COMENTÁRIO À JURISPRUDÊNCIA Danillo Lima da Silva Viviane Raquel Rodrigues de Oliveira COMENTÁRIO À JURISPRUDÊNCIA COMENTÁRIO À JURISPRUDÊNCIA InconstItucIonalIdade progressIva do art. 68 do códIgo de processo penal. stF, re 135328/sp, trIbunal pleno, rel. MIn. Marco aurélIo, julgado eM 29/06/1994, publIcado no dju eM 20/04/2001, p. 00137. Por Danillo Lima da Silva e Viviane Raquel Rodrigues de Oliveira (Bacharelandos em Direito, pela Universidade Federal Rural do Semiárido –UFERSA, Mossoró-RN ) No julgado em apreço, o Supremo Tribunal Federal (STF) negou provimento a recurso extraordinário interposto pela Procuradoria do Estado de São Paulo em face de decisão prolatada pela Primeira Câmara Cível do Tribunal de Justiça Paulista, na qual foi reconhecida a legitimidade do Ministério Público para propor ação civil ex delicto, nos termos do art. 68 do Código de Processo Penal, em favor de pais de preso que veio a falecer numa tentativa de fuga. A recorrente alegou que exorbita a competência do Ministério Público promover a defesa dos necessitados, sendo esta atribuição da Defensoria Pública, de maneira que a decisão atacada fere os arts. 129, IX, e 134, caput, ambos da Constituição Federal (CF/88). O Ministro Marco Aurélio, então relator, sustentou em seu voto, inicialmente, a ilegitimidade do Ministério Público para propor a ação de ressarcimento de dano, porquanto a Constituição Federal, em seu artigo 127, conferiu ao órgão Ministerial a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, não se enquadrando a reparação de dano por ato ilícito estatal em nenhuma dessas categorias, por possuir como objeto direito patrimonial disponível. Acompanharam o entendimento do relator os Ministros Francisco Rezek, Ilmar Galvão e Carlos Velloso. O Ministro Celso de Melo, por sua vez, votou pelo improvimento do recurso, aduzindo R. Defensoria Públ. União Brasília, DF n. 8 p. 1356 jan/dez. 2015 335 que a proposição de ação civil ex delicto insere-se na esfera de atribuições institucionais do Ministério Público, consoante redação do art. 129, IX, CF/88, de maneira que o art. 68 do CPP não apresenta qualquer incompatibilidade com o regramento constitucional. Em seguida, proferiu voto o Ministro Sepúlveda Pertence, em cuja manifestação repousa a tese que faz deste julgado marco jurisprudencial. Alegou o Ministro que necessário é saber, à luz do art. 129, IX, CF/88, se o art. 68 do CPP foi recepcionado pela ordem constitucional vigente. Formulado o questionamento, Pertence afastou os argumentos utilizados pelos demais Ministros e invocou o conceito da inconstitucionalidade progressiva da norma para embasar sua conclusão. A ideia de inconstitucionalidade progressiva tem origem na Corte Constitucional alemã, em 1954, como fruto do denominado processo de inconstitucionalização da lei, segundo o qual determinado dispositivo de lei, embora em consonância com a ordem constitucional em vigor, caminha para a inconstitucionalidade, em função de eventos exteriores à legislação que, tão logo verificados, retirarão da norma o status de constitucional. No direito germânico, era a denominada lei ainda constitucional (es ist noch verfassungsgemäss). Diz-se, no Brasil, norma constitucional em trânsito para a inconstitucionalidade. É o caso do ar. 68 do CPP, conforme explica o Ministro Sepúlveda Pertence: Estou em que, no contexto da Constituição de 1988, essa atribuição deva efetivamente reputar-se transferida do Ministério Público para a Defensoria Pública: essa, porém, para esse fim, só se pode considerar existente, onde e quando organizada, de direito e de fato, nos moldes do art. 134 da própria Constituição e da lei complementar por ela ordenada: até que – na União ou em cada Estado considerado – se implemente essa condição de viabilização da cogitada transferência constitucional de atribuições, o art. 68 do C. Pr. Pen. será