a corte emigrada e a dinâmica dos acontecimentos

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Anais do IX Fórum de Pesquisa em Arte.
Curitiba: ArtEmbap, 2013.
A CORTE EMIGRADA:TESSITURA DAS RELAÇÕES
E A DINÂMICA DOS ACONTECIMENTOS
Dra. Maria do Amparo Carvas Monteiro1
[email protected]
Resumo
O que nos foi possível delinear e construir, concentra-se, aqui, agrupado em duas
partes, cujos títulos refletem a temática/problemática central da trajetória indagadora
assumida de ambos os lados do Atlântico: tempos de instabilidade e mudança e
ritualizações cívicas e do sagrado. A música culta dos templos, dos teatros ou dos
salões, sempre contou com a participação de compositores, regentes, cantores,
organistas e demais instrumentistas naturais de Portugal, do Brasil e de outras
proveniências europeias, para assegurar o seu exercício ou instruir as novas
gerações. Durante a permanência da Corte de Lisboa no Rio de Janeiro (1808-1821),
a presença de bons profissionais e mestres de grande prestígio integra o patrimônio
histórico e cultural da música brasileira e portuguesa.
Palavras-chave: Corte de Lisboa; Música; Cultura; Solenidades; Mudança.
Abstract
What we were able to draw and build, is here grouped into two parts, whose titles
reflect the theme / central question of the inquiring trajectory assumed on both sides of
the Atlantic: a time of instability and change, and civic and sacred ritualization. The
musical art of temples, theaters or halls, counted always with the participation of
composers, conductors, singers, organists and other instrumentalists, natural from
Portugal, Brazil and other European countries, to ensure its practice or to instruct new
generations. During the stay of the Court of Lisbon in Rio de Janeiro (1808-1821), the
presence of good professionals and prestigious teachers is part of the historical and
cultural heritage of Portuguese and Brazilian music.
Keywords: Court of Lisbon; Music; Culture; Solemnities; Change.
1
Professora Coordenadora da área de Música - Setor de Ciências Musicais, da Escola Superior de
Educação de Coimbra, Presidente do Departamento de Artes e Tecnologias, Diretora do Mestrado em
Ensino de Educação Musical no Ensino Básico e Diretora da Licenciatura em Música. Membro e
investigadora do Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos (CIEC), Universidade de Coimbra.
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A História do Brasil e a de Portugal encontram-se tão
intimamente ligadas que não se pode ter conhecimento
completo de uma sem se conhecerem, mais ou menos
profundamente, numerosos capítulos da de outra
(BASTO, 1946, p. V)
INTRODUÇÃO
A história europeia dos séculos XVII e XVIII levou muito longe a apropriação do
espetáculo e da festa, por parte de quem deteve o poder, num ambiente no qual,
como num sonho, o real e o irreal se confundem. O espetáculo político haveria de se
desenvolver num sentido muito peculiar e estritamente ligado ao cerimonial
eclesiástico.
Lisboa assistiu ao desenrolar de um movimento de recuperação do poder pela
Casa de Bragança, já em 1640. Desde então, até 1807, data da saída da corte para o
Brasil, Lisboa cresceu em relação às outras grandes cidades do reino, vendo
sucessivamente fixarem-se junto ao Tejo os órgãos, cada vez mais específicos, da
administração.
Os cerimoniais continuaram a servir como forma de deter e mostrar o poder.
Quando o rei vinha para a rua, “a relação estabelecida com o exterior através do
espaço público assumia uma expressão da socialização”, onde o cerimonial
“entrelaçava a liturgia com o canto e o órgão, a palavra e o sermão com bastante
incenso, os gestos dos celebrantes e dos fiéis, com a alegria da festa no final”
(CARVAS MONTEIRO, 2011, p. 99).
