propagação da cultura e informação de multimídia, como o CD-ROM, aos denominados livros, jornais e periódicos eletrônicos, são alcançados pela imunidade. A norma que prevê a imunidade visa facilitar a difusão das informações e cultura, garantindo a liberdade de comunicação e pensamento, alcançando os vídeos, fitas cassetes, CD-ROM, aos denominados livros, jornais e periódicos eletrônicos, pois o legislador apresentou esta intenção na regra no dispositivo constitucional. Apelação provida” (TRF 3, AMS 200161000221230, 3ª T., Rel. Juiz Nery Junior, julg. 17.9.2009); “Imunidade. Livros. ‘Quickitionary’. CF/88, art. 150, inc. VI, alínea ‘d’. Hoje, o livro ainda é conhecido por ser impresso e ter como suporte material o papel. Rapidamente, porém, o suporte material vem sendo substituído por componentes eletrônicos, cada vez mais sofisticados, de modo que, em breve, o papel será tão primitivo, quanto são hoje a pele de animal, a madeira e a pedra. A imunidade, assim, não se limita ao livro como objeto, mas transcende a sua materialidade, atingindo o próprio valor imanente ao seu conceito. A Constituição não tornou imune a impostos o livro-objeto, mas o livro-valor. E o valor do livro está justamente em ser um instrumento do saber, do ensino, da cultura, da pesquisa, da divulgação de idéias e difusão de ideais, e meio de manifestação do pensamento e da própria personalidade do ser humano. É por tudo isso que representa, que o livro está imune a impostos, e não porque apresenta o formato de algumas centenas de folhas impressas e encadernadas. Diante disso, qualquer suporte físico, não importa a aparência que tenha, desde que revele os valores que são imanentes ao livro, é livro, e como livro, estará imune a impostos, por força do art. 150, VI, ‘d’, da Constituição. O denominado ‘quickitionary’, embora não se apresente no formato tradicional do livro, tem conteúdo de livro e desempenha exclusivamente a função de um livro. Não há razão alguma para que seja excluído da 36 diversa. O livro eletrônico, como antes observado, representa bem incorpóreo, sem suporte tangível, cujo conteúdo coincide, em tudo e por tudo, com o livro impresso. 47. Em síntese, há de se aplicar ao livro eletrônico a disciplina jurídica incidente sobre o livro impresso, em especial a norma contida no art. 150, VI, d, Constituição Federal, por ser aquele a evolução técnica deste, ambos contidos na mesma noção de obra intelectual, a perseguir idêntica finalidade de difusão da cultura e da informação, voltada à efetivação das liberdades de expressão e de pensamento, em coerência com os conceitos de direito privado (art. 110, Código Tributário Nacional). 48. Tal conclusão prescinde da discussão acerca da adoção de técnica restritiva ou extensiva na interpretação da imunidade tributária.37 Por imunidade que a Constituição reserva para o livro, pois tudo que desempenha a função de livro, afastados os preconceitos, só pode ser livro” (TRF 4, Apel Reex 200670080016850, 1ª T., Rel. Vilson Darós, julg. 6.5.2009; grifou-se). 37 A questão da interpretação – extensiva ou restritiva – das normas sobre imunidade tributária deve ser solucionada a partir da identificação da função que lhes atribui a Constituição. Salienta-se em doutrina que as limitações ao poder de tributar – nas quais se incluem as imunidades – possuem “índole nitidamente política” (Aliomar Baleeiro, Limitações constitucionais ao poder de tributar, Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 21). Isto é, o constituinte, ao enumerar as situações jurídicas imunes, não as escolheu de forma arbitrária, mas procurou promover valores considerados fundamentais pela Constituição. Em outras palavras, “através da imunidade resguardam-se princípios, idéias-força ou postulados essenciais ao regime político” (José Souto Maior Borges, Isenções tributárias, São Paulo: Sugestões Literárias, 1980, p. 184). Em sentido semelhante, destacando a estreita vinculação entre as imunidades tributárias e as liberdades privadas fundamentais, Ricardo Lobo Torres, Tratado de direito financeiro e tributário, vol. III, cit., p. 74 e ss. Roque Antonio Carrazza 37 ser livro, a incidência da imunidade tributária ao livro eletrônico decorre de sua qualificação típica, sem que se mostre necessário qualquer outro recurso hermenêutico. As normas não possuem sentido apriorístico, mas são compostas de diversos elementos exteriores ao texto, sem os quais não se pode atribuir significado ao texto legal. Nesse processo, fato social e norma compõem unidade historicamente determinada, isto é, devem ser valorados de acordo com sua apreensão pela sociedade no momento da interpretação.38 Daí afirmarse que qualificação e interpretação constituem aspectos de evento incindível, pois, conforme observado anteriormente, “da interpretação decorre uma qualificação única de certo fato, que servirá como parâmetro objetivo de incidência das normas jurídicas”. 39 utiliza-se especificamente do exemplo em discussão (art. 150, VI, d) para exemplificar a razão das normas sobre imunidade: “a Constituição, mais do que proteger objetos (livros, jornais, periódicos, papel de imprensa), quer salvaguardar valores (cultura, educação, divulgação de idéias, etc)” (Roque Antonio Carrazza, Curso de direito constitucional tributário, cit., p. 851). Dessa forma, o intérprete das normas constitucionais imunizantes deve buscar a alternativa que melhor contribua para o cumprimento dos objetivos ali plasmados. Justifica-se, assim, sua extensão a hipóteses não explicitadas no dispositivo nos casos em que negar a imunidade implique enfraquecer a tutela dos valores que tais normas visam a promover, em flagrante contraposição aos objetivos da Constituição. 38 “O sentido, de fato, não é um atributo dos respectivos textos ou palavras; o sentido de um elemento é distinto do sentido da inteira estrutura. Nessa observação reside o fundamento da necessidade, metodológica e hermenêutica, de individuar “o contexto de significado, no qual uma proposição jurídica é situada, e a sistemática de um texto jurídico. A superação, assim proposta, do positivismo (simplesmente) lingüístico evidencia a contínua remissão do direito positivo a elementos extrapositivos: são eles, seja o elemento social (a necessária correlação entre norma e fato, a consideração do contexto, do direito como elemento de uma realidade global), seja o ‘direito natural’ ou, nos sistemas jurídicos modernos, as exigências de justiça racionalmente individuadas, mas não adequadamente traduzidas em textos legislativos” (Pietro Perlingieri, Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional, cit., p. 68). 39 Gustavo Tepedino, Sociedade prestadora de serviços intelectuais: qualificação das atividades privadas no âmbito do direito tributário, in Temas de Direito Civil, t. III, Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 96. 38 49. O livro eletrônico, repita-se, exerce a mesma finalidade e função do livro impresso, destinado à propagação da cultura, divulgação de informação e concretização das liberdades constitucionais, daqui decorrendo sua natureza jurídica de livro. A interpretação da aludida norma constitucional, por conseguinte, não pode se apartar dessa qualificação, mostrando-se desnecessário, portanto, recorrer à interpretação extensiva para que a esse bem jurídico se aplique a imunidade tributária. Rio de Janeiro, 1º de fevereiro de 2011 Prof. Gustavo Tepedino 39