Cadernos de Linguagem e Sociedade, 15 (1), 2014 GERENCIAMENTO DE VOZES NO DISCURSO MIDIÁTICO: CAROS AMIGOS X ÉPOCA (The management of voices in the media discourse: Caros Amigos vs. Época) Daniele de Oliveira 1 (Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB) ABSTRACT Analyzing two articles about the Portuguese Language Orthographic Agreement published in Caros Amigos and Época magazines, this paper investigates how the voices quoted or reported are managed in the media discourse. The analysis was performed considering the verbal clauses, according to the Systemic Functional Linguistics (Halliday, Matthiessen, 2004), and the function of introductory verbs (Marcuschi, 2007). An intended, stronger and more obvious neutrality was observed in Época as opposed to Caros Amigos magazine, in view of the recurrent use of the verb dizer (to say) in the discourse, as well as the higher frequency of paratactic quotes. Keywords: quoted discourse, media discourse, reported speech, verbal clauses, introductory verbs. RESUMO Neste trabalho, investigo como as vozes citadas ou relatadas são gerenciadas no discurso midiático, a partir da análise de duas reportagens sobre o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa publicadas nas revistas Caros Amigos e Época. A análise foi feita considerando-se as orações verbais, sob o viés da Linguística Sistêmico-Funcional (Halliday; Matthiessen, 2004), e também as funções dos verbos introdutores de opinião (Marcuschi, 2007). Observou-se que a revista Época apresenta uma pretensão de neutralidade mais forte e mais evidente do que Caros Amigos, tendo em vista o uso predominante do verbo dizer em seu discurso, bem como a maior frequência de citações paratáticas. Palavras-chave: discurso citado, discurso midiático, discurso relatado, orações verbais, verbos introdutores de opinião. Introdução Uma das formas de manipulação discursiva é o uso de verbos introdutores de opinião (Marcuschi, 2007) ou de processos verbais (Halliday; Matthiessen, 2004). Esses verbos são os responsáveis pela introdução do discurso relatado ou citado em determinado texto e, portanto, organizam a argumentação discursiva. De fato, a inserção de outras vozes em um texto pode funcionar como um argumento de autoridade capaz de convencer o interlocutor sobre determinado ponto de vista. Nosso objetivo é, pois, investigar como as vozes citadas ou relatadas são gerenciadas no discurso midiático, tomando como exemplares para análise duas reportagens sobre o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, um tema polêmico, publicadas nas revistas Caros Amigos e Época. Escolhemos essas duas revistas como representantes, no 1 Doutora em Estudos Linguísticos pela UFMG. Mestre em Língua Portuguesa pela PUC-MINAS. Já atuou como docente no ensino superior, presencial e a distância, pós-graduação (especialização) e também na educação básica. Atualmente cursa pós-doutorado na UESB. Áreas de interesse: ACD, LSF, discurso da mídia alternativa. 84 p. 84 - 100 Daniele de Oliveira contexto brasileiro, do jornalismo alternativo e do jornalismo corporativo, respectivamente, com o objetivo de comparar os discursos veiculados nesses dois tipos de mídia. Nossa análise parte dos processos verbais, tal como proposto por Halliday; Matthiessen (2004). Nessa primeira etapa, observaremos como se estruturam as orações verbais, quais são as fontes, também representadas pelas Circunstâncias de Ângulo, bem como os Dizentes mais recorrentes, e o que essas inferências representam em termos de construção de sentidos. Em uma segunda etapa, observaremos os usos dos verbos introdutores de opinião, considerando sua função no discurso, tal como propôs Marcuschi (2007). Por fim, traçaremos um paralelo entre os discursos veiculados em Caros Amigos e os discursos veiculados em Época, considerando a maneira como são estruturados esses discursos no texto e a função dos processos. De acordo com Marcuschi (2007: 167), “Saber o que é que alguém quis dizer com o que disse exige que se penetre em profundidade naquilo que ele não disse” e, dessa forma, ressaltamos a importância de análises desse tipo, já que evidenciam que a observação mais detida de verbos do dizer e dos processos verbais pode revelar intenções implícitas no discurso, especialmente no discurso midiático. Está claro, no entanto, que esta é apenas uma das estratégias linguísticas possíveis para a construção da argumentação, mas uma importante estratégia. As estruturas de orações verbais têm sido analisadas em diferentes gêneros discursivos sob o viés da Linguística Sistêmico-Funcional. Entre as pesquisas relativas aos gêneros midiáticos podemos destacar Hunston (1995), Barbara e Aires Gomes (2010) e Cabral e Barbara (2012). 1. Os verbos introdutores de opinião Todo texto é fundamentalmente polifônico (Bakhtin, 2006 [1929]), ou seja, é permeado por várias vozes além da voz do próprio autor. Essas vozes podem estar explícitas ou implícitas no fio do discurso2. Quando a voz é explicitada, em geral, é por meio da Citação ou do Relato com a identificação da fonte. Além disso, “apresentar ou citar o pensamento de alguém implica, além de uma oferta de informações, também uma certa tomada de posição diante do exposto” (Marcuschi, 2007: 146). No entanto, ressalta o autor, esse posicionamento, em geral, não é explicitado paralelamente, mas é processado por meio do instrumento linguístico. Dito de outra forma, são as escolhas linguísticas feitas pelo autor do texto que revelam seu posicionamento em relação ao pensamento/discurso que veicula. De um modo geral, “pode-se dizer que é praticamente impossível informar neutramente” (Marcuschi, 2007: 151), já que ao apresentar ou citar o discurso do outro, o autor do texto parte de sua interpretação desse discurso, interpretação que, por sua vez, é influenciada pelas estruturas sócio-político-culturais nas quais está inserido. Sendo assim, 2 O termo discurso, neste trabalho, está sendo entendido como uma forma de representação do mundo material, tal como proposto por Fairclough (2003). Assim temos o discurso da revista Caros Amigos, o discurso feminista etc. 85 Cadernos de Linguagem e Sociedade, 15 (1), 2014 quando se informa uma opinião, especialmente no discurso midiático, pode-se dizer que ela é sempre manipulada por essa