ASPECTOS POLÍTICO-CULTURAIS LUSO-BRASILEIROS OITOCENTISTAS
Portugal viveu, no século XIX, um período particularmente conturbado, do
ponto de vista político-militar, que necessariamente se refletiu na vida social e cultural
do país. Para o período que traçamos para o presente trabalho, o estudo da época de
D. João VI no Brasil reconstituída por Oliveira Lima, “através da verdade dos fatos
históricos” e não “da sensaboria de meros panegiristas ou da leviandade de detratores
apressados”, deve ser encarada “como a do lançamento efetivo das bases da
emancipação brasileira”, como diz Octávio Tarquínio de Souza no prefácio à 2ª edição
de Dom João VI no Brasil, considerado “um dos maiores livros [dividido em trinta
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capítulos] da nossa historiografia [brasileira] e o mais completo e lúcido acerca do
assunto de que se ocupa” (LIMA, 1996, p. 774)2.
O monarca não foi o que se pode chamar um grande soberano, com brilhantes
proezas militares ou golpes audaciosos de administração, todavia o que fez,
concretizou-o segundo predicados reveladores de caráter, bondade, inteligência e
senso prático e de governo (LIMA, 1996, p. 577).
Emigrada, para o Brasil, a Corte do velho reino perante a esperada invasão
dos franceses – que faziam gelar de pavor os monarcas absolutos por sobejamente
conhecida a incontida ambição territorial de França –, “o príncipe regente, sem afinal
perder mais do que possuía na Europa, escapava a todas as humilhações sofridas por
seus parentes castelhanos, depostos à força, e além de dispor de todas as
probabilidades para arredondar à custa da França e da Espanha inimigas o seu
território ultramarino, mantinha-se na plenitude dos seus direitos, pretensões e
esperanças” (LIMA, 1996, p. 43).
Fig. 1 - Entrada das tropas de Junot, em Lisboa. Água forte, de Louis Gudin,
cerca de 1820. In: Jorge M. Pedreira, 1997, p. 225.
A ideia da trasladação da corte já vinha de longa data3 e a contento do príncipe
regente, pois sabia qual o resultado de posição contrária (a deposição e o cativeiro).
2
Este estudo monumental que versa sobre o “Brasil dos primeiros vinte anos do século XIX — a terra, o
homem, a sociedade, os costumes, a economia”, mereceu também a atenção do autor, sobre o “largo
desenvolvimento [dado] às questões diplomáticas, às intrigas das chancelarias, aos subentendidos dos
tratados internacionais” (LIMA, 1996, p. 773).
3
A transferência ou saída do príncipe regente para o Brasil foi uma opção diplomática. Os planos de uma
transferência da sede do poder político para o Brasil são, na história portuguesa, anteriores a 1807 e
surgem sempre em períodos de forte agitação político-social. Já em 1580, o Prior do Crato foi
aconselhado a mudar-se para o Brasil, quando o duque de Alba invadiu Portugal. Em 1640, quando as
guerras da Restauração ameaçavam eternizar-se, o padre Antônio Vieira sugeriu a D. João IV tomar a
mesma atitude. No século XVIII, D. Luís da Cunha e o marquês de Pombal também consideraram essa
solução e, antes das invasões francesas, em 1803, Rodrigo de Sousa Coutinho apresentou-a como uma
“nobre e resoluta determinação”. Em 1807, os planos da transferência foram determinados na convenção
secreta entre o príncipe regente D. João e o rei de Inglaterra Jorge III, assinada em Londres em 22 de
Outubro e ratificada em Portugal a 8 de Novembro.
3
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No dia 29 de novembro de 1807, levanta âncora a esquadra para o Brasil —
“assistindo à partida, como refere o despacho do almirante sir Sidney Smith4, a força
francesa que no mesmo dia ocupara a capital e se apinhava nos morros para
contemplar, raivosa e impotente, a desaparição no horizonte da presa tão cobiçada”
(LIMA, 1996, p. 54).
Fig. 2 - Embarque da Família Real para o Brasil, em 1807. H. Levéque.
Campaigns of the British Army in Portugal. London, 1812.
