AS DIFERENÇAS CULTURAIS E A EDUCAÇÃO NA (RE)

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AS DIFERENÇAS CULTURAIS E A EDUCAÇÃO NA (RE) CONSTRUÇÃO
DA IDENTIDADE ÉTNICO-RACIAL
GT-4
Maria José de Jesus Alves Cordeiro
UEMS
Doutoranda em Educação
Resumo
Negros e indígenas de acordo com dados estatísticos não chegam à universidade o que lhes
impede também a chegada ao mercado de trabalho qualificado, a construção ou re-construção de
uma identidade étnico-racial, consciência política e, portanto a mudança de classe social. O
termo re-construçaõ é usado por alguns autores na expectativa de explicar que esta identidade já
existe em cada um de nós, porém o contexto interétnico sob o qual vivemos no Brasil provoca
um abafamento da identidade étnica positiva do negro e do indígena, impossibilitando os
mesmos de lutarem contra o sistema de opressão existente, fazendo-os assumirem uma postura
de submissão, introjeção e alimentação de imagens e valores considerados negativos a respeito
de si mesmo e de seu povo. Na sociedade brasileira, as características físicas das pessoas
funcionam como meio de classificação e a construção da identidade torna-se um processo
difícil. O tema da identidade tornou-se objeto de interrogação tanto nos debates sobre relações
raciais quanto no meio acadêmico como objeto de estudo. Para falar de identidade não podemos
ignorar as relações raciais presentes na sociedade e no nosso dia -a-dia. São estas que impedem o
reconhecimento igualitário das pessoas, principalmente os negros e indígenas. Este
reconhecimento constitui-se das atividades diárias de superação da discriminação, preconceitos,
estereótipos, estigmas, rótulos e outras expressões que obstaculizam o desenvolvimento e
cumprem o papel de integrar a população negra e indígena na sociedade de classes de forma
subalterna.
Palavras -chave: identidade, cultura, educação, raça, etnia.
INTRODUÇÃO
“O mito de democracia racial, baseado na dupla mestiçagem
biológica e cultural entre as três raças originárias, tem uma
penetração muito profunda na sociedade brasileira: exalta a
idéia de convivência harmoniosa entre os indivíduos de todas as
camadas sociais e grupos étnicos, permitindo às elites
dominantes dissimular as desigualdades e impedindo os
membros das comunidades não-brancas de terem consciência
dos mecanismos de exclusão da qual são vítimas na sociedade”.
(MUNANGA, 2004 - p. 89).
A crença de que negros e mulatos são inferiores aos brancos na sua capacidade
intelectual, portanto incapazes, vigora ainda na sociedade e na academia brasileiras,
agora sob a forma de um discurso mais ameno e plenamente justificável do ponto de
vista do capitalismo: o discurso meritocrático. Este defende a idéia de que só vencem os
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melhores, os mais capazes, no caso brasileiro, os brancos ricos e depois os brancos
pobres. Negros e indígenas, de acordo com dados estatísticos, não chegam à
universidade o que lhes impede também a chegada ao mercado de trabalho qualificado,
a construção ou re -construção de uma identidade étnico-racial, uma consciência
política e, portanto, a mudança de classe social.
O termo re-construção é usado por alguns autores na expectativa de explicar que
essa identidade já existe em cada um de nós, porém o contexto interétnico, no qual
vivemos no
Brasil provoca um abafamento da identidade étnica positiva do negro e do
indígena, impossibilitando estes de lutarem contra o sistema de opressão existente,
fazendo-os assumirem uma postura de submissão, introjeção e alimentação de imagens
e valores considerados negativos a respeito de si mesmos e de seu povo, auxiliando na
manutenção do sistema de discriminação e racismo que tem seu nascedouro no
eurocentrismo, base da cultura brasileira.
A busca e a consolidação de uma identidade étnico-racial por parte dos negros e
indígenas, respeitando as raízes africanas, indígenas e européias, que possibilite o
desconstruir dessa ideologia, passam pelo entendimento e apropriação de um conceito
de cultura defendido por GEERTZ no qual o comportamento humano é visto como ação
simbólica modelada pelas práticas sociais conceitualmente ordenadas.
