Representação da violência na literatura infantil

Propaganda
REPRESENTAÇÃO DA VIOLÊNCIA NA
LITERATURA INFANTIL-JUVENIL
TATIANA COLLA ARGEIRO
Poucos temas sociais estiveram tanto em evidência nos últimos tempos quanto a violência. Muito se fala dela em suas manifestações diretas, físicas, que atingem diretamente a vida social, e já
existem inúmeros centros de estudos que se voltam para as causas e
buscam soluções.
No entanto, é importante analisar a representação deste tema
no âmbito artístico, no nosso caso, na literatura infantil/juvenil, para
que possamos compreender a forma como valores sociais atingem os
pequenos leitores. Segundo Nelly Novaes Coelho, a literatura é “fenômeno de linguagem plasmado por uma experiência vital/ cultural
direta ou indiretamente ligado a determinado contexto social e à
determinada tradição histórica”, ou seja, a partir de sua análise e
compreensão, podemos, sem nos afastar de nossa vivência cultural,
agir como observadores de nosso arcabouço de valores, e sobre ele
melhor agir.
Literatura e Sociedade
Antônio Cândido, em seu livro Literatura e Sociedade propõe
uma discussão fundamental para que compreendamos melhor a influência do aspecto social na arte, mais especificamente na literatura.
Segundo ele
(...) só a podemos entender (a obra) fundindo texto e contexto
numa interpretação dialética íntegra, em que tanto o velho ponto
de vista que explicava pelos fatores externos quanto o outro, norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos necessários do processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso o social)
importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se assim, interno. (Candido, 2000)
A partir dessa consideração, podemos pensar nossa prática interpretativa que utiliza elementos da sociologia como lente de percepção da realidade. No entanto, é preciso ressaltar que há um risco,
considerado pelo próprio Cândido, que nos alerta:
Aqui, é preciso estabelecer uma distinção de disciplinas, lembrando que o tratamento externo dos fatores externos pode ser legítimo quando se trata de sociologia da literatura, pois esta não
propõe a questão do valor da obra. (Id., ibid.)
Ou seja, ao usar elementos sociais no estudo de uma obra literária, devemos ter em mente que nossa linha de chegada é a literatura, não a sociologia. Esta nos orienta com elementos que, ainda que
de natureza extrínseca ao texto, se tornam intrínsecos a ele.
Assim, o que nos interessa, como críticos literários, é o questionamento acerca da influência do fator social na obra, é saber se o
externo fornece apenas matéria, conteúdo ou se efetivamente se torna
interno à estrutura da obra, atuando como elemento fundamental a
ela.
2
A criança social e a criança literária.
Um bom exemplo para concluirmos a idéia de fator social como externo ou interno ao texto literário, é a importância dos estudos
sociológicos do francês Philippe Ariés na literatura infantil. Através
de sua pesquisa sobre a vida familiar ao longo dos séculos, podemos
fazer leituras mais significativas das obras para crianças, uma vez
que é nítida a transposição da visão social da criança para a estrutura
da arte, não apenas para a arte literária, como também para as artes
plásticas.
À medida que a visão social da criança e seu papel temático
mudam, a maneira como se escreve para ela e como se trata a temática também se modifica. É aqui que entramos nós, estudiosos da literatura, e que deixamos o estudo sociológico, histórico, para falar
diretamente da manifestação desta mudança no plano da Arte.
Prática Social e Realidade
Para que possamos fazer um estudo consciente de determinada
temática social na literatura, é necessário que compreendamos a relação entre prática social e realidade.
A concepção de prática social foi estudada sob diferentes denominações por vários autores. Greimás a chamou de percepção,
Saussure de ponto de vista. No caso deste trabalho, optamos por
3
prática social, do lingüista Izidoro Blikstein, pois é um termo bastante apropriado à nossa linha de pesquisa.
De qualquer forma, a prática social age como “mecanismo de
percepção da realidade”, ou seja, serve de filtro cultural para nossa
compreensão de mundo. Um dos referentes de realidade que podemos usar com grande nitidez para notarmos a atuação da prática social é o tão polêmico padrão de beleza. O filtro cultural que “lia” a
realidade estética no século XVI aprovava um determinado conceito
de beleza, que é muito diferente do nosso conceito contemporâneo.
Devemos nos questionar: o que mudou? As pessoas (ou seja, a realidade) são as mesmas, mas a idéia de beleza (o referente) é resultado
de uma percepção de mundo, que é influenciada pela prática social e
muda de acordo com ela.