O Brasil representava um porto seguro, um lugar a salvo de pilhagens e da
crise em Portugal e dos perigos da guerra. Era também um porto seguro para os
arquivos preciosos da Torre do Tombo, da Real Biblioteca Pública e da Real
Biblioteca, um exemplo da representação da ilustração portuguesa e do poder
monárquico e a erudição do rei e da sua cultura. Os “livros são símbolo e sinal de
independência: independência política mas também independência nas ideias,
independência no pensar e nas possibilidades de construir utopias e projetos”
(SCHWARCZ, 2007, p. 91), como se garantissem cultura, erudição e reconhecimento5.
O desembarque da família real portuguesa no Rio de Janeiro, aos 8 de março de
1808, foi “mais do que uma cerimônia oficial: foi uma festa popular”, sendo visível a
reverência e o amor que animavam os súbditos transatlânticos, desde a rampa do cais
até à Sé, como seguidamente se descreve:
D. João, o príncipe regente, acompanhado pela corte em grande gala, recebido com deferência,
fez a pé o percurso do cais à Catedral e Sé ao som de “tambores e instrumentos músicos”
localizados em pontos vários. Fogos de artifício e o repique dos sinos das igrejas do Rio de
4
Também partiu a 13 de março no Foudroyant, desembarcando no Rio de Janeiro a 17 de maio de 1808.
5
Para um maior esclarecimento sobre “D. João VI e os livros no Brasil: o caso da Real
Biblioteca”, veja-se o artigo de Lilia Moritz Schwarcz, publicado na Convergência Lusíada, em
2007.
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Janeiro saudavam o cortejo, que caminhava sobre um chão coberto de areia e ervas odoríferas.
Um coreto junto à rua do Rosário fazia ouvir, nas palavras do padre Perereca, “melodiosas vozes
instrumentais como vocais”, entoando hinos de júbilo e louvor a Sua Alteza Real. E, assim,
cercado de música ao longo do caminho, o príncipe regente entrou na Catedral ao som de “uma
grande orquestra”. É é na pequena e humilde igreja levantada pelos irmãos de Nossa Senhora
do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, que o príncipe regente de Portugal e dos
Algarves ajoelha na tarde de 8 de Março de 1808 para assistir ao Te Deum e “agradecer a Deus
a graça de havê-lo feito chegar a salvo” (MATTOS, 1997, p. 63-64).
Bernardes (2007, p. 124) confirma-nos efetivamente não só o desejo do
monarca como nos dá contado primeiro contato musical deste, com José Maurício: “D.
João desejava que se celebrasse um Te Deum, na Sé, em agradecimento pela boa
viagem e chegada”. Seguidamente, o mesmo autor acrescenta que
o conjunto musical dirigido por José Maurício contava com um grupo vocal formado por cantores
meninos, nas vozes de soprano e contralto, e adultos, como tenores e baixos, e ainda com um
pequeno grupo de instrumentistas que, segundo a prática de orquestração de suas obras até
então, provavelmente era constituído por cordas, flautas, ocasionalmente clarinetes, trompas e
baixo contínuo, realizado por órgão, fagote e contrabaixo.
Cabe salientar a existência de uma praxis nas capelas régias portuguesas de
animarem as celebrações litúrgicas com grupos de excelência, quer na criação quer
na execução musical. Com efeito, “o adorno e a pompa eclesiásticos constituem a
expressão do valor que se atribuía à ostentação da riqueza como forma natural de
comover multidões e de proclamar a crença: na sede romana a vida na Cúria
adoptava em pleno o tom do brilho palaciano” (CARVAS MONTEIRO, 2007, p. 232),
podendo, pois, afirmar-se que a manutenção regular e a exuberância destas práticas
esteve sempre ligada à afirmação do poder real e eclesiástico, questão essencial para
a compreensãoda importância da Real Capela, quando da mudança da corte para o
Brasil.
O Rio de Janeiro, ao tempo da chegada da família real, detinha uma população
contabilizada em 50.000 (cinquenta mil) almas, número não seguro, pois fontes
diversas apresentam quantitativos muito díspares. Todavia, em 1821, os indicadores
oficiais dão-nos conta de 150.000 (cento e cinquenta mil).
