Steil, Carlos Alberto; Toniol, Rodrigo. In: orgs. Everardo Rocha e Marina Frid. Os Antropólogos. Editora PUC-Vozes, 2014. (no prelo) EDWARD EVAN EVANS‐PRITCHARD: UM MESTRE DA ESCRITA ETNOGRÁFICA ∗ Carlos Alberto Steil ∗∗ Rodrigo Toniol Vida e Obra O reconhecimento da influência de Edward Evans-Pritchard na constituição da antropologia moderna fez dele um dos autores mais emblemáticos da prosa etnográfica. Em continuidade à sistematização do método do trabalho de campo, proposta por Bronislaw Malinowski, Evans-Pritchard acrescenta sua contribuição tanto em termos da sua aplicação empírica nos contextos africanos que pesquisou quanto da reflexão sobre a própria sociedade britânica. A clareza de seu texto etnográfico e as questões filosóficas que levanta a partir de seus dados empíricos tornaram suas monografias um verdadeiro acontecimento na história da antropologia social. A leitura de suas principais obras: Os Nuer e Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande, torna-se, ao lado de Argonautas do Pacífico Ocidental de Malinowski, um rito de iniciação necessário para todos aqueles que desejam aprender antropologia. Assim, seu lugar no contexto da antropologia do século XX transcende os campos da religião ou da política e se constitui como um modelo para a descrição e organização do texto etnográfico para toda a antropologia social. Nascido em 1902, em Crowborough, uma pequena cidade do distrito de Sussex, na Inglaterra, Evans-Pritchard era filho de um pastor anglicano. Aos dezenove anos, começou seus estudos em história moderna no Exeter College, na Universidade Doutor em Antropologia Social. Professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Email: [email protected] Doutorando em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Email: [email protected] ∗ ∗∗ de Oxford, onde foi especialmente influenciado Robert Marret, sucessor de Edward Tylor na cadeira de antropologia em Oxford e um dos fundadores da Sociedade Antropológica de Oxford (Gaillard, 2003). Marett foi, durante a década de 1920, um “amigo e conselheiro” de Evans-Pritchard e o responsável por sua opção pela antropologia (Evans-Pritchard, 1950:118). Foi ele que introduziu Evans-Pritchard no debate antropológico sobre moral primitiva e as origens da religião e da magia e o aconselhou a participar dos seminários de antropologia na London School of Economics (LSE), onde conheceu Charles Gabriel Seligman e Bronislaw Malinowski. Seligman veio a ser o orientador da tese de doutorado de Evans-Pritchard, exercendo uma influência significativa na sua formação como antropólogo. Embora tenha ficado na sombra da relevância que Malinowski obteve como fundador da antropologia moderna e sistematizador do trabalho de campo, Seligman foi fundamental não apenas na introdução de Evans-Pritchard no método etnográfico, mas também de toda a geração de antropólogos britânicos da década de 1920. Neste sentido, ele foi pioneiro na orientação de monografias baseadas em experiências de longa permanência entre as populações estudadas. Em 1898 e 1899 participou, como médico patologista e antropólogo, da Cambridge University Torres Straits Expedition, que marcou, de modo emblemático, a primeira geração de antropólogos ingleses. A sua experiência entre os grupos da Nova Guiné resultou em seu livro The Melanesians of British New Guinea, publicado em 1910. Em suas pesquisas posteriores, apesar de seguir interessado na análise de sociedades primitivas da Oceania, mudou seu lócus de investigação para a África, inaugurando, em 1909, uma série de trabalhos de campo no Sudão. Ao lado de Seligman, foi marcante a influência de Malinowski na formação de Evans-Pritchard durante o período que esteve na LSE. Como afirma Firth, Malinowski não apenas elevara o método do trabalho de campo a uma teoria, como também lecionou, nas décadas de 1920 e 1930, para quase todos os antropólogos formados na Inglaterra. Evans-Pritchard frequentou os seminários de Malinowski no decorrer do ano de 1925, sendo um dos poucos graduados do grupo. Hortense Powdermaker, uma sindicalista norte americana que esteve na LSE naquele período escreveu: Durante o meu primeiro ano na LSE, só havia três estudantes graduados cursando antropologia. Os