interpretação pessoal. Essa manipulação, em geral, é feita por meio de um verbo introdutor de opinião. Para Marcuschi (2007: 151), Ao se informar a opinião de alguém é possível levá-lo a dizer algo que não disse. (...) Muitas vezes alguém levantou uma hipótese e o redator já nos faz ver uma declaração; outras vezes um político expressa uma posição mais dura e o redator transforma aquilo em uma ameaça; em outros casos alguém faz uma ressalva e o redator nos faz ver uma ênfase. Assim se processa a manipulação discursiva, ainda que ela não seja intencional ou que esteja despida de intenções obscuras. O relato de opiniões pode acontecer por meio de um verbo, de uma nominalização, de construções adverbiais ou de dois pontos (ou inserção aspeada no texto). Neste trabalho, vamo-nos dedicar principalmente à análise da opinião introduzida por um verbo. Os verbos introdutores de opinião funcionam como “parafraseantes sintéticos” (Marcuschi, 2007), já que resumem o sentido geral do discurso apresentado em uma só palavra, e propõe uma classificação dos verbos introdutores de opinião a partir de sua função lógico-organizadora no discurso em que aparecem. Para ele, essa organização parte de um texto (relato) montado a partir de outro texto (opinião), o que justifica a classificação que propôs. E é justamente nessa organização que a manipulação se manifesta, já que nem sempre as funções assumidas pelos verbos são coerentes com a opinião do autor do discurso relatado. Partindo do pressuposto de que os verbos introdutores de opinião organizam os argumentos do autor no texto, Marcuschi (2007) distingue sete classes gerais de funções organizadoras: (i) (ii) (iii) (iv) (v) (vi) (vii) verbos indicadores de posições oficiais e afirmações positivas: declarar, afirmar, confirmar; verbos indicadores de força do argumento: ressaltar, acentuar, enfatizar; verbos indicadores de emocionalidade circunstancial: desabafar, esbravejar, ironizar; verbos indicadores da provisoriedade do argumento: achar, julgar, imaginar; verbos organizadores de um momento argumentativo no conjunto do discurso: prosseguir, concluir, acrescentar; verbos indicadores de retomadas opositivas, organizadores dos aspectos conflituosos: reafirmar, discordar, defender; verbos interpretativos do caráter ilocutivo do discurso referido: advertir, censurar, sugerir. Tendo em vista também a função argumentativa que esses verbos desempenham no discurso, pode-se dizer que eles incorporam as intencionalidades do autor do texto, a partir de sua interpretação da opinião citada ou relatada. Mas como essas orações são estruturadas 86 p. 84 - 100 Daniele de Oliveira textualmente? Mais especificamente, como elas são estruturadas no discurso midiático? Passemos agora à proposta de Halliday; Matthiessen (2004) para uma análise da estrutura das orações verbais com o intuito de tentar responder a essas questões. 2. As orações verbais As orações verbais, ou seja, aquelas por meio das quais é possível articular o discurso autoral e o discurso das fontes, também podem ser analisadas a partir da abordagem sistêmico-funcional (Halliday, Matthiessen, 2004). Os objetivos centrais da Linguística Sistêmico-Funcinal (LSF) são descrever o sistema da língua, bem como a maneira pela qual esse sistema se relaciona com textos empíricos. Na visão funcionalista, a estrutura é entendida como parte fundamental da descrição, mas interpretada como a forma exterior assumida pelas escolhas sistêmicas, e não a característica que define a língua. O significado reside nos padrões sistêmicos de escolha. (HALLIDAY, MATTHIESSEN, 2004) A noção de escolha é central na visão funcionalista da língua já que um texto é resultado de uma seleção feita pelo falante a partir do potencial de opções disponíveis no sistema linguístico. Ressalte-se o caráter intencional e ideológico dessas escolhas, ainda que eventualmente inconscientes, considerando-se que o uso da língua parte sempre de uma razão motivadora (EGGINS, 2004). Considerando que a língua tem por objetivo satisfazer as necessidades comunicativas humanas e, por isso, é organizada de maneira funcional e sistêmica, pode-se dizer que ela é estruturada para produzir três principais tipos de significado simultaneamente, ou seja, o sistema semiótico consiste nas metafunções (Halliday, Matthiessen, 2004): ideacional (experiencial e lógico), interpessoal (interação) e textual (sequências de discurso). Neste trabalho vamos nos dedicar à análise da metafunção ideacional, sendo nosso foco o significado experiencial revelado a partir do comportamento dos processos verbais e das circunstâncias de ângulo. O sistema de transitividade (Halliday, Matthiessen, 2004) constrói o mundo da experiência a partir de um conjunto de tipos de processos. Dessa forma, a Metafunção Ideacional Experiencial se relaciona com a realidade presente em determinado texto, ela relaciona o texto e o mundo real. Cada tipo de processo, realizado por meio de grupos verbais, possui seu esquema para construir determinado domínio da experiência como uma figura de um tipo específico. Para os autores, os principais tipos de processos de transitividade são o material, o mental e o relacional, mas ressaltam que há outras categorias localizadas nos limites entre eles. No limite entre os processos material e mental está o processo comportamental; no limite entre os processos mental e relacional está o processo verbal; e, por fim, no limite entre os processos relacional e material está o processo existencial. Ressaltamos a importância discursiva dos processos verbais, já que é por meio deles que o autor do texto explicita as vozes nas quais fundamenta seu discurso, ou até mesmo as vozes com as quais estabelece um embate. Como o foco deste trabalho centra-se nos usos dos processos verbais, bem como das circunstâncias de ângulo, passemos a uma explicação mais 87 Cadernos de Linguagem e Sociedade, 15 (1), 2014 detalhada da estrutura das orações verbais a partir das considerações de Halliday e Matthiessen (2004). As orações verbais são orações de dizer e constituem um recurso importante em diversos tipos de discurso, tais como o acadêmico e o jornalístico, uma vez que contribuem para a criação da narrativa tornando possível a configuração de passagens explicitamente dialógicas ao mostrar as fontes de