Além disso, é necessário desencadear um processo de percepção por parte de
negros e indígenas relativo às “forças de atração e repulsão”, que para LOUREIRO
(2004) mantém as chamadas “minorias sociais” (KABENGELÊ - 2004 - chama de
“maiorias silenciosas”) presas ao sistema, dificultando uma visão crítica deste e
impossibilitando a ascensão social dessas minorias.
Somente a partir dessa percepção, será possível a construção ou re-construção de
conceitos de raça e etnia que conduzam a um conceito mais consolidado de identidade
étnico-racial que realmente represente a população brasileira, desbancando a ideologia
da mestiçagem, que tem como propósito passar uma imagem aparente de tolerância e
paraíso racial. Mas escondendo um cruel processo de racismo, pois fazem com que as
vítimas (negros e índios) se sintam culpadas pelo próprio fracasso, incapazes e não
merecedoras das benesses que os brancos usufruem.
Assim, neste artigo, proponho fazer uma discussão dos conceitos de cultura e
identidade que estão sendo usados no discurso dos negros e indígenas, e, de como esses
conceitos são importantes na construção ou re-construção da identidade étnico-racial
destes. Além disso, procurarei fazer uma relação deste entre este processo de (re)
construção e a educação.
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CULTURA E IDENTIDADE: Negros e Indígenas Vítimas da Mesma
Ideologia
O racismo é um fenômeno que tem suas raízes na história da humanidade.
Quando, a partir do Renascimento, o progresso técnico permitiu a Europa dominar o
mundo, várias ideologias surgiram para explicar e justificar essa dominação,
defendendo a idéia de existir na Europa uma raça superior às outras. Na Península
Ibérica, em fins do século XV, pouco antes do Renascimento, portanto, foi criada uma
lei que pode ser considerada a matriz do racismo. Foi quando uma legislação de fundo
religioso “O Estatuto da Pureza de Sangue” espalhou o terror entre os judeus
convertidos e os novos cristãos, perseguidos por serem considerados impuros em face
dos cristãos de primeira hora. Mais tarde, passaram a englobar a lista das raças de
“sangue infecto”: os negros, os mulatos, os mouros, os indígenas e os ciganos, ao lado
dos judeus.
Assim, uma lei discriminatória de essência religiosa converteu-se numa
legislação racista contra todos aqueles considerados “impuros” e serviu de justificativa
para atos bárbaros cometidos tanto na metrópole quanto nas colônias. Era o sonho de
pureza. Para BAUMAN (1998), “a pureza é um ideal, uma visão da condição que ainda
precisa ser criada, ou da que precisa ser diligentemente protegida contra as
disparidades genuínas ou imaginadas. (...) é uma visão da ordem”. (p.13)
O oposto da pureza é o imundo, o sujo, o que está fora do lugar, causando
desordens. Existem coisas para as quais não foi guardado um lugar certo, entre estas, os
negros e os índios com suas culturas e identidades próprias. De acordo com BAUMAN
(1998), a maior dificuldade que o modelo da pureza enfrenta é o rompimento das
fronteiras que os grupos considerados impuros fazem, convidados ou não, zombando
assim dos esforços de quem imagina ter o controle da pureza, portanto, da ordem.
No modelo de pureza que impera desde a colonização, negros e indígenas são
vistos como “sujeira”, elementos estranhos à ordem. Uma forma que o grupo dominante
encontrou para assegurar a ordem ou a pureza foi o trabalho de purificação e a
colocação em ordem (BAUMAN, 1998), ou seja, o processo de miscigenação racial, na
esperança de que com o tempo os fenótipos de negros e indígenas fossem absorvidos
pelas características fenotípicas do branco.
Entretanto, o resultado esperado não aconteceu. Pelo contrário, gerou para os
mestiços (pardos, morenos, mulatos, etc.) uma situação contraditória no tocante a
construção de suas identidades pessoal e social. Vivem em crise: não é branco, não é
aceito socialmente pelos brancos como igual e a maioria não se define como negro. São
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vítimas do racismo tanto quanto os demais, apenas em menor grau, pois como diz o
ditado popular, na sociedade brasileira passou de branco é negro.