dois primeiros foram E.E. Evans-Pritchard e Raymond Firth. Isaac Schapera veio no segundo ano e logo se nos juntaram Audrey Richards, Edith Clarke, o falecido Jack Dilberg, Camila Wedgwood, Gordon e Elizabeth Brown. Fortes vínculos pessoais se desenvolveram entre nós e com Malinowski; era uma espécie de família com as ambivalências habituais. O ambiente era na mais pura tradição europeia: um mestre e seus alunos, alguns de acordo e outros em oposição. (Powdermarker apud Kuper,1978: 88). No ano seguinte, em 1926, Evans-Pritchard foi para a África, para fazer trabalho de campo no Sudão anglo-egípcio. Foi nesse período que teve o primeiro contato com os Azande, população sobre a qual escreveu sua tese, defendida em 1927, intitulada The social organization of the Azande of the Bahr-el-Ghazel province of the anglo-egyptian Sudan. Em 1928, ele publicou um de seus primeiros textos sobre magia entre os Azande, um tema que o acompanharia durante toda a sua carreira. Em The Dance (Evans-Pritchard, 1928) ele comparou seu material de campo entre os Azande com os dados apresentados por Malinowski sobre os Trobriand, mostrando que as funções e concepções de magia diferem de acordo com as estruturas sociais (Gaillard, 2004: 145). Após ter sido contratado temporariamente pela LSE para atuar no departamento de Antropologia, foi para o Egito, onde foi professor por dois anos (1932-1934) na Universidade do Cairo. No período seguinte, junto com os trabalhos de campo que seguia realizando no Sudão, Congo e Quênia, transferiu-se para o Instituto de Antropologia Social da Universidade de Oxford, criado por RadcliffeBrown. Na década de 1930 o funcionalismo representado por Malinowski perdia força, enquanto o estrutural-funcionalismo liderado Radcliffe-Brown por ganhava visibilidade e deslocava o centro de produção antropológica da LSE para Oxford.1 Seguindo esta tendência mais geral, Evans-Pritchard aproxima-se de Radcliffe-Brown e afasta-se de Malinowski. Foi neste período que ele faz sua viagem ao Sul do Sudão para pesquisar os Nuer, uma população que promovera diversas insurgências contra o governo colonial inglês. Além das importantes monografias resultantes dessa pesquisa, a escolha dos Nuer como uma população de interesse etnológico demarca um divisor de águas na antropologia da época, na medida em que, com os estudos na África, os antropólogos deixaram de privilegiar os grupos isolados, “primitivos”, e 1 Autores como Adam Kuper exploraram pormenorizadamente a relação entre os trabalhos de Malinowski e os de Radcliffe-Brown, destacando as diferenças entre o funcionalismo de um e o estrutural-funcionalismo de outro (Kuper, 1978). passaram se interessar pelas “sociedades em transição”, diretamente interpeladas pela ação colonial. Em 1937, seu interesse pela magia Azande resultou na publicação de uma de suas principais obras, Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande (2005). Nesta etnografia seminal e de consequências duradouras para o desenvolvimento da antropologia da religião, filosofia da ciência e psicologia da crença, Evans-Pritchard, se debruça sobre a identificação do propósito epistemológico do recurso à bruxaria como explicação de infortúnios. Como comenta Viveiros de Castro, sua investigação sobre o sentido da bruxaria, dos oráculos e da magia na sociedade Azande (...) busca não as causas eficientes dos infortúnios, mas as razões suficientes; não a física da causalidade objetivas, mas a política da intencionalidade subjetiva; não o fenômeno e o conceito, mas o evento e o sentido. É a este livro que a antropologia deve uma de suas principais contribuições ao pensamento contemporâneo, a saber, a constatação de que há muito mais bruxaria no céu e na terra do que supõe a vã burocracia da razão (Viveiros de Castro, 2004: 7). Em 1940 Evans-Pritchard publicou outros dois livros centrais em sua trajetória, Os Nuer (1978) e African Political Systems (1955), esse último organizado junto com Meyer Fortes. Estas obras colocam em destaque o reconhecimento de que as tribos e nações que ocupavam vastas extensões territoriais da África colonial dispunham de dispositivos políticos e de controle social distintos daqueles descritos pelos etnólogos que se ocuparam de