DIREITOS HUMANOS E INTEGRAÇÃO REGIONAL SUMÁRIO: I – Considerações gerais introdutórias; II – Promoção dos direitos humanos, no ideal do estabelecimento de uma nova ordem mundial, finda a Sociedade das Nações com a constituição da ONU, alicerçada na Declaração universal dos direitos humanos de 1948. (Breve excurso sobre o catálogo dos direitos económicos, sociais, culturais, civis e políticos); III – Dimensão judiciária da integração regional na defesa e promoção dos direitos fundamentais dos cidadãos. I – Considerações gerais introdutórias. A temática dos direitos humanos suscita discurso de civilização, que se contrapõe ao da barbárie. A antinomia envolve a habitual controvérsia ensurdecedora, que não pretendemos retomar nestas páginas. A oportunidade e o vasto espectro do tema não podia ser reflectido e esgotado, com suficiência que se impõe, num texto com quinze páginas de extensão. Mas, basta por exemplo, recordar que inexistia a ideia de direitos humanos na antiguidade. Que Platão e Aristóteles consideravam o estatuto da escravidão como algo de natural. O processo de desenvolvimento da ideia de direitos humanos se reconduz historicamente a duas épocas distintas: uma anterior à Virgínia Bill of Rights (12 de Junho de 1776) e à Declaração dos direitos do homem e do cidadão (26 de Agosto de 1789); outra posterior a esses instrumentos, marcada essencialmente pela positivação dos direitos do homem nos documentos constitucionais, iniciada na primeira metade do século XIX. Por limitações que já evocamos supra, propomos uma abordagem lapidar e sumária, retomando aqui a já de si bastante difundida perspectiva de promoção dos direitos humanos, no ideal do estabelecimento de uma nova ordem mundial, que marca o fim da Sociedade das Nações com a adopção da Carta constitutiva da ONU, arvorada na Declaração universal dos direitos humanos de 1948, na qualidade de normas de acção moralmente justificadas, que foram sendo dotadas de valor de direito positivo, como resultado de tomada de consciência do horror que foi a experiência do holocausto e do balanço dramático do final da 2ª guerra mundial; percorrendo o catálogo dos direitos económicos, sociais, culturais, civis e políticos; sucedido de enquadramento prático da dimensão judiciária da integração regional na defesa e promoção dos direitos fundamentais dos cidadãos. II – Promoção dos direitos humanos, no ideal do estabelecimento de uma nova ordem mundial, finda a Sociedade das Nações com a constituição da ONU, alicerçada na Declaração universal dos direitos humanos de 1948. (Breve excurso sobre o catálogo dos direitos económicos, sociais, culturais, civis e políticos). A Sociedade das Nações não se extinguiu com os primeiros disparos de canhões que, em Setembro de 1939, abririam as hostilidades europeias e, depois, mundiais. Ela prosseguirá a sua actividade até finais da guerra e no curto período subsequente. A sua realidade institucional só se suprimiu, praticamente, em Abril de 1946, depois de ter coexistido durante cerca de um ano com o seu sucessor, Organização das Nações Unidas, criada solenemente a 26 de Junho de 1945, no decurso da Conferência de S. Francisco. As Nações Unidas farão prova de intensa e significativa actividade no domínio dos direitos humanos[1]. Elas se multiplicaram em declarações e convenções, em estreita colaboração com organizações não governamentais. As disposições gerais da Declaração universal dos direitos humanos de 1948 (documento de grande alcance, que consagra o princípio geral da salvaguarda dos direitos e da dignidade da pessoa humana como fundamento da liberdade, da justiça e da paz; enumerando os direitos e liberdades individuais de tipo clássico: direito à vida, à liberdade, à integridade física, proibição da escravatura e de tratamentos desumanos, igualdade perante a lei, proibição de detenção e de prisão arbitrárias e de exílio, direito de livre circulação e de asilo, direito à nacionalidade e à propriedade, liberdade de opinião, de convicção e de orientação religiosa, liberdade de reunião e de associação, liberdade de contrair matrimónio e liberdade política), foram completadas com dois instrumentos significativos: o pacto internacional relativo aos direitos económicos, sociais e culturais, e o pacto internacional referente aos direitos civis e políticos, adoptados pela Assembleia-geral a 16 de Dezembro de 1966. Face à relutância dos Estados em acatar voluntariamente as obrigações jurídicas de respeitar os direitos humanos nos respectivos espaços territoriais, foram precisos decorrer dez anos para se alcançar as 35 ratificações necessárias para a entrada em vigor dos mesmos, no início do ano de 1976. Em Agosto de 1992, apenas 115 Estados sobre mais de 180 terão ratificado o primeiro protocolo, e 121 Estados o segundo. Tendo sido cometido respectivamente ao comité dos direitos sociais e culturais, e ao comité dos direitos humanos a fiscalização do cumprimento dos pactos referidos, formulando para tanto recomendações aos Estados envolvidos. Os direitos de maior relevância enunciados nos dois pactos – cujos alcances excedem a delimitação material da Declaração universal – são direito dos povos à autodeterminação e, nomeadamente, de disporem livremente das suas riquezas e dos