Artigo 04

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Relato de Caso
Retalho transverso miocutâneo de platisma: opção
para reconstrução de defeitos extensos da face
Transverse Myocutaneous Platysma Flap: reconstruction
option for extensive defects of face
Resumo
Fábio Muradás Girardi 1
Virgílio Gonzales Zanella 1
Ricardo Galicchio Kroef 1
Abstract
A reconstrução dos defeitos pós-operatórios gerados pela
ressecção de tumores da face representa um desafio do ponto
de vista estético e funcional. Com a disseminação dos retalhos
microcirúrgicos, o número de casos de reconstrução de defeitos
faciais extensos a partir de retalhos regionais está reduzindo,
embora essa não seja a realidade de todos os centros que se
propõe a tratar desses doentes. O retalho miocutâneo de platisma
é um dos retalhos mais amplamente usados na reconstrução em
cabeça e pescoço. No entanto, são poucos os relatos e séries de
casos que demonstram a experiência com retalhos de platisma
de confecção transversal. Relatamos aqui quatro casos de
reconstrução facial com uso de retalho transverso de platisma e
revisamos as opções correntes de reconstrução facial a partir do
uso dos retalhos cervicais apoiados na vascularização platismal.
The reconstruction of post-operative defects generated by
resection of facial tumors represents an aesthetical and functional
challenge. With the spread of microsurgical free flaps, the number
of cases with extensive defects reconstructed by regional flaps
is decreasing, though this is not the reality of all medical centers
that propose to treat these patients. The platysma myocutaneos
flap is one of the most used options of reconstruction in head and
neck. Nevertheless there are few reports and case series which
demonstrate the experience with transverse designed platysma
flaps. We described four cases of facial reconstruction with
transverse platysma flaps and reviewed the current options of
facial reconstruction utilizing cervical flaps supported by platysma
circulation.
Key words: Surgery, Plastic; Face; Head and Neck Neoplasms;
Neck Muscles.
Descritores: Cirurgia Plástica; Face; Neoplasias de Cabeça e
Pescoço; Músculos do Pescoço.
Introdução
A face é a região anatômica mais acometida por
neoplasias malignas da pele. Comumente o tratamento
desses tumores está associado a extensas ressecções,
com prejuízos estético e funcional de difícil manejo. Com
a popularização dos retalhos microcirúrgicos, muitos dos
casos que antes se valiam da criatividade dos cirurgiões
reconstrutivos agora são tratados com a vasta gama de
opções de retalhos livres disponíveis. No entanto, as
técnicas microcirúrgicas, mesmo em mãos habilidosas e
treinadas, adicionam tempo de procedimento e ainda não se
encontram disponíveis em todos os centros que se propõe
a tratar esses doentes, o que mantém como fundamental o
papel das reconstruções de menor complexidade1.
Para defeitos fáscio-cutâneos a opção de
reconstrução ideal é dos tecidos circunjacentes, com
aspecto semelhante e mínimo dano funcional. De maneira
semelhante ao retalho abdominal para a reconstrução
de mama, os retalhos cervicais são ótimas opções para
a correção de defeitos faciais. As diversas alternativas
de retalhos cervicais se diferenciam sumariamente
em tempo de execução, dificuldade técnica, curva de
aprendizado e limites do arco de rotação. À exceção dos
retalhos exclusivamente fáscio-cutâneos, o retalho de
platisma é sem dúvida o mais difundido, seguido pelo
retalho submentoniano. Na maioria das vezes o retalho
miocutâneo de platisma é confeccionado no sentido
vertical. São poucos os trabalhos que demonstram a
experiência com retalhos transversos de platisma2, 3, 4,
5
. Relatamos aqui quatro casos de reconstrução facial,
sendo dois deles realizados no mesmo paciente (relato 3),
com utilização do retalho transverso de platisma. A seguir,
revisamos as opções de reconstrução da face a partir de
retalhos cervicais baseados na utilização do platisma e
sua vascularização.
1)Médico Cirurgião de Cabeça e Pescoço.
Instituição: Hospital Santa Rita - Complexo Hospitalar Santa Casa de Porto Alegre.
Porto Alegre / RS – Brasil.
Correspondência: Fábio Muradás Girardi - Avenida Independência, 354, 901 - Porto Alegre / RS – Brasil – CEP: 90035070 - E-mail: [email protected]
Artigo recebido em 19/09/2013; aceito para publicação em 22/01/2015; publicado online em 15/07/2015.
Conflito de interesse: não há. Fonte de fomento: não há.