populações insulares na Oceania. Isto é, tratavase de chamar a atenção para o fato que não são apenas os Estados-Nação exercem controle político sobre sua população, mas que mesmo sociedades “sem Estado” possuem suas formas de organização e controle social. Em sua etnografia sobre os Nuer, por exemplo, Evans-Ptrichard apresentou uma sociedade que, ao estruturar seu sistema político em linhagens e clãs, prescindia de um poder centralizador, do Estado (Pacheco de Oliveira, 1987:65). A análise da política dessas populações por parte do antropólogo está relacionada com uma demanda do próprio governo colonial que enfrentava dificuldades na administração de suas colônias africanas. Na década de 1940, sobretudo em sua primeira metade, Evans-Pritchard trabalhou como consultor da administração militar do governo britânico atuando em diversas regiões (Gaillard, 2004). Em 1945 tornou-se professor em Cambridge e em 1946 sucedeu Radcliffe-Brown na cadeira de antropologia em Oxford. Em 1950 foi professor na Universidade de Chicago e em 1957 trabalhou no Center for Advanced Studies in Behavioral Sciences, na Universidade de Standford. Em 1951 e 1956 publicou outro dois livros baseados em seu trabalho de campo entre os Nuer, Kinship and Marriage Among the Nuer e Nuer Religion, respectivamente. Em 1970 aposentou-se em Oxford, um ano depois foi nomeado Sir e em 1973 faleceu. A crítica antropológica parece já ter nos acostumado a identificar alguns autores com certos quadros de pensamento. Esse é o caso de Evans-Pritchard com o funcionalismo. Embora algumas de suas obras possam aproximá-lo do conjunto de referências que caracterizou esta corrente de pensamento no campo da antropologia, sua reflexão teórica e metodológica transcende a posição funcionalista não somente por sua concepção, mas, sobretudo, por seu diálogo e incorporação do pensamento de autores que se situam fora do funcionalismo britânico que foi dominante no período de formação e atuação profissional de Evans-Pritchard. Conforme assinalou Otávio Velho, o próprio Evans-Pritchard protestou contra a pronta associação de sua obra com o funcionalismo: O chamado método funcionalista era muito vago e escorregadio para persistir, e também por demais tingido pelo pragmatismo e pela teleologia. Dependia excessivamente de uma analogia biológica um tanto frágil; e pouco foi feito em matéria de pesquisa comparativa para apoiar conclusões retiradas de estudos específicos – na verdade, os estudos comparativos estavam se tornando quase obsoletos. (Evans-Pritchard apud Velho, 1995:118) No auge de um paradigma que privilegiava as relações sociais, Evans-Pritchard escreveu um livro sobre como os Azande pensam (Giumbelli, 2006: 264). Assim, se o funcionalismo privilegiou as instituições e as estruturas empíricas como a origem do pensamento do pensamento, Evans-Pritchard faz um importante deslocamento para o pensamento, mostrando a plausibilidade da “filosofia natural [Azande], por meio da qual explicam para si mesmos as relações entre os homens e o infortúnio, e um meio rápido e estereotipado de reação aos eventos funestos” (Evans-Pritchard, 2005: 49). Conceitos destacados Um autor se torna clássico numa área do conhecimento quando sua contribuição passa a compor o repertório de conceitos e procedimentos metodológicos como um patrimônio comum e inescapável para a comunidade de crença e de discurso que congrega os seus profissionais. Assim, ao apresentar Evans-Pritchard destacamos de sua contribuição alguns conceitos e procedimentos que pavimentaram o caminho dos antropólogos que o sucederam até os dias de hoje. A sua principal contribuição diz respeito ao método etnográfico que, em continuidade ao trabalho de Malinowski e Radcliffe-Brown, consolidou o lugar da antropologia moderna. As outras situam-se em três campos coneituais: o da religião, com destaque para os noções de bruxaria e magia; o da política, onde as sociedades africanas são estudadas como modelos estruturais de organização e controle social fora do Estado; e os conceitos de tempo e espaço como estruturantes da etnografia. Sobre o método etnográfico Assim como Malinowski, a contribuição mais importante de Evans-Pritchard à antropologia refere-se à reflexão e aplicação