seus recursos naturais. Trata-se, porém, de uma reivindicação dos países descolonizados e em vias de desenvolvimento, para quem «a violação dos direitos humanos não se traduzia apenas em medidas repressivas contra indivíduos, mas também na discriminação racial e no retrocesso económico e social»[2]. O pacto relativo aos direitos económicos, sociais e culturais comporta, no que concerne os direitos humanos: o direito de trabalhar em condições justas e favoráveis; o direito à segurança social, a um nível de vida e de bem-estar físico e mental o mais elevado possível; direito à educação e aos benefícios da liberdade cultural e do progresso científico. Direitos que devem ser efectiva e progressivamente respeitados em toda a sua extensão sem discriminação. E o pacto relativo aos direitos civis e políticos, refere-se à liberdade de circulação, igualdade, liberdade de consciência, de opinião e de expressão, a liberdade de associação, a participação na vida pública e capacidade eleitoral (activa e passiva), a protecção dos direitos da minoria, abolição da pena de morte, da tortura, de tratamentos cruéis ou desumanos, de escravatura, de trabalho forçado, de detenção arbitrária, da propaganda à favor da guerra, de ódio racial ou religiosa. Embora, a multiplicação de conflitos intra-estaduais tenham, com frequência bastante, conduzido à violação sistemática desses princípios enformadores do novo código de valores de civilização que se pretende universal. Outrossim, muitas outras convenções foram sendo progressivamente adoptadas no quadro das Nações Unidas, que se referem à aspectos particulares da defesa dos direitos humanos: convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação das mulheres (adoptada, naturalmente, pela Assembleia-geral em 1979, tendo entrado em vigor a 3 de Setembro de 1983), convenção relativa aos direitos da criança (adoptada, também, pela Assembleia-geral em 1989), convenção contra a tortura e outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos e degradantes (adoptada, igualmente, pela Assembleiageral em 1984, e entrará em vigor a 26 de Junho de 1987), convenção sobre protecção de trabalhadores emigrantes (adoptada pela Assembleia-geral em Dezembro de 1990). A Assembleia-geral se envolveu particularmente na luta contra a discriminação racial. Em 1963, adoptaria a Declaração das Nações Unidas sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial, que constituem uma violação dos direitos humanos e obstáculo as relações pacíficas e de amizade entre povos. E, a esse propósito, adoptou em 1965 uma convenção internacional que entrou em vigor em Janeiro de 1969. Foi, sobretudo, contra a discriminação racial na África do Sul que a ONU concentrará os seus esforços. Não somente a Assembleia-geral, mas também o Conselho de Segurança, faziam pressão já no início da década de 60 sobre o governo de Pretória para abolição do apartheid inequivocamente qualificado como ameaça à paz e crime contra a humanidade, pedindo os Estados membros da ONU a romper e de cessar relações diplomáticas e comerciais com a União sul-africana. A pressão acentua-se em 1970, quando o Conselho de Segurança pede o reforço de embargo de armas e suspensão de toda a cooperação militar com a África do Sul. Posição que endurece sete anos mais tarde, 4/11/77 (na sequência da adopção em 1973 pela Assembleia-geral da convenção internacional sobre a eliminação e a repressão do crime de apartheid, que entrou em vigor a 18 de Julho de 1976, permitindo julgar os implicados na sua prática nos tribunais dos Estados partes), tornando obrigatória o embargo de armas decretada contra Pretória. Diga-se que foi pela primeira vez que uma tal medida fora tomada contra um Estado membro à luz do capítulo VII da sua Carta constitutiva, que prevê o recurso a medidas coercivas em caso de ameaça a paz e a segurança internacionais. E face todas as resistências à época (prova disso é que não fora acompanhada pelos EUA, pela Inglaterra e França nas suas de marches de tentar isolar o regime segregacionista Sul-africano, por via de embargos de armas e de produtos petrolíferos, por se entender que o apartheid era um problema interno de Africa de Sul), a Assembleia-geral decreta o ano de 1982 «ano internacional de mobilização para a adopção de medidas sancionatórias contra a África de Sul», multiplicando conferências e seminários à escala planetária. Os progressos de universalismo que encarnava a ONU, com a adesão de muitos novos Estados, determinou a crescente heterogeneidade que tornará cada vez mais difícil o seu funcionamento. Em consequência de uma orientação cada vez mais anti-ocidental dos seus debates e programas, o sistema das Nações Unidas no seu todo, incluindo as suas instituições especializadas (até aqui consideradas como o espaço privilegiado de cooperação internacional), começa a ser confrontadas com o que se revelaria ser a "crise do multilateralismo". O fim da guerra-fria e do mundo bipolar, advento de um mundo unipolar em proveito dos EUA, o êxito na resolução de crises (Afeganistão, Irão-Iraque, América central, Namíbia, etc.) e sobretudo a resposta à agressão do Kuwait pelo Iraque, faziam então crer na instauração de uma nova ordem internacional, garantida pelos EUA agindo em nome