A mestiçagem tornou-se uma ideologia que até hoje está viva na sociedade
brasileira. Neste mo mento, devido à reivindicação de cotas para negros e políticas
específicas para os indígenas, começa um movimento de louvação a respeito da
mestiçagem (criação no Estado do Amazonas do dia do mestiço) e do caráter
democrático do Brasil em relação à mistura e ao tratamento igual para todos os
brasileiros de todas as cores, reedição das obras de Gilberto Freire e um discurso de que
as cotas vão trazer à tona conflitos raciais.
A escravidão, tal como foi concebida, entrou em declínio, mas o preconceito
racial sobreviveu à abolição da escravatura, em grande parte porque se renovou; desta
vez não mais sob o manto da superioridade biológica que justificou e deu suporte às
barbaridades cometidas contra os negros, o genocídio indígena e mais tarde contra os
judeus na 2ª Guerra Mundial, mas sob outra roupagem: a que destaca as diferenças
culturais entre grupos “étnicos”. Por exemplo, ideólogos da direita conservadora
britânica, para justificarem controles de imigração mais rígidos, defendiam a idéia, na
década de 1980, de que existiam diferenças culturais entre povos europeus e nãoeuropeus.
O racismo, dessa maneira, passou do argumento biológico para o cultural e do
argumento racial para o étnico. Afinal, etnicidade é um conceito muito amplo, sob o
qual pode ser dis criminado qualquer grupo em razão da língua, religião, costume,
características físicas, ou mesmo em razão da percepção compartilhada de um passado
comum, isto é, da própria história de determinado grupo. Esta serve de argumento para
uma nova forma de discriminação.
“O ser humano é, assim, moldado pela sociedade e assimila sua cultura desde o
nascimento. Como resultado, a cultura de determinada sociedade se torna tão familiar
aos indivíduos que fazem parte dela, que diante dos seus olhos tudo parece natural,
como se fosse um desdobramento da natureza humana. Em contrapartida, a cultura de
outros povos é vista com estranheza: costumes exóticos, sem sentido, absurdos ou
mesmo cômicos”.(JUNQUEIRA, 2002 - p. 19 e 20).
O processo de naturalização acima citado serve bem para exemplificar a forma
natural como a sociedade brasileira vem tratando o racismo, o preconceito e as diversas
formas de discriminação encontradas no seu cerne, sendo os negros e indígenas os
principais alvos ou as vítimas desde os tempos da colonização.
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O tratamento preconceituoso, discriminatório e racista tem como fundamento
os estigmas criados e mantidos pela sociedade que, segundo GOFFMAN (1988), desde
os tempos dos gregos foram criados para se referir aos sinais corporais que evidenciam
o extraordinário ou o mau sobre o status moral do indivíduo. Nesse sentido é o
ambiente social o responsável pela categorização das pessoas de acordo com as
marcas/estigmas que apresentam. No caso brasileiro, os negros e os índios são
estigmatizados pelo fe nótipo (a partir da cor da pele, dos traços fisionômicos, etc.) e
cultura, tornando-os susceptíveis a aceitarem a forma como são vistos pelos outros,
podendo inclusive aceitar o estigma como algo natural e, ainda, entrar num processo de
autodepreciação, usando o estigma como desculpa para fracassos ocorridos por outras
razões. Assim, para esse autor há uma relação entre identidade e estigma.
No processo de interação social a que todo o humano é submetido, o estigma a
ele atribuído (caso dos negros e indíge nas) serve de parâmetro para a inferência de
outras características indesejáveis e passa a reger a relação social, dificultando ou até
impedindo a mobilidade social do indivíduo. Para isso, são criadas ideologias, tais como
a democracia racial e a meritocracia com o fito de manter o estigmatizado na periferia
do sistema, lugar que GOFFMAN chama de menos valia. A pessoa estigmatizada
geralmente é insegura em relação a como os demais a percebe e sobre como será
recebida ou tratada no contato social, o que GOFFMAN chama de identidade
deteriorada, isto é, o resultado do impacto da estigmatização étnico-racial na
identidade pessoal. Esse impacto é causado pelas atitudes de discriminação, preconceito
e racismo sofrido pelo estigmatizado.