Daí a importância da sociologia para estudarmos temáticas em
obras antigas, uma vez que não estamos em sintonia com a prática
social da época. Fator externo resolvido, devemos então, partir para o
mecanismo estético que o faz internalizar-se na obra, ou seja, tornarse estrutura artística.
A violência como tema
Partindo da citação de Álvaro Manuel Machado: tema é “tudo
aquilo que é elemento constitutivo e explicativo do texto literário,
elemento que ordena, gera e permite produzir o texto”, trataremos a
4
seguir da visão externa da temática “violência”, ou seja, de seu caráter social, anterior ao artístico.
A escolha do tema “violência” se deu pela crescente discussão
de suas mais variadas formas apresentadas na sociedade contemporânea.
Violência não é um fenômeno novo, não é uma mazela típica
dos tempos modernos, pelo contrário, registros históricos podem
provar sua longa jornada ao longo da própria História da Humanidade.
O que nos interessa aqui, é mostrar como este elemento da vida humana aparece em uma determinada manifestação artística, neste
caso, a literatura infantil/ juvenil.
Para isso, traçaremos um caminho que vai da definição teórica
do termo até sua manifestação no imaginário, que é a representação
prática das vivências sociais. Este será nosso ponto de chegada, que
se concretizará nas análises de duas obras, escritas em nosso tempo
O Gênio do Crime, de João Carlos Marinho e É meu! Cala a boca!
Quem manda aqui sou eu!, de Luciana Savaget.
É importante, uma vez que falamos de prática social, pensarmos algumas definições que temos para o tema.
“Violência é um comportamento que causa dano a outra pessoa,
ser vivo ou objeto. Nega-se autonomia, integridade física ou psicológica e mesmo a vida de outro. É o uso excessivo de força, além do necessário ou esperado. O termo deriva do latim violentia
(que por sua vez o amplo, é qualquer comportamento ou conjunto
de deriva de vis, força, vigor); aplicação de força, vigor, contra
qualquer coisa ou ente.
5
Assim, a violência diferencia-se de força , palavras que costumam estar próximas na língua e pensamento cotidiano. Enquanto
que força designa, em sua acepção filosófica, a energia ou "firmeza" de algo, a violência caracteriza-se pela ação corrupta, impaciente e baseada na ira, que não convence ou busca convencer
o outro, simplesmente o agride.
Existe violência explícita quando há ruptura de normas ou moral
sociais estabelecidas a esse respeito: não é um conceito absoluto,
variando de sociedade para sociedade. Por exemplo, rituais de iniciação podem ser encaradas pela sociedade ocidental, mas não
pelas sociedades que o praticam. (Wikipedia)
Este último parágrafo nos é particularmente interessante, pois
carrega em si, ainda que sem tal intenção, o conceito de prática social: “não é um conceito absoluto, variando de sociedade para sociedade.” Assim, podemos entender que a definição do termo se dá através
do imaginário acerca dele, ou melhor, através das experiências que
determinada sociedade possui com relação ao tópico, e transfere para
seu “arquivo social”.
Esta é também a linha de pensamento de outros estudiosos do
tema, como Yvez Michaud, que reitera em seu livro a questão das
variações do termo, de acordo com as normas sociais, diferentes
culturas e épocas.
Autores como Roger Dadoun vão além, e consideram a violência como algo essencial ao homem, baseando-se em eventos bíblicos para tal. Dadoun nos lembra que a civilização ocidental foi fundada com bases na violência. Segundo a Bíblia, Caim matou seu
irmão Abel, e tendo sido o primeiro homem nascido de uma gravidez, seria como um arquétipo do homem primitivo. Assim, Caim,
6
como o Homem primordial carrega em si a ira, que o levou ao assassinato. Daí a essência da violência humana. Dadoun arrisca ainda
mais: diz que o próprio Deus judaico-cristão é violento, e cita episódios como o dilúvio, que Deus teria ordenado como castigo aos homens, e o próprio sacrifício de seu filho.
Ao adotar esta linha de pensamento para definir violência, Dadoun releva as questões do imaginário, deixa de analisar o fato sob a
ótica da variação cultural, ainda que nos forneça uma interessante
leitura sobre nosso tema.
Ainda que Dadoun não tenha observado questões sociais e históricas, sua teoria de que a violência é essencial ao ser humano tem
respaldo na psicanálise moderna, com Freud e as pulsões de vida e
morte. Não há espaço neste trabalho para aprofundarmos os conceitos psicanalíticos de violência, mas é importante ressaltarmos sua
ligação com a teoria de Dadoun. Melanie Klein fala sobre o bebê,
que ao mamar possui “crueldades imaginárias de destruição da
mãe.”