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Rev. Bras. Cir. Cabeça Pescoço, v.44, nº 1, p. 14-17, Janeiro / Fevereiro / Março 2015
Retalho transverso miocutâneo de platisma: opção para reconstrução de defeitos extensos da face.
Girardi et al.
Relato dos Casos
Relato 1: Homem, 55 anos, branco, tabagista,
diagnosticado com melanoma cutâneo na zona parotídea
à esquerda, tipo espalhamento superficial, Breslow 1,
sem fatores histopatológicos de mau-prognóstico. Após
estadiamento, foi submetido à ampliação de margens de
2cm circunferenciais à cicatriz da ressecção prévia, com
geração de defeito de 10x6cm na face. A reconstrução
foi realizada com retalho transverso músculo-cutâneo de
platisma no mesmo tempo cirúrgico. O paciente evoluiu
com formação de abscesso na base do retalho, junto
ao eixo de rotação do mesmo. Associou-se o abscesso
à formação de espaço morto nessa região e ao hábito
tabágico. Houve boa resposta com medidas locais e
antibioticoterapia por via oral, sem perdas com relação
ao retalho. Foi optado por secção da base do retalho
em segundo momento, devido ao excedente de pele
nessa região, cirurgia essa realizada três semanas após
a cirurgia reconstrutiva inicial (Figura 1-A).
Relato 2: Homem, 41 anos, branco, portador de
carcinoma basocelular tipo nodular, ulcerado, com
5cm de extensão e 2,4cm de largura, comprometendo
porção de asa nasal, sulco nasogeniano e lábio superior
à esquerda. Não havia sinais de invasão de mucosa.
O paciente foi submetido à ressecção da lesão com
margens oncológicas. A espessura máxima do tumor
foi de 1,2cm. A reconstrução foi realizada com retalho
transverso músculo-cutâneo de platisma. O paciente
evoluiu sem complicações (Figura 1-B).
Relato 3: Homem, 76 anos, branco, apresenta-se
com dois tumores confluentes na face à esquerda e
área tumoral extensa e infiltrativa na face contra-lateral,
ambas envolvendo a zona malar, bucal e parotídea,
com evolução de aproximadamente 7 anos. Submetido
a ressecção dos tumores da face bilateralmente, em
monobloco, com margens oncológicas, em dois tempos
cirúrgicos: primeiramente as lesões à esquerda e,
posteriormente, à direita. A reconstrução foi realizada
na mesma ocasião da ressecção tumoral, com retalho
miocutâneo transverso de platisma, sendo à esquerda
de 13 cm de comprimento, avançamento de 2cm além
da linha média submentoniana e base larga de 5cm; à
direita, utilizado retalho de mesmas dimensões, com
avançamento de 1cm além da linha média, inferiormente
à linha de incisão cervical contra-lateral. O pósoperatório de ambas cirurgias evoluiu sem complicações.
O anatomopatológico confirmou tratar-se de dois
carcinomas epidermoides confluentes à esquerda, com
4.0x3.0cm e 2.0x1.8cm, respectivamente, e carcinomas
multifocais tanto epidermoides quanto basocelulares,
com invasão de derme profunda e margens cirúrgicas
livres e amplas. Houve geração de excedente de pele da
região pré-auricular bilateralmente, secundário à rotação
dos retalhos, que serão retirados em terceiro tempo
cirúrgico (Figuras 1-C e 1-D).
Descrição da técnica reconstrutiva (Figura 2): A
confecção do retalho transverso de platisma tem início
Figura 1. Casos de reconstrução com retalho transverso de platisma.
Figura 1-a: Paciente no segundo mês pós-operatório de ampliação
de margens de melanoma de face com reconstrução por rotação
de retalho miocutâneo transverso de platisma. Notem que houve
ressecção de excedente de pele junto à base do retalho em 2º tempo
cirúrgico. Figura 1-b: Paciente no trigésimo dia de pós-operatório
de ressecção de carcinoma basocelular de sulco nasogeniano e
lábio superior com reconstrução por rotação de retalho miocutâneo
transverso de platisma tunelizado pelo subcutâneo. Figuras 1-c e 1-d:
Paciente no primeiro mês pós-operatório de ressecção de extensos
carcinomas basocelulares e epidermoides da face bilateralmente, com
reconstrução à custa de retalho miocutâneo de platisma bilateral, em
dois tempos cirúrgicos. Notem que ainda há excedente de pele na
zona pré-auricular bilateralmente, decorrente da rotação do retalho.