da ONU e dos princípios reconhecidos por todos. A acção das Nações Unidas na promoção dos direitos humanos, apesar de ser globalmente bastante positiva, deparava com obstáculos que resultavam de divergências de interpretação e recusa de os respeitar, sobretudo da parte dos regimes totalitários e dos países em vias de desenvolvimento, que invocavam a sua soberania e o princípio de não ingerência nos assuntos internos de outros Estados. Neste particular, importa lembrar o balanço dos trabalhos da conferência mundial sobre os direitos humanos sob auspícios da ONU (Viena, 14 – 15, de Junho de 1993), decalcando aqui parte de subsídio do então secretário-geral Boutros-Ghali, sobre o imperativo da democratização: «só a democracia, no interior dos Estados e no interior da comunidade dos Estados, seria a verdadeira garante dos direitos humanos individuais e colectivos, das pessoas e dos povos». Era o caso para reproduzir a celebre frase do César: Álea jacta est («Estava lançada a sorte») para desta feita passar o Rubicão. III – Dimensão judiciária da integração regional na defesa e promoção dos direitos fundamentais dos cidadãos. Com as Nações Unidas afectadas na sua essência gregária com a «crise do multilateralismo», que explicará com maior nitidez os ataques às torres gémeas de Nova Iorque e a invasão americana de Afeganistão e do Iraque, impunha-se o retorno à comunidade de cultura e de civilização e a unidade espiritual em que se exprime fenómenos regionais de integração, numa ordem comunitária supranacional (de que são exemplos expressivos a EU, Mercosul, SADEC, CEDEAO, UEMOA, etc.), como reduto derradeiro para a tutela dos direitos humanos, mormente os do seu segmento de direitos económicos e sociais, através de procedimentos eficazes de garantia, de protecção e de sanção. A criação de comunidades supranacionais, enraizadas no princípio da abertura internacional[3], faz nascer um direito novo, autónomo, destinado a reger, no quadro multinacional da sua integração, as relações recíprocas dos cidadãos, das instituições e dos Estados-membros. Este ordenamento jurídico complexo é comum a todos os Estados da comunidade. Mas, para que a comunidade de direito exista, não lhe basta dispor de uma lei comum (que significa o correspondente tratado constitutivo): impõe-se que essa lei seja entendida de maneira uniforme e igualmente respeitada por todos os seus destinatários. Para isso, é necessário que seja uniformemente interpretada e aplicada por instâncias jurisdicionais competentes para assegurar a sua plena eficácia, através de uma jurisprudência progressista. Cour de Justice de UEMOA (União Económica e Monetária Oeste Africana), por exemplo, cujo tratado fundador (assinado em Dakar, Senegal, a 10 de Janeiro de 1994 – ratificado, entre outros, pelo Estado da Guiné-Bissau), enuncia no seu artigo 3º o compromisso comunitário de respeitar os «direitos fundamentais consagrados na Declaração universal dos direitos humanos de 1948 e na Carta africana dos direitos humanos e dos povos de 1981»[4], situa-se na vanguarda das instituições que pelo seu discernimento e ousadia, mais têm favorecido o processo de integração regional do ocidente africano. Pois, se aos tribunais nacionais é atribuída competência geral, como tribunais comuns da ordem jurídica comunitária, para interpretar e aplicar o direito comunitário, a Cour de Justice é cometida a missão de garantir em última instância a correcta interpretação das normas comunitárias comuns a colectividade dos Estados-membros, e, bem assim, de controlar e sancionar os comportamentos – tanto dos órgãos da comunidade como dos seus Estados e, eventualmente, dos próprios particulares – atentatórias do respeito devido à ordem jurídica comunitária, que se propõe formalmente defender e promover os direitos fundamentais dos cidadãos dos seus Estados-membros. Juíza Conselheira Maria do Céu Silva Monteiro (Presidente do Supremo Tribunal de Justiça da Guiné-Bissau). - Nesse sentido, tb. Pierre GERBET, Merie-Renée MOUTON, Victor-Yves GHÉBALI, «Le rêve d'un ordre mondiale… », pág. 313 e ss., Ed. Imprim. Nat., 1996, Paris. [1] [2] - Cit. Kurt Waldheim " Os fundamentos do direito colonial", inédito, pág. 561 e ss. Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, Lisboa. [3] - Princípio consagrado na generalidade das constituições que organizam regimes democráticos pluralistas de matriz ocidental… V.g., o artigo 18º da Constituição da República da Guiné-Bissau de 1993, com alterações introduzidas pela lei constitucional nº 1/95, de 1 de Dezembro de 1995; e lei constitucional nº 1/96, de 27 de Novembro de 1996, dispõe no seu nº 1 que «A República da Guiné-Bissau estabelece e desenvolve relações com outros países na base do direito internacional (…)», para se concluir no seu nº 3 que «… participa nos esforços que realizam os Estados africanos, na base regional ou continental, em ordem à concretização do princípio da unidade africana» na luta pelo direito à autodeterminação dos africanos e de disporem livremente das riquezas e dos recursos naturais do continente, tendo em vista o seu progresso. [4] - in «Union Économique et Monetaire Ouest Africaine / Cour de Justice – textes fondamentaux et jurisprudence», pág. 19, ed., GIRAF, 2003, Paris.