considerado ainda vigente.1 O instituto é pouco utilizado no Brasil, prevalecendo os sistemas de controle difuso e concentrado de constitucionalidade, nos quais se reconhece a constitucionalidade plena da norma ou, de outro modo, sua inconstitucionalidade com efeito ex tunc ou com efeitos modulados. Reconhecer, portanto, que determinado dispositivo de lei oscila entre esses dois extremos, encontrando-se, em verdade, em trânsito da constitucionalidade para a inconstitucionalidade significa grande avanço no âmbito da jurisdição constitucional. STF, RE 135328/SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 29/06/1994, publicado no DJU em 20/04/2001, p. 00137. 1 R. Defensoria Públ. União Brasília, DF n. 8 p. 1356 jan/dez. 2015 336 Sobre o tema, preleciona o doutrinador Marcelo Novelino que se trata de técnica aplicável ao sistema brasileiro de controle de constitucionalidade e utilizada em situações constitucionais imperfeitas, que se situam entre a constitucionalidade plena e a inconstitucionalidade absoluta, sendo concebida como alternativa de flexibilização das técnicas de decisão no juízo de controle de constitucionalidade, a partir da ideia de que era necessário um meio termo na aferição de inconstitucionalidade, capaz de apontar situações ainda constitucionais. 2 Após o voto de Sepúlveda Pertence, os demais Ministros, que antes votaram pelo conhecimento do recurso especial, retificaram seus votos, adotando a tese da inconstitucionalidade progressiva. Vale frisar, ainda, que o Ministro Néri da Silveira enriqueceu o debate trazendo a lume dados estatísticos quanto à estruturação das Defensorias Públicas no Brasil, entre os anos 1990 e 1994, os quais revelaram a precariedade da instituição e a consequente deficiência na prestação da assistência jurídica, defendendo o Ministério Público como legitimado para propor a ação civil ex delicto enquanto não estruturadas as Defensorias Públicas em todas as unidades da Federação. No que tange ao atual cenário, a ANADEP3 e o IPEA4, em março deste ano, lançaram mapa descritivo da Defensoria Pública nos estados brasileiros5. De acordo com esta pesquisa inédita, constatou-se que apenas 28% das Comarcas brasileiras dispõem do serviço da Defensoria Pública. Ou seja, das 2.680 comarcas distribuídas em todo o país, a Defensoria só está presente em apenas 754. Em alguns estados, como Goiás e Amapá, esse órgão foi sequer efetivamente implantado. O estudo também revelou que, até o momento, 8.489 cargos de defensor público foram criados em todo o Brasil. Porém, apenas 5.054 estão providos. Por outro lado, considerando uma estimativa proporcionalmente idealizada, que seria de um defensor público para cada 10.000 pessoas com renda mensal de até três salários-mínimos, o déficit total no Brasil chega a incrível marca de 10.578 defensores públicos. No que tocante especialmente ao quadro de Defensores Públicos Federais, até maio deste ano, o número era de apenas 481 para atender as mais de 250 seções judiciárias existentes NOVELINO, M. Teoria da constituição e controle de constitucionalidade. Bahia: Juspodivm, 2008. p. 125. 3 Associação Nacional dos Defensores Públicos. 4 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. 5 Mapa da Defensoria Pública no Brasil. Disponível em:<http://www.ipea.gov.br/sites/mapadefensoria.>Acesso em: 18 nov. 2013. 