determinadas vozes presentes no texto (Halliday, Matthiessen, 2004). No discurso jornalístico, mais especificamente, é por meio das orações verbais que o jornalista atribui a informação a fontes, que podem ser representantes do governo, especialistas no assunto e/ou testemunhas. A oração verbal é constituída de um participante principal, o Dizente, de um processo que indica a atividade de fala, o Processo Verbal, e pode apresentar também outros Participantes opcionais: a Verbiagem, o que é dito, o Receptor, a quem é dito, e o Alvo, o que ou quem é atingido pelo processo de dizer. O participante Dizente é o responsável pelo processo verbal, ainda que não seja humano. Sendo assim, a fonte de uma informação tanto pode ser um ser consciente, como em “E, como ela foi concebida tão somente para atender a uma demanda diplomática, conforme aponta Dallari, não levou em conta as necessidades dos usuários profissionais da língua, como professores e jornalistas”, quanto pode ser um ser inconsciente, como em “a raposa disse que as uvas ainda estavam verdes”, em fábulas e histórias infantis, por exemplo. Os Processos das orações verbais, conforme sugerem Halliday, Matthiessen (2004), podem ser realizados por verbos ou por grupos verbais de dois tipos principais: os verbos de atividade (elogiar, insultar, abusar, caluniar, lisonjear, criticar, culpar, repreender, falar e conversar) e os verbos de semiose (contar, relatar, anunciar, explicar, provar, prometer, perguntar, interrogar, dizer, ordenar, ameaçar, suplicar, implorar, rogar, persuadir e prometer ente outros) Além dos processos verbais, é importante ressaltar as Circunstâncias de Ângulo que se relacionam com o Dizente nas orações verbais. Nesse caso, a Circunstância de Ângulo constitui a fonte da informação Citada ou Relatada (Halliday, Matthiessen, 2004) e, por isso, também pode ser considerada parte de uma oração verbal. O participante Recebedor, a quem a mensagem é dirigida, em geral é realizado por um grupo nominal, que pode indicar um ser consciente, um coletivo ou uma instituição, como em “João Pedro responde a todas as perguntas dos jornalistas”. Ressalte-se que o grupo nominal que representa o Recebedor também pode ocorrer acompanhado por uma preposição, como no exemplo citado. O participante Alvo se refere a quem será atingido pelo processo de dizer, ou seja, sobre quem o Dizente age verbalmente, como em “Ela acusou o marido de ser individualista”. As orações verbais que apresentam Alvo em geral não projetam orações. Em uma abordagem funcionalista da linguagem, o Participante Verbiagem, ou o que é dito, tem a função de oração secundária em uma oração complexa, e pode ser realizada por um grupo nominal ou preposicional. Ela pode representar o conteúdo do que é dito (questão, afirmação, ordem), ou seja, o nome do dizer. Além disso, a Verbiagem também pode representar o nome de uma língua (árabe, francês). Nas orações verbais é muito frequente que 88 p. 84 - 100 Daniele de Oliveira a Verbiagem seja realizada por meio de uma oração projetada que será classificada como uma Citação ou como um Relato. A noção de projeção pode ser entendida como uma relação lógico-semântica por meio da qual uma oração passa a funcionar como a representação de uma representação (linguística) e não como uma representação direta da experiência (não linguística). Os usos discursivos da projeção podem ser: atribuir fontes em notícias, representar pontos de vista no discurso científico, construir diálogos na narrativa, construir questões na conversação. A oração projetada pode ser uma proposição, realizada por uma oração finita, ou uma proposta, realizada por uma oração perfectiva não-finita (Halliday, Matthiessen, 2004). Halliday, Matthiessen (2004) apontam três sistemas envolvidos na diferenciação dos tipos de projeção: o nível da projeção (ideia x locução); o modo da projeção (relato hipotático x citação paratática) e a função da fala (proposição projetada x proposta projetada 3). Por meio da projeção, uma oração torna-se a representação do conteúdo linguístico de outra. No caso específico da oração verbal, objeto desta investigação, o conteúdo da oração de dizer, ou seja, a locução. No que se refere ao modo da projeção, ela pode combinar as orações projetante e projetada a partir das relações táticas de interdependência (Halliday, Matthiessen, 2004): a parataxe (citação) e a hipotaxe (relato). Vejamos cada uma delas. A forma mais simples de projeção é o discurso direto. Há inúmeros usos desse tipo de vínculo de citação – material de testemunhas oculares em notícias, passagens dialógicas em narrativas, cenas em biografias, citações no discurso científico. Nesse tipo de citação, a relação tática, ou seja, o tipo de dependência, é a parataxe, o que significa que as duas partes tem valores iguais. A oração projetada retém, dessa forma, todos os traços interativos da oração, inclusive o potencial modo verbal, além dos vocativos e expletivos, seleção tonal, e continuativos textuais (HALLIDAY, MATTHIESSEN, 2004). Além dessa forma, é possível também relatar um dizer, representando-o como um significado. Trata-se do discurso indireto. Nesse caso, o princípio básico que fundamenta a representação hipotática de um evento verbal é que esse evento não é, necessariamente, verdadeiro, mas apresentado como verdadeiro para aquele texto. O falante relata a essência do que foi dito, ou seja, o texto produzido pode ser bastante diferente do original. Ressalte-se, no entanto, que quando um falante usa a forma direta, paratática, ele também não está necessariamente repetindo as palavras exatas, mas complementando a informação (HALLIDAY, MATTHIESSEN, 2004). Passemos, agora, à análise das orações verbais encontradas nas reportagens de Caros Amigos e Época com o intuito de compreendermos como ocorre o gerenciamento de vozes nas duas revistas, e de estabelecermos uma comparação entre os dois discursos. Em primeiro lugar, analisaremos a estrutura das orações à luz da LSF e, na sequência, observaremos o comportamento dos verbos introdutores de opinião, considerando sua função no discurso. 3 A proposição é utilizada para troca de informações, enquanto a proposta para ofertas e comandos (Halliday, Matthiessen, 2004). Categorias da metafunção interpessoal, proposição e proposta também se relacionam com as categorias da transitividade, que realiza a metafunção ideacional experiencial com a qual estamos trabalhando. 