O ano de 1808 foi particularmente importante para a história de Portugal e do
Brasil. Em breve período, fixaram-se no Rio de Janeiro órgãos essenciais da
administração, como o Desembargo do Paço ou Mesa de Consciência e Ordens, a
Casa da Suplicação, o Real Erário, o Banco do Brasil e a Tipografia Régia.
Qualquer tentativa de estudar a vida musical brasileira antes de 1808 esbarra
com alguns problemas, sendo um deles a falta de imprensa, no período anterior à
vinda de D. João VI. A criação da Imprensa Régia, possibilitou o surgimento de jornais
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e livros feitos no Brasil. Com o aparecimento dos periódicos, as atividades musicais
puderam então ser registadas com maior precisão (FAGERLANDE, 1996, p. 11).
A transferência da Família Real para o Brasil proporcionou um grande avanço
político, social e cultural neste país, noticiado pela imprensa por jornais da época,
entre eles a Gazeta de Lisboa6 e O Correio Braziliense7.
Para a reconstrução histórica de culturas musicais e para a documentação de
contatos entre diferentes culturas tem grande importância o estudo de testemunhos
contidos em relatos de viagens, como é o caso de viajantes estrangeiros, como
William Beckford, James Murphy ou Adrien Balbi (1782-1848), entre outros, que
legaram descrições detalhadas e coevas, beneficiando da sua presença no campo, o
que confere valor acrescentado aos testemunhos. No entanto, há que ter em conta a
natureza genérica destes relatos, a que acresce a visão unilateral dos seus autores, o
seu conhecimento por vezes superficial do contexto histórico, social e cultural dos
países que visitam e os interesses dos leitores a que se destinam as publicações daí
resultantes. Por isso, deverão ser complementados e validados com outras fontes
documentais, nas quais se incluem romances da época, episódios decorrentes dos
teatros da ópera, dos saraus familiares, para além da documentação de chancelarias,
documentação das ordens religiosas, regimentos, cartas régias, correspondência entre
diversas autoridades (conselhos, informações, respostas a cartas, pedidos de mercês)
e outras fontes primárias e secundárias.
Com efeito, os testemunhos dos viajantes estrangeiros possibilitam observar o
observador, por exemplo, o fascínio de Beckford pela originalidade do tipo de música
(modinha) existente em Portugal e no Brasil, em contraste com o que se passava no
resto da Europa, e de Balbi que refere que “as modinhas, sobretudo as brasileiras, são
cheias de melodia e sentimento e, quando bem cantadas, penetram a alma de quem
lhes compreende as palavras” (TINHORÃO, 1997, p. 133-134).
DO SAGRADO ÀS RITUALIZAÇÕES CÍVICAS
A mudança da corte contribuiu para a dinamização do processo de
autonomização cultural e política brasileira: autonomia que, no plano musical, se
refletiu de imediato na reorganização da Capela Real no Rio de Janeiro (1808), nela
sobressaindo o compositor Padre José Maurício Nunes de Garcia (1767-1830), cujo
6
Com uma estrutura interna estável nos seus mais de cem anos (1715-1820) e com poucas interrupções
de publicação (NEVES, 2012, p. 39).
7
Primeiro jornal brasileiro publicado em Londres, desde 1808.
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talento já estava “amadurecido”,que durante três anos, de 1808 a 1811, dirigiu todas
as atividades musicais da corte portuguesa, no Rio de Janeiro. Reconhecendo o valor
deste compositor que «considerava um Mozart ao compará-lo com o gênio
marcadamente italiano do seu ilustre êmulo [Marcos Portugal]” (LIMA, 1996, p. 619),
D. João VI viria a condecorá-lo, conforme nos diz Bernardes (2007, p. 125): “numa
demonstração de apreço e admiração por seus talentos musicais, D. João concedelhe o Hábito da Ordem de Cristo, em 1809, o que, de fato, não terá peso prático em
sua difícil relação com alguns músicos portugueses recém-chegados e que aguardam
Marcos Portugal”.