A educação (escola) é considerada um estruturante social, contudo, um dos
sintomas da cultura em que vivemos é a desestruturação dos estruturantes, ocasionando
uma ruptura do tecido da sociabilidade. Isso favorece no bojo da mesma, a geração e a
reprodução de situações discriminatórias e racistas. Para combatê-las um dos
instrumentos são as ações afirmativas na educação, porém, registra-se uma resistência
por parte dos brancos e até de grupos de não-brancos em relação à criação e a
implantação de ações afirmativas voltadas para reparações étnico-raciais. É o fruto de
uma cultura que vem mantendo o controle social, político e econômico há séculos.
Essa resistência às ações afirmativas tem a ver com a importância dada ao
conhecimento como um dos pilares do desenvolvimento humano e o desempenho de
papéis que o mesmo fará durante sua história. Para BERGER e LUCKMAN (1985):
“Em virtude dos papéis que desempenha, o indivíduo é introduzido em áreas
específicas do conhecimento socialmente objetivado, não somente no sentido
cognoscitivo estreito, mas também no sentido do `conhecimento' de normas, valores e
mesmo emoções”.(p. 106).
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Dessa forma, o ingresso de negros e índios no ensino superior caracteriza-se como
acesso ao conhecimento identificado pelos autores acima citados e, portanto, funciona
como abertura de portas ao acervo total dos conhecimentos acumulados pela sociedade
dominante, neste caso, a população branca e a academia. Esse acesso implica “na
distribuição social do conhecimento”.(p. 108).
De acordo com AZEVEDO (2004), o racismo desde o século passado vem sendo
considerado uma construção ideológica, produto de conjunturas históricas nas quais as
classes dominantes se apóiam para justificar cientificamente, no passado, a importação
de europeus e a inferiorização dos negros, índios e miscigenados, e, hoje, justificar as
diversas formas de discriminação social, educacional e econômica que estes grupos
sofrem.
No entanto, esses grupos, mesmo sendo tratados como mercadoria, sujeitos a-históricos
ou propriedade do outro, não deixaram de praticar ações e reações que denotassem a sua
presença: os negros com suas fugas pela liberdade e os indígenas com a resistência à
escravidão. Podemos ler essas ações e reações também como uma luta pela manutenção
da própria identidade.
Para CIAMPA (2002), no esforço de estabelecer relações entre políticas de
identidade e identidades políticas,
“os grupos sociais lutam pela afirmação e pelo desenvolvimento de suas identidades
coletivas, no esforço de controlar as condições de vida de seus membros; indivíduos
buscam a transformação e o reconhecimento de suas identidades pessoais na tentativa
de resolver conflitos em face de expectativas sociais conflitantes.” (p. 01).
Quando analisamos a história da Severina presente na obra de CIAMPA
intitulada A Estória do Severino e a História da Severina, percebemos nesta um
movimento progressivo em busca da emancipação, a mesma que os negros e indígenas
buscam, vista como um horizonte no qual a liberdade de escolha e a igualdade moral
possam servir de alicerces para o desenvolvimento integral do indivíduo, tornando-o
sujeito com capacidade de dizer sim ou não ao outro e com desejo de criar uma história
pessoal. Os grupos minoritários buscam desenvolver sua identidade associada a uma
política de emancipação. E as cotas são percebidas como uma destas políticas.
Ao falar de identidade, CIAMPA trabalha com o conceito de metamorfose, que
se dá de forma contínua durante toda a vida, ou seja, um morrer e viver diário, como no
caso da Severina. Nesse sentido, há uma re-construção da identidade construída. No
caso da identidade étnico-racial, o processo de transformação ou metamorfose passa por
alguns momentos específicos partindo do momento em que tomamos consciência da
discriminação sofrida e a força nele contida; da luta interior gerada pelo processo de
submissão e desejo de insubordinação; da sensação de raiva e angústia que nos força a
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reconhecer nosso fenótipo étnico-racial, desarticulando nosso mundo simbólico,
trazendo confusão e desamparo.
Acontece então, um conflito entre a identidade construída e a busca de uma nova
identidade. É um processo gradual que muitas vezes não é visível, mas que tem como
base a tormenta interior e os sentimentos de frustração, raiva, culpa e angústia. Neste
momento, dá-se a descoberta de outra concepção: seja a negritude para os negros ou a
indianidade para os indígenas.