89 Cadernos de Linguagem e Sociedade, 15 (1), 2014 3. Metodologia As reportagens selecionadas para nossa análise são “Acordo ortográfico: os interesses por trás da pretensa uniformização” publicada na revista Caros Amigos, edição de fevereiro de 2013, e “Você achava que sabia escrever? Aprenda de novo” publicada na revista Época, edição de 31 de dezembro de 2008. As duas reportagens tratam do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa que foi implantado em todos os países de língua portuguesa em janeiro de 2009, com o intuito de unificar a ortografia e, portanto, aproximar os países envolvidos: Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Timor Leste, Brasil e Portugal. O período de transição para as novas regras ortográficas se encerra em dezembro de 2015. Na primeira etapa da análise, vamos considerar os pressupostos da Linguística Sistêmico-Funcional (Halliday; Matthiessen, 2004), tal como apresentados anteriormente, para identificarmos e quantificarmos os padrões mais frequentes de orações verbais encontradas em cada reportagem. Sendo assim, procuraremos investigar como se organizam essas orações, bem como os efeitos de sentido que essa organização pode produzir e então faremos uma comparação entre as formas de gerenciar as vozes de terceiros em cada publicação. Na segunda etapa da análise, vamos considerar os pressupostos teóricos de Marcuschi (2007). O objetivo é observar como os verbos introdutores de opinião organizam os argumentos no texto, bem como a intencionalidade do autor já que, como vimos, a seleção lexical parte de uma razão motivadora. Nessa etapa serão analisados exemplos de uso dos verbos introdutores de opinião mais frequentes nas reportagens em tela e, na sequência, tentaremos estabelecer algumas comparações entre os usos nas duas publicações. 4. As orações verbais no discurso das revistas Caros Amigos e Época Na reportagem da revista Caros Amigos foram encontradas trinta e nove orações verbais, ou seja, orações nas quais encontramos vozes distintas da voz do autor do texto referidas de maneira explícita. Encontramos quatro padrões estruturais mais frequentes: Padrão 1 Padrão 2 Padrão 3 Padrão 4 Estrutura da oração Circunstância de Ângulo + Oração Projetada (Relato ou Citação) Dizente + Processo Verbal + QUE + Relato Citação + Processo Verbal + Dizente Dizente + Processo Verbal + Relato ou Citação Percentual 21% 18% 18% 15% Tabela 1. Estruturas de orações verbais mais frequentes na reportagem da revista Caros Amigos A partir desse levantamento inicial das estruturas mais frequentemente encontradas nesse discurso, observamos que a mais recorrente não apresenta o Processo Verbal. No entanto, estamos considerando essa estrutura como uma oração verbal uma vez que ela parte de uma Circunstância de Ângulo, que se refere à fonte da informação veiculada, em uma 90 p. 84 - 100 Daniele de Oliveira oração verbal (Halliday; Matthiessen, 2004). Em geral, a Circunstância de Ângulo representa a fonte, por isso, na oração em que ela ocorre, não há Dizente. Vejamos alguns exemplos do Padrão 1: 1. Para o linguista Bruno Dallari, essa contraposição de ideias é falaciosa “porque nós, linguistas, somos há muito tempo a favor da reforma, mas não essa [que está posta]. A unificação ortográfica seria uma reforma entre as possíveis. O novo Acordo Ortográfico não supre o problema maior, que é o elitismo, o relativo arcaísmo e a abstração do registro escrito no português brasileiro. A maior parte das pessoas não fala como se escreve. E tem algo de aberrante você ter que fazer todo mundo ler e escrever do jeito que é notoriamente sentido e percebido como artificial.” 2. Na opinião de Henrique Braga, professor de Língua Portuguesa e autor de materiais didáticos do sistema de ensino anglo, a escola não foi levada em conta na hora em que se pensou o Acordo. “Foi considerado mais o mundo editorial e não se levou em conta os desdobramentos na escola.” 3. Segundo ele [professor Henrique Braga], esse conceito passa longe do que é considerada proficiência em determinada língua, seja a portuguesa ou não. “Não se domina uma língua. Você pode se comunicar usando uma variedade dela. Na verdade, o ‘domínio’ da língua é uma prerrogativa da classe de poder, sempre foi.” Os exemplos (1), (2) e (3) mostram como a estrutura padrão mais frequente na reportagem da revista Caros Amigos se realiza, ou seja, ela é composta de uma Circunstância de Ângulo, (1) Para o linguista Bruno Dallari, (2) Na opinião de Henrique Braga e (3) Segundo ele, que indica a apresentação de uma fala de outrem, incluindo sua fonte (1) o linguista Bruno Dallari, (2) Henrique Braga e (3) ele. Por fim, apresentam-se as proposições de cada uma dessas fontes. Com esses primeiros exemplos já se pode observar outro padrão estrutural no que se refere às proposições apresentadas. Em geral, elas são compostas por uma estrutura hipotática (discurso indireto), seguida de uma estrutura paratática (discurso direto). Voltaremos a essa questão mais adiante. Vejamos, agora, exemplos do Padrão 2: 4. Ligia Simeone (...) confirma que todos os livros didáticos em uso seguem as regras do novo Acordo, incluindo os dicionários, paradidáticos e livros de literatura. “No início, o gasto maior foi com a troca dos dicionários que muitas escolas ainda não têm”. 5. Ele [José Luiz Fiorin] argumenta que alterações na ortografia não se fazem da noite para o dia, como se não houvesse custos para a população. 6. o professor de português Ernani Pimentel diz que a nova ortografia, da maneira que tem sido posta, é ilegal e inconstitucional. “De todas as alterações incluídas pela Academia Brasileira de Letras no Vocabulário Ortográfico, nenhuma foi submetida à aprovação daquela Casa. Esse outro desrespeito à lei anula a validade de nosso Acordo Ortográfico e, como é ele que norteia 91 Cadernos de Linguagem e Sociedade, 15 (1), 2014 a correção ou incorreção ortográfica em nosso ensino, qualquer questão de prova, vestibular ou concurso que envolva avaliação da forma gráfica das palavras tornou-se, a partir daí, ilegal.” Em (4), (5) e (6), o Padrão 2 se realiza da seguinte forma: parte do Dizente (4) Ligia Simeone, (5) Ele e (6) o professor de português Ernani Pimentel, seguidos de um Processo Verbal (4) confirma, (5) argumenta e (6) diz, todos acompanhados pelo elemento conjuntivo “que” seguido dos Relatos atribuídos aos Dizentes. Já o Padrão 3 pode ser exemplificado pelas seguintes realizações: 7. E, “muitas vezes os alunos chegam ao ensino médio semianalfabetos e, com a nova ortografia, as mudanças acabaram servindo de pretexto para anarquizar a escrita. É um tal ‘professora, eu já não sei direito, o que eu sabia mudou, então tanto faz agora. Vai que muda de novo’”, relata a professora Ligia Simeone. 