com a demarcação de uma faixa miocutânea transversa,
com pedículo arterial a partir do ramo occipital da artéria
carótida externa e drenagem venosa a partir da veia
jugular externa. Sua base localiza-se na extremidade
lateral do pescoço, na zona infra-parotídea. A linha de
incisão superior dista aproximadamente 2cm do rebordo
mandibular, de modo a reduzir a chance de lesão do
ramo mandibular do nervo facial. A extensão do retalho é
variável. No primeiro caso, o comprimento total do retalho,
considerando a base, foi de 12cm. No segundo, visto
que o paciente era de maior porte físico, foi de 13cm, a
semelhança do terceiro e quarto casos. O descolamento
do retalho não deve ultrapassar o bordo anterior do
músculo esternocleidomastóideo, mantendo uma base
larga, de aproximadamente 4 x 4cm e largura constante.
Larguras maiores são possíveis, sendo o fator limitante as
condições de fechamento primário do sítio doador. Parte
dos tecidos moles cervicais e da fáscia cervical profunda
ao platisma podem ser levados em monobloco quando do
momento da rotação do retalho. Para evitar avulsão do
músculo em relação à pele e subcutâneo sobrejacente,
pode-se fazer uso de suturas de fixação entre essas
estruturas. A extremidade distal do retalho avançou 1cm
além da linha média no primeiro e quarto casos e 2cm
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Retalho transverso miocutâneo de platisma: opção para reconstrução de defeitos extensos da face.
no segundo e terceiro, atingindo a região submentoniana
contra-lateral do pescoço em todas as situações. No
primeiro caso foi realizada tunelização do retalho no
subcutâneo da face à esquerda, sendo desepitelizado em
área de 14 cm2. A desepitelização deve ser cuidadosa,
preferencialmente preservando-se a derme profunda. O
túnel subcutâneo deve ser amplo o suficiente para evitar a
compressão do pedículo. Tensão e tração excessiva nas
suturas e fixações do retalho devem ser evitadas. Para
tanto, a medição com réguas cirúrgicas e previsão do
arco de rotação deve ser planejada com antecedência.
Em decorrência do arco de rotação, é comum a formação
de excedente de pele junto à porção superior da base
do retalho. Correções em segundo tempo podem ser
realizadas conforme a necessidade. Em todos os casos
foi utilizada drenagem do espaço cervical com utilização
de penrose, retirado no primeiro pós-operatório. No
primeiro caso, as margens de ressecção foram livres e
amplas. No segundo, não havia sinais de tumor residual
ou satelitoses na peça cirúrgica. Todos os casos atingiram
bom resultado funcional e estético e encontram-se em
seguimento de 17, 18 e 3 meses, respectivamente, sem
evidência de doença em atividade.
Girardi et al.
Discussão
Figura 2. Técnica do retalho transverso de platisma. Ilustração
demonstrando a técnica cirúrgica de confecção do retalho transverso
de platisma. Observe a sintopia do retalho em relação aos ramos
arteriais da carótida externa, músculo esternocleidomastóideo
e ramo da mandíbula, além do arco de rotação do mesmo quando
confeccionado ultrapassando em até 2cm a linha média anterior do
pescoço.
O retalho miocutâneo de platisma foi primeiramente
descrito para a reconstrução oral em 1978 por Futrell
e colaboradores6, sendo difundido a partir de 1983 por
Coleman e colaboradores7. O músculo origina-se nas
clavículas e se insere na face, junto à fáscia parotídea
e terço médio da mandíbula. É vascularizado por ramos
perfurantes da artéria carótida externa, que penetram
pelo músculo e irrigam a pele. Sua porção superior é
irrigada por ramos submentonianos da artéria facial; a
região póstero-superior pelos ramos da artéria occipital; e
a porção média e inferior pelos ramos da artéria tireóidea
superior e cervical transversa8. Linfadenectomias
cervicais, especialmente com envolvimento do nível I
e história prévia de radioterapia cervical são possíveis
fatores complicadores e eventualmente limitadores
desse tipo de reconstrução9, 10.
O retalho de platisma é delgado, elástico e de
fácil execução, podendo cobrir áreas de até cerca de
70cm², com resultados estético e funcional adequados.
Sua construção em eixo vertical é a mais utilizada e
usualmente é realizada com ilha cutânea navicular
horizontal, podendo originar-se tão logo cranial à
clavícula, permitindo um arco de rotação mais longo. No
entanto, especialmente em pacientes brevilíneos, ele
atinge com dificuldade o lábio superior e a zona malar,
não sendo uma boa alternativa na reconstrução de
defeitos faciais altos.