Para BERGER e LUCKMAN (1985), a identidade é considerada um elemento
chave na realidade subjetiva, formada por processos sociais e, portanto, na relação
dialética com a sociedade e “uma vez cristalizada, é mantida, modificada ou mesmo
remodelada pelas relações sociais”.(p. 228). Todavia, para que haja descristalização é
necessária uma tomada de consciência por parte do indivíduo no que se refere ao papel
que desempenha e uma percepção de pertença a um grupo.
FERREIRA (2004), ao falar do sentido positivo de si mesmo (o que ERICKSON
in: LOUREIRO, 2004 chama de identidade positiva), aponta a necessidade de pertencer
a um grupo sem idéia de superioridade ou inferioridade como algo importante para a
saúde psicológica do indivíduo, neste caso os negros e índios. Não podemos esquecer
que a relação dominação/subordinação presente desde o nascimento, sedimentada
durante a infância e a adolescência pelos processos sociais vividos princ ipalmente na
escola e alimentada pelo grupo hegemônico, leva à inibição da “capacidade de advogar
seus interesses culturais, políticos e econômicos aos quais tem direito como
cidadão”.(p. 72). LOUREIRO (2004) coloca que para a pessoa negra - e acrescentamos
muitos indígenas -, “... é dado um ideal de ego branco, (...) negado o seu grupo de
pertencimento, dificultando ou impossibilitando a construção de uma identidade étnica
com representação positiva de si mesmo”.(p. 81).
Identidade Étnico-Racial
De que maneira a imagem ideologizada dos negros como incapaz
intelectualmente, rude, bárbaro cultural afetou e afeta até hoje a construção ou a reconstrução da identidade dos negros?
Para SILVA (2005), existem vários conceitos de identidade e esse termo nos
remete sempre à noção de singularidade, “à sensação de que possuímos uma existência
própria formada por uma totalidade integrada” (p. 37). Para a autora em referência,
essa forma de olhar a identidade pode resultar num processo de autodefinição, de como
cada indivíduo consegue ao longo do seu desenvolvimento internalizar as características
que lhe são atribuídas socialmente.
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Na sociedade brasileira, as características físicas das pessoas (fenótipos)
funcionam como meio de classificação, logo a construção da identidade se torna um
processo mais difícil e, diríamos, mais doloroso para os negros. Com isso e em
decorrência do racismo inerente a esse modo de classificar as pessoas, o tema da
identidade torna-se objeto de interrogação, tanto nos debates sobre relações raciais
quanto no meio acadêmico como objeto de estudo.
Partindo do princípio de que a construção da identidade é histórica, podemos
afirmar que esta se dá no jogo das relações sociais, ou seja, da relação indivíduosociedade. É nessa relação que se obtém o reconhecimento do outro e o fortalecimento
do sentimento negativo ou positivo de identidade. Portanto, para falar de identidade não
podemos ignorar as relações raciais presentes na sociedade e no nosso dia-a-dia.
Relações essas que impedem o reconhecimento igualitário das pessoas, principalmente
os negros e indígenas. Esse reconhecimento se constitui das atividades diárias de
superação da discriminação, preconceitos, estereótipos, estigmas, rótulos e outras
expressões concretizadas em atitudes que obstaculizam o desenvolvimento e cumprem o
papel de integrar as populações negra e indígena na sociedade de classes de forma
subalterna.
Ao analisarmos a trajetória dessas populações na construção de sua identidade,
temos que considerar as várias formas de expressão do racismo e de como estas, no
decorrer da história de vida do negro e do índio, torna-se o principal fator de
desvalorização de suas matrizes raciais e, por conseguinte, de sua cultura. Para a
sociedade brasileira, os negros estarem em posição de subalternidade não é visto como
desigualdade social ou racismo, mas sim como um processo natural, com raras
exceções. A ideologia da democracia racial esconde uma realidade que vem desde a
abolição da escravatura: a falta de condições sociais e econômicas para essas
populações ascenderem socialmente dentro da sociedade de classes.