Para finalizar esta breve definição de violência, vale citar outro estudo, de Dalto Caram, que chega à conclusão de que a violência
é uma oposição de dois contrários. Não necessariamente duas “pessoas”, mas sim duas partes contrárias, nem que sejam razão X desrazão. Essa noção, que opõe razão e desrazão, será importante ao analisarmos o livro “É Meu!”, o que faremos a seguir.
7
Diálogo e Discurso: uma relação de valores
A professora e teórica brasileira Nelly Novaes Coelho, em seu
livro Literatura Infantil. Teoria. Análise. Didática., aponta uma importante característica da literatura: A literatura “tornou-se um dos
campos em que estão sendo semeados valores que, sem dúvida, integrarão a nova mentalidade futura”. Esses valores, que a teórica
chama de paradigmas, não só apontam mentalidades futuras como
são termômetros de valores atuais, pertencentes à nossa prática social.
Assim sendo, ao analisarmos uma obra recebida pelos pequenos leitores, podemos perceber qual diálogo está sendo feito entre ele
e a sociedade, e qual discurso rege essa relação dialógica.
Lembramos que a concepção de discurso, aqui, é a proposta
por Mikhail Bakhtin, que entende o discurso como uma produção
textual decorrente justamente da prática social, ou seja, através do
texto a sociedade expõe sua visão de mundo e dialoga (seja para
negar seja para afirmar) com ela.
Ainda sobre a esta teoria do dialogismo, diz Vitor Manuel de
Aguiar e Silva:
O texto é sempre, sob modalidades várias, um intercâmbio discursivo, uma tessitura polifônica na qual confluem, se entrecruzam, se metamorfoseiam, se corroboram ou se contestam outros
textos, outras vozes e outras consciências. (Aguiar e Silva,
1993)
8
É meu! Cala a boca! Quem manda aqui sou eu!
O livro de Luciana Savaget foi escolhido para este estudo por
trazer em sua estrutura a temática da violência de uma maneira bastante clara e em sintonia com nossa prática social.
Trata-se da história de um menino, inicialmente sem nome,
que de tanto gritar “É meu!” começou a ser chamado dessa forma.
(“Ninguém sabe qual seu nome de verdade, nem mesmo ele.”)
A primeira frase do livro já nos coloca, leitores, em uma posição de submissão à tirania da personagem:
“Deus me livre alguém mandar esse menino calar a boca!”
Ao posicionar o leitor dessa maneira, o garoto ganha liberdade
para agir como quer, e o faz ao longo do livro.
Pensando em uma sociedade que possui imensa dificuldade
em impor limites a seus filhos, É meu! faz um diálogo bastante pertinente com esse fator social, que desemboca em um tipo de violência
que provavelmente a prática social de nossos ancestrais pouco conhecia: a violência verbal infantil.
É meu! manda todos calarem a boca, não admite que se dirijam a ele e manda e desmanda. É a própria personificação da desrazão, em oposição à razão. Esta relação disfórica entre as duas gera
violência, retratada no livro pelos berros ofensivos do menino sem
nome.
9
O comportamento tirânico de É meu! continua desenfreado até
o livro apontar uma luz para a causa de tamanha ira:
“Os pais de É meu! também são esquisitos, só pensam em trabalhar e pagar contas. Não perdem tempo com assuntos do coração.
Dizem sempre: é bobagem! E esquecem o filho.”
Outro ponto interessante para verificarmos como a temática se
torna interna à estrutura, é o marco a partir do qual É meu! inicia seu
processo de mudança.
Atulhado de brinquedos que ele confiscou dos colegas, ele se
sente sufocado após uma briga com a mãe, e tem um pesadelo em
que os brinquedos ganham vida e o amedrontam. É mais um traço
social na estrutura textual: o afeto através do material, do poder de
compra. Os pais ausentes são substituídos pelos brinquedos, que em
um determinado ponto o assombram.
A partir deste ponto, É meu! muda de postura, e assume uma
tristeza sem fim, chora e deixa até mesmo seus pais preocupados.
É importante notar, no entanto, que sua tristeza não é causa de
arrependimento, mas sim de medos e angústias. Ele sozinho tem
percepções, e se modifica sem auxílio do adulto:
“Começou a compreender que não podia dominar a raiva, a dor, a
alegria, o sentimento dos outros...Ele descobriu que não adiantava dar ordens às pessoas, que cada um, sozinho, era dono do que
sentia. Não tendo em quem mandar, seus olhos perderam o brilho
de vez.”
10
Em seguida, É meu! resolve dar seus brinquedos, mas não por
que muda seu comportamento autoritário e agressivo, mas simplesmente por que quem manda ali é ele.