8. “Por baixo, temos no mínimo umas dez mil palavras de origem tupi que em Portugal não são conhecidas. Isso aí já basta [para desconstruir o argumento da uniformidade da língua]”, opina o jornalista e escritor Mouzar Benedito. 9. “Fala-se muito pouco o português nesses países [colonizados tardiamente], notadamente em Moçambique, que não tem 8% de nativos falantes da língua portuguesa. Essa conta dos países lusófonos, na verdade, é falsa”, considera o linguista Bruno Dallari. Nesses casos, a realização da oração verbal parte da Citação atribuída ao Dizente, seguida de um Processo Verbal (7) relata, (8) opina e (9) considera, e são finalizadas com o próprio Dizente, (7) a professora Ligia Simeone, (8) o jornalista e escritor Mouzar Benedito e (9) o linguista Bruno Dallari. Por fim, o Padrão 4: 10. Fiorin fala das ainda persistentes discussões no Senado envolvendo, inclusive, uma mudança mais extrema de simplificação ortográfica, que deixa a origem etimológica dos vocábulos num segundo plano. 11. o ministro da Cultura português José António Pinto Ribeiro (2007-2009) chegou a levantar a possibilidade da edição portuguesa do VOLP ser feita por outra entidade, por alegada incapacidade da ACL para a tarefa. 12. a Porto Editora manifestou “uma posição crítica, considerando que este [o Acordo] representa uma má estratégia para a língua portuguesa”. Nesses exemplos, a oração verbal parte de um Dizente (10) Fiorin, (11) o ministro da Cultura português José António Pinto Ribeiro (2007-2009) e (12) a Porto Editora, seguida de um Processo Verbal (10) fala, (11) chegou a levantar e (12) manifestou para, enfim, apresentar o Relato ou Citação atribuída a cada Dizente. No exemplo (11) há, na verdade, um 92 p. 84 - 100 Daniele de Oliveira grupo verbal que exerce a função de processo de dizer, único exemplo desse tipo de realização dos Processos Verbais encontrado em nosso corpus. Os padrões de realização das orações verbais – 2, 3 e 4 – encontrados na reportagem de Caros Amigos são análogos aos padrões encontrados por Cabral, Bárbara (2012) em notícias da Folha de São Paulo e da BBC de Londres on line. Ressaltamos que, diferentemente das autoras, encontramos uma alta frequência do padrão 1, estrutura iniciada por uma Circunstância de Ângulo, não identificada nas notícias da Folha e da BBC. Talvez essa diferença se justifique pelo fato de termos analisado o gênero reportagem ao passo que Cabral, Barbara (2012) analisaram o gênero notícia. Diante desses exemplos e dos dados informados na Tabela 1, pode-se dizer que, na maioria dos casos, o participante Dizente ocupa a posição temática, ou seja, tem posição de destaque nesse discurso no que se refere às vozes explicitadas. De fato, já que a tabela 1 nos mostra que em 33% das orações verbais (somados os Padrões 2 e 4 nos quais o Dizente aparece em posição temática) temos esse tipo de realce. De acordo com Halliday, Matthiessen (2004), o Tema é o ponto de partida da mensagem; é ele que localiza e orienta a oração em seu contexto. Sendo assim, tematizar a fonte do discurso terceiro mostra a importância creditada a ela, já que, dessa forma, o autor do texto, além de ancorar seu discurso em opiniões alheias, destaca as fontes dessas opiniões. Também é importante verificar como se manifesta a fonte nesse discurso, já que é ela a origem do que é citado ou relatado na reportagem. Nas trinta e nove ocorrências, encontramos fontes representadas por meio de grupos nominais acompanhados de nomes próprios4 (46%), nomes próprios (26%), grupos nominais (18%) e pronomes (10%). Sendo assim, pode-se destacar a preferência pela identificação nominal da fonte acrescida de uma qualificação, como em: 13. ... escreve o linguista e professor da Universidade Federal do Paraná, Bruno Dallari. 14. A professora Ligia Simeone acredita que... 15. o linguista e professor da Universidade de Brasília, Marcos Bagno, alega que... Dessa forma, o autor do texto opta não só por identificar nominalmente suas fontes, bem como incorporar suas credenciais, especificando em detalhes quem são essas fontes e de que lugar social elas falam. Quando o autor opta por mencionar apenas os nomes próprios das fontes, na maioria das vezes, ele está se referindo a fontes já citadas e já identificadas por meio de nome próprio acompanhado de grupo nominal. Nesses casos, a identificação mais específica já aconteceu em passagens anteriores do texto. Na reportagem de Caros Amigos, a maioria das fontes está direta ou indiretamente relacionada ao tema em questão, qual seja, o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. 4 Optamos por especificar essa forma de representação de Dizentes como “grupos nominais acompanhados de nomes próprios” porque entendemos que ela tem função particular nesse tipo de discurso, já que, além de identificar nominalmente a fonte, apresenta suas credenciais para discutir o assunto em pauta na reportagem. 