Para SILVA (2005), “o processo de fortalecimento da identidade racial
brasileira é uma possibilidade de enfrentamento da discriminação racial”. (p. 40). Esse
fortalecimento se dá pela valorização dos vários componentes da matriz cultural
africana, ou seja, componentes fenotípicos, lingüístico, artístico e intelectual, pois para
SANTOS (2005),
“A marcante contribuição cultural da população negra definiu este espaço como o
único lugar de expressão social, ao mesmo tempo em que a ideologia de acomodação
dos conflitos sociorraciais, conhecida por mito da democracia racial, sustentou a
subalternidade do negro na sociedade de classe brasileira, à medida que não ocorria
uma maior expressão da população negra em outros espaços sociais”.(p. 47).
Considerando que da ótica da sociologia toda e qualquer identidade é construída,
a re-construção também é sociológica, pois envolve atores sociais e tem como base um
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conjunto de atributos culturais e um contexto marcado por relações de poder. Negros e
indígenas vivendo e convivendo neste ambiente social desenvolvem uma identidade de
resistência que segundo CASTELLS (1999) deriva do fato dos mesmos estarem em
posições ou condições estigmatizadas pela lógica da dominação. O advento das cotas ou
das ações afirmativas em geral pode dar a esses atores sociais a possibilidade de
construção ou re-construção de uma nova identidade. Essa nova identidade dará aos
negros e indígenas, de acordo com CASTELLS (1999) a capacidade de “... redefinir
sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, de buscar a transformação de toda estrutura
social” (p. 24), ou seja, adquirir expressão em outros espaços sociais.
Os negros e indígenas precisam resgatar e assumir seus valores, sua beleza, sua
cultura e não renunciar a sua identidade étnico-racial. Para LOUREIRO (2004), “... não
tentar se assemelhar ao modelo branco e reivindicar um lugar ao sol valorizando sua
própria etnia ou raça, desequilibra ambas as forças que atuam no sistema: a atração e
a repulsão”(p. 92), que os mantêm presos à periferia do sistema social.
A imagem criada e fortalecida ao longo do tempo a respeito dos indígenas foi a
de um ser hostil, indolente e ocioso, possuidor de forte espírito de liberdade, portanto,
mais difícil de escravizar. Segundo RIBEIRO (1996), quando um grupo indígena
consegue manter suas famílias unidas (pais e filhos) a identificação étnica tribal
permanece viva, dando aos mesmos a capacidade de resistir às guerras, à transformação
ambiental de seu habitat, ao assédio religioso e outras formas de europeização. A etnia
demonstra dessa forma, ser uma das maiores forças da cultura humana.
Para o autor, a única força a qual a identidade étnica não resiste é:
“... a escravização pessoal que, desgarrando as pessoas de sua comunidade, as
transforma em mera força de trabalho, possuídas por um senhor e vivendo a existência
que ele lhe impõe. (...) Só conseguem assim desculturá-los, transformando-os em
ninguéns, que não sabem de si e não servem para ser índios nem civilizados”.(p. 12).
A passagem da condição de índio para a de índio civilizado/aculturado acontece
sob pressões de toda ordem, obrigando o povo indígena a modificar seus modos de ser e
de viver para resistir e sobreviver a essas pressões que continuam acontecendo até os
dias de hoje. Atualmente, muitos grupos indígenas engolidos pela fronteira da
civilização e influência religiosa (que não discutimos aqui), vêem-se obrigados a
converter-se em trabalhadores assalariados ou a tentarem produzir alguma mercadoria
que lhes garanta condições mínimas de sobrevivência.
Quando foi criado o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de
Trabalhadores Nacionais em 20 de julho de 1910, através do Decreto nº. 8072, hoje
FUNAI, este previa a civilização dos índios e o respeito aos povos indígenas; o direito
de ser eles próprios, professarem suas crenças, viverem a seu modo, ficarem em seu
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território e serem protegidos, bem como proibia o desmembramento da família
indígena sob a alegação de educação ou catequese. Se cumprida esta última parte,
provavelmente a identidade étnica dos indígenas não estaria tão deteriorada como se
apresenta hoje. Entretanto, isso pouco funcionou na época de Rondon como também
não funciona agora.