Em 1815, a Capela Real possuía um corpo de 50 cantores, entre eles
magníficos virtuosi italianos, dos quais alguns famosos castrati 8 – atraídos pela
possibilidade de trabalho propiciadoras pela instalação da corte na cidade e pela
construção do Teatro de Ópera, futuro Teatro São João –, 100 executantes
excelentes, dirigidos por dois mestres de capela.
Para além da reorganização já referida da Capela Real do Rio de Janeiro, com
a chegada da corte lusitana, a “ópera nova” foi remodelada e o número de músicos
aumentado, incorporando-se nela os recém-chegados e o repertório integrava com
regularidade a montagem de óperas.
Moreira de Azevedo (1862) afirma terem sido iniciadas as obras do Teatro de
São João em 1810, sob o projeto de José Manuel da Silva. Lima (2007, p. 167) diz
que “Costa e Silva, em agosto de 1812, fora empossado no cargo de Arquiteto Geral
de Todas as Obras Reais no Brasil e que, as obras do Teatro São João haviam sido
iniciadas em 1811”. Embora a data do começo das obras não seja consensual, uma
coisa é segura e evidente: uma corte habituada às salas de espetáculo nos moldes
italianos necessitava, nesta nova sede, de um teatro dentro da mesma similitude do
que deixara, o Teatro S. Carlos, em Lisboa, o qual deveria traduzir uma nova função
cultural e social, com toda a simbologia característica das salas de espetáculos
europeias.
Em 1813, foi inaugurado o Real Teatro de São João, que atraiu para o Rocio o
genius loci da teatralidade, fato que permearia todo o século XIX e metade do século
XX. A iconografia da época fornece indícios de que a sociedade convergia em busca
do lazer, no espaço do Largo do Rocio. Este teatro chegou a ser também o lugar de
8
Muitas da árias de José Maurício, depois de 1809, foram compostas para castrati, em tessituras pouco
apropriadas para as vozes comuns. Cleofe Person de Mattos elaborou um catálogo temático da obra
daquele compositor, dividindo-o por: missas, ofícios, obras para cerimônias fúnebres, peças para a
Semana Santa, obras profanas, instrumentais, teóricas e avulsas, além de orquestrações. A variedade é
significativa e apresenta: antífonas, beneditos, cânticos, hinos, ladainhas, motetos, novenas, salmos,
Tantum Ergo, Te Deum, matinas, vésperas, etc. Calcula-se em quatro centenas, o número de peças
escritas por José Maurício.
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reunião favorito da elite da cidade, todavia só funcionou até 1824 — pois um incêndio
quase o destruiu —, ressurgindo posteriormente com o nome de Imperial Teatro de S.
Pedro de Alcântara (onde hoje se encontra o Teatro João Caetano), modelado pelos
figurinos portugueses, e cuja fachada é similar à do Teatro de São Carlos, em Lisboa.
Foi palco de diversos atos históricos de que salientamos, por exemplo, em 1821, a
leitura por D. Pedro do decreto relativo à Constituição, que estava a ser elaborada em
Lisboa; e em 1822, no dia 15 de setembro, quandoo Príncipe D. Pedro I, ao voltar de
São Paulo, se apresentou no camarote real com a insígnia “Independência ou Morte”.
As óperas encenadas eram na sua totalidade de compositores italianos ou de outros
que escreviam no estilo italiano. Mais uma vez, se manifesta a grande ligação com
Portugal, já que também no Teatro Real de São Carlos, predominava o repertório
totalmente italianizante.
A este propósito Joseph Scherpereel (1985, p. 87) refere que “uma
característica particularmente notória deste repertório é a ausência total de obras
pertencendo à escola alemã. Quer se trate do palco principal, quer do salão de
oratórios do Teatro de S. Carlos, nada de Mozart, nada de Haendel, nada de Haydn,
nada de Beethoven”.