do método etnográfico a contextos empíricos de observação de campo. Neste sentido, Evans-Pritchard faz da descrição etnográfica o lugar por excelência da abstração, de modo que o trabalho de campo torna-se necessariamente uma reflexão teórica. Como afirma Adam Kuper, seus textos monográficos devem ser compreendidos no contexto de um esforço consciente para desenvolver uma abstração estrutural na análise etnográfica (Kuper, 1978: 89). Evans-Pritchard lista três fases ou níveis de abstração que comporiam o método etnográfico. No primeiro nível, o antropólogo busca apreender as características significativas de uma cultura ou tradição e traduzi-la para a sua própria cultura. Na segunda fase, intenta, através da análise, decodificar as formas ou estruturas subjacentes de uma sociedade ou cultura. Essa estrutura, no entanto, não está ao alcance da vista, mas só é acessível mediante uma série de abstrações, ainda que derivada da análise do comportamento observado, é produto do trabalho de imaginação do próprio antropólogo. Ao relacionar logicamente essas observações entre si de forma que venham a compor um modelo, torna-se possível ver a sociedade em seus elementos essenciais, como um todo (Evans-Pritchard, 1962: 23). Finalmente, na terceira fase, o antropólogo compara, implícita ou explicitamente, as estruturas sociais de diferentes sociedades. Sobre religião Em Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande (2005), Evans-Pritchard consegue mostrar o enorme descompasso entre a religião como um quadro de referência institucional e político e o sistema de crenças partilhado por uma comunidade mais extensa, que existe sem referência direta a estas formas institucionais. Esse reconhecimento, no entanto, não resulta numa leitura reducionista que tomaria as representações sociais como simples reflexos de uma determinação econômica ou utilitarista. Ao contrário, toda a sua argumentação vai no sentido inverso, rompendo com uma perspectiva compartimentada da vida social que acaba hierarquizando os diversos níveis da sua estrutura ou dividindo-a em diferentes campos de produção de sentidos. Sobre a bruxaria, Evans-Pritchard diz que os Azande acreditam que ela é transmitida por herança e se apresenta como uma substância real, localizada nos corpos dos bruxos, que pode ser identificada, se necessário, em exames post-mortem. Até o momento da dissecação do cadáver, porém, não se pode ter certeza se a pessoa realmente era um bruxo. A bruxaria também pode ser latente, de forma que a pessoa pode ser um bruxo sem ter consciência disso. Além da relação com essa substância material, a bruxaria também está associada a infortúnios familiares e práticas maléficas. O poder dos bruxos para fazer o mal, no entanto, não opera à distância, o que faz com que eles sejam sempre procurados entre os vizinhos. Também não opera entre aqueles que ocupam posições políticas diferenciadas na sociedade Azande, de modo que um superior nunca pode ser acusado de prática de bruxaria por alguém que está numa posição inferior na hierarquia social. A bruxaria não apenas explica o infortúnio, mas também provê os meios para neutralizá-lo ou mudar o curso de sua ação. Evans-Pritchard mostra que em termos sociais, a bruxaria é a causa mais relevante, visto que é a única que não apenas determina o comportamento social, mas também permite a intervenção das pessoas. As causas físicas e naturais, estão para além da ação humana e da determinação social. Tendo sofrido um infortúnio, consulta-se um feiticeiro, que procura identificar o bruxo, geralmente com a ajuda do consulente. Os feiticeiros são pessoas comuns que possuem algum conhecimento especial sobre certos remédios, mas não são totalmente confiáveis. Por isso, os Azande preferem consultar os oráculos, que são geralmente controlados pelos chefes políticos. Entre os oráculos, o mais importante é o oráculo do veneno. Seu procedimento consiste em dar um veneno especial à galinha e fazer uma pergunta que será respondida pela morte ou pela vida da ave. Entre os Azande, os oráculos são usados muito mais para regular as atividades cotidianas dos membros da sua sociedade do que para prever o futuro, como acontecia entre os romanos. A reflexão de