No Brasil, uma nação diversa e pluriétnica, após mais de 500 anos de
colonização, os indígenas ainda enfrentam desafios e realidades que colocam em risco
sua diversidade cultural e a própria sobrevivência como pessoa humana. A constante
defesa contra situações de discriminação, intolerância, preconceito e desrespeito aos
direitos já preconizados na Constituição Federal de 1988, Decretos e Leis específicas,
bem como em Políticas Públicas, mostra que a sociedade brasileira, na sua quase
totalidade, desconhece a realidade indígena e a importante contribuição desse povo na
identidade étnico-racial brasileira, além da influência cultural no nosso modo de vida.
A saída dos indígenas de suas comunidades ou tribos para cursarem o ensino
superior não é vista por estes como a perda de identidade, mas como uma possibilidade
de combate a todo contexto discriminatório. De acordo com (CARVALHO in:
SANTOS e SILVA 2005) “... a abordagem da identidade indígena deve considerar a
natureza coletiva dos interesses dos povos e comunidades indígenas”.(p. 123). O que se
lamenta é a falta de políticas públicas que garantam a permanência dos indígenas nas
cidades, enquanto estudantes, ocasionando a desistência da maioria deles, tirando o
sonho da conquista das mesmas armas utilizadas pelo branco contra seu povo
(conhecimento, tecnologia), impedindo a divulgação de sua cultura e sua auto-afirmação
identitária como indígena e acadêmico no espaço universitário.
Cultura Nacional e Identidades Culturais
A construção da identidade requer um laço entre a ordem social como projeto e a
vida de cada um como projeto, requerendo esforços coletivos no sentido de assegurar
um cenário de confiança, estável e duradouro, que dê a possibilidade de prever os atos e
escolhas individuais.
LIPOVETSKY (2004) ao discutir hipermodernidade fala de uma necessidade
crescente de identidade comunitária ou um novo modo de identificação coletiva.
Afirma ainda que na sociedade tradicional a identidade cultural bem como a religiosa
foi vivida como algo natural, excluindo as escolhas individuais. No entanto, para ele
isso acabou, pois a “filiação identitária é um problema, uma reivindicação, um objeto
de apropriação dos indivíduos” (p. 95). Isso significa uma maneira de construir-se,
autodefinir-se e auto-afirmar-se. Se antes, a identidade cultural era institucionalizada,
hoje, ela é uma questão individual.
Para LIPOVETSKY (2004),
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“Já não basta sermos reconhecidos pelo que fazemos na condição de cidadãos livres
e iguais perante os outros: trata-se de sermos reconhecidos pelo que somos em nossa
diferença comunitária e histórica, pelo que nos distingue dos outros grupos. (...) um
desejo de hiper-reconhecimento que, recusando todas as formas de desdém, de
depreciação, de inferiorização do eu, exige o reconhecimento do outro como igual na
diferença”. (p. 95).
HALL (2005), quando discute a questão da identidade, argumenta que as velhas
identidades que sustentavam o mundo social estão em declínio e estão surgindo novas
identidades que fragmentam o indivíduo moderno, visto como unificado. A identidade
cultural e a crise de identidade são vistas pelo autor como uma forma de mudança que
vem deslocando as estruturas e processos centrais da sociedade moderna, abalando as
referências de ancoragem no mundo social. Ainda para o autor, no mundo moderno as
culturas nacionais se constituem em uma das principais fontes de significados para a
identidade cultural nas quais as diferenças regionais e étnicas estão subordinadas ao
estado-nação. Para ele, cultura nacional é “um discurso - um modo de construir
sentido que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de
nós mesmos”.(p. 50).
Sendo assim, esse discurso tenta se equilibrar entre a tentação de retornar ao
passado de glórias e a vontade de avançar para o futuro. É nessa perspectiva que se
encaixa a ideologia da mestiçagem. Porém, esse retorno ao passado “oculta uma luta
para mobilizar as pessoas para que purifiquem suas fileiras, para que expulsem os
outros que ameaçam sua identidade e para que se preparem para uma nova marcha
para frente”. (p. 56).