As atividades musicais nas diversas cidades brasileiras durante o período
colonial eram bastante modestas, com exceção da fase áurea da Capitania de Minas
Gerais. O mundo musical carioca no final do século XVIII e primeiro decênio do século
XIX, apesar de José Maurício já estar em plena atividade, em quase nada se
destacava do que era feito na Bahia, no Recife ou em São Paulo (MARIZ, 1994, p.
53). Acrescenta o mesmo autor que
A humilde cidade do Rio de Janeiro em poucas semanas passou a ser a sede de uma corte
sumtuosa, ávida de diversões e prazeres. Sendo o príncipe regente um entusiasta da música,
era natural que se animassem extraordinariamente as atividades musicais na capital. Mas [...]
esse surto espetacular durou muito pouco – treze anos apenas, isto é, período em que Dom
João VI permaneceu no Rio de Janeiro (MARIZ, 1994, p. 54).
A chegada da corte ao Rio de Janeiro conferiu grande impulso à música
religiosa e à secular, sendo fator preponderante na primeira a reorganização da
Capela Real, e na segunda, a chegada ao Rio de Janeiro, em 1811, do compositor de
óperas Marcos Portugal, como foi dito.
Alguns músicos importantes no final do século XVIII são referenciados por
Correa de Azevedo na obra 150 anos de música no Brasil. A figura de maior vulto para
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a época, no Rio de Janeiro, era o comediógrafo António José da Silva 9 , o Judeu
(1705-1739), tido como o responsável pelo florescimento da ópera bufa em Portugal e,
possivelmente, o mais encenado de língua portuguesa no século XVIII.
No âmbito da música sacra são citados pela sua importância o padre António
Nunes Serqueira, contrapontista, mestre de capela e reitor do Seminário de S. José, o
padre Manuel da Silva Rosa, um dos prováveis mestres de José Maurício, bem como
frei João de Santa Clara Pinto, mestre de cantochão em diversos conventos
franciscanos, e frei Francisco de Santa Eulália, organista do convento de Santo
Antônio (AZEVEDO, 1956, p. 25).
Fig. 3 - Escudos de Armas do Reino do Brasil e do
Reino Unido de Portugal, Brasil, Algarves. In:
Esparteiro, António Marques. Três datas que importam
à independência do Brasil 1808-1815-1822. 1972, p.
25.
José Maurício já era famoso no Rio de Janeiro, em 1792. Foi nomeado mestrede-capela e compositor titular da Sé Catedral (Igreja do Rosário), em 1798. Com a
chegada da corte portuguesa, em 1808, a Igreja dos Carmelitas – a nova Sé – tornase a Capela Real e o Rio de Janeiro é considerado “o mais importante núcleo de
música religiosa da América”, sendo José Maurício transferido para a Capela Real,
juntamente com seus músicos e cantores, a que se juntaram os músicos e cantores da
comitiva portuguesa.
Marcos António da Fonseca Portugal (1762-1829), uma das glórias da música
portuguesa, foi, com seu irmão, Simão Vitorino Portugal, um dos numerosos músicos
de Lisboa que atravessou o Atlântico, em 1811, em direção ao Rio de Janeiro e de
onde não mais regressou em vida.
Durante a última década de Setecentos e a primeira de Oitocentos, o Rio de
Janeiro acolheu um número significativo de bons músicos provenientes de centros
9
O seu teatro tinha como intérpretes bonecos, também conhecidos como bonifrates, fantoches, marionetes
ou títeres, como “disfarce amortecedor” do emprego reiterado da sátira que desconstroi os valores da pompa
barroca. Eram feitos de cortiça e movidos por arame e dirigidos a um público sobretudo plebeu. Este gênero
teatral preenche uma condição favorável à sua tolerância pelo poder, passando talvez despercebido ante
a ortodoxa censura portuguesa. No entanto, o teatro deste luso-brasileiro parece ter influenciado a
“inauguração” de um teatro e de um gênero tipicamente brasileiros, isto é, a comédia de costumes.