Evans-Pritchard sobre a bruxaria leva-o a estabelecer uma diferença mais geral entre o modo de operar do pensamento acadêmico, orientado pelo ideal conceitual aristotélico, e senso prático que predomina no sistema de comunicação dos Azande. Como ele afirma: Na verdade os Azande experimentam sentimentos, mais que ideias sobre a bruxaria, pois seus conceitos intelectuais sobre ela são fracos, e eles sabem mais o que fazer quando atacados por ela do que como explicá-la. A resposta é a ação, não a análise (EvansPrithcard, 2005: 60-61) A outra prática comum que faz parte do sistema religioso dos Azande é a magia, que pode ser usada para se obter saúde ou para fazer vingança. EvansPritchard observa que os remédios usados pelos mágicos e feiticeiros nem sempre são eficazes. A maioria deles são meios místicos para combater doenças físicas. Quanto ao uso da magia para vingança, o primeiro procedimento ritual consiste em encontrar o bruxo, para em seguida usar os meios místicos para provocar a sua morte. A vingança mágica é agressiva, mas ela apenas mata os malfeitores, de forma que é vista pelos Azande como essencialmente justa. Pode haver o mal mágico, usado para prejudicar pessoas que não causaram prejuízos a outros, mas este uso da magia, segundo os Azande, está restrito aos feiticeiros (Steil, 2002) . Para os Azande, a diferença entre bruxo e feiticeiro é que enquanto o primeiro tem um poder inato para fazer o mal, o segundo usa remédios e magias para alcançar seus objetivos. Mas isto não se constitui numa distinção vital, pois ambos são vistos como inimigos e perigosos. Bruxaria e feitiçaria estão em oposição entre si, mas juntas estão em oposição à “boa magia”. Em suma, na visão dos Azande, bruxaria, feitiçaria, oráculo e magia estão interligados num único processo. E, como escreve Evans-Pritchard: “A morte evoca a noção de bruxaria; os oráculos são consultados para determinar o curso da vingança; a magia é feita para neutralizar a causa; os oráculos decidem quando o mágico deve executar a ação contra a vingança; e, uma vez que o procedimento mágico terminou, o remédio é destruído (Evans-Pritchard, 2005: 544). A política Evans-Pritchard avança na crítica liberal2 que faz ver os “primitivos” como “gente como a gente” e encaminha-se para uma análise que permite simultaneamente perceber a perspectiva oposta, do “nós como eles” (Velho, 1995:122). Esse movimento, que em Bruxaria, oráculos e magia o permitiu dessubstancializar o conceito de religião como um mediador universal, o conduziu em Os Nuer e em African Political System a ampliar o marco do entendimento sobre o que seja o “político” tanto para a antropologia como para a filosofia política. A identificação dos limites das análises filosóficas sobre o tema e, ao mesmo tempo, indicação das contribuições da antropologia – sobretudo a partir do trabalho de campo – para o estudo da política aparece de modo explícito na introdução de African Political System escrita por Meyer Forte e Evans-Pritchard. Nossa opinião é que as teorias dos filósofos políticos não nos têm ajudado em compreender as sociedades que temos investigado. (…). A razão principal para isso é que as conclusões dessas teorias não costumam estar formuladas com base em comportamentos observados, ou não são suscetíveis de serem contrastadas mediante este critério. A filosofia política tem se ocupado fundamentalmente do que deve ser, de como os homens deveriam viver e qual tipo de governo deveriam ter, e não de quais são os costumes e instituições políticas. (…) Cremos falar por todos os antropólogos sociais quando dizemos que devemos aspirar encontrar e explicar as uniformidades que existem entre essas instituições assim com suas interdependências com outros elementos da organização social. (Fortes; Evans-Pritchard: 1979: 87-88) Embora preserve a ideia de um domínio do politico, Evans-Prtichard assinala que é preciso as variações do político em diferentes sistemas políticos e, no seu interior, em relação com outros domínios sociais. Enfim, o político não é uma prerrogativa dos Estado-nações que se constituem com governo centralizado, mas, ao 2 Fazemos referência aqui a relação entre o funcionalismo e o liberalismo já apontada por outros autores como Mary