Clara Joaquim Beira : Actividade ervanária floresce a olhos vistos NUMA altura em que a nossa sociedade vem sendo assolada por enfermidades de diversa natureza, todos os recursos parecem ser poucos. Hoje é absolutamente comum dizer-se que há doenças que não se curam nos hospitais, razão pela qual a salvação tem sido a chamada medicina tradicional. De todas as formas apraz registar que cada vez mais o casamento entre as duas se consolida naturalmente a bem das comunidades. Nessa esteira, a Universidade Católica de Moçambique (UCM), com sede na Beira, decidiu pela criação de um jardim botânico que já é referência na matéria. Mas cabe aqui um senão: as autoridades da Saúde lamentam que não raras vezes se registem casos de intoxicação na sequência da administração de algumas dessas plantas, sobretudo em crianças e mulheres grávidas. O "Notícias" saiu à rua com o fito de trazer alguns contornos sobre este assunto, que reputamos importante nos dias que passam. Falámos com vários intervenientes e neste trabalho procuraremos reproduzir os seus depoimentos. Maputo, Quarta-Feira, 4 de Março de 2009:: Notícias Rosa João é uma mulher que diz ter 37 anos de idade. Doméstica e mãe de quatro filhos. Encontrámos a Rosita, nome pelo qual ela disse ser conhecida lá no bairro do Aeroporto, na zona conhecida por Madjimane, sábado último, no Mercado do Maquinino, na cidade da Beira, concretamente junto aos ervanários. O motivo da sua presença neste local era apenas um: comprar medicamentos para tratar da saúde do seu filho mais velho. Sustenta que anda há cerca de um ano com o seu filho de 16 nas consultas e tratamentos médicos mas sem resultados. Agora resolveu tentar tratamentos com raízes. Ela acredita que poderá encontrar a cura, pois não é a primeira vez que recorre àquele local. Já o fez há dois anos depois de ter passado seis meses no hospital sem encontrar cura para a doença de outro dos seus filhos. Teve então que parar ali e conseguiu fazer com que o menor gozasse de melhor saúde até à data. Adalberto Manuel é um trabalhador racionalizado dos Caminhos de Ferro. Vive na Cerâmica, arredores da cidade-capital de Sofala. Anda apoquentado com uma doença que ainda não descobriu há sensivelmente seis meses. Doem-lhe as costas. Há um mês que anda a medicarse no Mercado do Maquinino com raízes. Diz sentir-se bem relativamente aos dias em que ia para cuidados médicos porque, segundo ele, nem os exames no hospital permitiram descobrir o que se trata. No mesmo mercado também encontrámos Clara Joaquim, que aparenta possuir entre 35 e 40 anos de idade. Ela é esposa de um curandeiro. Duas vezes por semana ela vai ao mercado comprar raízes que servem de fármacos para os doentes do seu marido. Os medicamentos mais procurados são os de sorte (ndirere), ser gostado (kutchena) e segurança tanto em casa como no serviço (sequera), potência sexual (gonozololo), entre outros. Como estes, segundo soubemos no local, muitas outras pessoas procuram ali curas adquirindo raízes e ervas. O velho Zacarias Simango APENAS CURO NÃO FAÇO CONSULTAS Maputo, Quarta-Feira, 4 de Março de 2009:: Notícias Há cerca de 20 quilómetros da cidade da Beira, concretamente na Cerâmica, vive o ancião Zacarias Pedro Simango. Encontrámo-lo na sua casa, que é um verdadeiro laboratório medicinal verde, pois, segundo ele, todas as plantas e ervas existentes à volta do seu extenso quintal têm utilidade curativa. É muito conhecido pelo facto de igualmente ser o único ervanário que presta assistência ao Centro do Nazaré, pertencente à Igreja Católica. Em sua casa também dá assistência às pessoas que o procuram padecendo de várias enfermidades. Afirma que apenas faz indicações e tratamentos quando o doente apresenta a sua preocupação e fá-lo de acordo com especificidade de cada raiz ou erva. Na sua casa, segundo ele, muitos também chegam para aprender como usar as raízes e ervas para tratamento de doenças, missão que diz fazer sem grandes problemas pois conhece e está habilitado, embora não tenha passado por qualquer formação científica para o efeito. O velho Zacarias, como é tratado, diz que esta actividade não está sendo