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urbanos de Minas Gerais, para além dos monges músicos nos mosteiros e da
atividade musical nos conventos de freiras, instituições proibidas em Minas Gerais
(LANGE, 1966, p. 125)10.
Possivelmente, desde 1784, a Irmandade de Santa Cecília, assente no modelo
lisboeta, constituiu prova de uma atividade musical significativa, com um número
suficiente de músicos para sustentar o seu funcionamento.
A atividade musical no Rio de Janeiro concentrava-se principalmente na
Capela e no Teatro11, para além da que se praticava nos salões e nas festas de rua. O
incentivo às atividades musicais aumentou, pois, com a mudança da Corte e a criação
da Capela Reale o florescimento do teatro de ópera. É sabido que a música foi sempre
valorizada pelos Bragança, e que já D. João IV, para além de compositor de mérito,
possuía uma riquíssima biblioteca musical. No século XVIII, os lucros do comércio
marítimo e, mais especialmente, o ouro do Brasil permitiram aos soberanos
portugueses “satisfazer o seu gosto pela ostentação, ao mesmo tempo que a sua
paixão pela música”.
Relativamente à orquestra da corte, no período que decorre entre 1764 e 1834,
diz-nos Joseph Scherpereel (1985, p. 107) que os seus músicos do ponto de vista
econômico deviam ser muito favorecidos, constituindo os seus vencimentos um
incentivo para a sua contratação, incluindo estrangeiros. Quanto ao número e à
origem dos seus membros, o mesmo autor refere para o período um total de 143
instrumentistas, dos quais “55 apresentavam nomes de origem italiana, 35 de origem
portuguesa, 25 de origem espanhola, 22 de origem alemã, 5 de origem francesa e 1
de origem inglesa”. Afirma que embora “a grande maioria desses nomes seja
estrangeira, deve notar-se que muitos dos músicos que os usavam tinham nascido em
Lisboa, haviam feito os seus estudos em Lisboa e devem, por conseguinte, ser
considerados como portugueses” (SCHERPEREEL, 1985, p. 89).
A Capela Real passou a refletir a magnificência Patriarcal de Lisboa, de cujas
regalias se viu dotada, por exemplo, com três mestres entre 1808 e 1821: José
Maurício, desde 1808, Marcos Portugal, a partir de 1811 e Fortunato Mazziotti, com
10
Lange rejeita “a ideia de terem sido padres “os que deram formação musical tão acentuadamente
universalista dos mulatos-músicos de Minas Gerais” (1966, p. 14). Por ter sido proibido em Minas o
estabelecimento de mosteiros e conventos (para evitar contrabando de ouro por parte de regulares), não
houve no território da mineração atividade missionária como nas outras províncias” (BÉHAGUE, 1997, p. 68).
11
A primeira referência a um teatro no Rio de Janeiro é do navegador francês Bougainville que, em 1767,
deixou registado que: “Em uma sala bastante bonita podemos ver as obras-primas de Metastásio
apresentadas por mulatos e ouvir trechos de grandes mestres de Itália com uma orquestra regida por um
padre corcunda ...” (FAGERLANDE, 1996, p. 14). Este teatro, conhecido por Ópera Velha, foi vítima de
um incêndio, em 1769, durante a representação da obra Os encantos da Medêa, de António da Silva, o
Judeu. Posteriormente, com a chegada da corte lusitana, foi substituído pela Ópera Nova, construindo-se
o Teatro Régio à imitação do Teatro de São Carlos de Lisboa, remodelado o repertório, aumentado o
número de músicos e incorporados músicos os recém-chegados.