Sua agressividade abre espaço para sentimentos bons quando é
obrigado a ir visitar as crianças para quem seus brinquedos foram
doados. Em meio à alegria delas, ele aos poucos se contagia, a cada
visita fica mais à vontade até que em determinado momento, ganha
um nome. Ele é Frederico, e daquele momento em diante, com a
descoberta do prazer das amizades, ele se torna alegre e cheio de
amigos.
Devemos notar que o discurso valoriza a ação infantil, pois os
pais se modificam a partir do crescimento emocional da criança, e
não o oposto.
Por fim, vale ressaltar que a temática não se esvai completamente. Aos final, Frederico deixa de ser o mandão único, para se unir
a um grupo de mandões, que detêm a palavra de ordem, a palavra de
agressão em conjunto:
“Cala a boca! Quem manda aqui somos nós!”
O leitor que inicialmente se assustou com É meu!, fecha o livro com o mesmo sentimento de submissão, pois agora, ao invés de
um menino, quem nos manda calar a boca é um grupo deles, o que
mostra que a violência e a tirania continuam na estrutura, ainda que
mascarada por sorrisos e crianças brincando.
11
O Gênio do crime, mistérios e detetives
Ainda de acordo com Nelly Novaes Coelho, a geração de João
Carlos Marinho representa um momento literário que busca:
Preparar psicologicamente os pequenos leitores para enfrentarem
sem ilusões, mais tarde ou mais cedo, as dores e sofrimentos da
vida. (São livros que escolhem como problemática temas de
sempre, – como a morte; ou temas mais recentes e não menos dolorosos, – como (...) o problema dos tóxicos; as injustiças sociais;
o racismo; as crianças abandonadas; a marginalização da mulher;
etc. É, via de regra, uma literatura pessimista que se fecha para a
vida plena. Claro sinal destes tempos de violência e desequilíbrios, invadindo todos os recantos da vida humana.
O Gênio é um livro de leitores adolescentes, ao contrário de É
meu!, mas ainda assim é um interessante diálogo com a prática social.
Tomando a citação de Nelly acima, enquadramos o livro em
uma categoria de realismo. Dessa forma, a violência está presente em
inúmeros momentos da obra, ainda que vista de perspectivas diferentes de É meu!.
As personagens de O Gênio também não se submetem ao leitor, mas o que é mais interessante: elas não se submetem a adulto
algum ao longo do livro. Atuam como detetives em uma metrópole
brasileira sem supervisão alguma, agindo como adultos em meio a
bandidos e perigos mortais.
12
Um bom exemplo disso temos logo no início do livro, quando
Seu Tomé, dono da fábrica de figurinhas, pede aos pais de Edmundo
que o deixem atuar como detetive. Sua mãe diz:
“– O senhor endoideceu? Pôr Edmundo no meio de larápios! Matam meu filho, matam meu filho! Não repita uma coisa dessas.”
O capítulo seguinte nem dá conta desta negação da mãe, e
Edmundo já dá sua sentença, em forma de discurso indireto livre:
“E Seu Tomé merecia ser ajudado”
O questionamento da autoridade ocorre na própria estrutura do
livro, uma vez que os adultos agem como coadjuvantes das peripécias das crianças.
Até mesmo o detetive invicto, o escocês Mister, segue as pistas deixadas pelos meninos, que não se intimidam com o renome
internacional do estrangeiro.
Aqui, é interessante notar a falta total da violência, de sanção
negativa. Ao contrário, desobedecer aos pais e seguir seus próprios
instintos, resulta em uma sanção positiva ao final do livro quando
eles desvendam o mistério.
A introdução de atos violentos no livro se dá a partir de uma
visão de mundo acerca da questão moral. A partir do momento em
que a moral deixa de ser dogmática e única, ela admite reinterpretações de acordo com a ética individual. O dogma é estático, imutável.
A ética, é imaginário, é prática social.
13
Assim, em um primeiro momento de confronto entre os detetives mirim e um cambista, Edmundo briga fisicamente com o bandido, que “levou uma joelhada na boca do estômago”. Em inúmeros
outros momentos há briga física:
“O pai do gordo deu um soco no olho de Seu Tomé na porta da
delegacia.”
“– Arranque a unha dele-ordenou o chefe.”
“o filho cuspiu na cara dele (do pai) e o pai meteu-lhe o braço na
frente da janela.”
“O Peludão e o dos cachos seguravam o gordo na frete da banheira. (de ácido)
– Podemos jogá-lo, chefe?”