93 Cadernos de Linguagem e Sociedade, 15 (1), 2014 Trata-se de linguistas, professores de Língua Portuguesa, a Academia Brasileira de Letras, um escritor e uma editora. Há, em número bastante reduzido, também fontes mais distantes do assunto como o jornal Correio da Manhã e o advogado Fabrício Sarmanho. Além disso, observamos uma estratégia recorrente no que se refere à composição da proposição enunciada pela fonte, como já ressaltamos anteriormente. De fato, na reportagem de Caros Amigos, é frequente a proposição ser composta de uma estrutura hipotática (discurso indireto) seguida de uma estrutura paratática (discurso direto), como se pode ver nos exemplos (1), (2), (3), (4) e (6) acima. Considerando-se que a estrutura hipotática é um relato da essência do que foi dito pela fonte e não suas palavras exatas, pode-se inferir que ao apresentar, logo na sequência, uma citação exata do discurso da fonte (estrutura paratática), o autor procura conferir mais verossimilhança ao que está sendo destacado de seu discurso. Afinal, não é expressa apenas a síntese feita pelo autor do texto, mas também as palavras supostamente ditas pela fonte. No entanto, ressalte-se que uma leitura mais atenta revela que nem sempre a citação direta confirma a síntese do autor. A questão da retextualização no discurso relatado não será desenvolvida neste trabalho, pois extrapola nossos objetivos, mas certamente será retomada em outra oportunidade. Na reportagem da revista Época foram encontradas dezenove orações verbais, nas quais identificamos dois padrões estruturais mais frequentes: Estrutura da oração Percentual Padrão 1 Citação + Processo Verbal + Dizente 32% Padrão 2 Citação + Processo Verbal + Dizente + Citação 21% Tabela 2. Estruturas de orações verbais mais frequentes na reportagem da revista Época Esse levantamento já nos revela uma diferença em relação ao discurso veiculado na revista Caros Amigos, já que na revista Época, em mais da metade das ocorrências, o destaque é dado à proposição, ou seja, à fala do Dizente. Como vimos, na revista Caros Amigos esse destaque é conferido, em sua maioria, ao Dizente, à fonte do enunciado citado ou relatado. Vejamos exemplos dos dois tipos de padrões estruturais encontrados na reportagem da revista Época e o que sua organização pode nos esclarecer em termos de construção de sentidos. Padrão 1: 16. “O acordo mostra, simbolicamente, que existe um elemento de unidade entre os povos de língua portuguesa”, afirma José Luiz Fiorin, professor da Universidade de São Paulo e membro da Comissão de Língua Portuguesa (Colip), 17. “O vocabulário não muda. Vamos continuar a falar ‘ônibus’ no Brasil, ‘autocarro’ em Portugal e ‘xibombo’ em Angola”, diz o escritor angolano José Eduardo Agualusa, sócio da editora brasileira Língua Geral, especializada em autores de língua portuguesa. 18. “Os países africanos, que antes usavam a ortografia portuguesa, agora também poderão importar livros do Brasil”, diz Eduardo Coelho, editor da Língua Geral. 94 p. 84 - 100 Daniele de Oliveira Em (16), (17) e (18), a estrutura é constituída de uma Citação, seguida de um Processo Verbal (16) afirma, (17) diz e (18) diz, e encerrada pela referência ao Dizente, (16) José Luiz Fiorin, professor da Universidade de São Paulo e membro da Comissão de Língua Portuguesa (Colip), (17) o escritor angolano José Eduardo Agualusa, sócio da editora brasileira Língua Geral, especializada em autores de língua português e (18) Eduardo Coelho, editor da Língua Geral. Já o Padrão 2 pode ser exemplificado pelos seguintes trechos: 19. “Procuramos obedecer ao texto do acordo”, diz Bechara. “Mas não foi uma obediência cega”. 20. “Seria uma insanidade”, diz o linguista Fiorin. “Com os atuais índices de alfabetização, teríamos de ensinar toda a população a escrever novamente. Por isso, o inglês e o francês, cujas ortografias são altamente complexas, nunca fizeram uma reforma”. 21. “No Brasil, a mudança na ortografia não deve afetar a leitura”, diz Claudemir Belintane, professor de metodologia do ensino de português da Faculdade de Educação da USP. “O que pode sofrer algum impacto, mas ainda assim superficial, é a produção escrita dos alunos sob o crivo da correção gramatical”. Em (19), (20) e (21) observamos uma estrutura que parte da Citação, seguida do Processo Verbal diz nos três exemplos, na sequência aparece o participante Dizente, (19) Bechara, (20) o linguista Fiorin e (21) Claudemir Belitane, professor de metodologia do ensino de português da Faculdade de Educação da USP. Nesse caso, o destaque da estrutura oracional verbal recai, na maioria das ocorrências, sobre a Citação, sobre o que foi dito pelo Dizente. Como já ressaltamos, a tematização de determinado participante revela sua importância naquele discurso. Com isso, pode-se apontar uma importante diferença entre os discursos das revistas em destaque, já que na revista Caros Amigos o destaque é dado principalmente para o Dizente. É importante ressaltar também que, além de receber o destaque na estrutura oracional verbal no discurso da revista Época, as proposições são, muitas vezes, retomadas ao final da oração, como nos exemplos (19), (20) e (21) acima. Pode-se dizer que são reforçadas e/ou complementadas com a fala da própria fonte. E aqui observamos outra diferença em relação às proposições articuladas no discurso da revista Caros Amigos: nesta, em geral, a proposição é sintetizada pelo autor da reportagem e seguida de um trecho da fala da fonte, o que também pode ser considerada uma forma de reforçar e/ou complementar o que já foi dito; já em Época, a maioria das proposições é citada diretamente, tanto quando apenas inicia a oração, exemplos (16), (17) e (18), quanto quando, além de iniciar, também encerra a oração (19), (20) e (21). No que se refere aos Dizentes encontrados na reportagem da revista Época, eles também são, na maioria das ocorrências, representados por meio de grupo nominal acompanhado de nome próprio (63%), mas também aparecem representados por grupo 95 Cadernos de Linguagem e Sociedade, 15 (1), 2014 nominal (16%), nome próprio (5%) e pronome (5%). Encontramos, nessa reportagem, também ocorrências nas quais o Dizente está implícito na oração (11%). Na reportagem da revista Época observamos ainda que a maioria dos Dizentes também está relacionada direta ou indiretamente à temática do Acordo Ortográfico: professores/educadores, o linguista José Luiz Fiorin, os estudiosos da educação, o editor Eduardo Coelho, entre outros, em menor frequência, menos relacionados ao tema: o expresidente FHC e Daniel Barna – gerente de marketing da Nuance [empresa de tecnologia para celulares]. 