A cultura nacional tem como objetivo unificar os membros de uma sociedade
numa identidade cultural, não importando as diferenças de classe, gênero ou raça, como
advoga a ideologia da mestiçagem. Para HALL (2005), “Ela é também uma estrutura
de poder cultural”. (p. 59). A história nos mostra que essa unificação nos lugares onde
ocorreu foi sob processo de conquista violenta, forçando a supressão da diferença.
Considerando que as nações são constituídas de diferentes classes sociais e diferentes
grupos étnico-raciais, esse autor acredita que deveríamos pensar a cultura nacional
como representação da diferença como identidade, pois a idéia de unificação fica cada
vez mais difícil.
As nações modernas são “híbridos culturais”. Não há nenhuma nação composta
de uma única cultura, etnia ou povo. No Brasil, o grupo hegemônico luta para manter
essa idéia viva sob o título de democracia racial. Entretanto, aos poucos os grupos
minoritários, principalmente os negros e indígenas, vêm se organizando e deixando de
ser uma maioria silenciosa com o objetivo de romper as barreiras construídas
ideologicamente para mantê- los na periferia do sistema social. Assim, a idéia de uma
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nação como uma identidade cultural única fica prejudicada, pois não se consegue
ficar livre do jogo do poder, das contradições e das formas de diferenças inerentes à
mesma.
Considerações Finais
Como esse sujeito fragmentado é colocado em termos de suas identidades
culturais, em especial a identidade étnico-racial?
Vivemos uma cultura que ninguém consegue nominar. A complexidade
intrínseca e a forma como se apresenta (contemporânea) e a infinita gama de teorias,
análises e abordagens sobre a mesma dificultam o processo de nominação. Na cultura
contemporânea, predomina o individualismo e existe um processo de dissimulação, no
qual os sujeitos assumem a condição de indivíduos. Com a redução do sujeito a
indivíduo temos um processo equivalente de massa/grupos com indiferenciação e
anonimato. Dá-se a valorização da massa, não há reconhecimento e valorização dos
grupos como identidades culturais, ressai que as duas figuras dominantes são o
indivíduo e a massa. Do ponto de vista da cultura contemporânea, não cabe à mesma
reconhecer a diversidade, entretanto, não pode ignorá- la, oferecendo o diverso que não
passa de plural. Também não permite a identidade, da qual o conceito está em crise.
A cultura contemporânea está marcada pela busca da felicidade. A mesma
entrega ao homem simulacros de felicidade, gerenciando as demandas do indivíduo, que
através do trabalho, da renúncia e de outros mecanismos se entrega, pede, e, a cultura
lhe dá migalhas. O propósito dos indivíduos é ser feliz no corpo, na natureza e na
relação com os outros. O jogo entre cultura e indivíduo é falso. Esta cultura é a da
exclusividade: o individuo precisa ser bom em uma única coisa. Por isso, a resistência
acirrada do branco contra o ingresso de negros e indígenas no Ensino Superior que
proporciona a distribuição do conhecimento, levando-os a serem bons em alguma coisa,
ocasionando assim a divisão do espaço social e uma nova identidade.
É do jogo entre a cultura e o indivíduo que se dá a construção ou re-construção
da identidade, que se transforma ao longo da história. Esta é construída de forma
contínua, não é autônoma nem passiva, pois as pessoas mudam e interferem nas
relações e instituições. A função da identidade como elemento chave da realidade
subjetiva é permitir aos indivíduos se situarem num determinado grupo, através da
compreensão de si mesmos frente aos projetos nos quais se engajam.
Indubitavelmente, a identidade, como um fenômeno que deriva da relação
dialética entre o indivíduo e a sociedade, nasce e se desenvolve a partir do nosso
pertencimento a culturas étnicas e raciais. A construção da identidade étnico-racial de
negros e indígenas vai depender dos grupos e das instituições com os quais os mesmos,
ao longo da vida, terão contato, participação e sentimento de pertença, favorecendo a
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formação como sujeito. A educação, como mecanismo de apropriação do
conhecimento e de cultura, deve contribuir nesta tarefa, dando a essas duas minorias a
condição de se sentirem e fazerem parte da cultura nacional e senhor de sua própria
identidade.
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- Partes deste artigo integram outros textos de minha autoria publicados e em fase de
publicação em anais de eventos, com as devidas atualizações.
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