“luta como essa nunca teve e nunca terá: era soco, cabeçada,
mordida, dentada, rasteira, cotovelada, joelhada, karatê, judoca,
rabo-de-arraia, beliscão, barrigada, chave de perna, gravata, furaolho, pé-de-ouvido, upercute, sanduíche, unhada, pescoção, cama-de-gato, coice-de-mula, capoeira-do-pastinha, trança-pé, paulistinha e daí pra mais.”
Em outros momentos, percebemos ainda mais nitidamente a
questão da moral oscilante.
Ao levar o gordo para se matricular em uma escola e mentir
para o diretor, Seu Tomé diz, valorizando a mentira:
“– Meu bom menino, eu, um homem sério, industrial, nunca
menti na vida, e numa semana, me botam a fazer cartas falsas,
fingir voz de pai no telefone, voz de diretor, e agora estou aqui,
pai do Alfonsinho! Mas sabe duma coisa, no começo ficava nervoso, mas perdi a vergonha, meu bom menino, já nem penso
mais, as mentiras é que vão saindo sozinhas e contentes da minha
boca.”
14
O gerente da fábrica, que desde o início se posicionou contra o
envolvimento das crianças por achar perigoso, recebe o seguinte
tratamento:
“Fizeram reunião na fábrica do Seu Tomé. O coitado, quando
soube que o Gordo sumiu, ficou numa aflição grande e estava no
ponto de começar a chorar e ter outro ataque de nervos. O gerente empinou o queixo e falou:
– Eu não disse! Eu disse, eu avisei, ninguém me ouviu; isso não
era coisa para crianças. Agora está aí.
(...)
– Mas o senhor estar muito chato, senhor gerente, se a senhor
repetir mais uma vez ‘eu disse’ mim dar um tapa no seu cara.”
Muito interessante é notar a postura dos meninos ao fim do livro. Ainda que eles tenham vivenciado situações de extremo perigo,
é pela expressão de um sentimento bom que eles se chocam:
“Depois que essa história começou, Edmundo e Pituca haviam
visto coisas muito fora do normal, mas dessa vez o queixo deles
caiu e o espanto foi grande.
– Pituca, veja só, o Bolacha vai dizer obrigado para alguém, é o
milagre!”
A violência é permitida quando usada em favor da moral que
está em junção com o discurso. A prática social que impulsiona suas
crianças para a vida em sociedade o mais cedo possível, precisa que
elas saibam como se portar e para isso, que sejam capazes de enfrentar a violência da melhor maneira.
15
Por isso, em O Gênio, o adulto é secundário, até mesmo agindo de maneira infantil para corroborar a ação das crianças protagonistas.
Nossa prática, nossa arte
As análises destas duas obras nos mostram o quanto a estrutura do texto literário se espelha na sociedade e a transforma em material artístico.
Através desses diálogos damos voz ao discurso, que por sua
vez, guarda em si a ideologia de um grupo determinado.
Seja É meu!, seja a turma do gordo, temos nestas personagens
uma excelente oportunidade de pensar a literatura infantil/juvenil,
não apenas como arcabouço de paradigmas futuros, mas principalmente, como resultado de uma prática social na qual estamos inseridos corpo, mente e arte.
16
Referências Bibliográficas
AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel. Teoria da Literatura. Lisboa:
Almedina, 1993.
ARIÉS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio de
Janeiro: LTC, 1981.
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Questões de literatura e de estética : a teoria do romance. São Paulo: Annablume, 2002.
BLIKSTEIN, Izidoro. Kaspar Hauser ou a Fabricação da Realidade. São Paulo: Cultrix, 1995
CÂNDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Publifolha,
2000.
CARAM, Dalto. Violência na sociedade contemporânea. Petrópolis:
Vozes, 1978.
COELHO, Nelly Novaes. Panorama Histórico da Literatura Infantil/Juvenil. 4. ed. São Paulo: Ática, 1991.
______. Literatura Infantil. Teria. Análise. Didática. São Paulo:
Moderna, 2000.
DADOUN, Roger. A Violência. Rio de Janeiro: DIFEL, 1998.
MACHADO, Álvaro Manuel; PAGEAUX, Daniel-Henri. Da Literatura Comparada à Teoria da Literatura. Lisboa: Edições 70, 1998.
MARINHO, João Carlos. O Gênio do Crime. São Paulo: Global,
2004.
MICHAUD, Yves. A Violência. São Paulo: Ática, 1989.
SAVAGET, Luciana. É meu! Cala a Boca! Quem manda aqui sou
eu!. São Paulo: Larousse do Brasil, 2005.
17
Download