valorizada, apesar de contribuir grandemente para a área da Saúde. “Estou há muito tempo neste tipo de trabalhos, mas desde 1994 que venho prestando assistência à Igreja Católica, acompanhando os que vão ao retiro no Centro do Nazaré, em Inhamízua, onde para além de boas maneiras eles também aprendem como lidar com plantas medicinais. Sou professor e também acompanho o dia-a-dia dos crentes em retiro até voltarem às suas casas. Além disso, também aproveito colher experiências das pessoas para enriquecer ainda mais os meus conhecimentos” - revelou. Disse que a sua actividade é apenas curar e não faz consultas como os curandeiros. Conta que tem trabalhado em coordenação com o centro religioso existente em Messica, na província de Manica. “Desde que comecei a usar plantas e ervas para curar pessoas nunca tive reclamações de quem quer que seja devido à má administração dos medicamentos, pois sei quando e como fazê-lo. Só tenho dificuldades quando de facto a pessoa chegar aqui na fase terminal, aliás, mesmo no hospital também é assim. Tenho tido muita troca de experiências com outros ervanários, o que é salutar. Devemos continuar assim, mesmo em termos de colaboração com as autoridades sanitárias, a situação é boa, uma vez que nunca tivemos problemas - congratulou-se Zacarias Simango. ALGUNS MÉDICOS MANDAM-NOS DOENTES Maputo, Quarta-Feira, 4 de Março de 2009:: Notícias Tal como Pedro Zacarias Simango, que herdou esta actividade dos seus avós, sobretudo durante a caça, outros ervanários também tiveram conhecimentos das funções das plantas e ervas a partir dos seus avós, tal é o exemplo de Albano José Chisseco e Ernesto Nhamitambo, ambos a comercializarem os seus medicamentos no Mercado do Maquinino. Albano Chisseco, que agora reside em Catandica, na província de Manica, disse à nossa Reportagem que está neste tipo de actividade desde 1998. Aprendeu do seu avô que era curandeiro em Chibabava, no sul da província de Sofala, donde é natural. “Aprendi com o meu avô que era curandeiro e até agora estou a fazer isso”- sublinhou. Presentemente consegue raízes e ervas em várias regiões de Sofala, Manica, Zimbabwe ou Tete. Tal como outros, afirma que não faz consultas, pois este trabalho é dos curandeiros. Acrescenta que apesar de contribuir para o melhoramento da saúde os ervanários não estão a ser devidamente valorizados, sobretudo pelas entidades de direito, à semelhança do que acontece com a AMETRAMO. Ernesto Nhamitambo é um ancião bem conhecido no Mercado do Maquinino. Há 20 anos que anda nestas coisas e sente-se orgulhoso de nunca ter tido problemas com qualquer paciente que solicita os seus serviços. “Estou há 20 anos a curar pessoas mas nunca tive problemas, pois qualquer ervanário deve saber administrar os medicamentos para não criar problemas” - explicou. Dondo, Mafambisse, Gorongosa e Zimbabwe têm sido as zonas onde preferencialmente vai buscar medicamentos. “Há muitas pessoas que são indicadas por médicos ou enfermeiros para virem ter connosco aqui e nós curamos, dependendo da complicação e gravidade da doença, pois há doenças que no hospital não curam”- disse. Um aspecto do Jardim Botânico da UCM O JARDIM BOTÂNICO DA UCM Maputo, Quarta-Feira, 4 de Março de 2009:: Notícias Melhor entendimento, respeito mútuo e cooperação entre diferentes actores na área da saúde, especificamente médicos e praticantes da medicina tradicional, além de uma coordenação melhorada de serviços de saúde para também melhorar a saúde nas áreas rurais e urbanas na região centro do país, tendo o exemplo de práticas tradicionais e fito-terapêuticas de qualidade constituem os principais objectivos que levaram a Universidade Católica de Moçambique (UCM) a que em finais de 2006 criasse um Jardim Botânico na Faculdade de Medicina. Especificamente, segundo Michael Ney, assessor naquela instituição de Ensino Superior, concretamente no Projecto Medicina Verde-Medicina Tradicional, a iniciativa visa levar os estudantes daquela faculdade a conhecerem os conceitos sobre cultura e sociedade no contexto de saúde e doença, a possuírem conhecimentos de métodos e conteúdos de sociologia médica e antropologia médica