Douglas: “A responsabilidade em proteger e em pregar a tolerância encontrava ampla ressonância. Mostrar que as crenças em bruxaria desempenhavam um papel construtivo em um sistema social em funcionamento tem sido uma maneira de levar adiante essa responsabilidade” (Douglas apud Velho, 1995:118). contrário, pode ser observado em outras formas de organização social. Localizar as variações do político no mapa das sociedades africanas e descrever as formas pelas quais estas sociedades mantém a sua coesão e constroem a representação de si como uma unidade tribal ou societária, é um dos objetivos centrais da obra do autor. A monografia sobre os Nuer – uma extensa população às margens do rio Nilo, que passara na década de 1930 por um programa colonial de pacificação – foi escrita para mostrar como este povo cria e reproduz suas instituições políticas para garantir sua existência num universo de diferenciações locais e disputas com outros grupos sociais e em relação à presença do colonizador britânico que os interpela com sua racionalidade administrativa desde fora da própria África (Evans-Pritchard, 1978: 7). No entanto, como afirmou o autor, essas instituições, assim como todos os outros âmbitos da vida dos Nuer, não podem ser compreendidas sem que se leve em conta o meio ambiente e os modos de subsistência de modo que a busca pelo entendimento da estrutura política Nuer conduziu o antropólogo àquilo que constitui seu próprio “idioma social”, o pastoreio3. Assim, a descrição dos Nuer a partir de suas divisões internas e em suas disputas com os povos vizinhos conduziram Evans-Pritchard a uma sofisticada teoria das segmentações como uma lógica comum a todos os processos sociais. O maior segmento politico Nuer é a tribo. E cada tribo e sessão tribal possui seus próprios pastos e reservas de água. Geralmente as cisões políticas relacionam-se com a distribuição desses recursos naturais, cujas propriedades estão expressas em termos de clãs e de linhagens (Evans-Pritchard, 1978: 25). O gado, por sua vez, é propriedade das famílias, mas está à disposição apenas de seu chefe, que os distribui na medida em que os filhos se casam. Quando uma filha se casa a família recebe um dote em forma de gado. É dessa forma que bois e vacas também são aspectos centrais para a definição do sistema de parentesco Nuer. Menos amplos que as tribos e mais abrangentes do que as famílias, os segmentos são centrais para se compreender o modo como se estrutura a sociedade Nuer. Como sintetizou Marcio Goldman, a noção de segmentaridade permite, na análise política elaborada por Evans-Pritchard, compreender como a sociedade Nuer se mantém e se reproduz na ausência do Estado 3 Tamanha é a centralidade do gado para a compreensão da vida dos Nuer que EvansPritchard afirma: “seu idioma social [dos Nuer] é um idioma bovino” (Evans-Pritchard, 1978: 27). (Goldman, 2001: 67). Sua conclusão é de que os segmentos desempenhariam as funções das instituições nas sociedades com do Estado. Quanto menor o segmento, mais compacto é seu território, mais contíguos estão seus membros, mais variados e íntimos são seus laços sociais genéricos, e mais forte, portanto é seu sentimento de unidade (Evans-Pritchard, 1978:154). O princípio da segmentaridade só opera por oposição. Isto é, a conformação de um segmento está diretamente associada com sua oposição a outro, análogo a ele. Para Evans-Pritchard, um segmento tribal é um grupo político em oposição a outros segmentos do mesmo tipo, e eles, em conjunto, formam uma tribo apenas quando relacionada a outras tribos estrangeiras adjacentes, que formam parte do mesmo sistema político. Sem estas relações pode-se atribuir muito pouco sentido aos conceitos de segmento tribal e de tribo (Evans-Pritchard, 1978: 159). Os segmentos se concebem como unidades independentes em relação a outros, mas também se fundem com outras unidades segmentares em determinados momentos. Assim, fusões e fissões caracterizam o movimento dessas divisões do sistema político Nuer que funciona, justamente, a partir da complementariedade dessas tendências. Tempo e espaço Tempo e espaço são outras duas categorias centrais na monografia de EvansPritchard. Segundo o autor, a noção de tempo Nuer deve ser