5. A função dos verbos de dizer no discurso das revistas Caros Amigos e Época A partir das considerações de Marcuschi (2007), como vimos, é praticamente impossível informar de forma neutra. De fato, a análise da reportagem de Caros Amigos confirma tal afirmação. Foram encontrados trinta e um verbos introdutores de opinião, tais como: confirmar, dizer, escrever, argumentar, anunciar, versar, relatar, lamentar, reportar, prosseguir, opinar. Como já ressaltamos, foram encontradas orações verbais introduzidas por Circunstâncias de Ângulo e que não apresentam verbo de dizer explícito. A grande diversidade de verbos introdutores de opinião encontrados em uma única reportagem reflete a complexidade do processo de construção de sentidos nesse texto. De fato, a revista Caros Amigos é fundamentalmente opinativa e, por isso, elabora seus textos de modo a persuadir seu leitor sobre os pontos de vista ali veiculados. Pode-se dizer que o gerenciamento de vozes se constitui em uma importante ferramenta argumentativa já que essas vozes funcionam como argumento de autoridade. O argumento de autoridade é aquele por meio do qual o autor de um texto utiliza “atos ou juízos de uma pessoa ou de um grupo de pessoas como meio de prova a favor de uma tese” (Perelman; Olbrechts-Tyteca, 2005 [1992]: 348). Vejamos alguns exemplos de usos dos verbos introdutores de opinião na reportagem para compreendermos como seu autor constrói seu ponto de vista sobre a temática do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Considerando-se as fontes professores de Língua Portuguesa e linguistas, grupos mais recorrentes na reportagem, pode-se dizer que há uma diferença em relação ao modo de veicular os discursos de uns e de outros. Observemos em primeiro lugar o discurso relatado ou citado dos professores de Língua Portuguesa: 22. Sobre as orientações para o ensino e aplicação da reforma ortográfica na escola, a professora Ligia Simeone diz ter recebido pequenos livros com o resumo das novas regras. Aliás, ofertados também pelas editoras, mas “não soube de nada que realmente fizesse diferença, na rede pública. No dia a dia, fomos instruídos a adotar o novo Acordo e estuda-lo por conta”. 23. A professora Ligia Simeone acredita que “a língua ficou mais abstrata e depende mais do conhecimento de mundo do falante. A língua e o ensino estão mais dinâmicos e a oralidade tem sido mais valorizada, o que reflete uma escrita mais objetiva e simplificada.” 96 p. 84 - 100 Daniele de Oliveira 24. Assim, na cultura brasileira, mostra o professor, quem não tem o português culto sente-se coibido. “É aquela história de que determinada palavra só existe se estiver referendada pelo dicionário. O ideal almejado é um português difícil, inacessível, porém, se fosse simplificado seria mais compreensível para todos. Mas a questão não é simplificar. É o maior acesso.” Ressalta Marcuschi (2007) que o verbo dizer não possui uma função específica, mas pode aparecer em todas as funções, dependendo do contexto e dos tipos de discurso. Em (22), ele tem a função de introduzir uma afirmação positiva, mas assume um aspecto de subjetividade, de aparente indiferença em relação ao que é dito pela professora Ligia Simeone. Dessa forma, o verbo dizer age pelo enfraquecimento da proposição enunciada pela professora que poderia, por exemplo, ter sido introduzida pelo verbo explicar ou esclarecer. Em (23) e (24) também observamos a ocorrência de um enfraquecimento das proposições desencadeadas pelo uso dos verbos acreditar e mostrar. O verbo acreditar indica a provisoriedade do argumento, ou seja, ele subjetiviza a opinião. Em (23), portanto, o verbo acreditar sugere o relato de uma intenção do autor do texto, já que o conteúdo da proposição refere-se a convicções da professora e não a uma simples crença. Da mesma forma em (24), já que o verbo mostrar, nesse caso, incorpora a acepção de “dar a conhecer algo por meio da verbalização”, o que também enfraquece a proposição do professor que constitui, na verdade, uma explicação. Nessa reportagem, em geral, os professores de Língua Portuguesa confirmam, relatam, mostram, prosseguem, ou seja, têm suas proposições veiculadas a partir de verbos fracos do ponto de vista argumentativo. Em contrapartida, as proposições dos linguistas citados na reportagem ocorrem acompanhados de verbos mais fortes, tais como: explicar, argumentar, defender, considerar. Vejamos alguns exemplos desse uso: 25. “A língua deles [de países africanos colonizados por Portugal] é outra, a unificação ortográfica não torna os livros didáticos brasileiros usáveis em Portugal e na África portuguesa. Mas, na concepção das editoras, ‘isso já não é problema nosso, nosso problema é abrir mercado pros nossos livros’. Esse é o espírito”, explica o linguista [Bruno Dallari]. 26. Ele [José Luiz Fiorin] argumenta que alterações na ortografia não se fazem da noite para o dia, como se não houvesse custos para a população. 27. Existem discrepâncias entre os falares populares e a língua oficial. E essas discordâncias, defende Bruno Dallari, podem ser reduzidas com a educação, reconfigurando o nosso registro gráfico para que se aproxime mais da linguagem oral. Trocando em miúdos, “no português brasileiro existe uma discrepância muito grande, maior que em outras línguas, entre o registro escrito e o oral. E, desde muito, sabemos que é necessário fazer reforma ortográfica, mas no sentido de aproximá-la mais da oralidade para que seja uma língua menos estranha aos falantes, para que diminua a distância entre a escrita e a oralidade”. Em (25), (26) e (27), os verbos explicar, argumentar e defender, de fato, fortalecem o ponto de vista expresso pelas fontes linguistas, pois configuram e revelam a ideologia da revista Caros Amigos. Diferentemente do que acontece com a fala dos professores que 97 Cadernos de Linguagem e Sociedade, 15 (1), 2014 aparentemente não são endossadas pela revista, mas deixadas a cargo dos mesmos. O que confirma a hipótese de Marcuschi (2007: 158) segundo a qual “a ação desses verbos hierarquiza, reforça, discrimina, classifica, etc. os autores das respectivas opiniões relatadas”. Se contrapusermos, por exemplo, os verbos (24) mostrar e (25) explicar, essa distinção entre o modo de introduzir as falas de professores e linguistas fica mais clara. Se mostrar é apenas verbalizar algo, explicar é “tornar claro ou inteligível algo que era obscuro ou ambíguo” e, dessa forma, revela a ideologia do discurso, esclarecendo algum aspecto do ponto de vista a ser difundido. Pode-se dizer que a revista Caros Amigos assume o posicionamento defendido pelos linguistas citados na reportagem e usa as declarações dos professores provavelmente para confirmar o aspecto negativo da inserção do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa nas