São poucos os relatos de utilização do retalho
transverso de platisma2, 3, 4, 5. Sua confecção de baseia
em uma faixa miocutânea no sentido transversal, com
pedículo largo a partir dos ramos da artéria occipital,
podendo avançar até 1-3 cm além da linha média para
a região cervical contra-lateral. Apesar do seu arco de
rotação não ser tão amplo quanto o retalho de confecção
vertical, a possibilidade de secção da artéria e veia faciais
sem prejuízo funcional do retalho permite que essa seja
uma boa opção de reconstrução dos defeitos da face,
mesmo que de maior profundidade5.
Peng e colaboradores descreveram sete casos em
que foi utilizado o retalho transverso de platisma, com
área de cobertura máxima de 9cm x 4 cm. Houve apenas
um caso de necrose do retalho, o que foi associado a
extensão demasiada da extremidade distal do retalho
além da linha média cervical4. No entanto, Ariyan
demonstrou que não há problemas em atravessar a linha
média do pescoço em relação à circulação do retalho,
desde que pelo menos 50% da pele do retalho se
mantenha em sobreposição ao platisma2. Entre os quatro
casos do nosso estudo, não houve perdas com relação
ao retalho, mesmo com ultrapassagem da linha média
anterior do pescoço. Relatos da utilização do retalho
miocutâneo transverso de platisma mostraram alta taxa
de sucesso especialmente na reconstrução de defeitos
da face, orelhas e lábios. Uma de suas vantagens é a
menor necessidade de rotação em comparação aos
retalhos de platisma verticais, fato bem observado por
Peng e colaboradores4.
Em 1993 Martin e colaboradores descreveram
uma opção alternativa ao retalho de platisma baseada
nos ramos da artéria submentoniana, que permitiam
rotação de ilhas cutâneas de até 10cm x 16cm, da
região inferior ao mento para a face e cavidade oral, com
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Retalho transverso miocutâneo de platisma: opção para reconstrução de defeitos extensos da face.
bons resultados estéticos e funcionais11. Aparentemente
a difusão do retalho submentoniano foi a responsável
pelo desuso do retalho transverso de platisma, visto
que aquele permitia uma maior amplitude de rotação,
embora se mantivesse como uma opção arriscada em
casos de necessidade de exploração do nível I para
linfadenectomias cervicais. Sua execução é mais rápida
e simples que dos retalhos microvascularizados, porém
usualmente exige a dissecção cuidadosa do pedículo
vascular e cuidados adicionais na preservação do
ramo mandibular do nervo facial, o que invariavelmente
aumenta o tempo cirúrgico e a curva de aprendizado na
execução do retalho11.
O retalho cérvico-submentoniano em ilha (the
keystone perforator island flap) foi idealizado em 2003
por Behan12. O princípio funcional do retalho cérvicosubmentoniano é baseado no conceito dos angiotomos,
um segmento fáscio-cutâneo que pode ser transportado
na forma de ilha a partir da vascularização e drenagem
de um único eixo artério-venoso e suas conexões. Ele
incorporou os princípios reconstrutivos dos dois retalhos
anteriores, sem a necessidade de identificação de uma
perfurante específica, mantendo a facilidade de execução
do retalho de platisma e o grande arco de rotação do
retalho submentoniano. De certa forma esse retalho
se assemelha em muito com o retalho transverso de
platisma, com a diferença de que naquele a pele da base
do retalho é seccionada, formando-se uma ilha músculofáscio-cutânea. O princípio não difere dos tão difundidos
“retalhos de avançamento em V-Y”, o que fez com que
essa opção de reconstrução se apresentasse como
uma solução de fácil execução e design. Uma das suas
principais aplicações está entre o público idoso, entre
o qual o excedente fáscio-cutâneo cervical favorece o
fechamento da zona doadora com facilidade e em menor
tempo cirúrgico que as opções de retalhos livres.
Conclusão
Nossa experiência, associada aos relatos da
literatura, demonstra que existe segurança na confecção
Girardi et al.
do retalho transverso de platisma, desde que respeitados
os princípios básicos de sua execução. O número
de opções e as variações técnicas na utilização dos
retalhos cervicais para reconstrução facial são vastos.
O conhecimento anatômico da região, associado ao
conhecimento técnico dos principais tipos de retalhos
irá nortear a seleção e individualização de cada caso. O
retalho transverso de platisma é mais uma opção viável
e deve ser lembrada como uma alternativa em casos
selecionados.
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