partilhada em duas ordens,: a primeira refere-se aos conceitos que refletem suas relações com o meio ambiente, trata-se do tempo ecológico. A segunda diz respeito à ordem das relações sociais, da cultura, é o tempo estrutural. O que está em jogo nesta distinção, como já sugeriu Luís Roberto Cardoso de Oliveira (1993), é o reconhecimento da utilização por parte dos Nuer de dois tipos de conceitos relativos ao tempo: um absoluto (o tempo ecológico) e outro relativo (o tempo estrutural). Assim, quando se referem às estações do ano, os Nuer operam com a noção de tempo ecológico, ao passo que quando querem falar de eventos significativos para um segmento específico ou de uma história comum que distingue os Nuer de outras sociedades adjacentes, eles operam com a noção de tempo estrutural. De modo semelhante às concepções de tempo, Evans-Pritchard sugere uma divisão entre os conceitos de espaço que estabeleceria uma distinção conceitual entre o espaço ecológico e espaço estrutural. O ecológico compreende aqueles aspectos físicos e geográficos que caracterizam determinadas regiões. Já o espaço estrutural carrega consigo a existência de clivagens sociais que dividem as tribos, as famílias e os segmentos que habitam um determinado espaço ecológico. Assim, as distâncias estruturais independem da proximidade ou mesmo da continuidade no território físico. Ou seja, as distâncias estruturais são fundamentalmente marcadas por aproximação ou distanciamento políticos entre tribos, famílias, segmentos de classe ou grupos de idade. O tempo estrutural fundamenta as alianças políticas e as articulações entre os diversos grupos sociais, ao mesmo tempo em que o desenvolvimento destas associações depende, necessariamente, das distâncias estruturais existente entre os grupos (Oliveira, 1993: 12) Considerações sobre o autor Marilyn Strathern, em Fora de Contexto (2013 [1987]), sugere que as inflexões epistemológicas da antropologia dizem respeito não somente à descoberta de novas ideias, mas, sobretudo, à implementação de determinados dispositivos ficcionais nas narrativas etnográficas. Para a autora, a ascensão ou queda das tendências e correntes no âmbito do pensamento antropológico dependem menos do conteúdo teórico dos conceitos em si, e mais da estratégia de elaboração do argumento e estilo de escrita que o autor imprime ao texto. Assim, a força persuasiva de um texto etnográfico depende fundamentalmente do lugar que ele vai ocupar no horizonte da metanarrativa hegemônica, partilhada por uma determinada comunidade de crença no campo científico. Nesse sentido, importa menos o modo como determinadas ideias são sistematizadas e mais o reconhecimento que elas adquirem dentro de contexto temporal e espacial que se apresenta em consonância com um determinado espirito do tempo. As etnografias de Evans-Pritchard podem ser consideradas entre as mais emblemáticas obras de um tipo de prosa antropológica que se converteu num marco, instituindo um verdadeiro hiato com aquilo que as antecedeu. Os Nuer, para o bem e para o mal, é um dos dispositivos ficcionais mais poderosos da antropologia moderna. Em seu favor, podemos dizer que seu estilo etnográfico estabeleceu um modelo poderoso de persuasão que é seguido até hoje por aqueles que se aventuram pela escrita etnográfica dentro ou fora dos limites da antropologia como ciência. O lugar do Outro estabelecido na descrição etnográfica dos grupos africanos estudados por Evans-Pritchard extrapolou os limites dos argumentos culturalistas comuns e desestabilizou as compreensões que predominaram nas ciências sociais até os anos de 1930. Escrever sobre o método etnográfico, a religião, a política, o tempo e o espaço não se tornou mais possível sem referir-se aos textos de Evans-Pritchard. Os procedimentos metodológicos explicitados em suas monografias e o estilo que ele imprimiu em sua escrita foram fundamentais para que se produzisse o reconhecimento do valor heurístico da etnografia dentro e para fora da antropologia. A crítica pós-moderna, no entanto, apropriadamente tem chamado a atenção para alguns limites do pensamento de Evans-Pritchard. Entre estes limites, gostaríamos de destacar a ausência, nas suas etnografias da problematização do lugar do