2 R. Defensoria Públ. União Brasília, DF n. 8 p. 1356 jan/dez. 2015 337 em todo o país. Assim, 72% das seções não eram contempladas com a assistência direta desta função, o que, obviamente, enseja um comprometimento substancial do acesso à justiça daquele cidadão hipossuficiente6. Ora, de acordo com a Carta Magna vigente, o acesso à justiça é direito fundamental do cidadão, quando assegura que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”7. De igual modo, e com o devido discernimento, cuidou o legislador constituinte de garantir à Defensoria Pública o status constitucional de instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados8. Portanto, foi o Estado incumbido de garantir a prestação da assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos9. Não obstante às disposições constitucionais supramencionadas, o Brasil caminha lentamente no que concerne ao fortalecimento deste órgão, colocando-se distante do cumprimento da ampliação do acesso à justiça, consoante dados acima esposados. Esse lastimável quadro apenas reafirma a competência do Ministério Público para propor a ação civil ex delicto, embora esta destoe da teleologia constitucional, porquanto estabeleceu a Carta Magna instituição com o fim precípuo de assistir aos necessitados em suas demandas judiciais. Mesmo após 25 anos da promulgação da Constituição Federal, não é exclusividade da Defensoria Pública a competência de que trata o art. 68 do CPP, num fenômeno que se pode chamar de usurpação legal – e, diante da situação –, até mesmo necessária, de competência. Não se poderia deixar de comentar uma recente conquista da Defensoria Pública da União, que veio por meio da Emenda Constitucional nº 74, que, a exemplo das Defensorias Públicas Estaduais, passou a assegurar-lhe autonomia funcional e administrativa, além de sua iniciativa de proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias da União. Antes desta disposição constitucional, havia um paradoxo inconcebível, pois a única Defensoria sem autonomia era a da União, ficando até então subordinada ao Poder Executivo, enquanto que, em muitas ações, é responsável por litigar exatamente contra os seus órgãos para defender o cidadão. OLIVEIRA, Gabriel Faria de. País tem déficit grande de defensores públicos. Disponível em:< http://www.conjur.com.br/2013-mai-22/gabriel-oliveira-pais-deficit-grande-defensorespublicos>. Acesso em 18 nov. 2013. 6 CF/88, art. 5º, XXXV. CF/88, art. 134. 9 CF/88, art. 5º, LXXIV. 7 8 R. Defensoria Públ. União Brasília, DF n. 8 p. 1356 jan/dez. 2015 338 Embora a Defensoria Pública dos estados já possa contar com essa autonomia desde 2004, a partir da Emenda Constitucional nº 45, e, mesmo assim, ainda persistir um déficit preponderante em quase todos os estados, espera-se que com o advento desta autonomia para a Defensoria Pública da União, esta, por sua vez, consiga uma maior e melhor estruturação e seu consequente fortalecimento, para que, num caminho programático e progressivo mais célere, possa arrematar para si a competência de, mediante requerimento, promover a execução da sentença condenatória ou a ação civil quando o titular do direito à reparação do dano for hipossuficiente, nos termos da lei. REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 17 nov. 2013. BRASIL. Decreto-Lei n.° 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689compilado. htm>. Acesso em: 17 nov. 2013. Mapa da Defensoria Pública no Brasil. Disponível em:<http://www.ipea.gov.br/sites/ mapadefensoria.>Acesso em: 18 nov. 2013. MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade: uma análise das leis 9868/99 e 9882/99. Revista Eletrônica de Direito do Estado (REDE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº. 19, julho/agost/setembro, 2009. Disponível em<https:// www2.mp.pa.gov.br/sistemas/gcsubsites/upload/39/controledeconstitucionalidade.pdf>. Acesso em: 17 nov. 2013. NOVELINO, Marcelo. Teoria da constituição e controle de constitucionalidade. Bahia: Juspodivm, 2008. p. 125. OLIVEIRA, Gabriel Faria de. País tem déficit grande de defensores públicos. Disponível em:< http://www.conjur.com.br/2013-mai-22/gabriel-oliveira-pais-deficitgrande-defensores-publicos>. Acesso em: 18 nov. 2013. Supremo Tribunal Federal. Disponível em<http://www.stf.jus.br/portal/principal/ principal.asp>. Acesso em: 17 nov. 2013. R. Defensoria Públ. União Brasília, DF n. 8 p. 1356 jan/dez. 2015 339