escolas. Dito de outra forma, a revista constrói seu ponto de vista fundamentado na fala de pesquisadores da área de Linguística, ponto de vista que é comprovado na prática pela fala dos professores de Língua Portuguesa que atuam na educação básica. A revista articula ciência e prática para tentar convencer o leitor de que, como indica o título da reportagem, há interesses econômicos por trás dessa pretensa uniformização que, portanto, não será benéfica para a população. No que se refere à função dos verbos introdutores de opinião, a reportagem da revista Época utiliza, na maioria dos casos, os verbos considerados mais fracos do ponto de vista argumentativo: dizer, afirmar, contar; e também o verbo reclamar. Além disso, pode-se mencionar a pouca variedade de verbos utilizados, já que os quatro citados foram os únicos tipos encontrados, sendo dizer repetido em onze das dezenove orações verbais. A título de comparação, o verbo dizer aparece em apenas duas ocorrências de orações verbais na reportagem da revista Caros Amigos. Vejamos alguns exemplos de uso desse verbo na reportagem da revista Época: 28. “Quando saiu o acordo, fiquei preocupada, porque os alunos alfabetizados teriam de reaprender tudo”, diz a professora Maria Beatriz Wallner, da escola particular Pueri Domus, em São Paulo. 29. Os estudiosos da educação são unânimes em dizer que a ortografia é o menor dos problemas do ensino de português. 30. “A grande dificuldade é ensinar os alunos a compor períodos que fazem sentido e a construir um texto”, diz o linguista Fiorin. Na opinião de Marcuschi (2007), o verbo dizer é uma espécie de “coringa”, já que não tem função específica e pode, portanto, aparecer em todas as funções, como já apontamos acima. Os usos desse verbo na reportagem da revista Época confirmam essa afirmação. De fato, em (28), o verbo dizer aparece exercendo a função de fazer uma afirmação positiva. Já em (29), ele assume a função de indicar a força do argumento e poderia perfeitamente ser substituído por destacar ou por ressaltar. Por fim, em (30), o verbo dizer exerce a função de organizar um momento argumentativo no conjunto do discurso; nesse caso, poderia ser substituído por explicar ou por esclarecer. Na reportagem de Época, (29) e (30) aparecem juntas e nessa ordem, ou seja, pode-se dizer que primeiramente o autor do texto 98 p. 84 - 100 Daniele de Oliveira apresentou um argumento forte e, na sequência, uma explicação desse argumento, fundamentada na fala de um especialista na área. Diferentemente da forma de construir o ponto de vista na revista Caros Amigos, em Época os verbos são poucos e mais fracos argumentativamente. Os usos desses verbos em Época pode revelar um menor envolvimento com os pontos de vista ali expressos, ou seja, aparentemente a revista não os assume como seus, o que pode parecer uma forma de expressar uma suposta neutralidade do discurso. No entanto, retomamos as palavras de Marcuschi (2007) para quem a neutralidade é impossível, o que tentamos demonstrar com a análise dos usos dos verbos introdutores de opinião, especialmente os usos do verbo dizer que, a despeito de não possuir uma função específica, certamente é reinvestido de uma das demais funções em cada contexto em que aparece e, por isso mesmo, pode mascarar intenções comunicativas. Considerações finais A observação dos modos de gerenciar vozes em reportagens de revistas diferentes é pertinente, pois, além de nos ajudar a estabelecer os padrões de cada uma, permite uma comparação entre um discurso e outro, o que pode ser muito produtivo em análises desse tipo. Sendo assim, é possível fazer algumas considerações fundamentadas nas análises desenvolvidas nas seções anteriores. Em primeiro lugar, observamos que o padrão estrutural das orações verbais difere nos discursos de Caros Amigos e Época, já que nesta a proposição, a fala citada/relatada, recebe maior destaque, ao passo que naquela é o Dizente o ponto de partida da maioria das ocorrências. Além disso, observamos também que em Caros Amigos as proposições são, em geral, sintetizadas hipotaticamente e seguidas de uma citação paratática, ao passo que, em Época, a citação é principalmente paratática. A citação paratática parece demonstrar uma possível neutralidade, já que supostamente apresenta as palavras do Dizente tal como foram proferidas. O participante Dizente, nas duas revistas, é, na maioria das ocorrências, representado por um grupo nominal acompanhado do nome próprio, o que demonstra um interesse em identificar as fontes como pessoas da área em debate e, portanto, habilitadas a discutir o assunto. Ainda sobre esse aspecto, é importante ressaltar que não foi encontrada, nas duas reportagens, Dizentes cuja proposição fosse integralmente favorável ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, o que revela um dado importante: não houve discussão entre pontos de vista divergentes, mas apenas a ratificação do posicionamento das revistas por meio de suas fontes. No que se refere à função dos verbos, pode-se afirmar que a revista Época tende a variar menos o tipo de verbos utilizados ao contrário da revista Caros Amigos. Observamos ainda um maior uso de verbos argumentativamente mais fortes por Caros Amigos, em oposição ao uso de verbos argumentativamente mais fracos por Época. Tal constatação pode demonstrar um maior envolvimento com a opinião de suas fontes em Caros Amigos do que em Época que, por sua vez, sugere que a opinião veiculada é de inteira responsabilidade de seu autor. 99 Cadernos de Linguagem e Sociedade, 15 (1), 2014 Por fim, ressaltamos que após essa análise inicial do comportamento discursivo dos Processos Verbais e das Circunstâncias de Ângulo nas reportagens das revistas Caros Amigos e Época, identificamos a necessidade e a importância de se aprofundar esse estudo. Torna-se necessário um levantamento maior de dados, o que nos permitirá fazer inferências mais consistentes no que se refere tanto à estrutura das orações verbais, quanto da função dos verbos de dizer utilizados. Recebido em: 20 fevereiro de 2014 Aprovado em: 29 abril de 2014 [email protected] Referências bibliográficas BAKHTIN, M. (Volochínov). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006 [1929]. BARBARA, L.; GOMES, M. C. A. 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