antropólogo como mediador entre o contexto descrito e o contexto de seus leitores. O que a antropologia moderna fez – e cuja etnografia sobre os Nuer talvez o tenha feito de modo mais emblemático – foi descrever cada um dos grupos observados como uma totalidade e articulada organicamente. Ao proceder desta maneira, o contexto descrito emerge no texto etnográfico como uma realidade a priori, que desconsidera o caráter ficcional da descrição que surge da imaginação do antropólogo. Ao mesmo tempo, a estratégia argumentativa, imposta pelo contexto hegemônico da época e pelo horizonte estabelecido pela metanarrativa dominante, ao impor a descrição o grupo social como uma totalidade orgânica, esconde a presença do colonizador europeu na pessoa do próprio antropólogo e dos administradores que operam o sistema de dominação colonialista no local. Em Writing Culture (1986) James Clifford e George Marcus chamam a atenção para uma certa miragem que a etnografia de Evans-Pritchard teria produzido sobre os Nuer. Ao apresenta-los como uma sociedade com seu sistema político e simbólico coerente e singular, os Nuer acabaram sendo congelados no tempo e no espaço como uma população a-temporal que habita o texto etnográfico. Assim, a estratégia persuasiva impressa na descrição etnográfica, ao mesmo tempo que captura os Nuer no presente eternizante do texto, também legitima a autoridade do antropólogo que funda sua pesquisa a partir do argumento de autoridade de quem pode afirmar: eu estive lá (Clifford, 1998: 27-29). A narrativa científico-literária presente nas monografias de Evans-Pritchard, sobretudo nos Nuer, seria exemplar, para James Clifford, de como o autor inglês defende abertamente o poder da abstração científica para direcionar a pesquisa e articular dados complexos. O livro frequentemente se apresenta mais como um argumento do que como uma descrição, mas não consistentemente: seu argumento teórico é cercado por evocações interpretações habilmente narradas e observadas sobre a vida dos Nuer. Estas passagens funcionam retoricamente mais do que apenas “exemplificações”, pois efetivamente envolvem o leitor na complexa subjetividade da observação participante. (Clifford, 1998:31) No entanto, pode-se afirmar que a própria possibilidade de elaboração de uma crítica como a de Clifford citada acima, dirigida aos artifícios literários utilizados por Evans-Pritchard só foram possíveis porque as suas monografias, escritas nas décadas de 1930 e 1940, atravessaram o debate antropológico até os dias de hoje. A leitura crítica de sua obra, portanto, só confirmam o lugar que Evans-Pritchard entre os clássicos das ciências sociais, isso é, permanentemente novo, pronto para desencadear novos rumos e acontecimentos no pensamento antropológico. Principais obras do autor: EVANS-PRITCHARD, Edward Evan. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Zahar, 2005. EVANS-PRITCHARD, Edward Evan. Os Nuer: uma descrição do modo de subsistência e das instituições políticas de um povo nilota. Ed. Perspectiva, 1978. FORTES, Meyer; Evans-Pritchard, Edward Evan. African political systems Oxford: International African Institute, 1955. EVANS-PRITCHARD, E.E. Essays in Social Anthropology. London, Faber & Faber, 1962. Referências EVANS-PRITCHARD, Edward E. "The dance." Africa. 446-462,1928. EVANS-PRITCHARD, Edward Evan. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Zahar, 2005. EVANS-PRITCHARD, Edward Evan. Os Nuer: uma descrição do modo de subsistência e das instituições políticas de um povo nilota. Ed. Perspectiva, 1978. EVANS-PRITCHARD, Edward Evan. Social Anthropology: Past and Present the Marett Lecture, 1950." Man 50. 118-124, 1950 EVANS-PRITCHARD, E.E. Essays in Social Anthropology. London, Faber & Faber, 1962. FORTES, Meyer; Evans-Pritchard, Edward Evan. African political systems Oxford: International African Institute, 1955. GAILLARD, Gérald. The Routledge dictionary of anthropologists. Routledge, 2003. KUPER, Adam. Antropólogos e antropologia. Francisco Alves, 1978. OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. As" categorias do entendimento" na formação da antropologia. No. 29. Fundação Universidade de Brasília, 1982. 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