e a poderem aplicá-los em situações concretas no trabalho médico. Ney explicou que os estudantes da Medicina têm a partir do referido jardim botânico informação sistemática e científica sobre práticas tradicionais e tratamento com plantas medicinais, para além de se criar uma rede entre a referida faculdade e outras instituições académicas, associações de médicos tradicionais, projectos comunitários e pessoas singulares interessadas. O projecto, financiado pelo W. k. Kellogg Foundation no valor global de 350 mil dólares norteamericanos e que termina em Dezembro de 2010, vai criar um banco de dados de plantas medicinais e nutricionais avaliáveis, pesquisa acerca da medicina tradicional e saúde comunitária, bem como tem servido para o treinamento dos estudantes da área, nomeadamente sobre antropologia médica, práticas tradicionais, fitoterapia e saúde comunitária, segundo o método PBL (Problem Based Leaming). Luís Francisco Bofama, administrador daquele empreendimento, e Braunde Francisco Mechendura, técnico ali afecto, explicaram-nos que neste momento existem no jardim cerca de 100 plantas medicinais. “Colhemos experiências para fornecer mais opções aos estudantes sobre a medicina e replicarmos estas experiências nas comunidades” - disse Francisco Bofana. Actualmente existem intercâmbios com alguns ervanários e instituições como Zacarias Pedro Simango, a Faculdade de Agricultura em Cuamba, centro religioso de Messica, entre outros. Apesar de ainda se ressentir da falta de algumas plantas e ervas medicinais muitos grupos de estudantes secundários e universitários têm vindo a visitar o jardim para efeitos de estudos e troca de experiências. Neste âmbito, destacam-se estudantes do curso de Biologia da UP e das escolas secundárias Samora Machel e Nossa Senhora de Fátima e do Instituto de Formação de Professores de Inhamízua (IFPI). “Estamos a fomentar a muringa para que o Gabinete de Saúde Familiar que temos possa entregar as comunidades dadas as suas capacidades curativas e nutricionais”- disse, por seu turno, Braunde Mechendura. Uma das dificuldades que afectam em parte o jardim, de acordo com os nossos entrevistados, é a sua localização, pois a Faculdade de Medicina está próxima do mar, no bairro das Palmeiras2, o que faz com que algumas plantas não desenvolvam convenientemente. A outra relacionase com a escassez de algumas plantas medicinais que poderiam engrossar o jardim e o facto de se ter que mandar vir estas de regiões recônditas, respectivamente. “Temos aqui a planta Artemisia que é um dos componentes antimaláricos, a conhecida Artimisina. Repare que na Tanzânia e Kenya, por exemplo, há grandes farmas que produzem esta planta e depois fornecem as produtoras de antimaláricos” - explicou Michael Nyce. HÁ CASOS DE INTOXICAÇÃO Maputo, Quarta-Feira, 4 de Março de 2009:: Notícias Contactadas pelo nosso matutino, as autoridades sanitárias na província de Sofala, pela voz do respectivo médico-chefe provincial, Isaías Ramiro, afirmaram que lamentavelmente têm havido intoxicação de pessoas devido à administração exagerada de doses de medicamentos tradicionais, particularmente por parte dos ervanários e/ou curandeiros. Ramiro revelou ainda que os casos mais frequentes têm sido nas mulheres grávidas e crianças. “Temos conhecimento de vários casos de intoxicação de doentes em toda a província devido à administração de medicamentos tradicionais em doses exageradas, sobretudo por parte dos ervanários e/ou curandeiros. São diagnósticos clínicos que ocorrem maioritariamente nas crianças e mulheres em trabalho de parto” - explicou. Sem indicar dados numéricos, Ramiro especificou que no caso de mulheres em trabalho de parto isto verifica-se pelo facto destas tomarem os medicamentos tradicionais para alegadamente acelerarem o parto, o que acaba sendo muitas vezes fatal tanto para a mãe como para a criança. “As mulheres naquele estado tomam as raízes ou ervas para acelerarem o parto e isso estimula essa aceleração acabando, não poucas vezes, afectando o parto causando a morte da parturiente e seu filho ou, nalguns casos, de um deles” - disse Isaías Ramiro. António Janeiro