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início em 1816. Relativamente ao número de organistas, contou, igualmente, além de
José Maurício, com mais três: José do Rosário Nunes, desde 1808, o padre João
Jacques e Simão Portugal, ambos a partir de 1812. Fagerlande (1996, p. 13), citando
Oliveira Lima, refere que “em 1815 a Capela Real teria 150 músicos, entre cantores e
instrumentistas”. Acrescenta, porém, que “de acordo com pesquisa realizada por
Ayres de Andrade, a Imprensa Régia cita 38 músicos em 1816 e 41 em 1817, o que
segundo este autor seria um número mais realista do que o fornecido anteriormente”,
admitindo que aqueles 150 músicos poderiam corresponder apenas a dias festivos
para os quais eram contratados músicos externos.
A pompa do culto motivou o aumento da assiduidade da população nas igrejas,
bem como nos divertimentos profanos associados às festas sacras. Também fora das
igrejas a música era uma forte componente na sociabilidade e na educação. As
festividades incluíam “o foguetório caraterístico dos préstitos e arraiais portugueses;
os animados leilões de prendas em benefício do padroeiro; as cantigas e danças
variadas de gentes de variadas origens, casando-se o fandango com o batuque”
(LIMA, 1996, p. 598).
Efetivamente, inicialmente a atividade teatral profana em terras de Vera Cruz,
concentrava-se em Salvador da Bahia, que era a sede do vice-rei, posteriormente,
transferira-se para o Rio de Janeiro, em 1763, enquanto sede do governo-geral. Deve
referir-se o papel desempenhado pela Igreja no teatro, na representação de peças,
cavalhadas, de menor ou maior aparato, por vezes associadas a mascaradas.
Também tinham lugar touradas, combates encenados, números musicais, fogos de
artifício e desfiles de carros alegóricos, sem contar com as manifestações particulares.
O gosto do príncipe regente pelas representações cênicas a que assistia
acompanhado pela família e pela corte fez prosperar esta arte e, assim, sob pretexto
de um passatempo intelectual, se estabeleceu um ponto de reunião mundana
acessível a muita gente.
O século XIX coincide com o triunfo de Euterpe, a musa que, segundo a
mitologia grega, presidia a divina arte dos sons. Com efeito, a música era onipresente
e ambivalente: aparecia nas cerimnias religiosas e nas manifestações profanas, nos
atos de passagem ligados à vida e à morte, nas comemorações cívicas nos atos de
caridade e de filantropia, nos passeios públicos, nos coretos e feiras.
A partir do segundo quartel de Oitocentos, ao nível da vida cotidiana e de
práticas de sociabilidade, são grandes e rápidas as mutações que vão fazer reviver
formas da cultura popular e das elites que, em grande parte desapareceram ou se
transformaram, e confrontadas as permanências e mudanças quer ao nível da vida
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cotidiana e da sociabilidade com a evolução geral da sociedade e com as alterações
de natureza estrutural e conjuntural.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A transferência da família real portuguesa para o Brasil desencadeou todo um
cortejo de consequências, cujo processo teve início em 1808, culminando com a
emancipação do território, em 1822. Operado o salto qualitativo a todos os níveis,
incluindo no próprio comportamento político da camada social dominante, verificado
entre aquelas datas, o resultado foi a independência, pois o Brasil já havia deixado a
condição colonial em 1815, com a publicação da Carta de Lei de D. João VI, que criou o
Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. O Governo português reconheceu o novo
império soberano e celebrou com o novo Estado um “tratado de aliança e de paz”.
Relativamente às artes e no caso particular da música é, pois, igualmente
seguro afirmar que os treze anos de permanência da Corte em terras brasileiras,
contribuíram para novas dinâmicas de práticas performativas e interpretativas, de
caráter sagrado e de cariz profano, visíveis através da interpretação preconizada pela
estética oitocentista na sua abordagem dos repertórios apresentados.
A música brasileira e portuguesa são realidades de tal modo entrelaçadas no
período em apreço, que é impossível estudar uma sem investigar a outra, surgindo
especificidades em todo o seu recorte sobre o pano de fundo de patrimónios e
processos histórico-musicais partilhados e interativos. É salutar e importante que
musicólogos brasileiros e portugueses prossigam no sentido de uma aprendizagem
mútua e de constante intercâmbio de saberes.
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